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58 v 17 DE SETEMBRO DE 2009
J
oão Almeida Santos trabalha
todos os dias em São Bento, na
equipadeassessorespolíticosdo
primeiro-ministro. Mas a ideia
deelaborarumatesededoutoramentoso-
bre a relação da política com os media já
a tinha quando aceitou o convite de José
Sócrates. Agora, à luz do que sabemos, o
trabalho académico parece saído do calor
dopresente.Emborafosseumaideiaanti-
ga.OPoderMediáticoeaErosãodaDemocra-
cia Representativa, nome que deu à disser-
tação, é o «resultado de uma investigação
académica de nove anos» garante, muitas
vezes,oautor,aolongodaconversacoma
VISÃO.Esublinhaqueestanãoé,necessa-
riamente, a cartilha pela qual o primeiro-
-ministro se rege em relação à imprensa.
Mas, quando a obra de João Almeida San-
tosforeditadaemlivro–jáháacordocom
uma editora catalã –, não espantaria que
o chefe de Governo aceitasse prefaciar as
quase600páginasemqueopoderdosme-
dia surge como dono de «um protagonis-
mo excessivo na vida
políticaecomumain-
fluêncianefastaparaa
democracia tal como
aconhecemos».
Almeida Santos sustenta que a «legiti-
midade electiva» de um governante está
cada vez mais reduzida, em prol de uma
«legitimidade flutuante» em que o exer-
cício do poder se encontra dependente da
flutuação da imagem dos governos nos
media, sondagens e estudos de opinião.
Na lógica do autor – docente e investiga-
doruniversitáriodesde1974–,«ovotoser-
ve, sobretudo, apenas para a designação
formal dos eleitos e não para conferir um
mandato irrevogável». A estabilidade go-
vernativa, essa, assenta cada vez mais no
«controlo remoto» exercido pelos media,
situação na qual «os cidadãos foram redu-
zidosaespectadorespassivos».
Embora os últimos meses de crispação
entreoGovernoSócrateseaimprensaes-
tejam fora desta tese, o autor diz à VISÃO
queacoberturadocasoFreeportpelaTVI
«extravasoutudoeesteveabaixodolimiar
da dignidade humana». Mas embora se
mostrecompreensivocomascríticasafia-
das que o primeiro-ministro fez ao Jornal
Nacionalde6.ªfeira–«éumhomemquese
ofende como todos os outros» –, Almeida
Santos também considera que, «se é ver-
dadequeosmediasedevemrefocarnasua
vocaçãooriginal,tambémos políticostêm
de encontrar uma linguagem adequada
paralidarcomapressãomediática».
AJUSTE DE CONTAS
Nesta tese – que obteve nota máxima na
Universidade Complutense de Madrid –,
o autor escolheu as legislativas de 1999 e a
derrocada do guterrismo, em 2002, para
sublinhar a sua teoria. Fez uma resenha
dos 148 comentários publicados em 9 diá-
rios e sete semanários após as eleições de
10 de Outubro de 1999 e constatou que 77
dessas peças faziam um juízo negativo so-
bre o score eleitoral do PS, ou seja, «cobri-
ramanegroomelhorresultadodesempre
dopartido[44%dosvotose115deputados]
só porque não foi atingida a maioria abso-
luta. Triunfou o juízo de expectativa dos
media, baseado numa construção do real,
sobreojuízofactualerealdovoto».Guter-
res abandona São Bento dois anos depois
e se, para muitos, isso resultou do colapso
das políticas do PS, para Almeida Santos
deveu-se«àcontinuaçãodojuízonegativo
dosmediaapósaslegislativas».
JOÃO ALMEIDA
SANTOS Um olhar
severo sobre a
comunicação
social
LIVRO
PORTUGAL
O ‘controlo remoto’
do poder
Um assessor de José Sócrates fez uma investigação
académica sobre a relação dos media com a política.
Alguém se arrisca a adivinhar o que concluiu?
POR TIAGO FERNANDES
FOTOS:JOSÉCARLOSCARVALHO
17 DE SETEMBRO DE 2009 v 59
AquificaclaronãoserAlmeidaSantosum
investigador asséptico: o próprio assume
que tratar este assunto é uma espécie de
ajustedecontascomopassado,elequefoi
chefe de gabinete de vários ministros, no
segundo mandato de Guterres. «Foi por
ter lidado de perto com insinuações falsas
quemeabalanceiafazerestatese»,afirma.
«A imprensa criou estereótipos absurdos
sobreGuterresequesetornaramverdade
para as pessoas, como aquele em que ele
passava o tempo todo no estrangeiro por
causadapresidênciaportuguesadaUE.Eu
trabalhava em São Bento e sabia bem que
issonãoeraverdade.»
CRÍTICAS À ERC
Com esta obra demolidora para os media,
não é crível que Almeida Santos venha a
receber muitos postais de Boas-Festas da
partedejornalistas.Edaí,quemsabe,uma
vez que tece bastantes críticas à Entida-
de Reguladora para a Comunicação Social
(ERC), em especial à medida que proíbe
jornais, televisões e rádios de contarem
com comentadores que sejam candidatos
àseleições.«Éumaimposiçãoexternaque
nãofazsentido.Cabeaosmediadecidirem
oqueérelevanteemtermosnoticiosos.»
O assessor de Sócrates diz mesmo que
a ERC «tem uma abordagem excessiva-
mente formalista» e que, pelas suas várias
decisões polémicas «tem produzido mais
ruído do que eficácia». Mas, apesar de
achar que «não há nenhum génio maligno
a comandar os media», concorda em ab-
soluto com a criação desta entidade regu-
ladora: «Se antes existiam para proteger a
imprensa do poder político, hoje existem
para proteger os cidadãos dos abusos dos
media.» Caberá, mais uma vez, ao futuro,
demonstrar quem são mesmo os gatos e
ratosdesteenredo.
TVI «É um homem que se ofende como os
outros», diz o assessor sobre as críticas do
primeiro-ministro ao Jornal Nacional

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  • 1. 58 v 17 DE SETEMBRO DE 2009 J oão Almeida Santos trabalha todos os dias em São Bento, na equipadeassessorespolíticosdo primeiro-ministro. Mas a ideia deelaborarumatesededoutoramentoso- bre a relação da política com os media já a tinha quando aceitou o convite de José Sócrates. Agora, à luz do que sabemos, o trabalho académico parece saído do calor dopresente.Emborafosseumaideiaanti- ga.OPoderMediáticoeaErosãodaDemocra- cia Representativa, nome que deu à disser- tação, é o «resultado de uma investigação académica de nove anos» garante, muitas vezes,oautor,aolongodaconversacoma VISÃO.Esublinhaqueestanãoé,necessa- riamente, a cartilha pela qual o primeiro- -ministro se rege em relação à imprensa. Mas, quando a obra de João Almeida San- tosforeditadaemlivro–jáháacordocom uma editora catalã –, não espantaria que o chefe de Governo aceitasse prefaciar as quase600páginasemqueopoderdosme- dia surge como dono de «um protagonis- mo excessivo na vida políticaecomumain- fluêncianefastaparaa democracia tal como aconhecemos». Almeida Santos sustenta que a «legiti- midade electiva» de um governante está cada vez mais reduzida, em prol de uma «legitimidade flutuante» em que o exer- cício do poder se encontra dependente da flutuação da imagem dos governos nos media, sondagens e estudos de opinião. Na lógica do autor – docente e investiga- doruniversitáriodesde1974–,«ovotoser- ve, sobretudo, apenas para a designação formal dos eleitos e não para conferir um mandato irrevogável». A estabilidade go- vernativa, essa, assenta cada vez mais no «controlo remoto» exercido pelos media, situação na qual «os cidadãos foram redu- zidosaespectadorespassivos». Embora os últimos meses de crispação entreoGovernoSócrateseaimprensaes- tejam fora desta tese, o autor diz à VISÃO queacoberturadocasoFreeportpelaTVI «extravasoutudoeesteveabaixodolimiar da dignidade humana». Mas embora se mostrecompreensivocomascríticasafia- das que o primeiro-ministro fez ao Jornal Nacionalde6.ªfeira–«éumhomemquese ofende como todos os outros» –, Almeida Santos também considera que, «se é ver- dadequeosmediasedevemrefocarnasua vocaçãooriginal,tambémos políticostêm de encontrar uma linguagem adequada paralidarcomapressãomediática». AJUSTE DE CONTAS Nesta tese – que obteve nota máxima na Universidade Complutense de Madrid –, o autor escolheu as legislativas de 1999 e a derrocada do guterrismo, em 2002, para sublinhar a sua teoria. Fez uma resenha dos 148 comentários publicados em 9 diá- rios e sete semanários após as eleições de 10 de Outubro de 1999 e constatou que 77 dessas peças faziam um juízo negativo so- bre o score eleitoral do PS, ou seja, «cobri- ramanegroomelhorresultadodesempre dopartido[44%dosvotose115deputados] só porque não foi atingida a maioria abso- luta. Triunfou o juízo de expectativa dos media, baseado numa construção do real, sobreojuízofactualerealdovoto».Guter- res abandona São Bento dois anos depois e se, para muitos, isso resultou do colapso das políticas do PS, para Almeida Santos deveu-se«àcontinuaçãodojuízonegativo dosmediaapósaslegislativas». JOÃO ALMEIDA SANTOS Um olhar severo sobre a comunicação social LIVRO PORTUGAL O ‘controlo remoto’ do poder Um assessor de José Sócrates fez uma investigação académica sobre a relação dos media com a política. Alguém se arrisca a adivinhar o que concluiu? POR TIAGO FERNANDES FOTOS:JOSÉCARLOSCARVALHO
  • 2. 17 DE SETEMBRO DE 2009 v 59 AquificaclaronãoserAlmeidaSantosum investigador asséptico: o próprio assume que tratar este assunto é uma espécie de ajustedecontascomopassado,elequefoi chefe de gabinete de vários ministros, no segundo mandato de Guterres. «Foi por ter lidado de perto com insinuações falsas quemeabalanceiafazerestatese»,afirma. «A imprensa criou estereótipos absurdos sobreGuterresequesetornaramverdade para as pessoas, como aquele em que ele passava o tempo todo no estrangeiro por causadapresidênciaportuguesadaUE.Eu trabalhava em São Bento e sabia bem que issonãoeraverdade.» CRÍTICAS À ERC Com esta obra demolidora para os media, não é crível que Almeida Santos venha a receber muitos postais de Boas-Festas da partedejornalistas.Edaí,quemsabe,uma vez que tece bastantes críticas à Entida- de Reguladora para a Comunicação Social (ERC), em especial à medida que proíbe jornais, televisões e rádios de contarem com comentadores que sejam candidatos àseleições.«Éumaimposiçãoexternaque nãofazsentido.Cabeaosmediadecidirem oqueérelevanteemtermosnoticiosos.» O assessor de Sócrates diz mesmo que a ERC «tem uma abordagem excessiva- mente formalista» e que, pelas suas várias decisões polémicas «tem produzido mais ruído do que eficácia». Mas, apesar de achar que «não há nenhum génio maligno a comandar os media», concorda em ab- soluto com a criação desta entidade regu- ladora: «Se antes existiam para proteger a imprensa do poder político, hoje existem para proteger os cidadãos dos abusos dos media.» Caberá, mais uma vez, ao futuro, demonstrar quem são mesmo os gatos e ratosdesteenredo. TVI «É um homem que se ofende como os outros», diz o assessor sobre as críticas do primeiro-ministro ao Jornal Nacional