1. nº 121 setembro/2016
www.redebrasilatual.com.br
SÉRGIO VAZ E O
PODER DA PERIFERIA
A formação do orgulho
passa pela cultura e o saber
OS INFINITOS
CONTRASTES DA ÍNDIA
O país escancara verdades que
o Ocidente prefere esquecer
2. REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 3
8. Política
Por uma frente ampla
em defesa do Brasil
14. Eleições
A importância de São
Paulo para o Brasil
18. Saúde
A medicina privada
avança sobre o SUS
22. História
Pequisa revela como a
Volks ajudou a ditadura
26. Cinema
Tendler documenta influência
do capital na política global
32. Entrevista
Sérgio Vaz, da Cooperifa,
traduz a cultura da periferia
38. Cidadania
Areia Grande, no sertão da
Bahia, contra os poderosos
42. Viagem
Do mais lindo ao mais triste, a
magia e os contrastes da Índia
DANILORAMOS
“P
obre e classe média defendendo o golpe faz lembrar aquele mascote da
Sadia. Aquela ave feliz que fala bem da empresa que mata aves.” Esta
frase, tirada de um desses “memes” que circulam nas redes sociais, é
ilustrativa do processo de enganação a que foi submetida a população
nos últimos tempos. Pessoas que vestiram amarelo para protestar con-
tra a corrupção foram, em sua maioria, massa de manobra para dar suporte ao golpe. E
com ele se impôs um governo fisiologista, carregado de denúncias de corrupção, do qual
partirão ainda os ataques a direitos sociais e trabalhistas, que não escolherão suas vítimas
pela cor da camisa. Todos serão afetados.
Atáticadosusurpadores foiencorpadapelaviolênciatípicadasditaduras.Nodiaem
que São Paulo protagonizou uma gigantesca manifestação pela democracia, pelo “Fora,
Temer”epor“Diretasjá”,maisde20pessoashaviamsidodetidasmesmoantesdeopro-
testocomeçar.Entreelas,menoresdeidadesemdireitoadefesa.Atosdosdiasanteriores
também foram marcados pelo uso desmedido de tropas e armas. O enredo e os ingre-
dientes se complementam: o poder econômico a sustentar políticos inescrupulosos, o
poderdamídiaaenganarasociedadeeaforçadastropasasufocarasvozesdissonantes.
Sem que o povo seja convocado a decidir sobre o destino do país, nenhum governo
terálegitimidadeparaevitarquemergulhemosnumacriseaindamaispenosa–ea,pelo
menos,maisdoisanosdeinstabilidadepolíticaesocial.Aúnicacertezadeagoraédeque
se não houver resistência, as pessoas sofrerão mais, a crise não terá hora para terminar
e corre-se ainda o risco de o poder ser usurpado para além de 2018. Aos movimentos
sociais e à sociedade organizada cabe dialogar muito com a população desorganizada
e envolvê-la nessa batalha – política, jurídica, de informação e, sobretudo, nas ruas.
Estrada sinuosa
ÍNDICE EDITORIAL
Há várias edições, a revista alerta sobre as consequências do golpe
Índia: cultura
rica; povo
pobre
Seções
Cartas 4
Marcio Pochmann 5
Destaque do mês 6
Mauro Santayana 12
Lalo Leal 30
Emir Sader 37
Curta essa dica 48
Crônica: Ladislau Dowbor 50
GRANDE S. PAULO
98,9FM
A ALEGRIA DE OUVIR RÁDIO ESTÁ DE VOLTA
DEIXE A PLAYLIST DE LADO.
As notícias que as outras não dão
e as músicas que as outras não tocam.
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3. REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 54 SETEMBRO 2016 REVISTA DO BRASIL
N
os estertores do mês de agosto do ano de 2016,
o processo de impedimento do governo da pre-
sidenta Dilma Rousseff, legítima e majoritaria-
menteeleitaemnovembrode2014,fezacendero
alerta amarelo acerca da finalidade e da validade
do regime democrático no Brasil. Por sua tradição autoritária,
posto que sua experiência democrática representa apenas um
quarto tempo da sua existência enquanto nação independente
desde 1822, a perspectiva da disputa pelo poder por meio das
eleições livres encontra-se novamente comprometida.
Em síntese, a frustração da esperança de que as transforma-
ções significativas da realidade nacional frente a um capitalis-
mo excludente e externamente dependente possam de fato vir
a ocorrer. Consolida-se, assim, a máxima do conservadorismo
das elites dirigentes de que o futuro possível é tão somente o
congelamento do presente.
Mesmo o reformismo corretivo de excessos numa sociedade
tão desigual segue inaceitável pela elite dirigente, indicando o
quanto inexiste marcha progressiva, tão pouco trajetória evolu-
tiva na histórica da dominação brasileira. O que significa dizer
que o estamento burocrático identificado por Raymundo Faoro
(em seu clássico Os Donos do Poder) e por Florestan Fernandes
(em A Revolução Burguesa no Brasil) permanece ativo e altivo
no interior do aparelho de Estado ao longo do tempo.
Não obstante evidências de modernização provocadas pela
recente inserção passiva na globalização, as estruturas institu-
cionais e políticas no país não se alteraram, apenas adaptaram-
-se aos esquemas de continuidade, cada vez mais complexo e
sofisticado. Nesses termos, os vícios do patrimonialismo, com
privilégios extra-econômicos garantidos aos estamentos buro-
cráticos do Estado, seguem “imexíveis”, independentemente da
vigência do regime democrático.
Da mesma forma, o papel da comunicação na disputa e con-
vencimento da direção moral, cultural e política da sociedade
se mantém central. Certamente Antônio Gramsci (Cadernos do
Cárcere)identificouedestacoucomoaorganizaçãodacomuni-
cação se apresenta comprometida com a manutenção e defesa
da sustentação ideológica do bloco dinâmico do poder, dispen-
sando a existência do regime democrático.
Diante disso, a esquerda que se organizou em torno de parti-
Advento do governo Temer agrava o descrédito na política ao fazer
valer o coronelismo da República Velha, segundo o qual tanto faz
quem está de plantão no governo: os poderosos seguirão intocados
Impedimento de Dilma
e descrédito da política
Laura Tavares
Só não entendi a omissão de ser enfer-
meira e sanitarista. Não sabia que a pro-
fessora Laura Tavares havia resolvido ser
também economista, como sua mãe Ma-
riadaConceiçãoTavares,masapagaruma
história na enfermagem e na saúde públi-
ca.Atéporqueaela,brilhantecomoé,con-
seguiuoápicedentrodeumaprofissãotão
aviltada e discriminada neste país. Quan-
to à entrevista foi brilhante e fruto da sa-
bedoria de Laura Tavares, enfermeira, sa-
nitaristae,também,economista.(“Muitos
morrerão antes”, ed. 120)
Marcos Brito
Laura e a mordaça
Gostaria de parabenizar pela excelen-
te entrevista com Laura Tavares. Lem-
bram-se do que dizia o ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso? “O Bra-
sil não aguenta salário mínimo de US$
100...” Com o governo Lula, o salário mí-
nimo chegou a bater em US$ 300 e o Bra-
sil não somente aguentou como cresceu.
Agoraaqueleneoliberalismodaépocado
FHC – se era tão bom, por que o Bra-
sil vivia em recessão? – volta a bater à
nossa porta. (Entrevista com Laura Ta-
vares, “Muitos morrerão antes”, ed. 120).
Gostariadeparabenizartambémpelaex-
celente reportagem “Pedagogia da mor-
daça” (na mesma edição). Em alguns es-
tados americanos, é proibido o ensino da
Teoria da Evolução nas escolas. Se eles
querem viver na idade média, problema
carta@revistadobrasil.net
As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para
o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100.
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Arcângelo Eustáquio Torres Queiroz, Carlos
Decourt Neto, Carlos Eduardo Bezerra
Marques, Cláudio de Souza Mello, Claudir
Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Douglas
Izzo, Edgar da Cunha Generoso, Edmar
da Silva Feliciano, Eliana Brasil Campos,
Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr.,
Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva,
Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira
de Freitas, Gervásio Foganholi, Glaucus José
Bastos Lima, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio
de Brito Correia, João Carlos de Rosis, José
Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa
Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José
Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo,
Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos
Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico
Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha,
Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba
Peres, Paulo João Estaúsia, Raimundo Suzart,
Raul Heller, Roberto von der Osten, Rodrigo
Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana,
Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas
de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilson
Franca dos Santos
Diretores responsáveis
Juvandia Moreira
Rafael Marques
Diretores financeiros
Rita Berlofa
Moisés Selerges Júnior
MARCIO POCHMANN
dos políticos desde a transição da ditadura civil-militar (1964-
-1985) para o regime democrático, acreditando que as eleições
não eram apenas para valer, mas, sobretudo, para transformar
a realidade, fragiliza o seu sentido material. O governo Temer,
em suas consequências forjadas pela experiência da República
Velha (1889-1930), aponta que tanto faz qual seja o partido de
plantão no governo: os interesses do coletivo de ricos, podero-
sos e privilegiados seguirão intocados.
Por isso, proclamam que a Constituição Federal de 1988 não
cabe na economia brasileira de 2016 em diante. Se o regime po-
lítico atual impossibilita a mudança democrática da realidade,
qual o sentido prático de perseguir somente retórica, uma vez
que a aliança conservadora entre o estamento burocrático e o
poder das comunicações termina por bloquear a viabilidade da
mudança prática?
OdescréditoatualdapolíticanoBrasilresultajustamentedis-
so. Ou seja, a constatação acerca da lacuna entre o descompro-
misso das promessas com suas realizações possíveis.
ROVENAROSA/AGÊNCIABRASIL
Avenida Paulista,
31 de agosto de 2016
deles. Quem hoje pode negar, com base
científica, a teoria de Darwin?
Luiz Soares de Oliveira
Carlos Lessa
Dojeitoqueasociedadebrasileiraéde-
sunida, eles venderão absolutamente tu-
do e nada acontecerá com eles, vide o té-
trico caso da privataria. (Entrevista com
Carlos Lessa, ed. 120)
Alexandre Abreu
Imprensa decadente
Já deixei há muito tempo de assistir à
TV Globo e as outras. Não compro ne-
nhuma publicação que venha da Edito-
ra Globo ou da Abril. É uma quadrilha.
E o poder judiciário se associou a elas.
Quenenhumdessescongressistasgolpis-
tasvoltearepetirmandatosnaspróximas
eleições.Evamostrabalharnasbaseselei-
torais desses deputados e senadores gol-
pistas para lembrar ao povo que eles são
os ladrões do Brasil. Roubaram o nosso
bem precioso, o nosso voto, a nossa de-
mocracia, a nossa liberdade. Assassina-
ram a nossa Constituição. Tudo no Bra-
sil merece ser repensado, a começar pelo
STF, que tem uma minoria comprometi-
da com a democracia. (“O jornalismo do
colapso à fraude”, ed. 120)
Willams Will
O texto de Santayana aponta o cami-
nhoaseguir.Informardoutrinando,cada
vez mais, cidadãos que se tornarão uma
legião crescente de patriotas, solidários
com a humanidade trabalhadora do país
e dos demais países emergentes e perifé-
ricos. É preciso reverter esta tendência
conservadora,golpistaeautoritária.Nos-
sos filhos e netos, enfim, as novas gera-
ções não merecem um futuro de intole-
rância fascista. A Ponte para o Futuro de
Temer, Cunha, Globo, Gilmar Mendes,
Moro, Janot e Cia. deve ser detonada. (“O
Brasil na camisa de Força”, ed. 119)
Nelson Raimundo Braga
4. REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 76 SETEMBRO 2016 REVISTA DO BRASIL
redebrasilatual.com.br Informação diária no portal,
no Twitter e no Facebook
Seduzir e precarizar
Eleito em agosto para a presidência do Tribunal Regional do
Trabalho da 2ª Região (TRT-2), o maior do país, Wilson Fer-
nandesécríticododiscursodapretensa“modernização”dasre-
lações do trabalho. Ele não vê relação direta entre flexibilização
e criação de postos de trabalho e alerta que o “discurso sedutor”
pode ser usado, na verdade, para simplesmente retirar direitos,
emummomentodecrise,emqueotrabalhadormaisprecisade
proteção. O magistrado diverge do presidente do Tribunal Su-
perior do Trabalho (TST), Ives Gandra Filho, que já manifestou
apoio ao Projeto de Lei 4.962, de 2016, que trata da flexibiliza-
ção. E também critica o PLC 30, que tramita no Senado, sobre
terceirização.“Terceirizaraatividade-fimsignificaprecarização
de direitos.” Fernandes toma posse em outubro. bit.ly/rba_trt-2
Pesquisa
ameaçada
Uma lavoura de tomate orgânico pro-
duz em média de seis a oito quilos por me-
tro quadrado. Essa produtividade, porém,
pode ser 60% maior, chegando a render
9,5 quilos, com a utilização de um fungo
chamado Trichoderma. O resultado é de
grande relevância porque o tomate é dos
alimentos mais consumidos e mais enve-
nenados, segundo uma pesquisa da Agên-
cia Nacional de Vigilância Sanitária (An-
visa). E porque derruba um dos principais
argumentos da indústria de agrotóxicos, o
de que só com uso de agroquímicos é pos-
sível aumentar a produção. O estudo é da
UnidadedePesquisadeAgriculturaEcoló-
gica de São Roque (SP), vinculada à Agên-
cia Paulista de Tecnologia dos Agronegó-
cios (Apta), órgão da Secretaria Estadual
da Agricultura. Mas pesquisas de relevân-
cia semelhantes à de São Roque, desenvol-
vidasem16outrasunidadesdaApta,estão
ameaçadas por um projeto do governo de
Geraldo Alckmin (PSDB). O PL 328/2016
tramita em caráter de urgência e está pa-
ra ser votado na Assembleia Legislativa.
bit.ly/rba_apta
Vidas
poupadas
NomomentoemqueoEstatutodoDe-
sarmamento está sob ameaça no Con-
gresso Nacional, com iniciativas parla-
mentares que buscam revogá-lo, o Mapa
da Violência 2016 – homicídios por ar-
mas de fogo no Brasil, divulgado na últi-
ma quinta-feira (25), mostra justamente
a importância do Estatuto na redução do
número de mortes por arma de fogo no
Brasil.Segundooestudo,cercade133mil
vidas foram poupadas entre 2004 (o pri-
meiro ano em vigor do Estatuto) e 2014.
bit.ly/rba_desarma
Menos veneno, mais saúde
A argentina radicada no Brasil Paola Carosella dispensa o título glamouroso
de chef e vai direto ao ponto: “Sou cozinheira”. Conforme conta, na casa em que
nasceu, nos arredores de Buenos Aires, havia uma horta. “Orgânico não era al-
ternativo. Era a única coisa que existia. E não sou tão velha assim”, diz. “Hoje
que sou conhecida e converso com as pessoas, digo que estamos comendo ve-
neno; que estamos matando nossos filhos ao fazer um suco de laranja.” Ela lem-
bra que há cerca de 500 feiras orgânicas catalogadas em todo o país. “É pouco.
Eu e muita gente que conheço queremos comprar produtos 100% orgânicos e
não temos como. Não tem carne orgânica.” Para ela, há uma série de coisas que
devem ser mudadas. “Não vamos viver num mundo que não precisa de dinhei-
ro, mas a ambição tem de ser menos desmedida. É possível fazer um suco sem
espremer as pessoas junto.” Paola participou de audiência pública na comissão
especial que analisa projeto de lei conhecido como “PL do veneno”, por revo-
gar os principais pontos da Lei dos Agrotóxicos, facilitando o registro de novos
agroquímicos e afrouxando regras e punições. bit.ly/rba_paola
CEDIDOPORAPTA
SATIROSODRÉ/SSPRESS
FABIORODRIGUESPOZZEBOM/AGÊNCIABRASIL
GERARDOLAZZARI/RDB
JAILTONGARCIA/RBA
FACEBOOKPAOLACAROSELLA
Não é a escola
Duranteduassemanas,acadamedalhaconquistadaouperdi-
da por atletas brasileiros na Olimpíada surgiam questionamen-
tos das razões pelas quais o Brasil não consegue entrar no seleto
grupodaspotênciasesportivas.Comfrequência,aescolapassou
a ser apontada como o caminho seguro para a redenção olímpi-
ca. Inclusive profissionais da imprensa esportiva apontaram a
mesmasolução.ParaoprofessorMarcosGarciaNeira,daFacul-
dadedeEducaçãodaUSPecoordenadordoGrupodePesquisas
emEducaçãoFísicaEscolar,nãoéfunçãodaescolaedosprofes-
sores de educação física a formação de atletas. Para ele, a solu-
ção é a criança, ou o jovem, se inserir num clube ou num centro
de treinamento, em que a entidade seja federada da respectiva
modalidade. “Não temos tradição nem conhecimento de for-
mar pessoas para atuar no esporte de alto nível”, diz o professor.
bit.ly/rba_esporte_escola
A culpa é da vítima
“Essa decisão judicial é o que costumo chamar de um segundo ato de violên-
cia. O primeiro foi a violência física praticada pela Polícia Militar, em 2013. O
segundo é o juiz promovendo essa falácia, me condenando por estar ali fazen-
do meu trabalho, exercendo meu direito e a minha profissão”, diz o fotógrafo
Sérgio Andrade da Silva, atingido no olho esquerdo por uma bala de borracha
duranteprotestocontraoaumentodatarifadotransportepúblico,emjunhode
2013, em São Paulo. Sérgio teve o pedido de indenização recusado pela Justiça
de São Paulo. A sentença alegou que ele foi culpado pelo ocorrido, por se colo-
car na linha de tiro. “Essa minha indignação não é só pessoal. É uma indigna-
ção coletiva. Nas redes sociais dá para se ver muitas manifestações repudiando
essa decisão. No Estado de direito, é um absurdo você pensar que uma pessoa
que vá para um ato para trabalhar, fotografar, que seja culpada pela violência
que sofre.” bit.ly/rba_culpa_da_vitima
REDEBRASILATUAL.COM.BR
Wilson
Fernandes,
contra a
precarização
de direitos
Paola
Carosella:
“estamos
comendo
veneno”
Hugo Parisi, saltos
ornamentais no
parque aquático
Maria Lenk nos Jogos
Olimpicos Rio 2016
Fotógrafo
Sérgio da Silva,
recebeu bala de
borracha no olho
durante violência
da PM contra
manifestantes
em 2013
5. 8 SETEMBRO 2016 REVISTA DO BRASIL REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 9
A vida
após o
Diante da agressão à democracia consumada em 31
de agosto de 2016, o campo progressista tem agora
o desafio da união Por Eduardo Maretti
A
s forças progressistas e democráticas
do país têm diante de si uma tarefa
que pode ser associada metaforica-
mente ao mito grego conhecido como
Os Doze Trabalhos de Hércules. As
dificuldades são imensas, em decorrência tanto de
conhecidos erros políticos cometidos pelo PT no
governo, quanto da sofisticação do golpe parlamen-
tar consumado em 31 de agosto de 2016. Ainda é
cedo para previsões confiáveis num cenário ainda
nebuloso. “O horizonte de análise do cenário po-
lítico ainda está muito curto. É como dirigir sob
neblina, você não enxerga muito bem o que está à
frente”, diz o cientista político Leonardo Barreto, da
Universidade de Brasília (UnB).
Nesse horizonte, uma das certezas é a necessidade
de compreensão – por parte de democratas, movi-
mentossociais,partidospolíticosprogressistas,cen-
trais sindicais populares e empresários preocupados
com o futuro do Brasil – de que é urgente a união
em torno do que o cientista político Roberto Ama-
ral, um dos coordenadores da Frente Brasil Popular,
vemdefendendomuitoantesdoimpeachment:uma
“política de frente”.
Essa união deve necessariamente incluir forças
liberais progressistas, como afirmou o ex-ministro
Luiz Carlos Bresser-Pereira em várias ocasiões du-
rante o processo político, para muitos, iniciado em
2013.Perdidaalutacontraoimpeachment,areorga-
nizaçãonãoapenasdaesquerda,masdeumespectro
mais amplo, é condição necessária para o enfrenta-
mento do que vem por aí. Porque, como diriam os
mineiros, 2018 “está logo ali”, e as hesitações decor-
rentes da perplexidade instaurada com a vitória do
golpe parlamentar podem custar muito mais caro, a
partir de 2019, do que parece hoje.
“Construir uma aliança contra a fascistização e o
caosdeveser,daquiprafrente,aprimeiramissãodos
quetêmummínimodelucidezeinformação–neste
país assolado por ódio, mentira, hipocrisia e igno-
rância”, diz Mauro Santayana, em artigo nesta edi-
ção (leia na página 12). “É preciso costurar uma am-
pla aliança nacional, que parta, primeiramente, do
centro nacionalista (se não existir, é preciso criar-se
um).” Isso porque o alcance da vitória ultraconser-
vadora que levou Michel Temer a assumir definiti-
vamente o governo do Brasil é amplo, considerando
que a grande derrotada é uma entidade que não se
pode fulanizar, nem partidarizar: a Constituição Fe-
deral de 1988, que Ulysses Guimarães (1916-1992)
ajudou a construir com sua extrema habilidade po-
lítica após os anos de obscurantismo pós-1964.
POLÍTICAPOLÍTICA
golpe
NAS RUAS
Paulista, 4 de setembro
de 2016: mais de 100
mil por “Fora, Temer”
e “Diretas Já”
MARCIAMINILLO/RBA
VITORVOGEL
6. 10 SETEMBRO 2016 REVISTA DO BRASIL REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 11
blema é ampliar nosso campo, atraindo para a defesa da legali-
dade os liberais e democratas”.
Nesse sentido, movimentos de esquerda precisam compreen-
der e ter humildade para aceitar dentro dessa frente ampla figu-
rasdoperfildossenadoresKátiaAbreu(PMDB-TO)eArmando
Monteiro (PTB-PE), ex-ministros de Dilma Rousseff, ligados ao
agronegócio e à indústria, respectivamente, mas fiéis à ex-presi-
dente até o fim. Apesar da fidelidade a Dilma e de seu papel con-
tundentenadefesadademocracia,Kátiachegouaserhostilizada
em manifestações de esquerda.
POLÍTICA POLÍTICA
Fatura é cobrada
A afirmação de que o impeachment sem crime de responsabi-
lidade“rasgou”aConstituiçãoCidadãnãoémeraretórica,usada
por opositores de Temer. Com iniciativas emblematizadas pela
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, que congela gas-
tos públicos em todas as esferas de governo por 20 anos, e sus-
pendeasvinculaçõesconstitucionaisorçamentáriasemeducação
e saúde, o governo “eleito” indiretamente pelo Congresso Nacio-
nal busca suprimir em nome do ajuste fiscal todo tipo de direi-
tos conquistados pela cidadania, instituídos pela Carta de 1988.
ApropostaviolaoincisoIV,parágrafo4ºdoartigo60daCons-
tituição, que proíbe emenda constitucional “tendente a abolir os
direitos e garantias individuais”. Demole o artigo 5°, “Dos Direi-
tos e Garantias Fundamentais”, cujo caput é o abrangente “todos
são iguais perante a lei”. Afronta os artigos 194 e 195 (que tratam
da Seguridade Social), os artigos que tratam do Sistema Único
de Saúde (SUS), de seguro-desemprego e da assistência social.
“Essa PEC simplesmente enterra a Constituição de 1988 no que
diz respeito aos direitos sociais. É simples assim”, afirma o eco-
nomista Eduardo Fagnani, professor da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp).
Além disso, estão na iminência de se concretizar ameaças a di-
reitos trabalhistas inscritos na Consolidação das Leis do Traba-
lho, o que nem mesmo Fernando Henrique Cardoso, que gover-
nou por oito anos (1995-2002), conseguiu fazer. E as entidades
empresarias que patrocinaram a destituição da presidenta eleita
já começam a cobrar a fatura.
“Junto com a Frente Parlamentar da Indústria de Máquinas e
Equipamentos, nós apoiamos a votação, o mais rápido possível,
da PEC 241, da limitação dos gastos públicos, e incentivamos as
reformas da Previdência e trabalhista”, afirmou em nota o presi-
dente executivo da Associação Brasileira da Indústria de Máqui-
nas e Equipamentos (Abimaq), José Velloso, no próprio dia 31.
“É urgente fazermos a reforma da Previdência Social e moderni-
zar a legislação trabalhista”, ecoou o presidente da Confederação
Nacional da Indústria, Robson Braga de Andrade.
As ameaças à Petrobras e às riquezas nacionais, não apenas o
petróleo, mas também a água, entre outras, além dos direitos já
mencionados, nunca estiveram tão perto de se concretizar. E é
por isso que, segundo Roberto Amaral, o projeto de Temer “vai
requerer repressão do movimento sindical em geral, em particu-
lar dos petroleiros, e dos movimentos do campo”.
É nesse contexto, considerando a amplitude da derrota, que
se insere a urgente necessidade de as forças democráticas, para
além do PT, entenderem o tamanho da tarefa. “A derrota não é
só da Dilma, nem do Lula, nem do PT. Não é nem da esquerda.
É de todas as forças progressistas. A regressão do tipo que se aba-
teu no país é uma derrota inclusive dos liberais e democratas. A
corrupção venceu”, disse o sociólogo Laymert Garcia dos Santos
no dia 31 de agosto.
O papel de Lula
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva dá sinais de compre-
enderaimportânciadeseupartidoabandonaroapegoaumaes-
Resistência
Por outro lado, lideranças como o presidente da CUT, Vag-
ner Freitas, e o coordenador da Frente Povo sem Medo, Gui-
lherme Boulos, assumem de imediato a tarefa da resistência.
“O golpe na democracia afetará profundamente a vida dos tra-
balhadores e trabalhadoras do campo e da cidade e dos bra-
sileiros e brasileiras que mais precisam da manutenção e am-
pliação dos direitos e das políticas públicas, tanto hoje quanto
no futuro. Não se trata de uma simples troca de comando e,
sim, da usurpação dos destinos do Brasil por uma parcela da
classe política, do judiciário e da imprensa que quer o poder
a qualquer preço”, alertou o dirigente da CUT logo após a vo-
tação do impeachment.
“Exerceremosresistênciadiáriaeaguerridacontraosinimigos
da pátria. Não estamos sós, ocuparemos todos os espaços e, da
mesma maneira que já fizemos antes, combateremos o arbítrio e
a tirania, sempre em defesa da democracia, da participação po-
pular, da distribuição de renda, justiça social e direitos da classe
trabalhadora”, afirmou Vagner.
Porém, dentro do ambiente obscuro que se instalou no país,
ainda é possível destacar pontos positivos. O principal talvez se-
ja traduzido por uma metáfora: a semente. Existe expectativa de
que as sementes plantadas durante os 13 anos de governo pe-
tista frutifiquem, apesar das justificadas críticas de lideranças e
movimentos sociais aos governos de Lula e Dilma, de que não
implementaram reformas estruturais, como a tributária, do sis-
tema político, de comunicação e da educação, quando tinham
apoio popular, e um Congresso menos hostil, para executá-las
pelo menos em parte.
No médio prazo, a ameaça concreta ou mesmo a confirmação
daperdadedireitosdevedespertarpartedapopulaçãoparalisada
pelaguerramidiáticaparaacompreensãodoquerealmenteesta-
va em jogo em 2016. “A gente tinha um projeto de ir mais longe,
mas não fomos. Mas o pouco que se andou foi uma caminhada.
E essa possibilidade de ir à universidade, apesar das condições
emqueelaestá,dapossibilidadedosonhodacasaprópriaapesar
de todos os problemas do Minha Casa Minha Vida, a gente ex-
perimentou uma vitória, tímida, da ideia de que a gente também
tem direitos”, disse no dia 31 de agosto a ativista Jurema Werne-
ck, da coordenação técnica da organização Criola, que defende
e promove os direitos das mulheres negras.
“Vamossinalizarque,perdendoouganhando,elesnãosãodo-
nos. Eles estão em vantagem nesse momento, é verdade. Mas a
luta para eleger Lula e Dilma é uma luta de décadas, em que ví-
nhamos produzindo esse clima de insurgência e indignação, de
necessidade de mudanças. Isso fica porque não acabou. A gente
não desiste porque os fascistas, racistas, homofóbicos e sexistas
estão vencendo neste momento”, acentua Jurema.
Juntoàsnecessidadesdeseconstruirumafrenteunificadoradas
forçasdemocráticas,progressistaseliberais,ederesistiràsupressão
de direitos, há finalmente outras exigências. A de que a esquerda,
comoumtodo,eoPT,emparticular,reavaliemseupapel,seuser-
roseacertos,noprocessoquelevouaogolpeparlamentarde2016,
enquanto aos movimentos caberá lutar pela sua superação.
pécie de egocentrismo partidário e abraçar a causa de uma fren-
te ampla e democrática. Inclusive porque, como observa André
Singer no livro Os Sentidos do Lulismo, o ex-presidente não lide-
rou um governo de oito anos propriamente de esquerda, mas de
centro-esquerda. Reformista em alguns aspectos, e não de rom-
pimento. Daí a perplexidade de muitos diante da ferocidade das
forçasretrógradasperanteumgrupoque,nopoder,passoulonge
de propor qualquer solução mais radical, do tipo da implemen-
tada por Hugo Chávez (1954-2013) na Venezuela.
Durante os anos em que governou, o PT sempre considerou
oportunososacordosealianças,desdequeeleprópriofossesem-
preocabeçadechapa.Comsuareconhecidacapacidadepolíticae
dearticulação,Lulacontinuasendoaprincipalforçaaglutinadora
da centro-esquerda brasileira. Ele estaria considerando a possi-
bilidade de que um candidato de outra legenda tenha o apoio de
seu partido em 2018.
Em resolução divulgada no dia 2 de setembro, com a presen-
ça de Lula, o PT demonstrou entender parcialmente a necessi-
dade de uma frente ampla. O partido apontou para a necessi-
dade de se “construir uma ação conjunta e iniciativas práticas
com partidos e entidades populares, capazes de mobilizar e
dar efetividade a este objetivo rumo à normalização democrá-
tica, como a Diretas Já”. Mencionou as frentes Brasil Popular
e Povo sem Medo.
Mas o entendimento soa parcial porque, embora tenha men-
cionado as Diretas Já na resolução, o partido parece se esquecer
de que aquele movimento de 1984 era formado por uma frente
muitomaisamplaeenvolviamaisdoquepartidosemovimentos
de esquerda. Em dezembro de 2015, Roberto Amaral já afirmava
o que considerava então a estratégia para evitar o golpe: “O pro-
ROBERTOPARIZOTTI/CUT(SÃOPAULO–04/09/2016)FELIPELAROZZA/VICE(SÃOPAULO–01/09/2016)
FINAL PROGRAMADO Quando as “autoridades” acham que a
manifestação foi longe e tem de acabar, a PM parte pra cima
com cacetetes, balas de borracha e bombas de efeito moral
7. 12 SETEMBRO 2016 REVISTA DO BRASIL REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 13
O Brasil e o perigoso
jogo da história
Construir uma aliança contra a fascistização e o caos deve ser a
primeira missão dos que têm um mínimo de lucidez e informação –
neste país assolado por ódio, mentira, hipocrisia e ignorância
MAURO SANTAYANA
FERNANDOFRAZÃO/AGÊNCIABRASIL
O
afastamento definitivo de Dilma Rousseff da pre-
sidência da República foi apenas mais uma etapa
de um embate muito mais sofisticado e complexo,
em que está em jogo o controle do país nos próxi-
mos anos. Desde que chegou ao poder, em 2003, o
PT conseguiu a proeza de fazer tudo errado, fazendo, ao mesmo
tempo, paradoxalmente, quase tudo certo. Livrou o país da de-
pendência externa, pagando a dívida com o FMI, e acumulando
US$ 370 bilhões em reservas internacionais, que transformaram
nosso país no quarto maior credor individual externo dos Esta-
dos Unidos. E o fez sem aumentar a dívida pública. Mas isso não
veio ao caso. Ajudou a criar 20 milhões de empregos, fez milhões
de casas populares, criou Pronatec, ProUni, Ciência Sem Fron-
teiras e Fies, fez dezenas de universidades federais e promoveu
extraordinários avanços sociais. Mas isso não veio ao caso.
Voltou a produzir e a construir navios, ferrovias – a Norte-Sul
já chegou a Anápolis (GO) – usinas hidrelétricas, plataformas e
refinarias de petróleo, mísseis, tanques, belonaves, submarinos,
riflesdeassalto,multiplicouovalordosaláriomínimoedarenda
per capita em dólares. Mas isso não veio ao caso. Porque o PT foi
extraordinariamente incompetente em explicar, para a opinião
pública,oquefez.Setinhaumprojetoparaopaís,equemedidas
faziam–coordenadamente,naeconomia,nasrelaçõesexteriores,
na infraestrutura e na defesa – parte desse projeto. Confiou mais
naempatiaenaintuiçãodoqueainformaçãoenoplanejamento.
Chamou,paraestabelecersualinhadecomunicação,“marque-
teiros” sem afinidade com as causas defendidas pelo partido, e
sem maior motivação do que a de acumular fortunas. O PT teve
mais de uma década para explicar didaticamente à população as
vantagensdademocracia,seusdefeitosequalidades,esuarelação
decusto-benefícioparaospovoseasnações.Teveomesmotem-
po para estabelecer uma linha de comunicação que explicasse a
quetinhavindo,eosavançoseconquistasqueobtinhaparaopaís.
O PT dividiu-se, e não estabeleceu uma estratégia clara, de
longo prazo, que pudesse manter em andamento o projeto que
pretendia implementar para o país. Suas lideranças foram rei-
teradamente advertidas de que ocorreria o que ocorreu – a pre-
sença aqui da mesma embaixadora norte-americana do golpe
paraguaio era claramente indicativa disso. De nada adiantou.
Enquanto isso, aguerrida, organizada, fartamente financiada
por fontes brasileiras e do exterior, a direita – “apolítica”, “apar-
tidária”,fascista,violenta,hipócrita–deuumshowdemobiliza-
ção. Estabeleceu seu domínio sobre os espaços de comentários
dos grandes portais e redes sociais – em um verdadeiro mas-
sacre midiático, uma espécie de discurso único, imposto como
sagrada verdade para parte da população.
Entre as principais lições dos últimos anos, vai ficar a de que a
História é um perigoso jogo que não permite a presença de ama-
dores. Enganam-se aqueles que acham que o confronto expõe
apenasadireitaeaesquerda.Maisgraveéaguerraquesedesenha,
e que já começou, entre os que atacam a política, os “políticos”, a
democracia e o presidencialismo de coalizão contra os que serão
chamadosamobilizar-separadefendê-losdaquiaté2018ealém.
O futuro da República e da Nação será definido por esse embate.
E é o conjunto de erros e circunstâncias que vivemos até ago-
ra, e o que faremos a partir de agora, que poderá levar, ou não,
para o Palácio do Planalto e o Parlamento, um governo fascista
e autoritário em 2019. A judicialização da política, a ascensão
da antipolítica e de uma plutocracia que acredita que não pre-
cisa de votos nem de maior legitimação do que sua condição de
concursadapara“consertar”opaísepunirvereadores,prefeitos,
deputados, senadores, governadores, presidentes da República,
em defesa de “homens de bem” que desfilam com as cores da
bandeira e com uniformes negros de inspiração nazista, ajuda-
rá a sepultar o regime presidencialista anteriormente vigente, e
introduziráumnovoelemento,ilegítimoeespúrio,nouniverso
político brasileiro, transformando-se em permanente ameaça
para o funcionamento e a essência da democracia.
Infelizmente,paraopaíseparaaRepública,apermanênciade
Dilma tornou-se insustentável. Caminhamos para uma situa-
ção de confronto em que o fascismo já está ficando com todas
as armas, e a esquerda com todas as vítimas. Nações e pessoas
precisam aprender que, às vezes, é preciso saber dar um passo
para trás para depois avançar de novo. É preciso resistir, mas
com um projeto claro para o país.
A corajosa defesa do governo Dilma por parte de grandes li-
deranças da agricultura e da indústria, como os senadores Ká-
tia Abreu e Armando Monteiro, mostram que não é impossível
sonhar com uma aliança que una empresários e trabalhadores
nacionalistas em torno de um projeto vigoroso e coordenado
de desenvolvimento. Que possa promover o fortalecimento do
país, do ponto de vista econômico, militar e geopolítico e evitar,
ao mesmo tempo, a abjeta entrega de nossas riquezas, como os
principais poços do pré-sal aos estrangeiros.
Acosturadeumaaliançaqueeviteasubordinaçãoeafascisti-
zação do país deveria ser, daqui pra frente, a primeira missão de
todocidadãobrasileiro–ouaomenosdaquelesquetenhamum
mínimo de consciência e de informação – neste país assolado
pelo ódio e pela mentira, a hipocrisia e a ignorância. A divisão
da Nação, a crescente radicalização e o isolamento das forças
democráticas – que devem combater esse isolamento também
internamente e rapidamente se organizar sob outras legendas e
outras condições; a fratura da sociedade nacional; a desquali-
ficação da política e da democracia; só interessam àqueles que
pretendem consolidar seu domínio sobre o nosso país.
É preciso costurar uma ampla aliança nacional, que parta, pri-
meiramente,docentronacionalista(senãoexistir,éprecisocriar-
-se um), suprapartidária, politicamente inclusiva, equilibrada e
conciliatória, que una militares nacionalistas da reserva – e eles
existem, vide o Almirante Othon, por exemplo –, empresários,
técnicoseengenheirosdesenvolvimentistas,grandesempresasde
capital majoritariamente nacional e os trabalhadores em torno
de um projeto que possa evitar o estupro das liberdades demo-
cráticas e dos direitos individuais e a entrega de nossas riquezas
e de nosso futuro aos ditames internacionais. Vamos fazê-lo?
De que era preciso estabelecer uma defesa competente do
governo e de seu projeto de país na internet – cujos principais
portais foram desde 2013 praticamente abandonados à direita
e à extrema-direita, enquanto a esquerda, sem energia para se
mobilizar, se recolhia ao monólogo, à vitimização e à lamenta-
ção em grupos fechados e páginas do Facebook.
Não deu combate às excrescências que sobraram do gover-
no Fernando Henrique, justamente no campo da corrupção,
com a investigação de uma infinidade de escândalos anterio-
res, que poderia ter levado à cadeia bandidos antigos como os
envolvidos nos problemas da Petrobras. E cometeu erros táti-
cos imperdoáveis. Não é possível que personagens como Dilma
e Lindbergh continuem defendendo a Operação Lava Jato, de
público, quando essa operação parcial e seletiva foi justamen-
te o principal fator na derrubada da presidente da República.
Desse processo, nasceram uma nova classe média e uma plu-
tocraciaegoístas,conservadorase“meritocráticas”,entreguesde
mãobeijadaparaadoçãoinstitucionalpeladireita.Ampliaram-
-seaautonomia,opodereascontrataçõesdoMinistérioPúblico
e da Polícia Federal, medidas elogiáveis que poderiam em prin-
cípiofuncionarbememumpaísverdadeiramentedemocrático,
masque,noBrasildadesigualdadeedamanipulaçãomidiática,
levaram à criação de uma nova casta de funcionários públicos
formadosemuniversidadesprivadas–alinhadasàdireita–com
financiamento do Fies e em cursinhos para concurseiros, que
não têm nenhuma visão real do que é o país, a República ou a
História, e acham, ao lado de jovens juízes, que devem man-
dar na Nação no lugar dos “políticos” e do povo que os elege.
Comoconsequênciadisso,há,hoje,umabatalhajurídicasen-
do travada, principalmente, no âmbito do Congresso Nacional,
voltada para a aprovação de leis fascistas – disfarçadas, como
sempre ocorre historicamente, sob a bandeira da anticorrup-
ção, pretende alterar a legislação e o código penal para restrin-
gir o direito à ampla defesa consubstanciado na Constituição,
no sentido de se permitir a admissibilidade de provas ilícitas,
de se restringir a possibilidade de se recorrer em liberdade, e de
conspurcarossagradosecivilizadosprincípiosdequeoônusda
prova cabe a quem acusa e de que todo ser humano será consi-
derado inocente até inequívoca prova de sua culpa.
PROTESTOS Em várias cidades manifestantes vão às ruas contra posse do interino e afastamento definitivo de Dilma
8. 14 SETEMBRO 2016 REVISTA DO BRASIL REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 15
ainda o descontentamento popular com
política e o descrédito geral nos políticos
– massificado com a ajuda dos meios de
comunicação.
“Nessa disputa, mais do que nunca,
o debate sobre o destino das cidades e
de questões específicas e locais deve ser
ofuscado, já que o ambiente eleitoral está
profundamente contaminado pela crise
política que vive o país. Estão no centro
dessa crise, inclusive, o próprio modelo
político-eleitoral, a representatividade e
a forma como os partidos se estrutura-
ram e cresceram”, escreveu em seu blog
a urbanista Raquel Rolnik, professora da
Universidade de São Paulo.
A ocasião, no entanto, pode ser uma
oportunidade para se discutir o resgate
Cabe aos cidadãos
entender seu papel
na democracia, e o
da democracia em
suas vidas, para que
o golpe que abalou o
Brasil não abale, na
mesma intensidade,
o lugar onde vivem.
Sobretudo na maior
metrópole do país
Por Helder Lima
O FUTURO DE SÃO PAULO
O
dia 16 de agosto marcou o
início da corrida eleitoral
nos 5.570 municípios do
país. A campanha traz no-
vidades. Vai durar pouco,
45 dias, e deve diminuir também o volu-
me de recursos, com a proibição das doa-
ções de empresas a candidatos e partidos.
E com a audiência da TV aberta em que-
da, o horário eleitoral obrigatório tende
a ter sua influência reduzida. Crescerá a
importância do tradicional corpo a corpo
edapresençainteligentenasredessociais.
Mas não são apenas as formas de cam-
panhas que afetarão as eleições nas cida-
des. Além da mudança de regras, a crise
política e a economia em recessão pesa-
rão sobre o conteúdo. Projetos de aper-
to fiscal e ataques a direitos, a consolida-
ção do impeachment de Dilma Rousseff,
aincapacidadedogovernofederaldeem-
placar uma retomada do crescimento na
economia exigirão muita competência
dos candidatos em mostrar do que serão
capazes. E como se não bastasse a crise
prolongada pelo golpe parlamentar, há
ELEIÇÕESELEIÇÕES
da democracia a partir das cidades. É o
que acredita a também urbanista e pro-
fessora da USP Erminia Maricato. “Do
meu ponto de vista, podemos reinventar
o processo democrático no país a partir
das eleições municipais. Isso porque nós
conseguimos construir um período de
governo democrático que distribuiu ren-
da por meio dos governos municipais”,
afirmou.“Precisamosrecuperaraimpor-
tância da descentralização das decisões
do poder local, a democracia direta, es-
pecialmente o orçamento participativo,
especialmente o favela-bairro. Transfor-
mar as favelas e bairros periféricos em
áreas saneadas, em bairros dignos, com
todos os equipamentos de infraestrutu-
ra”, diz Erminia.
Ricos, famosos... e os projetos?
A cidade de São Paulo, por sua dimen-
são para o cenário nacional, é especial-
mente mais contaminada pela crise polí-
tica. Como em quase todas as eleições, há
sempreumcandidatocujoobjetivodeali-
mentaroódioaoPTparecesempremaior
do que convencer os eleitores a votar nele,
como Major Olímpio (SD). De novidade,
háorachanoPSDB.Paraconseguirsuain-
dicação, com apoio de Geraldo Alckmin,
o empresário João Doria Júnior superou
uma convenção partidária contaminada
por denúncias de irregularidades. E, com
outras palavras e estilo, mas idêntico na
essência antipetista, apresenta como ob-
jetivos desfazer realizações da gestão de
Haddad, elogiadas internacionalmente.
Revogar a redução do limite de veloci-
dadequemitigouosacidentesdetrânsito
e melhorou a fluidez nas ruas, desvalo-
rizar a cultura cicloviária, interromper a
expansão das faixas exclusivas de ônibus
para introduzir um formato privatizado
de corredores estão entre seus objetivos.
Quem também não aprecia reconhecer
algodepositivonagestãoHaddadéacan-
didata do PMDB, Marta Suplicy. Marta é
a outra ponta do racha tucano. Adversá-
rio de Alckmin no ninho, com vistas à
disputa regional e nacional de 2018, José
SerrapreferiaindicarAndreaMatarazzo.
Perdeu, e fez de Matarazzo vice da ex-
-petista, com apoio de Gilberto Kassab.
A ex-prefeita, depois de perder para os
inimigos em 2004 (para Serra) e em 2008
(para Kassab), juntou-se a eles. Deixou o
antigo partido para se filiar ao PMDB de
Michel Temer e se associar ao golpe par-
lamentar que derrubou Dilma Rousseff.
EmSãoPaulo,porém,levantacomoprin-
cipais bandeiras ações de seus tempos de
PT, como os Centros de Educação Uni-
ficados (CEU). As unidades de educação
integralabertasàscomunidadesdosbair-
rosondeestãoinstaladasforammarcado
programa que comandou na condição de
petista na gestão 2001-2004. Acabaram
abandonadas pelas gestões de Serra e
Kassab (2005 a 2012) e só foram retoma-
das por Haddad na atual gestão, ganhan-
doinclusivecursosnoturnosgratuitosde
extensão universitária para educadores.
A eleição traz ainda como novidade a
presença de Luiza Erundina concorrendo
pelo Psol. Como Fernando Haddad, mas
com menos estrutura partidária e tempo
de rádio e TV, a primeira prefeita mulher
damaiorcidadedopaís(1989-1992)entra
no debate eleitoral como reforço do cam-
po democrático e – apesar dos 81 anos
bem vividos – como alternativa de reno-
vação,fielaosmecanismosdedemocracia
participativaeaumavisãodeplanejamen-
to urbano voltada a corrigir, no futuro,
aberrações do crescimento desordenado.
A Fernando Haddad, por sua vez, mes-
mo exercendo na prática essa gestão base-
ada no esforço de longo prazo para solu-
PRIMEIRA PREFEITA Apesar dos 81 anos, Erundina aparece como alternativa de renovação
ANANDABORGES/CÂMARADOSDEPUTADOS
HADDAD EM HELIÓPOLIS
Um dos bairros beneficiados
com iluminação com lâmpadas
de LED. Tem gente que ainda
acha que é obra da Eletropaulo
LEONRODRIGUES/SECOM/PREFEITURA-SP
9. 16 SETEMBRO 2016 REVISTA DO BRASIL REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 17
Segundo o candidato à reeleição, a
Constituição de 1988 significou um pro-
cesso de fortalecimento dos municípios,
pelo fato de ter descentralizado recur-
sos. “Cada partido criou um modo de go-
vernar, nasceram experiências diferentes
a partir de uma base constitucional que
criava condições inéditas para os prefei-
tos”, defende, lamentando os retrocessos
emcursonopaís,comaagendadeMichel
Temer e um Congresso Nacional de con-
servadorismo sem precedentes.
Mais humana
OeconomistaMarcioPochmann,can-
didato à prefeitura de Campinas (SP),
disse que o risco de esvaziamento do de-
bate sobre as cidades nas eleições deste
anoocorregraçasaopapeldamídia.“Rui
Barbosadiziaqueaimprensasãoosolhos
e ouvidos da sociedade, mas não hoje”,
afirma. Durante o debate com o tema “A
cidade que você não vê na mídia”, pro-
movido pelo Centro Barão de Itararé no
final de agosto, Pochmann disse que a re-
alidade das cidades não é o que se vê por
meio da imprensa.
Não bastasse a democracia sob ataque,
a capacidade de o processo eleitoral apro-
fundarabuscadesoluçõesparaosproble-
masdemobilidade,moradia,saúdeeedu-
cação é limitada pela falta de uma gestão
cionarosmaioresproblemasdametrópole,
não faltam adversidades. Sua administra-
ção sofre com o ódio promovido pelos
principais meios de comunicação ao PT .
Elepróprioreconheceterfalhadonaco-
municação, a ponto de a população não
conseguir associar avanços à sua gestão.
Por exemplo, a redução do tempo de per-
curso para quem vive em bairros mais pe-
riféricos e trabalha longe. Ou a instalação
de iluminação de LED em bairros habitu-
ados à escuridão. “A nova iluminação está
resgatando a sensação de segurança, pes-
soas estão voltando até a pôr a cadeira na
calçada para conversar à noite. Mas tem
gente que acha que isso é coisa da Eletro-
paulo, não sabe que é da prefeitura”, diz
o secretário de Governo, Chico Macena.
A não-novidade do pleito é a presença
do deputado federal Celso Russomanno
(PRB). Inexpressivo no Congresso Na-
cional, Russomanno se vale da popula-
ridade conquistada como apresentador
de TV. E que atingiu seu ápice na eleição
de 2012, quando ficou fora do segundo
turno na reta final. Na ocasião, caiu em
desgraça quando sinalizou impor tarifas
diferenciadas de ônibus conforme a dis-
tânciapercorridapelousuário.Poucoin-
teligente,numacidadecomasdimensões
de São Paulo. Mas graças a essa populari-
dade, e não à defesa de algum projeto es-
pecífico,elevoltouacomeçaradisputana
liderança.Nãosesabecomoiráterminar.
ELEIÇÕESELEIÇÕES
metropolitana. Como diz a urbanista Er-
miniaMaricato,SãoPaulosãoos39muni-
cípios que compõem o conglomerado ur-
bano ao seu redor, onde vivem mais de 20
milhões de pessoas. Para a professora da
USP, falta uma orquestração das gestões
municipais. “Na nossa cidade, se você pe-
garoproblemadamobilidade,vaiverque
70% do emprego fica no centro expandi-
dodomunicípioegrandepartedostraba-
lhadores não mora no município”, obser-
va ela, para quem é impossível resolver o
problema de mobilidade da metrópole só
com política municipal.
A professora chega a dizer que o maior
desafio do próximo prefeito da capital
será mostrar que os problemas são mais
metropolitanos. “Não dá para resolver o
problema da moradia dentro do muni-
cípio de São Paulo, nem o problema do
meio ambiente. O prefeito de São Paulo
é cobrado por coisas que não são dele. Às
vezes vem um morador de Osasco ou de
Guarulhos cobrar o prefeito de São Paulo
por alguma coisa que não é responsabili-
dade dele”, defende.
A urbanista alerta ainda para a concen-
tração de renda. “Alguns anos atrás, cons-
tateique23%doschefesdefamíliadoBra-
siltodoqueganhavammaisdedezsalários
mínimos moravam no município. É uma
concentraçãoderendaforte,éumapopu-
Cidades engessadas
Um dos principais desafios de quem
quiser levar a campanha e o futuro da ci-
dade a sério, portanto, será conviver com
menosrecursosepoucotempoparaseco-
municar. Ainda assim, a sucessão muni-
cipal é grande oportunidade de discussão
sobreomodelodecidadequesedesejapa-
ra o futuro. Se uma cidade que seja espaço
de humanização e resistência à mercanti-
lização e inclusiva, ou voltada aos interes-
sesdocapital,comohistoricamenteesteve
marcada em seu crescimento.
“Éodesempenhoqueeles(candidatos)
tiverem nos próximos debates e nas pes-
quisaseleitoraisquevaideterminarseum
ou outro vai falar de questões mais pro-
positivas ou vai privilegiar o ataque ao
adversário”,afirmaocientistapolíticoPe-
droFassoniArruda,professordaPontifí-
cia Universidade Católica (PUC-SP). “A
crise política não vai sair do debate, mas
as questões da cidade serão colocadas na
medida em que os eleitores começarem a
cobrar dos candidatos”, diz Arruda.
No primeiro embate televisivo entre os
candidatos houve tensão. Excluída por
uma regra da minirreforma, que exige
da legenda nove ou mais representantes
na Câmara Federal para que o candida-
to participe, Luiza Erundina ficou de fora.
Poderia ter participado se houvesse con-
cordância de dois terços dos demais de-
batedores. Haddad e Russomanno aceita-
lação que mora em condomínios e muito
ligada à demanda de privilégios. Histori-
camente, é uma população acostumada a
negar o problema da pobreza e da desi-
gualdade – é uma população muito volta-
da para o próprio umbigo”, diz.
Erminia, no entanto, pondera: “Mas
não é toda essa classe média que é assim.
Hojevocêtemjovensdaclassemédia,ra-
zoavelmente bem situados em termos de
renda, que estão aí defendendo a huma-
nização da cidade, a abertura da Avenida
Paulista, as ciclovias, a prioridade para o
transportepúblico”,destaca,reconhecen-
do um movimento maior em defesa de
uma cidade mais humana.
O professor da PUC-SP Pedro Fassoni
Arruda lembra que existem alguns défi-
cits na cidade que têm relação com a pró-
pria administração municipal. Ele tam-
bém diz que houve avanços com a gestão
deHaddad,mascomoaprofessoraErmi-
nia, Fassoni destaca que na questão das
linhasecorredoresdeônibus,nemtudoé
responsabilidade do governo municipal.
“Enquanto a tarifa de ônibus é determi-
nada pela prefeitura, a de trens e metrô
é do governo estadual – assim como os
ônibus intermunicipais.”
Ele também diz que a prefeitura tem
uma parcela de responsabilidade com a
segurança pública, com a guarda civil,
mas que a essência da segurança cabe ao
governo estadual. “Houve melhorias, co-
mo o menor tempo para trabalhadores e
estudantes chegarem ao trabalho, e a ta-
rifa subiu abaixo da inflação do período.
Saúde e educação deixam a desejar, mas
houve melhorias graduais, com a cons-
trução de postos de saúde, escolas mu-
nicipais,contrataçãodeprofessores”,afir-
ma.Indagadoseadependerdocandidato
vitorioso a cidade pode perder conquis-
tas, Fassoni diz acreditar que sim.
A população da cidade de São Paulo,
como a das demais 38 cidades que for-
mam a região metropolitana, tem pouco
tempo para decidir se caminhará em di-
reção a um futuro mais civilizado, ou se
permitirá um retrocesso amargo ao pas-
sado, como ao que está sendo submetido
o país: o de entregar a máquina pública
a grupos interessados em satisfazer inte-
resses privados.
ram, mas Marta e Doria Júnior vetaram.
Erundina foi com a militância à porta da
emissora, no Morumbi, zona sul de São
Paulo para protestar. Somente depois de o
debate acontecer o Supremo Tribunal Fe-
deral(STF)julgouainconstitucionalidade
da restrição. “A Band antecipou o debate
antes da decisão do STF porque quis me
excluir, porque eu defendo a democrati-
zação dos meios de comunicação”, disse.
Não bastasse o imbróglio jurídico ali-
mentado pela minirreforma, as medidas
de ajuste fiscal de grande alcance preten-
didas pelo governo de Michel Temer fa-
zem com que os prefeitos e candidatos
olhem para as cidades preocupados com
o futuro. Sobretudo diante da Proposta
de Emenda Constitucional (PEC) 241. A
proposta quebra as exigências de empe-
nho mínimo com Saúde e Educação.
Para o prefeito Fernando Haddad, os
efeitos da PEC vão se tornar agudos na
organização territorial da cidade e pro-
vocar a disputa da sociedade pelo orça-
mento público. Haddad lembrou que o
poder público é atuante em frentes como
saneamento, habitação e mobilidade. “Se
não tiver o poder público, como fazer?”,
indagou Haddad. “Congelar a capacida-
de de responder a isso vai causar que tipo
de conflito? Não sou capaz de responder
qual o significado social e político, como
os governos progressistas vão se colocar
diante dessa configuração.”
NINHO DIVIDIDO Marta aderiu aos golpistas do PMDB e tem o apoio do tucano José Serra. Alckmin lançou João Doria, pelo PSDB
JEFFERSONRUDY/AGÊNCIASENADO
CIETESILVERIO/A2D
A NÃO-NOVIDADE Russomanno caiu em desgraça nas eleições de 2012 ao propor
tarifas de ônibus diferenciadas, mais caras conforme a distância percorrida
LALODEALMEIDA/FOLHAPRESS
10. 18 SETEMBRO 2016 REVISTA DO BRASIL REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 19
venenoArquitetada por
operadoras e
seguradoras
privadas com aval
do governo, a
proposta dos “planos
acessíveis” aponta
para retrocesso nas
regras do setor e o
desmonte da rede de
atendimento básico
gratuito
Por Cida de Oliveira
SAÚDESAÚDE
Entre o
remédio e o
ENTREGA
Governo e
planos de
saúde: a
conta vai
para os mais
pobres
MARCOS CORRÊA/PR
PRISCILLA VILARIÑO/RBA
TUDO PODE MUDAR
Maria Zenilda e seus
filhos Lucas e Isabella
usam o SUS há sete
anos: confiança e bom
atendimento
R
eunidos desde o início de
agosto, representantes do
governo de Michel Temer e
de planos e seguros de saúde
finalizam proposta do setor
para revigorar sua saúde financeira. A
ideia é criar planos de saúde “acessíveis”,
uma espécie de proposta pronta, que o
ministro da Saúde, Ricardo Barros, de-
fende desde que tomou posse, junto com
o então governo interino de Michel Te-
mer, em 12 de maio. A proposta soa tam-
bém como mirabolante. Afinal, é apre-
sentada como solução para o SUS, que
só neste ano viu seu orçamento perder
R$ 12 bilhões. No enredo desses planos,
segundo o ministro, os mais pobres po-
deriam aderir e aliviar as filas do sistema
público. Só falta ele traduzir: o governo
quer resolver o financiamento do setor
enviando a conta para os mais pobres.
“Será um tiro no pé dado pelo governo
ao tentar tirar do bolso da população
mais essa despesa”, diz o presidente do
Conselho Nacional de Saúde (CNS), Ro-
nald Santos.
Famosoporsuaspérolasmachistasese-
xistasqueencobremsuafaltadeintimida-
de com assuntos da pasta, Barros apregoa
que convênios baratos para a população
vão salvar as contas ao injetar de R$ 20 bi-
lhõesaR$30bilhõesporanonasaúdepú-
blica. No entanto, faltam estudos a respei-
to. “Os números, mágicos, só podem ter
saído da cartola. Tudo indica o contrário.
É um grande negócio para as operadoras”,
contesta o economista Carlos Ocké, pes-
quisador do Instituto de Pesquisa Econô-
micaAplicada(Ipea)epresidentedaAsso-
ciação Brasileira de Economia em Saúde.
A proposta é uma das faturas cobrada
por um setor que encolhe. De agosto de
2014 para cá, passou de 50 milhões de
beneficiários – os titulares de planos, que
podemterváriosdependentes–para48,3
milhões. É 1,7 milhão de contratos a me-
nos, segundo a Agência Nacional de Saú-
deSuplementar(ANS).Entreosmotivos,
mensalidades reajustadas acima da infla-
çãoeosucateamentodarede,lotada,com
espera semelhante à do serviço público,
e problemas de gestão, como no caso da
UnimedPaulistana,quebradaháumano.
Só no SUS
Por essas razões, há mais de dois anos a
artista gráfica Michaella Pivetti, 47 anos,
deSãoPaulo,fezcarteirinhasdoSUSpara
ela e as duas filhas, de 7 e 13 anos. Con-
sultascompediatra,clínicogeral,gineco-
logista e outras especialidades, exames e
outros procedimentos, só na rede públi-
ca. “Ainda não passamos por situação de
emergência, mas nossa experiência tem
sido boa. Há demora para alguns agen-
damentos e os postos estão cheios. Mas é
assim também nos convênios particula-
res, cada vez mais caros e de menor qua-
lidade”, diz Michaella. Nascida na Itália,
elacomparaoSUSaosistemadoseupaís.
“Serviçopúblicoéparaatenderbemden-
trodeestruturasbásicas.Umserviçopara
tanta gente é assim em todo mundo, sem
luxo. Precisamos de mais recursos para
aperfeiçoar o SUS, e não acabar com ele”.
A diarista Maria Zenilda Duarte Ca-
bral, de São Paulo, foi para o SUS há qua-
seseteanos,depoisdonascimentodeseu
filho Lucas. “Fui muito bem atendida no
pré-natal e no parto em hospital particu-
lar,masficavacaroincluiroLucas.Como
eu usava pouco, preferi parar de pagar”,
conta.Lucaséacompanhadopelamesma
pediatra, que atende a caçula Isabella, de
5 anos. “Fiz pré-natal e parto pelo SUS,
com atendimento igual no particular. O
médico do pré-natal é meu ginecologis-
ta até hoje.” Ela conta que os filhos fize-
ram cirurgias para retirada de adenoide
e pequenas cirurgias e que não pretende
voltar a pagar convênio.
A saúde da população, porém, não de-
verá ser melhor com os planos de Bar-
ros. Para Ronald Santos, do CNS, os pla-
nos não serão baratos e nem para todos.
“Esses planos de faz-de-conta vão excluir
os idosos e quem tem doenças crônicas,
que necessitam dos serviços com mais
frequência”, diz. Santos teme também
pelo desmonte da estrutura atual, com
fechamento de unidades de UBS e UPA
e demissão de trabalhadores, colocando
em risco programas de saúde da família
e outras políticas preventivas.
O governo não deu detalhes, mas pla-
nos baratos não são novidade. Segundo
a ANS, há 2.414 planos ambulatoriais já
comercializados,sendo908familiaresou
individuais, 1.038 coletivos ou empresa-
11. 20 SETEMBRO 2016 REVISTA DO BRASIL REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 21
SAÚDE SAÚDE
UM FUTURO MELHOR
A má qualidade do convênio particular
fez com que Michaella migrasse para o
SUS: “Precisamos de mais recursos para
aperfeiçoar o SUS, e não acabar com ele”
PRISCILLAVILARIÑO/RBA
riais e 464 por adesão. Outros quatro não
são identificados pela agência. Há ainda
planos em regime de adesão a uma enti-
dade que assina o contrato com a opera-
dora.Nocomeçosãobaratos,ecomotêm
reajuste fora de regulação, muitas vezes
são reajustados pelo dobro da inflação e
aoperadorapodeaumentarovalorquan-
doosusuáriospassamausarmuitoarede
credenciada, por exemplo.
No começo, chegam a custar 40% me-
nos e depois chegam a ter mais de 100%
de aumento. Sem poder pagar, o clien-
te encerra o contrato. “Em geral ofere-
cem consultas e exames simples, ao cus-
to médio de R$ 100 mensais para a faixa
etária em torno dos 35 anos, que exige
menos acompanhamento do que na ter-
ceira idade. As pessoas não compram
porque sabem que não cobrem nada e
vão ter de acabar indo pro SUS”, diz o
professor da Faculdade de Medicina da
USPevice-presidentedaAssociaçãoBra-
sileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Má-
rio Scheffer.A Abrasco, aliás, juntamen-
te com o Conselho Federal de Medicina
(CFM), a Sociedade Brasileira de Pedia-
tria e o Instituto Brasileiro de Defesa do
Consumidor (Idec), além de outras en-
tidades, pretendem ir à Justiça contra o
governo caso a proposta vingue.
Causa preocupação, segundo Sche-
ffer, a “ponte para o passado” embutida
na proposta, mais especificamente aos
anos 1990, antes da regulação do setor.
“A cobertura era mínima, praticamente
ambulatorial. Excluía tratamentos caros,
como atendimento a doentes de câncer
e de aids, e até aqueles mais baratos, co-
mo fisioterapia”, lembra. A regulamenta-
ção veio com a Lei 9.656/1998, em vigor
desde 2 de janeiro de 1999, que garante
o tratamento de todas as doenças lista-
das pela Organização Mundial da Saúde
(OMS) na Classificação Internacional de
Doenças (CID), inclusive quimioterapia,
hemodiálise e transplantes. Mas a legis-
lação praticamente foi revogada com a
criação da ANS, em janeiro de 2000, que
introduziu o conceito de rol de procedi-
mentos obrigatórios. A cada “ampliação”,
já há a falsa ideia de mais cobertura. Para
oIdec,oroléilegalporrestringirdireitos
garantidos em lei vigente.
Negócios
Carlos Ocké, do Ipea, vê outra inten-
ção por trás dos planos populares: a “fi-
nanceirização” da saúde, já que o gru-
po de trabalho do Ministério da Saúde
inclui representantes da Confederação
Nacional das Empresas de Seguros Ge-
rais, Previdência Privada e Vida, Saúde
Suplementar e Capitalização (CNSeg).
“Como o ministro vem dando pistas de
que pretende mexer no plano de saúde
individual e empresarial, provavelmente
o individual vai ser ambulatorial com co-
bertura reduzida. Embora o foco esteja
no plano popular, desconfiamos que haja
mudanças nos plano empresariais, com a
adoção da ideia do VGBL na saúde”, diz,
citando a sigla para Vida Gerador de Be-
nefícios Livres, um seguro de vida com
cláusula de cobertura à saúde.
SegundoOcké,aideiadeumanovaca-
tegoria de plano que una assistência mé-
dica e previdência privada já vem sendo
anunciada pela ANS desde 2011. Seria
uma forma de um fundo de capitalização
individualque,emtese,ajudariaacustear
os gastos com saúde na velhice. “Isso vai
pressuporrecursospúblicos,pormeiode
renúncia fiscal, num mix de poupança fi-
nanceira com assistência médica atrati-
vo num primeiro momento pela supos-
ta vantagem de uma poupança que será
sacada só em caso e doença. Mas como a
probabilidade de um idoso ficar doente
é grande, quando precisar de certos pro-
cedimentos vai ter que pagar do seu bol-
so porque o rol é muito limitado e terá
franquia por uso”, explica.
Embora atenda um quarto da popula-
ção,osetorprivadoconcentra53%deto-
dos os recursos. Vende a ideia de melhor
atendimento – um sonho de consumo
de muita gente e item da pauta de sindi-
catos – graças aos subsídios públicos di-
retos e indiretos. É a sociedade pagando
esse benefício que os empregadores dão
aos seus trabalhadores, e ao subsídio fis-
cal, em que pessoas física e jurídica aba-
temseusgastoscomsaúdenoimpostode
renda. São recursos que o Estado pode-
ria arrecadar e não arrecada. Os planos
ganham também ao não ressarcir o SUS
pelo atendimento prestado a seus clien-
tes.UmlevantamentorecentedaFolhade
S.Paulomostrouque30%dasoperadoras
ainda não pagaram nem 1% do valor da
dívidacomoSUS.De2001paracá,deve-
riam ter sido ressarcidos R$ 2,1 bilhões.
No entanto, 40% do valor não foi pago e
nem parcelado para recebimento futuro,
um valor estimado em R$ 826 milhões.
Com 47% dos recursos, o SUS é o pla-
nodesaúdedaMichaella,MariaZenilda,
seus filhos e outros milhões de brasilei-
ros,quetêmpromoçãodasaúde,preven-
ção de doenças, vacinas, vigilância sani-
tária, SAMU, atendimento a doenças
médias e complexas, como cirurgias de
grande porte, transplantes. Essa despro-
porção explica a dificuldade de acesso ao
sistema e a qualidade baixa dos serviços
muitas vezes com demora na realização
de consultas, exames e cirurgias que aca-
bam capitalizadas como propaganda em
prol do setor privado.
Um quadro que tende a piorar na pers-
pectivadearrochocomaPEC241.Apre-
visão é congelar os investimentos por 20
anos,apartirde2017,admitindosomen-
te correção pela inflação do ano anterior.
Ou seja, em 2036 a despesa da União de-
veráseramesmadomínimoconstitucio-
nal fixado para 2016. Conforme o Con-
selho Nacional de Secretários de Saúde
(Conass) e o Conselho Nacional de Se-
cretarias Municipais de Saúde (Conase-
ms), as aplicações mínimas de recursos
destinadosaaçõeseserviçospúblicosem
saúde, atualmente regidos pela Emenda
Constitucional 86, têm destinação cres-
cente e escalonada dos recursos, calcu-
lados em percentuais de arrecadação da
Receita Corrente Líquida, que no exercí-
cio de 2016 é de 13,2%.
Segundo as entidades, a EC 86, que
substituiregraquevigoravadesde2000,a
Emenda29,reduziuosrecursosdaSaúde
em 2016, com perdas da ordem de R$ 17
bilhões, se atualizados pelo IPCA. Além
disso, a nova metodologia proposta pe-
lo governo federal irá agravar o históri-
co subfinanciamento do setor. E mesmo
queaarrecadaçãotributáriaaumentenos
próximos anos, novos recursos financei-
ros não serão destinados necessariamen-
te às áreas sociais.
Aregra,desde2000,équeestadosapli-
quem 12% e municípios, 15%. Municí-
pios, os que menos arrecadam, e estados
respondem por 58% do total de gasto
público em saúde, aplicando percentu-
ais bem acima do que manda a Consti-
tuição. Em 2015 aplicaram, respectiva-
mente, R$ 25 bilhões e R$ 6,4 bilhões
além. “Para continuar oferecendo os
serviços de atenção básica, temos apli-
cado 32% da nossa receita própria, mais
que o dobro dos 15% que a Constituição
determina”, diz o secretário municipal
de Saúde de Osasco (SP), José Aman-
do Mota. “Com os cortes no primeiro
quadrimestre, posso dizer que não te-
mos expectativa de executar o orçamen-
to e nos manter no patamar de execução
de 2015. Nosso teto financeiro vem sem
correção há algum tempo.”
12. 22 SETEMBRO 2016 REVISTA DO BRASIL REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 23
Diogo, presidente da Comissão da Ver-
dade da Assembleia Legislativa paulista,
eporCezarBritto,ex-presidentedoCon-
selho Federal da Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB), entre outros.
AVolkspassouanegociarumarepara-
ção judicial. Um diretor da matriz alemã,
Manfred Grieger, veio ao Brasil em 2015
e reuniu-se com representantes do Mi-
nistério Público, inclusive com Macha-
do, que falou sobre um possível termo
de ajustamento de conduta (TAC). “Foi o
início de uma discussão sobre como che-
garaumacordoarespeitodessaquestão”,
afirmou na ocasião ao jornal O Estado de
S.Paulo.Procuradoparacomentaroatu-
al estágio das conversas, o executivo não
respondeu ao pedido de informações. A
empresa também não se manifestou.
Ex-integrante do grupo de trabalho do
movimento sindical na CNV, Sebastião
Neto, coordenador do Intercâmbio, In-
formações, Estudos e Pesquisas (IIEP),
diz que o mais importante é estabelecer a
cadeiadecomandoqueexistianaempre-
sa. “Queremos chamar as pessoas a que
ele (coronel Adhemar Rudge, responsável
pelo setor de segurança industrial da em-
presa) se reportava.”
Segundo Neto, não existe nenhuma
“Volksfobia” – mas a documentação que
envolve o caso é extensa. A empresa de-
monstra relação próxima com o Dops.
Neto afirma que a proposta de Grieger é
de fazer reparações individuais, o que ele
não considera interessante. “Nós quere-
mos discutir reparação coletiva”, diz, ci-
tando possíveis ações, como projetos de
educação e um memorial.
Responsabilidade
Vice-presidente do Comitê Mundial
dos Trabalhadores na Volks, Reinado
Marques da Silva, o Frangão, funcionário
da empresa na unidade de São Bernardo
do Campo, no ABC paulista, esteve com
Grieger na Alemanha. O executivo tam-
bém se reuniu, em São Bernardo, com o
presidente e o secretário-geral do Sindi-
cato dos Metalúrgicos, Rafael Marques e
WagnerSantana,respectivamente.Segun-
do ele, a montadora mostra disposição de
fornecerdocumentoseassumirresponsa-
bilidades pelo ocorrido no Brasil, confor-
meoquefordecididopelaJustiça,deixan-
do claro que essa não é a prática do grupo.
“Oqueelescolocamé:vamosarcarcom
tudo que for de minha responsabilidade
sobregestãodepessoasligadasàempresa.
Elesrepudiamesseprocesso”,dizFrangão.
À empresa de comunicação DW Brasil,
também em 2015, Grieger afirmou ain-
da que a montadora iria investigar “todos
os indícios” de participação da funcioná-
rios da empresa em violações de direitos
humanos. “A Volkswagen lamenta muito
quepessoastenhamsofridooutenhamsi-
do prejudicadas economicamente duran-
te a ditadura militar, eventualmente, por
HISTÓRIAHISTÓRIA
Memórias da fábricaMinistério
Público
investiga
denúncia sobre
participação
da Volkswagen
no aparato
repressivo
da ditadura,
um capítulo
histórico ainda
obscuro
Por Vitor Nuzzi
D
ivulgado há quase dois anos, o re-
latório final da Comissão Nacio-
nal da Verdade (CNV) destinou
um capítulo aos trabalhadores
e ao movimento sindical. Entre
as investigações que ficaram pendentes, está a
participação de empresas em atividades da di-
tadura. E o caso da Volkswagen, entre outros,
pode mostrar avanços em prazo mais curto: a
pedido de várias entidades, o Ministério Pú-
blico investiga, desde o final de 2015, possível
colaboração da montadora com órgãos de re-
pressão e violações de direitos humanos.
A atuação é conjunta – envolve MP federal,
estadual e do Trabalho. “O MPF recebeu da
Comissão da Verdade documentos que com-
provam o envolvimento da empresa no forne-
cimento de dados dos trabalhadores de suas
fábricas ao Dops (um dos órgãos responsáveis
pelas prisões e torturas do período), na orga-
nização de um sistema próprio de vigilância e
monitoramento do movimento sindical e do
envolvimento direto na prisão e na tortura de
seus empregados dentro do ambiente da em-
presa”, diz comunicado.
Na representação encaminhada ao procura-
dor regional dos Direitos do Cidadão do Es-
tado de São Paulo, Pedro Antônio de Oliveira
Machado, as várias entidades – entre as quais
dez centrais sindicais, além de pesquisadores,
ativistas e ex-funcionários – ressaltam a neces-
sidade de esclarecimento de episódios daquele
períodohistórico.Efazemreferênciaà“obscu-
ridade que ainda faz transbordar a ignorância
e a superficialidade de tratamento do tema da
complicidade do empresariado” com o regime
autoritário. O documento também é assinado
pela advogada Rosa Cardoso, que coordenou
o grupo de trabalho do movimento sindical
e a própria CNV, pelo ex-deputado Adriano
ARQUIVO/ESTADÃO CONTEÚDO/AE (1974)
FUSCAS E
PANCADAS
Nos anos 1970
e 1980 a Volks
manteve um
rígido esquema de
segurança em sua
unidade de
São Bernardo
JESUSCARLOS/IMAGEMGLOBAL
CLIMA DE GUERRA
Armada com fuzis,
a PM acompanha a
movimentação dos
grevistas na porta
da Volks em 1979
13. 24 SETEMBRO 2016 REVISTA DO BRASIL REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 25
mecei a apanhar ali, comecei a levar tapa,
soco”, relatou Bellentani em depoimento.
O grupo de trabalho do movimento
sindicalnaComissãodaVerdadecitaain-
da a formação, em 1983, do Centro Co-
munitáriodeSegurança(Cecose)noVale
do Paraíba, interior de São Paulo. “Esse
centro operava no compartilhamento de
informações sobre as atividades dos tra-
balhadores, sobretudo, dos dirigentes
sindicais, por meio de reuniões mensais
nas dependências das fábricas, hotéis ou
pousadas da região, com a presença de
representantes empresariais”, afirmam
os representantes do grupo. A Volks tem
uma unidade na região, em Taubaté.
“Nos documentos obtidos a respeito
do funcionamento do centro, localizou-
-se um, datado de 18 de julho de 1983, no
qual se registra, textualmente, que o re-
presentante da empresa Volkswagen ex-
pôsosassuntosmaisimportantesemreu-
nião, apresentando anotações, em forma
de‘lembretes’.”Novasinformaçõesforam
meio da participação de funcionários da
Volkswagen do Brasil”, declarou.
OcasodamontadorainstaladanoBra-
sil nos anos 1950 (a fábrica do ABC co-
meçou a funcionar em 1959) pode ser
emblemático, mas não é o único. Os re-
latosapontamcolaboraçãodedezenasde
empresas com a repressão. O relatório da
CNV aponta “situação inédita” em 1964.
“Na Primeira República, a fábrica era do-
mínio privado do patronato e o Estado
permanecia ausente. Com a criação da
legislação trabalhista, a partir do Estado
Novo, o espaço fabril tornou-se terreno
dedisputa,mediadapelavirtualpresença
doEstado,eosconflitossefizerampúbli-
cos.” Já na ditadura, acrescenta, “o Estado
estarápresentenasfábricas,nãocomoár-
bitro, mas como ‘agente patronal’.”
Violência
Em relação à Volks do Brasil, o rela-
tório da CNV identifica “uma profusão
de documentos” que, segundo o colegia-
HISTÓRIA HISTÓRIA
do, comprovam a cooperação da empre-
sa com órgãos como o Dops. Cita o caso
do hoje aposentado Lúcio Bellentani, no
ABC–funcionárionosetordeFerramen-
taria, foi preso na própria fábrica, duran-
te o trabalho, em 1972, por dois homens,
umdelesportandometralhadora.“Naho-
ra em que cheguei à sala de segurança da
Volkswagen já começou a tortura, já co-
Em 11 de agosto, o frei dominicano Tito de
Alencar Lima, morto em 1974, na França, tornou-se
cidadão paulistano, após aprovação de projeto do
vereador Toninho Vespoli (Psol), há quase um ano.
Na cerimônia em homenagem a Tito, na Câmara
Municipal, representantes de movimentos do
passado e do presente se reuniram para discutir
problemas que ainda persistem na sociedade
brasileira, como a violência policial e a tortura. Por
isso, estavam presentes ao evento representantes
dos estudantes e do movimento Mães de Maio.
“Apesar de não realizarmos todos os sonhos que
nós tínhamos, tem outras pessoas gerando novos
sonhos que dão sentido à morte e à vida continuada
de Tito”, afirmou frei João Xerri, ao ligar fatos
históricos que resultaram no suicídio do dominicano
à atuação de grupos, na atualidade, por justiça e
democracia.
Três dias depois do evento na Câmara, uma
caminhada pelo centro de São Paulo lembrou do ex-presidente
João Goulart. O elevado conhecido como Minhocão passou a
levar o nome de Jango, em lugar de Arthur Costa e Silva, um dos
generais-presidente do período autoritário – a partir de outro
projeto, do vereador Eliseu Gabriel (PSB), sancionado pelo prefeito
Fernando Haddad (PT). “É muito importante, neste momento
político, em que se debate abertamente o retrocesso, rememorar
Jango”, disse João Vicente, filho de Goulart.
A Câmara discute outro projeto emblemático. A ideia é dar
o nome de Frei Tito a uma rua que hoje lembra um de seus
algozes, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops.
Um resgate necessário
VEIA MILITAR
O coronel Adhemar
Rudge chefiou o
setor de segurança
industrial da Volks
de 1969 a 1991
RELAÇÕES ESTREITAS A própria Volks se encarregou de passar ao Dops um resumo do “comício” feito por Lula na porta da montadora
DOCUMENTAÇÃO
EXTENSA
Sebastião Neto: “A
empresa demonstra
relação próxima
com o Dops”
Também na casa legislativa paulistana, Comissão
da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo,
instalada pelo prefeito Fernando Haddad em
setembro de 2014, deu mais um passo no sentido
de aprofundar a participação do mundo empresarial
em ações de repressão da ditadura. No último dia
15 de agosto, o pesquisador Paulo Fontes foi ouvido
pelo colegiado sobre o papel da indústria Nitro
Química na perseguição a militantes operários.
Fontes é coordenador do Laboratório de Estudos
do Mundo do Trabalho e dos Movimentos Sociais
(LEMT) do Centro de Pesquisa e Documentação de
História Contemporânea do Brasil (CPDoc/FGV-RJ).
Seu livro Um Nordeste em São Paulo: Trabalhadores
Migrantes em São Miguel Paulista: 1945-66, lançado
em 2012, recupera a saga dos trabalhadores que
deixaram o Nordeste para serem operários da
companhia, criada em 1935 pelo empresário José
Ermírio de Moraes, pai de Antônio Ermírio, morto há
2 anos, do Grupo Votorantim.
O autor observa que as relações entre o aparato repressivo
e os empresários, que são bem anteriores a 1964, estão
muito presentes no caso da Nitro Química. Ele ressalta que os
trabalhadores e os impactos diretos dos regimes autoritários à
vida pessoal e ao mundo do trabalho não são estudados como
deveriam. “Embora a maioria dos mortos e desaparecidos seja
de trabalhadores ou pessoas com origem nas classes populares,
eles sempre foram negligenciados entre as vítimas da ditadura.
É preciso trazer à tona essa discussão sobre a relação entre
sindicalistas e ativistas que são esquecidos na história.”
obtidas recentemente, após a representa-
ção encaminhada ao Ministério Público.
Um documento do Setor de Análise,
Operações e Informações do Dops rela-
ta, por exemplo, “comício” realizado em
26 de março de 1980 na portaria da Volks
no ABC, citando um “resumo” feito pela
segurança da própria Volks sobre a atua-
ção do então Sindicato dos Metalúrgicos
de São Bernardo e Diadema, à época pre-
sidido por Luiz Inácio Lula da Silva. Na
ocasião, Lula falava justamente sobre o
monitoramentoqueosoperáriossofriam
na fábrica, citando o coronel Adhemar
Rudge. Na representação ao MPF, as en-
tidades afirmam que ele era “amigo no-
tório” do coronel Erasmo Dias, ex-secre-
tário estadual de Segurança Pública em
São Paulo.
Em 23 de junho último, o MPF convo-
cou Rudge para depoimento. De acordo
com o Ministério Público, com passagem
pelo Ministério da Justiça e pela Polícia
FederaldaGuanabara,elepassouachefiar
a segurança industrial da Volks em 1969.
Permaneceu lá até novembro de 1991,
quando se aposentou – completará 90
anos em outubro. Ao MPF, Rudge negou
asacusaçõessobreperseguiçãoedisseque
seu setor se limitava a cuidar do patrimô-
nio da empresa. Naquele mesmo dia, ou-
tro ex-funcionário da Volks, João Batista
Lemos, declarou que “a própria Volks me
entregouparaoDops”.Hojediretorexecu-
tivodaCTB,Batistafoianistiadoem2013.
Para Frangão, o processo é importante
tambémparaageraçãoatual.“Issoreforça
aindamaisqueademocracia,pormaisdi-
fícil que seja, é a melhor forma de a gente
lidarcomosproblemaseasadversidades.”
Existem muitos relatos de parcerias
empresariais com a ditadura. A Comis-
são da Verdade da Assembleia Legislati-
va paulista cita também a Operação Ban-
deirante (Oban), que teve financiamento
de indústrias paulistas, mas lembra que a
participação patronal na manutenção do
sistema de repressão da ditadura não se
limitou a São Paulo.
Entre suas recomendações, o grupo
dos trabalhadores na CNV propôs “in-
vestigar, denunciar e punir empresários,
bem como empresas privadas e estatais,
que participaram material, financeira e
ideologicamente para a estruturação e
consolidação do golpe e do regime mi-
litar”. Sebastião Neto lembra que a pro-
posta não foi incluída no relatório final.
A coordenadora do grupo de trabalho,
Rosa Cardoso, afirmou em sua apresen-
tação que o golpe de 1964 e a consequen-
teditadura“foramumempreeendimento
civil e militar”. Sem o projeto empresa-
rial, que buscava mudar o modelo eco-
nômico no Brasil, teria havido “um me-
ro levante”.
LINHA DURA Lúcio Bellentani foi preso
em 1972 enquanto trabalhava. Começou a
apanhar na sala de segurança da Volks
WIKIPEDIA.ORG
Frei Tito foi militante
estudantil. Preso em
1968, foi torturado
no Dops e depois
na Oban
JESUSCARLOS/IMAGEMGLOBAL(1981)
WILSONDIAS/AGÊNCIABRASIL
ARQUIVOPÚBLICODOESTADODESÃOPAULO
CÂMARAMUNICIPALDEMOGIDASCRUZES,SP
14. 26 SETEMBRO 2016 REVISTA DO BRASIL REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 27
Silvio Tendler prepara filme sobre a força
do capital financeiro na economia mundial.
“Transferimos todas as decisões para um
lugar sem controle nem transparência.
O mundo não aprendeu com 2008” Por Vitor Nuzzi
COMODENUNCIA
ARTE
CINEMACINEMA
N
o site da sua produtora,
a Caliban – referência a
personagem de Shakes-
peare na peça A Tem-
pestade, um símbolo de
resistência –, Silvio Tendler é apresentado
como tendo 48 anos de cinema. Ele mesmo
contesta suavemente a informação. “A gente
estreia quando vai pela primeira vez”, afirma,
contando que na infância os pais o levavam aos
cinemas perto de casa, em Copacabana, no Rio
de Janeiro. “Era minha principal diversão desde
os 5 anos de idade”, diz Tendler, que por essa conta
conclui ter 61 anos de cinema – nasceu em março
de 1950, no bairro da Tijuca, zona norte do Rio.
Omarcozero,aomenosformal,éocurtaFantasia
para Ator e TV, de 1968, dirigido por Paulo Alberto
Monteiro de Barros, em que Tendler aparece como
assistente de direção. São décadas de produção con-
tínua e múltipla, já que o diretor costuma se envolver
com vários projetos simultaneamente. No ano passado,
por exemplo, lançou dois filmes, Parir é Natural e Harol-
do Costa – O nosso Orfeu, além de uma série (Há Muitas
Noites na Noite).
Em 2016, produz mais séries e projetos de três curtas e
três longas. Entre os trabalhos em curso, está um filme sobre
a influência do capital na política. Tem o nome provisório de
Dedo na Ferida. “É uma crítica à política dominada pelo sis-
tema financeiro. Você não discute mais o dinheiro a serviço da
produção”, diz Tendler, lembrando que se trata de um fenômeno
mundial. “Acho que é a primeira vez que vamos discutir com pro-
fundidade a força do sistema financeiro na economia.” Segundo a
apresentação do filme, que fala em “ciclo de submissão”, a ideia é su-
gerir “o fortalecimento da democracia como
resistência à ideologia da economia privada”.
Otrabalhodeveráestarconcluídoatéofim
doano,compelomenos30entrevistas.Dedo
naFeridaéfeitoemparceriacomoSindicato
dos Engenheiros (Senge) do Estado do Rio
deJaneiroecomafederaçãointerestadualda
categoria (Fisenge). Para Tendler, isso ajuda
a “devolver para a sociedade civil o protago-
nismo das ações transformadoras”.
Em julho, ele esteve na França – onde mo-
rou durante quatro anos, na década de 1970
–, para conversar com o diretor grego Costa-
-Gavras, autor de clássicos como Z, Estado de
Sítio e Missing, e de obras que também tra-
tam do tema abordado pelo cineasta brasilei-
ro, como O Corte (2005) e O Capital (2012).
No primeiro, um engenheiro perde o empre-
go e, desesperado, se torna um assassino. No
longa mais recente, Gavras conta a história
de um jovem executivo que chega à direção
de um banco europeu com a missão de levar
adiante um plano de demissões em massa, e
a rede de intrigas formada nesse “jogo plane-
tário”. Uma frase do filme, pronunciada pelo
protagonista: “Os americanos querem que eu
demita.Osfranceses,queeufracasse.Eminha
equipe quer me apunhalar”.
Austeridade
Silvio Tendler também já conversou sobre
a situação da Grécia com a espanhola María
José Fariñas Dulce, professora de Filosofia
VITOR VOGEL/RBA
Silvio Tendler: “Acho que
o mundo pode mudar, e
mudar para melhor.
Eu sou otimista.”
IMAGENSACERVOCALIBAN
15. 28 SETEMBRO 2016 REVISTA DO BRASIL REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 29
inferior a uma jazida e achar que isso é
modernidade”.
Para Tendler, o enfraquecimento do
Estado e o domínio do capital podem le-
var o mundo a uma tragédia. Seu filme
“servecomoalertaasituaçõesquetêmde
mudar”, diz. “Acredito muito na força do
cinemaparaatransformaçãodasocieda-
de”, acrescenta o autor do documentário
O Veneno está na Mesa, sobre a presença
de agrotóxicos na alimentação.
Elecitatrabalhosque,pelonomes,mos-
tram um pouco de seu pensamento: Fio
da Meada (“Sobre saberes ancestrais”),
Sonhos Interrompidos e Caçador de Bra-
sis.“Todosdialogamentresi.Sãoumades-
coberta do mundo em que a gente vive e
CINEMA CINEMA
do Direito na Universidade Carlos III, de
Madri. “Não é nenhuma radical”, obser-
va. Ela foi uma das integrantes de um tri-
bunalinternacionalorganizadonoBrasil
em julho, para “julgar” – e condenar – o
processo de impeachment contra a pre-
sidenta Dilma Rousseff. E considerou a
situação política brasileira parte de uma
“contrarrevolução neoliberal” também
vivida na Europa. “Ela falou, por exem-
plo, que a Grécia está empenhada aos
bancos”, diz o cineasta.
A lista de entrevistados inclui ainda
YanisVaroufakis.Trata-sedoeconomis-
ta e ex-ministro de Finanças da Grécia,
contestador dos regimes de austerida-
de e crítico da chamada Troika (Co-
missão Europeia, Banco Central Euro-
peu e Fundo Monetário Internacional).
Em entrevista ao El País em fevereiro,
ele defendeu uma Constituição euro-
peia “redigida pelos cidadãos e não pe-
las corporações”, pedindo transparên-
cia. “A intenção (da União Europeia)
é democrática, mas transferimos todas
as decisões para um lugar sobre o qual
não existe nenhum tipo de controle nem
transparência...”
O cineasta brasileiro acredita que o
mundo não “aprendeu” com a crise fi-
nanceira deflagrada em 2008, que che-
gouapôrosmercadosfinanceirosemxe-
que. “Olha a situação do Brasil hoje e me
diz se alguma coisa mudou. Só tiraram o
bode da sala”, diz. Segundo ele ouve dos
entrevistados, a globalização é irreversí-
vel. Também está em curso um processo
de diminuição do papel do Estado, que
muitosveemaindacomoumaforçaregu-
ladora na economia. “É uma posição que
eu também defendo, mas que está bas-
tante fragilizada. A economia está muito
mais dominada pelas empresas. Os Esta-
dos são reféns.”
Reformas
Com 14 anos completados 20 dias an-
tes do golpe de 1964, o cineasta é de uma
geração que discutiu e vivenciou mo-
mentos de industrialização do Brasil, de
expansão de sua economia, e lutou pelas
chamadas reformas de base. Expressou e
expôs o processo histórico brasileiro em
várias de suas dezenas de obras, como Os
Anos JK – Uma Trajetória Política (1980),
Jango(1984),AEraJK–SaudadesdoBra-
sil (1992) e Tancredo, a Travessia (2011).
Seu acervo particular compreende mais
de 80 mil títulos sobre história do país e
do mundo.
“Antes de Juscelino e Jango, temos de
pensar que o Brasil de Vargas era outro.
Antes de 1930, o Brasil não era industria-
lizado, era um grande cafezal. Vargas de-
senvolveu o capitalismo e a presença do
Estadonaeconomia”,observaTendler,ci-
o que queremos. Acho que pode mudar, e
mudar para melhor. Eu sou otimista.”
Otimista, mas preocupado. Por isso,
considera seu filme um “grito universal”
à sociedade. “Temos de mudar o nosso
projeto de desenvolvimento”, afirma. Pa-
ra Tendler, as pessoas mostram incapaci-
dadedediscutirquestõescotidianas.“Es-
tão em seus casulos, com seus pontos de
vista fechados.”
Ele considerou, por exemplo, “depri-
mente” a sessão da comissão especial do
Senado, em 4 de agosto, que aprovou um
relatório favorável ao impeachment de
Dilma Rousseff sem entrar no cerne da
questão, se houve mesmo as tais pedala-
das. “Não existe mais a defesa de um pro-
jetodenação”,afirma.Masodiretoracre-
dita que, se confirmado, Michel Temer
terá os mesmos problemas que Dilma te-
ve de enfrentar. “Com esse Congresso aí
não vamos ter tranquilidade nenhuma”,
diz, apontando para a “gula” dos depu-
tados. “A minha esperança é de uma no-
va eleição (em 2018)’’, acrescenta, ainda
sem saber qual seria a sua opção política.
Ao pensar na Olimpíada recentemente
disputada no Rio, Tendler vê aumentar a
importância do debate sobre a influência
do poder financeiro. “Virou um evento
comercial, onde os grandes atletas têm
seus patrocinadores, o doping é um pro-
blema universal – não é só dos russos – e
o espírito olímpico é pecuniário.”
tandoempresascomoaFábricaNacional
de Motores e a Companhia Siderúrgica
Nacional e lembrando das hoje chama-
das parceria público-privadas. “Isso foi
inventado por Juscelino nos anos 50. O
Jango não teve tempo, ele foi sabotado.
Se o Brasil tivesse feito a reforma agrária
queoJangopretendia,nãoestaríamosvi-
vendo essa situação de caos econômico.
Seria outro país.”
Ele não se considera um nacionalis-
ta. “Sou uma pessoa que pensa nos in-
teresses do povo. Se isso é ser naciona-
lista...”, afirma, para em seguida, como
exemplo, chamar de “crime” o que ocor-
reu com uma das empresas símbolo do
país: “Criar a Vale, vender por um valor
PLENA ATIVIDADE Diretor de clássicos como Z, O Corte e O Capital, Costa-Gavras
é um dos entrevistados de Tendler para seu próximo filme, Dedo na Ferida
PROCESSO
HISTÓRICO
Tendler e a
equipe de
Jango, filmado
em 1984
IMAGENSACERVOCALIBAN
O Caçador de Brasis
Jards
Macalé em
Sonhos
Interrompidos
Parir é
Natural
16. 30 SETEMBRO 2016 REVISTA DO BRASIL REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 31
LALO LEAL
milhares de pessoas com seus automóveis, para morar em ruas
antes habitadas por poucas famílias.
Clara, personagem vivido de forma brilhante por Sonia Bra-
ga, é uma jornalista e escritora aposentada que não se dobra às
investidas de uma construtora, ávida por demolir o pequeno
prédio onde mora, chamado Aquarius. Todos os seus vizinhos
venderam os apartamentos mas ela resiste bravamente e sua re-
sistência conduz a narrativa do filme.
A violência dos especuladores é assustadora mas não irreal.
Vai das propostas financeiras apresentadas entre sorrisos me-
lífluos e aparentemente cordiais a ações agressivas buscando
desestabilizá-la emocionalmente. Quem já passou por essas si-
tuações sabe a extensão do drama.
Mas em meio a tudo isso Clara vai a festas, cuida do neto, tem
desejossexuais,nadanapraia,nãoabremãodoseuvinho.Ouve
boa música, dança. Ao mesmo tempo enfrenta com altivez seus
inimigos. Os reduz à sua insignificância mercantil.
Emseuprimeirolonga,OSomaoRedor,odiretorKleberMen-
donçaFilho,ex-jornalista,jáhaviaironizadoaimprensamarrom
aocolocarnabocadeumadondoca,emreuniãodecondomínio,
uma reclamação contra o zelador do prédio porque a sua Veja
chegava com o envelope de plástico aberto. Uma rara crítica ne-
gativa ao filme veio justamente dessa revista, curioso não?
Agora ele vai mais fundo e mostra a falta de preparo de jo-
vens repórteres ao entrevistar Clara, personagem com história
de vida riquíssima, reduzida no jornal a uma usuária do MP3 e
das demais mídias digitais. Além de mostrar a promiscuidade
das relações familiares existentes entre os donos de um grande
jornal e a construtora algoz de Clara. Um deles, no filme, chega
a dizer que só permanece no ramo porque sabe de muita coisa
que obviamente não publica.
Nada muito diferente da vida real. Basta ver o grande número
depáginasocupadasnosjornalõesporanúnciosdeempreendi-
mentos imobiliários. A contrapartida, pode-se deduzir, é a au-
sência de matérias mais aprofundadas sobre os males causados
pela especulação imobiliária ao urbanismo brasileiro.
Resta-nosocinema,quenocasodeAquariusvaialémdodrama
urbano. Pode ser visto também como uma alegoria à truculência
que hoje nos cerca, com a imposição ao país de um programa de
governo que não foi escolhido pelos eleitores. A arrogância dos
empreiteiros do filme é a mesma dos políticos sem voto que que-
rem nos governar. Não é por acaso que, no Festival de Gramado
enapré-estreiaemSãoPaulo,osgritosde“fora,Temer”ecoaram
pelas salas de projeção.
A
lguns parlamentares – como o senador Cristovam
Buarque – só tremem diante da repercussão inter-
nacional do golpe perpetrado contra a presidenta
DilmaRousseff.Nomaisestãotranquilos,sabendo
que a mídia brasileira se perfila ao lado deles, sem
nenhum pudor. Mas o calo internacional não para de doer. E foi
justamentenoexteriorqueodiretoreoelencodofilmeAquarius
resolveram denunciar o golpe, ainda em maio, em pleno tapete
vermelho do Festival de Cannes, diante de câmeras e microfones
de todo o mundo. Levantaram cartazes em inglês e francês afir-
mando que “um golpe de Estado havia ocorrido no Brasil” e que
“o mundo não deveria aceitar esse governo ilegítimo”.
Provocaram a ira dos golpistas e sofreram retaliações mes-
quinhas. O filme foi classificado para maiores de 18 anos pelo
Ministério da Justiça, numa forma peculiar de censura (depois
reclassificado para maiores de 16 anos) e um dos escolhidos
pelo governo para a comissão que irá definir o candidato bra-
sileiro ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2017 é Marcus
Petrucelli, jornalista da Globo, inimigo declarado do diretor de
Aquarius, Kleber Mendonça.
O filme, em si, é ótimo – e nem toca na crise política. Vai ao
âmago de uma das maiores tragédias nacionais: a especulação
imobiliária que corrói o Brasil de alto a baixo, destrói riquezas
materiaisesimbólicasirreparáveis.Roubaosoldaspraias,como
no caso das tardes em Boa Viagem, em Recife, ou o que resta
de verde no centro de São Paulo, com o projeto de espigões so-
bre o que poderia ser o Parque Augusta. E contribui ainda pa-
ra congestionamentos gigantescos ao colocar centenas, ou até
Depois do ótimo O Som ao Redor, novo filme de Kleber Mendonça vai
ao âmago da degradação civilizatória promovida pela especulação
imobiliária. Um filme corajoso e incômodo – como seu elenco
Aquarius contra os
vilões urbanos
LALO LEAL
SÍMBOLO
DE NOSSO
TEMPO
Clara,
personagem
vivido por
Sonia Braga,
não se dobra
às investidas
de uma
construtora,
ávida por
demolir o
pequeno
prédio onde
mora
QUEM NÃO DEVE NÃO TEMER
Protesto em Cannes deixou o
governo interino furioso
MATHILDEPETIT/FDC
DIVULGAÇÃO
17. 32 SETEMBRO 2016 REVISTA DO BRASIL REVISTA DO BRASIL SETEMBRO 2016 33
O
poeta Sérgio Vaz lançou em junho Flo-
res de Alvenaria (Editora Global, 184
págs.), livro em que declama sobre a
vida ao seu redor: “Eu sou o oprimido
que vive na periferia e que acompanha
de perto o racismo e a fome, seria até um pecado eu
não escrever sobre isso”, diz Vaz, autor de outros sete
livros e fundador do Sarau da Cooperifa. O já tradi-
cional ponto de encontro e de ativismo cultural há 12
anos se reúne toda quarta-feira à noite no Bar do Zé
Batidão, no Jardim São Luís, zona sul de São Paulo.
Foi nesse mesmo bar que o poeta recebeu em agos-
to o título de Cidadão Paulistano, honraria concedida
pela Câmara Municipal a personalidades não nasci-
das na cidade, mas que de alguma forma têm atuação
destacada para o seu “engrandecimento” em alguma
área. Ele nasceu em Ladainha (MG), em 1964, e mo-
ra no município de Taboão da Serra, região oeste da
Grande São Paulo. “A grande novidade é que a gente
começou a consumir o que a gente produz e não a le-
var nossa produção para o outro lado da cidade. O que
estamosfazendoagoraédarnossocharme,nossavisão
sobre as coisas”, diz Sérgio, para quem os movimentos
de cultura da periferia vivem hoje sua “bossa nova”.
“Nossaartevemdarua,dasruasqueosanjosnãofre-
quentam.Vemdador.Elanãofaladosnegros,falapelos
negros, com os negros. Não fala dos pobres, fala com
eles e por eles”, diz. Nesta entrevista, o poetacomenta
políticas públicas de incentivo para os grupos culturais
das bordas da cidade: “Seguimos uma filosofia de vida
que é: a gente quer ser feliz também. Antes a gente só
queria,masagoraestamossonhandocomasmãos”,ob-
serva. “Estamos em um momento em que precisamos
começar a nos reconhecer como humano. Morrer 12
jovens em um bairro de periferia é estatística. Nós pre-
cisamos chorar essas 12 mortes.” Leia a seguir os prin-
cipais trechos e a íntegra na página da RBA na internet.
Qual a temática de Flores de Alvenaria?
É o dia a dia. Sou oprimido, como cidadão que vive
na periferia, que acompanha de perto o racismo e a
fome. Seria até um pecado eu não escrever sobre isso.
Souumpoetaqueescrevesobreoqueaconteceaomeu
redor. Gostaria de escrever sobre a Via Láctea, mas no
momento preciso escrever sobre racismo, empodera-
mentodasmulheresnegras,saraus,alutadiáriaparao
trabalho.Éhoradeacaçacontarumpoucodahistória.
Como você define a periferia?
É um lugar para trabalhadores e trabalhadoras vi-
verem. Mas não é fácil viver na periferia. Não é indig-
no, mas é difícil, lutar contra tudo, acordar de manhã,
pegar ônibus e trem lotado para ganhar salário míni-
mo, ficar três dias na fila para arrumar vaga na creche
e não conseguir, frequentar escola pública ruim, não
conseguir fazer exame médico em menos de três me-
ses. Ainda assim é um povo que quer ser feliz.
Em agosto foi publicado o edital de Fomento
à Periferia, lei proposta por coletivos culturais,
sancionada pelo prefeito Fernando Haddad. Es-
se tipo de ação tem potencial para fortalecer a
cultura e manter esses grupos produtivos?
Acho uma grande vitória das pessoas que lutaram
por isso, até porque é função do Estado gerir a cultu-
ra. Vai ajudar, assim como o VAI (Programa de Valo-
rizaçãodeIniciativasCulturais)ajudouademocratizar
um pouco a cultura na periferia. A Lei Rouanet, por
exemplo, é democrática só até a página dois, porque
você pode até fazer um projeto, captar, mas ninguém
quer investir, porque você é da periferia. A lei de fo-
mento vem para preencher esse vazio, sem preconcei-
to. Quem são os maiores arrecadadores? Os grandes
produtores. E quando vai ser a nossa vez? A Lei de Fo-
mento à Periferia resolve essas coisas.
Para o poeta Sérgio Vaz, criador da Cooperifa, a cultura
serve para sabermos de onde viemos e para onde vamos.
“Se a primeira coisa que Temer fez foi acabar com a
cultura, isso é muito representativo” Por Sarah Fernandes
Aperiferia é um país
ENTREVISTAENTREVISTA
PRISCILLAVILARIÑO/RBA