1) A poeta portuguesa Florbela Espanca está sendo redescoberta pela crítica e leitores contemporâneos. Sua obra aborda temas como desejo, emoção e busca do autoconhecimento de forma ousada para sua época.
2) Florbela desafiou os papéis de gênero rígidos da sociedade portuguesa do início do século XX ao viver intensamente suas emoções e desejos. Isso fez com que fosse vista como uma ameaça e recebesse críticas negativas.
1. Folha da Manhã
SEXTA-FEIRA 02 DE ABRIL DE 2010
POETA
FolhaLetras
OBRA FALA
DE BUSCA E
DA VONTADE
DE POTÊNCIA
Mistério lusitano
Depois de ser estudada de forma redundante e
redutora, obra de Florbela Espanca é redescoberta
RENATA BOMFIM * com as formas do mundo, o que confere a•
sua poesia uma sedução própria da alte-
F
lorbela Espanca (1894- 1930) é ridade. Vivemos numa época desencanta-
considerada a voz feminina da, onde impera a sensação de queda do REPRODUÇÃO
mais importante da lírica por- paraíso e de perda da unidade mítica, co-
tuguesa do século XX. A poeta mo afirmou o pensador Mangabeira Un-
nasceu em Vila Viçosa, região ger: “a única forma de nos salvarmos é
do Alentejo, terra de mulheres através da vulnerabilidade”, ou seja, per-
poetas, de Mariana Alcoforado mitindo que nossas relações sejamos ilu-
com suas cartas de amor e de mulheres minadas por emoções que se relacionem
célebres que fundaram conventos, como com desejo e risco, para que nossa visão
Margarida Cheirinha ou Maria das Cha- seja ampliada e nos lancemos para uma
gas. Vozes femininas e suas muitas histó- instância outra, maior, e para além de
rias, que de alguma forma, ecoaram a nós mesmos.
partir do auditório interior dessa poeta A obra de Florbela Espanca é um convite
que está sendo redescoberta na contem- à experimentação das emoções, é desejo,
poraneidade. é risco, somos confrontados com uma po-
A trajetória de vida de Florbela Espanca ética que desafia os lugares instituídos e
foi marcada pelo desejo de emancipação, a distribuição desses lugares, e esse desa-
pela vivência intensa das emoções, da fio se dá através da errância do eu poético
sensualidade e do erotismo, que iam na que busca por conhecer a si mesmo: “Sei
contramão do ideário feminino de sua lá! Sei lá! Sei lá bem!/Quem sou? Um fogo-
época. A escritora portuguesa Ana de Cas- fátuo, uma miragem.../ Sou um reflexo...
tro Osório relatou que Florbela Espanca Um canto de paisagem/ Ou apenas cená-
não abriu para si “nenhum horizonte rio!/ Um vaivém” (Espanca, 1996), e traz
profissional” a não ser o de “literata”, e em si o germe do encontro com o ou-
este atributo era “o mais desagradável tro:”Procurei-O no seio de toda gente./
que podia ser dito de uma senhora que Procurei-O em horas silenciosas!/ [...] E
era vista com um livro na mão”. A extem- nunca O encontrei!... Prince Charmant”
poraneidade de Florbela fez com que a (Espanca, 1996).
igreja portuguesa a classificasse como A errância do eu florbeliano é a expres-
uma pessoa “moralmente perniciosa” e são de uma relação outra com o mundo,
um “péssimo exemplo”, o que fez com que se funda não na certeza e nem na
que a leitura de seus livros passasse a ser, rigidez, mas na consciência da imper-
também, “moralmente” desaconselhável. manência das coisas, dos seres e das rela-
Florbela Espanca publicou dois livros de ções. Talvez, seja destino do espírito hu-
sonetos em vida, o “Livro de Mágoas” mano estar eternamente em caminho,
(1919) e o “Livro de Sóror Saudade” (1923). tanto que a imagem do viajante e do
Ambos receberam um frio acolhimento nômade é um arcano que engendra a
por parte da crítica. Após o suicídio da po- nostalgia de um outro lugar: “Mostrem-
eta, ritualisticamente realizado no dia me esse País onde eu nasci!/ Mostrem-
em que completava trinta e seis anos de me o Reino de onde sou Infanta!/ [...]
idade, seus livros póstumos, “Charneca Quero voltar! Não sei por onde vim...”
em Flor” (1930) e “Reliquiae” (1931), se (Espanca, 1996). A errância corres-
esgotaram, demandando novas edições, ponde, também, à quebra do en-
que vieram acrescidas de cartas e prefácios clausuramento, um passo em dire-
acalorados. É certo que a morte consagrou ção do outro, do encontro, ela res-
a tragédia florbeliana, assim como consa- taura a mobilidade e possibilita
grou as de Inês de Castro, de Julieta, de superar as polaridades.
Isolda, de Sylvia Plath, de Grace Kelly, de O desejo ardente de Flor-bela
Diana Spencer e de tantas outras mulhe- Espanca de fazer dialogarem as-
res que, repentinamente, desapareceram pectos variados da feminilidade
deixando uma aura de mistério no ar. por meio de sua poesia gerou
Pode-se observar que Florbela Espanca um coro estranho e dissonan-
carregou o estigma de ser mulher numa te para a sua época e a teatra-
sociedade patriarcal e falocêntrica, mes- lidade de seus versos fez com
mo assim, através de sua poesia, imagi- que a imagem da mulher
nou um mundo em diálogo com outras se fundisse à imagem de
subjetividades e formas, trabalhando po- poeta, gerando leituras
eticamente variados aspectos do universo reducionistas e fazendo
feminino. Ela cantou o amor, a dor, a desi- com que, durante mui-
lusão por buscar e não encontrar o ama- tos anos, a sua obra fosse
do, a tristeza e o destino que arrasta os se- menos estudada do que o seu
res independente de sua vontade. A sede de comportamento social e emocional. As-
infinito da poeta e a sua ousadia em dialo- sim, a imagem de Florbela foi se delinean-
gar com diferentes formas, consti-tuiram- do e terminou por mitificá-la. Os estudio-
se num contra-poder e numa hybris femi- sos da obra da poeta também contribuí-
nina, ou seja, o desejo de conquistar luga- ram bastante para a formação dessa ima-
res cada vez mais altos, de adentrar espa- gem mítica, ao focarem em suas leituras
ços masculinos, como a tradição poética: prováveis e, muitas vezes, inventados as-
SER POETA
pectos curiosos, anedotários e tétricos so-
bre sua vida e sobre sua morte, como o de
AGENDA LITERÁRIA
Florbela ter sido ninfomaníaca ou o de
Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior ela ter sido praticante de incesto, infor-
Do que os homens! Morder como quem beija! mações que ajudaram a montar um per- * Três livros publicados pela Compa- * David Grossman acaba de receber mais
É ser mendigo e dar como quem seja fil de mulher extemporânea, capaz de nhia das Letras ganham adaptação cine- um prêmio, desta vez pelo conjunto da
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor! incomodar a estamental sociedade cató- matográfica. O primeiro deles, “Ilha do obra. Grossman, um dos principais autores
lica portuguesa. Não é circunstancial que Medo” (2010), de Martin Scorsese, estreou israelenses da atualidade, autor de “Al-
É ter de mil desejos o explendor ela tenha se tornado uma importante no dia 12 de março. O filme é baseado no guém para correr comigo” (2005) e “A mu-
E não saber sequer que se deseja! referência para o movimento feminista. romance “Ilha do Medo” (originalmente lher foge” (2009), entre outros, publicados
É ter cá dentro um astro que flameja, A poeta, que escolheu para si o mundo publicado como “Paciente 67)”, de Dennis pela Companhia das Letras, foi agraciado
É ter garras e asas de condor! da multiplicidade e da resistência ao do Lehane. A segunda produção, "Os homens pela prestigiada Acum (Sociedade de com-
emparedamento do ser e que escolheu a que não amavam as mulheres" (2009), do positores, autores e editores de Israel). Em
É ter fome, é ter sede de infinito! morte, lugar comum por excelência, é diretor Niels Arden Oplev, é o primeiro seus 30 anos de trabalho, David Grossman
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim... bem mais que apenas a “poetisa da dor e longa-metragem do sucesso editorial Tri- tem criado uma voz literária familiar, e
É condensar o mundo num só grito! da saudade”, é uma persona dramatis que logia “Millennium”, do sueco Stieg Lars- igualmente corajosa e perspicaz. “É uma
ainda não teve todas as máscaras revela- son. O lançamento está previsto para o voz israelense, e ainda assim, universal",
É amar-te, assim, perdidamente... das. Os seus contos, por exemplo, apenas dia 24 de abril. O terceiro filme é “Quincas escreveram os juízes. Segundo publicação
É seres alma e sangue e vida em mim à pouco tempo começaram a ser estuda- Berro d'Água” (2010), de Sérgio Machado do jornal Folha de São Paulo, “a obra do es-
E dizê-lo cantando a toda gente! dos e novos documentos e cartas têm (“Cidade Baixa”, 2005), com Paulo José e critor é mundialmente conhecida pelo tom
vindo à público, revelando outras facetas Marieta Severo no elenco. Outros roman- pacifista e esquerdista. O intelectual defen-
Florbela Espanca possui uma obra pre- dessa mulher instigante. Florbela Espan- ces de Jorge Amado já inspiraram filmes e de que a literatura pode ser uma poderosa
nhe de encantamento e que tem desperta- ca está sendo redescoberta. minisséries, mas esta é primeira adapta- arma para resgatar a dimensão humana do
do cada dia mais o interesse de leitores e ção para o cinema do romance “A morte e conflito. Ele assina a autoria de mais de
pesquisadores. O eu florbeliano tem a ca- a morte de Quincas Berro D'água”. (A.N.) vinte livros”. (A.N.)
* POETA E MESTRE EM LETRAS PELA
pacidade de se metamorfosear e jogar UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO