Pessoa sente uma profunda nostalgia e saudade da sua infância em Lisboa, marcada por uma forte relação com a sua mãe. Ele refugia-se nessa infância imaginada para escapar das insatisfações do presente. Vários poemas ilustram esta fascinação pelo passado perdido, como "Pobre velha música" onde evoca memórias musicais da mãe, e "Não sei, ama, onde era" que representa um diálogo sobre a fugacidade da felicidade infantil.
1. SÍNTESE
Português 12.º Ano – 2011/12
A nostalgia de uma infância mítica
No caso da infância, e inegável que Pessoa dela sentia uma grande saudade, mas trata-se de uma
saudade, de uma nostalgia imaginada intelectualmente trabalhada e literariamente sentida como
"um sabor de infância triste". O poeta afirma, igualmente, numa carta a JOÃO Gaspar Simões de 11
de dezembro de 1931, que a saudade é atitude literária símbolo de pureza, inconsciência, sonho,
paraíso perdido.
No entanto, não podemos deixar de reconhecer que o tom de lamento que perpassa nalguns dos seus
poemas resulta do constante confronto com a criança que outrora foi, numa Lisboa sonhada, mas ao
mesmo tempo real porque familiar, palco dos primeiros cinco anos da sua vida, marcados pela forte
relação afetiva com a mãe.
Insatisfeito com o presente e incapaz de o viver em plenitude, Pessoa refugia-se numa infância,
regra geral, desprovida de experiencia biográfica e submetida a um processo de intelectualização.
Os poemas que ilustram este fascínio pela infância são:
"Quando as crianças brincam" - A evocação da infância surge como motivo de criação poética:
O real (a brincadeira das crianças) como pretexto para uma reflexão introspetiva - "Quando
as crianças brincam / E eu as oiço brincar";
Infância como um Tempo onírico - "E toda aquela infância / Que não tive me vem”;
A identificação da infância como um tempo de felicidade apenas pressentida;
a articulação passado / presente / futuro: o jogo dos tempos verbais -"fui"; "serei"; "sou";
a permanência da dualidade pensar / sentir - "Quem sou ao menos sinta / Isto no coração".
Pobre velha musical" - O ouvir da "Pobre velha musical" faz convergir o passado e o presente:
o presente marcado pela nostalgia do passado - "Enche-se de lágrimas / meuolhar parado.";
a perceção de dois modos de ouvir - "Recordo outro ouvir-te.";
o desejo violento de recuperar o passado - "Com que ânsia tão raiva / Quero aquele
outrora!";
a permanente incapacidade de ser feliz - "E eu era feliz? Não sei: I Fui-o outrora agora" -
sublinhada pelo oximoro.
"O menino da sua mãe" - 0 sujeito poético parte da imagem de um soldado morto e abandonado
no campo de batalha para exprimir o dramatismo de uma vivência familiar:
o contraste entre as expectativas da mãe e da criada velha e a realidade;
a precocidade da morte;
a intemporalidade da situação dramática evocada;
a fugacidade dos momentos de felicidade.
"Não sei, ama, onde era," - O sujeito poético evoca o universo simbólico dos contos infantis, dos
reis e das princesas para, a partir dele, expressar a saudade de um tempo de felicidade:
a simbologia do tempo e do espaço referidos - "Sei que era primavera IEo jardim do rei...";
a estrutura dramática e o desdobramento do sujeito poético presente no dialogo entre um
""eu" feminino e a ama;
os lamentos presentes no discurso parentético das quatro primeiras estrofes, reveladores da
dor de crescer e pensar - "(Filha, os sonhos são dores...)" e da inevitabilidade da morte -
"(Filha, o resto é morrer...)";
a dor de pensar – “Penso e fico a chorar”
2. Pobre velha música!
Não sei porque agrado,
Enche-se de lágrimas
Meu olhar parado.
Recordo outro ouvir-te.
Não sei se te ouvi
Nessa minha infância
Que me lembra em ti.
Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora.
Inicialmente Pessoa introduz-nos ao tema do poema,
lembrando a "velha música", provavelmente tocada
pela sua mãe na sua infância, talvez ainda antes de
sair de Lisboa para Durban. A lembrança, embora
seja talvez de um período feliz, traz-lhe uma grande
tristeza, porque está associada a uma idade perdida,
que nunca mais regressará. O início do poema traduz
também o uso de duas figuras de estilo,
personificação e hipérbole (a "pobre e velha
música"). A parte final do poema parece conter uma
anástrofe: troca da ordem das palavras, quando
normalmente se diria "o meu olhar parado enche-se
de lágrimas".
Pessoa, ao recordar, no entanto, sente uma
estranheza comum. O facto é que é ele que sente,
mas quem na realidade sentiu verdadeiramente o
sentido da música foi ele mas numa outra idade. A
lembrança é como se fosse uma experiência em
segunda mão, que só pode ser estranha à verdade do
que se sente. O "outro" era ele enquanto criança, e
ele recorda-se dele próprio enquanto criança a ouvir
a música. Há aqui, mesmo que de maneira menos
óbvia, uma antítese entre passado e presente.
Pessoa deseja o regresso ao passado, mas sabe esse
regresso impossível. Mas simultaneamente ele tem
consciencia que mesmo que conseguisse regressar
não conseguiria ser feliz agora. O seu desejo
projecta-se num plano temporal impossível de
realizar: ele ser criança então, mas adulto agora, ao
mesmo tempo. O paradoxo é explicíto quando ele diz:
"fui-o outrora agora”.
Não sei, ama, onde era,
Nunca o saberei...
Sei que era Primavera
E o jardim do rei...
(Filha, quem o soubera!...).
Que azul tão azul tinha
Ali o azul do céu!
Se eu não era a rainha,
Porque era tudo meu?
(Filha, quem o adivinha?).
E o jardim tinha flores
De que não me sei lembrar...
Flores de tantas cores...
Penso e fico a chorar...
(Filha, os sonhos são dores...).
Qualquer dia viria
Qualquer coisa a fazer
Toda aquela alegria
Mais alegria nascer
(Filha, o resto é morrer...).
Conta-me contos, ama...
Todos os contos são
Esse dia, e jardim e a dama
Que eu fui nessa solidão...
Trata-se de um diálogo entre uma senhora
nobre (uma princesa?) e a sua ama. Claro
que é um diálogo imaginado, e quase se
diria que um diálogo influenciado pelo
então recém-falecido amigo Mário de
Sá-Carneiro (falecera em Abril de 1916, em
Paris). Tanto Sá-Carneiro como Pessoa
guardavam imagens das suas amas.
Veja-se por exemplo a seguinte
passagem:
"Tenho frio de mais. Estou tão cansado no
meu abandono. Vai buscar, O Vento, a
minha Mãe. Leva-me na Noite para a casa
que não conheci... Torna a dar- me ó
Silêncio imenso, a minha ama e o meu
berço e a minha canção com que dormia..."