SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 141
Baixar para ler offline
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
Almas
em
sonho
“Eu não tenho uma alma.
Eu sou uma alma.
Eu tenho um corpo”.
C. S. LEWIS
Para Tayô
Prefácio do autor
“Almas em Sonho” é uma flor colhida no jardim da minha alma. É a luz de
amor que propago para o Universo.
Assim como a maioria dos romancistas estreantes, não resisti à tentação
de incluir um pouco de mim na história. É uma espécie de “Memórias Inventadas”
de Manoel de Barros, ou aquilo que chamo de “autobiografia não-autorizada”.
Apesar de ter nascido a partir da minha experiência com o Daime, este
livro não é sobre o Daime. Muito menos uma tentativa de doutrinação. “Almas
em Sonho” é o primeiro passo de uma nova etapa na minha caminhada espiritual.
A espiritualidade tem sido muito generosa comigo nos últimos três anos.
Amados irmãos de luz me orientaram e inspiraram na conclusão desta obra.
Destaque especial para Seu Zé Pelintra, querido companheiro de luta, e minha
mentora espiritual Eleanor.
Ciente da resistência por parte da crítica literária especializada em
relação àquilo que convencionou-se chamar de literatura esotérica, gnóstica,
espiritualista ou de autoajuda, meu esforço foi de escrever um romance com
toda a sua estrutura de forma a torná-lo interessante a qualquer tipo de
leitor.
Acima de tudo, “Almas em Sonho” é uma linda história de amor
interrompida e retomada no curso de várias encarnações. É a incansável busca
do ser humano pelo autoconhecimento, pela Verdade e, consequentemente, por
Deus.
Limitações de ordem financeira, tão comuns a escritores iniciantes,
impediram – por ora - a publicação do livro físico. A disponibilização deste
arquivo digital encerra uma agonia de quase um ano, desde que “Almas em
Sonho” foi concluído e gentilmente revisado por Marta Cocco e Luiz Renato
Souza Pinto.
Grande parte foi escrita enquanto eu morava no “Condado da Rainha”,
nome informal da paradisíaca chácara onde está instalada a igreja daimista
“Mestre Irineu”. A energia do lugar e todos os seres divinos que ali habitam
permitiram que eu pudesse trabalhar em harmonia e paz; e para que “Almas em
Sonho” exalasse o doce perfume do amor do Cristo Cósmico. Boa leitura. Namastê!
1
- Luz! Luz! Luz! – por várias vezes repetiu mentalmente João Guilherme,
depois de dar-se conta do estado em que se encontrava. A princípio, só percebeu
fracos lampejos a sua volta. Em seguida, conseguiu distinguir sombras em
movimento ainda na penumbra do ambiente. E, de repente, como quando todas as
luzes de um lugar são acesas instantaneamente, viu-se coberto pelo brilho da
lua cheia que pairava no céu. Em estado de êxtase, olhou para a paisagem com
os olhos de uma criança na primeira visita a um bosque. Tudo tinha uma nitidez
cristalina e um encanto único. Cintilantes lumes vagavam lentamente e a leve
brisa que soprava na noite embalava as flores verde-fosforescentes da
vegetação nativa. Os sons naturais da noite se misturavam à uma dulcíssima
voz que entoava um cântico quase inaudível. Pequenas esferas brancas de luz
flutuavam a certa distância. Às vezes, elas desapareciam para logo depois
ressurgirem dilatando-se e assumindo formas que lembravam uma figura
humana. Só depois de algum tempo João reconheceu que estava em uma área da
chácara onde morava.
Temendo uma recaída crônica dos surtos de sonambulismo dos tempos de
infância, passou a mão por trás da nuca e sentiu o cordão de prata. Um
sentimento de gratidão lhe envolveu a alma por aquilo que considerava uma
bênção e fez uma prece pedindo a proteção de seu mentor espiritual. Em seguida,
caminhou lentamente pela mata. Ele parecia flutuar tamanha a leveza e a
sensação de liberdade. Ao mover-se nesse mundo de densidades mais sutis, como
se fosse um fantasma, passava – literalmente - através das plantas e árvores.
O contato de seu fluido universal com os da mata causava leves choques de
energia. Ele caminhou mais um pouco até chegar a um cantinho que considerava
especial. Um pequeno descampado onde havia quatro tocos de madeira que
serviam de banquinhos e uma pequena mesa rústica feita a partir de um tronco,
onde gostava de ficar em estado de recolhimento, meditando. Era ali que
dirigia as preces aos Elementais da Natureza, os espíritos da Terra, Água,
Fogo e Ar. Por alguma razão desconhecida, sempre que fazia as orações naquele
lugar, embora se esforçasse para em falar em português, era recorrente que as
palavras saíssem em inglês – idioma que lecionava há mais de vinte anos.
O professor ficou imóvel e em silêncio por vários minutos. Quando ia
abrindo a boca para começar a prece, riu ao lembrar que a palavra falada só
é necessária no mundo físico. Nas dimensões superiores, a comunicação é feita
pela frequência do pensamento. João Guilherme elevou a mente e procurou na
memória momentos felizes da vida. Também jornalista e poeta, sempre pedia aos
Elementais por inspiração para escrever seus textos e poemas.
De plena posse dos olhos da alma, viu formas de luz saírem por detrás,
de cima e de dentro das árvores e, pelo que conseguiu entender, rodearam-lhe
a dançar uma espécie de ciranda astral. Feixes de energia de todas as cores,
especialmente azul e dourada, tomavam conta do cenário. Diante de si passavam
imagens de lugares onde lembrava ter estado e rostos de pessoas com quem havia
convivido. Sua capacidade cognitiva estava ampliada centenas de vezes.
Inúmeros poemas, melodias e textos surgiam simultaneamente. O primeiro
instinto foi o de reter o máximo possível daquele turbilhão para escrever a
respeito quando voltasse ao estado de vigília, pois sabia que, de volta à
matéria, a memória não seria completa. Afligido por esse temor, sentiu um frio
repentino. A garganta ficou totalmente seca; teve tonturas, a visão ficou
turva e tudo era escuridão novamente. Ele estava de volta ao corpo físico.
2
Como de costume, João Guilherme acordou de olhos fechados. Por
experiência, sabia que se os abrisse estaria definitivamente desperto e não
pegaria mais no sono. O estado de catalepsia, contudo, permanecia. Por isso
procurou relaxar, mas o máximo que conseguiu foi cair em um sono profundo e
sem sonhos. Se bem que não ignorava o fato de que sonhamos todas as noites.
Mas desta vez, não sonhou mesmo. O corpo ficou imerso em profundo estado de
repouso por dez horas até que abrisse os olhos. Agora, de novo no plano astral,
não foi preciso repetir mentalmente o comando luz. Ele estava em pé no meio
da estrada de chão que dava acesso à sua residência. O sol brilhava
intensamente e tinha uma luz cuja beleza excedia qualquer tentativa de
descrição. João girou o olhar prestando atenção em tudo e resolveu voltar
para casa para fazer uma verificação. É que a maioria dos espíritos
desencarnados, diferente do que pregam os supersticiosos, não está nas ruas,
encruzilhadas ou cemitérios, e sim dentro dos lares. O professor queria saber
que espíritos lhe faziam companhia. Era só preciso tomar o cuidado de não
entrar no quarto onde o corpo físico dormia, pois isso o levaria
automaticamente de volta a ele.
O jornalista flutuou a curta distância que o levou à varanda da modesta
moradia. Como acontecia todo dia no meio da tarde, um cristal lapidado em
forma de diamante, preso a uma espiral metálica e pendurado na viga de
madeira por uma linha de pescar espalhava múltiplos raios coloridos,
proporcionando um lindo efeito visual. Vistos com os olhos anímicos, os pontos
luminosos ficavam ainda mais fascinantes. Era na pequena área externa que
João estacionava a moto estilo custom. Ao dar por sua falta, lembrou-se de ter
mandado fazer uma revisão geral para colocá-la à venda, pois planejava
comprar uma importada do mesmo modelo. Ele só ficou mesmo cismado com a
ausência da rede na qual sempre deitava para ler livros espiritualistas.
Quando estava prestes a entrar, ouviu um som inconfundível. Virou-se e viu
os dois gatos pretos com quem dividia a casa miando em sua direção. O poeta
não gostava de chamá-los de seus. Achava inconcebível um ser vivo pertencer
a outro. “Orfeu, irmãozinho! Wicca, bruxinha! O que vocês estão fazendo aqui
fora sozinhos?” Os bichanos não correram até o amigo, como sempre faziam.
Apenas ficaram miando, fixando o olhar no rumo em que João estava. Wicca
tinha sido batizada assim em referência ao termo original para bruxa, em
inglês. O nome de Orfeu fora dado por causa do menestrel mitológico, filho de
Calíope e Apolo. E também em homenagem ao protagonista da peça “Orfeu da
Conceição”, de Vinícius de Moraes.
- Fiquei honrado com a lembrança, caro João Guilherme. Muito obrigado!
Ouvir aquela voz forte, embora calma, e vinda sabe-se lá de onde, foi um
grande susto para o professor. Ele virou-se para todos os lados e não viu
ninguém. Pensou nos famosos espíritos zombeteiros. Olhou mais uma vez e nada.
Até que, depois de instantes que pareceram uma eternidade, escutou bem atrás
de si:
- A bênção, João!
Ao virar-se, não podia acreditar no que tinha diante de si. Mas era ele.
Só podia. Não tinha como errar. O jornalista estava frente a frente com o
espírito do poeta Vinícius de Moraes, que então lhe disse:
- Meu amigo, meu irmão, não tenha medo. Estou aqui em missão de paz em
nome do Nosso Divino Pai Eterno, Deus Todo Poderoso. Saravá!
João sabia que espíritos inferiores jamais saudavam em nome de Deus e
por isso replicou respeitosamente a saudação inicial imortalizada no samba do
próprio Vinícius e Baden Powell. “A bênção! Saravá!” Os olhos azuis do
menestrel estavam mais azuis do que nunca. Ele usava uma camisa verde de
mangas compridas e uma calça levemente marron. Ambos eram de linho. Os óculos
de grau eram idênticos aos que sempre usara em vida. O professor não ousava
fazer nenhuma pergunta, uma vez que o poeta tinha dito que viera em missão
de paz.
“Meu amado irmão, espíritos superiores me enviaram para vir ter contigo.
De hoje em diante, passaremos muitos momentos juntos, e tudo será esclarecido
paulatinamente”, disse Vinícius após uma pausa. Em seguida, tocando o ombro
de João Guilherme com a mão direita, pediu: “Feche os olhos e eleve o
pensamento. Nós vamos viajar”.
Tomado de súbita coragem e com a cautela para não ser grosseiro ou
desrespeitoso, o jornalista indagou: “Perdoe-me pelo ceticismo mas, antes de
ir a qualquer lugar, preciso saber se o senhor realmente é quem diz ser”.
Vinícius pareceu qualquer coisa ofendido, mas depois sorriu com bondade e
respondeu com ternura: “Meu irmão, a tua dúvida é pertinente. Melhor ainda,
é saudável. Realmente posso ser qualquer um. Assim sendo, devo esclarecer que
faço parte da falange espiritual dos poetas. Você deveria ser capaz de
reconhecer um semelhante, já que também faz parte dela. Muito embora palavras
bonitas possam ocultar seres de pouca luz, a sinceridade delas não é algo de
se imitar. Não foi o supremo mestre Cristo Jesus que ensinou que a boca fala
do que o coração está cheio?”
João Guilherme envergonhou-se da incredulidade. Percebendo a situação,
Vinícius de Moraes chegou bem perto e completou olhando-lhe no fundo dos
olhos: “Amado, certa vez lestes um livro sobre mediunidade, lembra-te?” O
professor respondeu positivamente com um pequeno aceno de cabeça.
- E o que o espírito que ditou o livro disse quando questionado sobre
qual era o mais alto grau de mediunidade?
- Ele disse que era a intuição. Que é quando entramos em comunicação com
o nosso Ser Divino.
- Perfeito. Consulte então a intuição e me diga se estou a mentir sobre
minha identidade.
João Guilherme olhou mais profundamente para os dois pingos de céu que
o espírito tinha nos olhos. Em seguida fechou os seus e viu que ele falava a
verdade. “Sinto-me honrado pela companhia e aceite minhas sinceras desculpas
pela falta de fé”, disse com humildade. O mentor espiritual apenas sorriu
novamente e, tocando o ombro de João, arrematou: “Podemos viajar agora?”
Instintivamente o jornalista fechou os olhos e um grande clarão, seguido de
uma espécie de estrondo, quase o fizeram perder os sentidos. Em seguida, sentiu
o corpo suspenso no ar e ser conduzido por um vórtice de luz azulada.
3
“Chegamos!”, exclamou o mentor Vinícius de Moraes. João Guilherme abriu
os olhos e reconheceu de imediato a paisagem. Era o lugar mais lindo onde já
tinha estado. Os dois espíritos estavam aos pés do Cristo Redentor, no Rio de
Janeiro, cidade pela qual o professor nutria uma paixão imensa, apesar de só
ter estado lá uma vez e por pouco tempo. Sua alma irradiava alegria diante
de tão belo cenário. Ao longe, o sol começava a fazer o trajeto derradeiro de
todos os dias, emprestando ao céu e ao mar uma luz rósea.
“Rio de sol, de céu, de praia e mar...” cantarolou Vinícius bem baixinho.
E virando-se para João, disse com certa pompa irônica na voz: “Eis que o filho
pródigo à casa torna”. Diante do espanto do jornalista, prosseguiu: “Sim,
irmãozinho. A tua intuição sempre esteve correta. Você já morou mesmo na
cidade maravilhosa. E olha que foi em uma época gloriosa”. João Guilherme não
sabia o que dizer. Virou-se e viu o Cristo de abraços abertos como a dizer
“bem-vindo, meu filho”. Não resistindo, chorou de emoção diante das primeiras
estrelinhas que prometiam que aquela seria uma noite divinamente iluminada.
- A última vez em que esteve aqui na cidade, você voou de asa delta, não
é mesmo?
- Sim. E foi uma experiência única. Pena que só durou cinco minutos.
O jornalista jamais se esquecera daqueles cinco minutos. Da paz de
espírito ao sentir o vento frio no cume da Pedra da Gávea; da adrenalina ao
correr, amparado pelo instrutor, rampa abaixo e saltar em direção ao infinito,
de entregar a alma à floresta e ao mar que o saudavam lá de baixo e soltar
um grito de liberdade reprimido por tanto tempo no peito.
“Volare, ô, ô...!”, entoou Vinícius precipitando o corpo ribanceira abaixo.
“Você não vem, Joãosinho?”, gritou sem olhar para trás.
Despertado pelo chamado e feliz com o tratamento carinhoso, João
lembrou-se das oficinas de projeção e daquilo que se denominava volitar, não
pensou duas vezes e lá foi realizar seu sonho de Ícaro. Ele alternava o olhar
entre o azul do céu e o azul do mar. Flutuando por sobre as águas, imagens
aleatórias e não muito nítidas de sua encarnação no Rio de Janeiro lhe vinham
à mente. Eles então pousaram na praia de Ipanema. “Onde mais?”, pensou João
Guilherme em meio a um sorriso. “Eu ouvi isso”, reprimiu Vinícius
simpaticamente. Era óbvio que sendo o pensamento a forma de comunicação no
astral, não havia espaço para segredos - concluiu o professor.
O poeta parou em frente ao mar no que parecia ser uma atitude de oração
e permaneceu assim por vários minutos. Em seguida, entrou na água com roupa
e tudo e desapareceu. O professor só conseguiu vê-lo novamente quando já
estava a pelo menos cinquenta metros da praia, por cima da imensidão azul.
- E Vinícius de Moraes caminhou sobre as águas – pensou João Guilherme.
- Eu ouvi isso também! - respondeu o mentor em meio à uma gargalhada.
O jornalista foi até onde Vinícius estava e ficou ao seu lado.
“Já perdi a conta das vezes que recitei ‘Minha Namorada’”, confessou
constrangido. “E eu não sei? Meu irmão, se não me engano, você recitou esse
poema para todas as suas namoradas”, comentou Vinícius dando destaque para o
“todas” e aumentando o constrangimento de João.
- Mas os poemas de amor não foram escritos para serem recitados às
mulheres?
- Poema é coisa séria, querido. Se você fizesse ideia do que ele causa na
cabeça e no coração de uma mulher...! A propósito, por que você não recitava os
teus próprios?
- Nunca me senti muito à vontade para declamar minha poesia. Sempre a
achei meio chinfrim. Mas uma vez escrevi um poema de uma só estrofe que me
deixou muito feliz.
- E como era?
- “Vivo ao lado da poesia,/ nela me completo./ De costas pro mundo./ De
frente pro verso”. Bonito, né?
- Obrigado!
-Hã?! Como assim, “obrigado”?
- Fui eu quem lhe soprou isso. Fim de noite no bar do Chicão. Como sempre,
sozinho na mesa do canto. Terceira cerveja. Usou o guardanapo para escrever.
Correto?
João Guilherme ficou impressionado. Tinha sido isso mesmo. Vinicius
então lhe explicou que muito da produção musical e poética de grandes artistas
era, em parte, o tipo de psicografia classificada como inspirada - que ocorre
quando o espírito sugere o texto à pessoa através do pensamento.
- Mas eu só sugeri os dois últimos versos. Os dois primeiros são da tua
lavra mesmo.
- E o que achou?
- Chinfrins!
Percebendo o abatimento de João com a crítica negativa, Vinícius
abraçou-o de lado e falou ternamente: “Ninguém nunca se tornou poeta, mas
poeta de verdade, vivendo “ao lado” da poesia. O mais correto seria dizer “na”
poesia. Estar ao lado não significa necessariamente estar com. A poesia é uma
mulher possessiva, ciumenta. Ela não admite ser dividida com ninguém. Ou você
se entrega de corpo e alma ou nada feito. Fazer poesia ou samba não é contar
piada. Você precisa ressuscitar a veia poética, meu filho”.
Os homens ficaram em silêncio e o céu agora estava coberto de estrelas e
o reflexo prateado da lua cobria os espíritos que flutuavam sobre o mar calmo.
De repente, ouviu-se ao longe um som que parecia o início de um tremor. Como
não se lembrava de ter presenciado um maremoto, o jornalista afirmou: “Ouço
um tropel nas ondas do mar”. “É Ogum com seus cavaleiros”, esclareceu Vinícius
de Moraes.
O barulho foi ficando cada vez mais intenso. O coração de João Guilherme
batia na mesma intensidade daquelas centenas de cascos que se aproximavam. E
eis que ao longe, sob a luz da lua cheia e do manto estelar que iluminavam a
noite da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, surge ele, o Orixá
guerreiro, rodeado por seu exército. O Rei Ogum apeia de seu cavalo branco e
caminha até Vinícius de Moraes. O poeta ajoelha-se com a perna esquerda,
deixando a direita de apoio. Com a mão esquerda fechada ao lado do corpo, bate
com o punho cerrado da mão direita no peito e exclama em alta voz: “Ogu yê!”
O rei de ébano retribui a saudação sem, contudo, curvar-se. A princípio João
fica sem saber como agir, até que instintivamente repete os mesmos gestos de
Vinícius. A entidade o saúda de volta, também sem curvar-se e o encara. O
professor vê centenas de estrelas, luas, planetas e sóis nos olhos do Orixá.
Ogum oferece ajuda para que João Guilherme se levante. Agora o Rei guerreiro
coloca as mãos sobre cada ombro do jornalista e diz com voz de trovão: “O amor
e o perdão são as forças mais poderosas do universo, meu filho. Que o Divino
Pai Eterno, Jesus Cristo Redentor e a Virgem Mãe Maria Santíssima lhe
abençoem com a coragem e a humildade para fazer o que deve ser feito”. Ogum
ainda olhou para João mais uma vez antes de virar-se, montar em seu cavalo e
depois de dar ordens aos seus generais, sumir na imensidão do mar, com a mesma
pompa e circunstância com que tinha chegado. João Guilherme levantou os olhos
como que a procurar alguma explicação para o que tinha acabado de acontecer,
mas só viu clarões de luz que lembravam remotamente uma aurora boreal.
De volta à areia, manteve-se em silêncio por um longo tempo. Por mais
que tentasse, não conseguia acessar os arquivos de memória de sua encarnação
no Rio de Janeiro. Obviamente, a chave para a sentença misteriosa de Ogum.
“Não se esqueça de que você ainda está encarnado”, disse o guia espiritual
Vinícius de Moraes, surgindo ao seu lado, para em seguida completar: “A matéria
é forte impeditivo para muitas ações aqui nas esferas mais sutis. Eu sei que
o que você mais quer agora são respostas e elas virão quando tiverem de vir”.
- E qual o próximo passo?
- Divertir-se!
Ante o olhar surpreso do amigo, o anjo poeta acrescentou: “E para onde
vamos, você tem de estar vestido apropriadamente”. Como que em um passe de
mágica, o professor agora trajava um paletó e calça de linho na cor creme. A
camisa, também de linho, era marrom escura e ele não usava gravata. Como
último acessório, tinha um chapéu marron de pêlo na cabeça.
- Para onde vamos, Vinícius?
- Para o único lugar onde ele pode estar.
- “Ele”? Ele quem? E que lugar é esse?
- Na Lapa, Joãosinho, na Lapa!
4
Era cedo quando João Guilherme e Vinícius de Moraes chegaram. A Lapa
ainda estava relativamente vazia. Somente alguns bares tinham clientes
sentados às mesas postas na calçada. João gastou um bom tempo olhando para os
arcos por onde, há muitos anos, passavam os trens.
- Jão das Letras! E não é que quem é morto sempre aparece?
Surpreso com a saudação gritada, o jornalista olhou para trás e
facilmente identificou o rei da boêmia carioca. Terno branco completo, sapatos
de cromo, gravata vermelha e chapéu panamá branco. Era Zé Pelintra, o Exu
malandro. O guia aproximou-se de João Guilherme e lhe deu um forte abraço.
“Salve, mestre!”, disse em meio ao enorme sorriso. “Mestre?”, indagou João. “E
como não? Vinícius, meu irmão, o que aconteceu com a memória do menestrel?”,
inquiriu seu Zé com sarcasmo.
“Cavalheiros, vamos nos sentar”, sugeriu o poeta. Zé Pelintra e Vinicius
sentaram-se normalmente, mas quando João tentou fazer o mesmo, passou direto
da cadeira e afundou-se no chão. A situação inusitada provocou gargalhadas
nos espíritos desencarnados. “Joãosinho, use o poder anímico para manipular
o fluido universal da cadeira para que então você consiga se sentar”, orientou
Vinícius de Moraes. Meio sem jeito, João pediu orientações mais claras. Seu Zé
riu novamente e explicou: “Apenas deseje sentar-se, mestre”. O professor
obedeceu e desta vez teve sucesso. Constrangido pelos olhares fixos dos colegas
em sua direção, João Guilherme virou-se de lado e viu, no plano físico, uma
bonita loira que passava. “Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça...”
gracejou Vinícius. “Isso é de fazer virar a cabeça de qualquer homem, não é
mesmo mestre?”, provocou Zé Pelintra. João, por sua vez, não disse nada.
O silêncio da mesa só foi quebrado por Vinícius de Moraes alguns minutos
depois. “Amado irmão Zé, João ainda está encarnado e não se lembra totalmente
de sua encarnação aqui no Rio. Fui instruído por espíritos superiores a
procurá-lo e depois vir até você. Temos de ajudá-lo em uma missão”. Dito isso,
pediu que os três dessem as mãos, fechassem os olhos e pensassem em Jesus
Cristo. “Divino Pai Eterno, vós que sois todo poder e bondade, abençoai-nos
com a Vossa luz no caminho que devemos trilhar. Que o amor de Cristo Jesus e
da Virgem Maria Santíssima esteja em nossos corações para que o perdão, a
justiça e a verdade prevaleçam”, orou. João Guilherme sentiu o corpo todo
estremecer e a cabeça girar – o que fez com que seu Zé Pelintra e Vinícius lhe
segurassem mais forte as mãos. A mente foi bombardeada por fortíssimos raios
de luz e ele começou a suar frio. A situação incômoda fez com que o jornalista
vomitasse várias vezes. Quando os batimentos cardíacos se estabilizaram,
começou a ouvir centenas de vozes. Ao abrir os olhos, viu uma pequena multidão
de pessoas conversando animadamente pelos bares da Lapa. Somente três homens,
em uma mesa à parte, estavam calados. “Até que a gente era bonito, não é
mesmo?”, brincou Vinícius de Moraes. “Eu continuo bonito até hoje”, protestou
Zé Pelintra. Mais uma vez, o professor manteve-se em silêncio.
5
Entre os três, João – o mais velho – é quem tinha o semblante mais pesado.
Naquela época, ele não se chamava João Guilherme Ribeiro, mas sim João Maria
de Albuquerque – um dos escritores mais conceituados do Brasil. Além de
escrever poesias, também fazia sucesso com romances. Cultuado pelos aspirantes
a poeta da época, foi assim que conheceu o ainda rapaz Vinícius de Moraes, que
havia terminado a faculdade de Direito recentemente. João Maria, ou “Jão” das
Letras – alcunha que recebeu do inseparável parceiro da boêmia José Gomes da
Silva. Apesar da fama, do dinheiro e de ser casado com uma das mulheres mais
lindas do Rio de Janeiro, Marina Vital – João não era um homem feliz. Sua
obra por vezes deixava transparecer um homem atormentado pela dor. E para
aplacá-la o poeta se embriagava, noite após noite, junto com Zé Gomes. No chiste
entre amigos, enquanto Zé o chamava de Jão das Letras, este o chamava de “Zé
Pelintra” – de certa forma, um jeito de carinhoso de dizer “pilantra”, como
alternativa ao termo “malandro” – ainda não em voga. Zé Pelintra era um negro
forte e alto, oriundo de Pernambuco. Falastrão e conquistador inveterado, era
o contraponto de João Maria, sempre recatado e discreto. A primeira mesa no
bar do Pereirinha era cativa dos dois. Ali “ficavam ébrios como cavalheiros”,
como explicava Zé Gomes. Muitos dos mais belos sonetos do escritor foram
compostos nessas noites. O jovem Vinícius havia conquistado a simpatia dos
boêmios veteranos com suas poesias e ia ter com eles pelo menos duas vezes por
semana. Como João era “o” poeta, Vinícius passou a ser chamado por Zé de
“poetinha”.
Mas naquela noite o clima estava pesado entre os três amigos. Zé Pelintra,
mulherengo incorrigível, havia se engraçado para o lado de uma loira
lindíssima - e casada. A mulher não havia gostado dos gracejos e, farta com a
insistência, contou tudo ao marido. Este, por sua vez, fez saber na Lapa que,
naquela noite, queria encontrar-se com Zé Gomes para tomar satisfações. Zé
Pelintra, inconsequente como sempre, comemorou o fato. “Pronto! O corno vem
aqui me desafiar e eu acabo com ele”, disse passando a mão pelo cabo de osso do
punhal“. E como prêmio, ganho uma deusa loura”, contou olhando para João,
como que a esperar por aprovação. Mas o poeta não pronunciou uma única
palavra e sorveu lentamente mais um gole de uísque e fechou os olhos como que
a reviver algum sonho distante. João Maria pensava no próprio casamento,
marcado por brigas e ciúme, que só se mantinha na aparência. E para piorar, a
esposa não podia ter filhos – verdadeira obsessão do escritor. A situação tinha
ficado insuportável quando Marina achou no bolso do paletó dele uma carta
com letra e perfume de mulher. Na pequena correspondência, que não tinha
assinatura, lia-se:
“João, meu poeta adorado, minha vida nunca mais pode ser a mesma depois que
lhe conheci. Nossas noites de amor reacenderam o fogo da paixão em meu coração.
Quando estou em teus braços sinto-me uma mulher em toda a plenitude. Cada
instante longe de ti é como um açoite à minha alma. Por favor, liberte-me
dessa prisão que tem sido a minha vida neste casamento mentiroso. Eu não o
amo. Amo somente a ti, bem o sabes. Vamos embora para longe. Podemos ser felizes
em qualquer lugar. O que ainda te prende aqui? Estou disposta a tudo pra
ficar ao teu lado. Em breve nascerá o fruto do nosso amor. Em pouco tempo não
será mais possível esconder minha situação. Por favor, João, não vire as costas
pra mim. P.S.: Muito obrigada pelo poema publicado no jornal. Chorei de emoção”.
O conteúdo da carta foi como uma bofetada para Marina. Agora estava
claro o porquê de João quase não procurá-la, da frieza e irritação constantes.
Naquela madrugada, quando o esposo chegou, a mulher decidiu confrontá-lo pela
última vez. “Então quer dizer que o senhor tem um caso com uma mulher casada
e ainda por cima vai ter um filho com ela? Que linda atitude para o respeitado
escritor João Maria de Albuquerque, não é mesmo?”, gritou com a carta na mão,
em um tom ao mesmo tempo sarcástico e ameaçador. Como de costume, João não
esboçou nenhuma reação. Depois de alguns instantes e com um semblante austero,
encaminhou-se em direção à esposa, tomou-lhe a carta das mãos e trancou-se
no escritório até o amanhecer.
“Fidelidade... afinal, o que significa fidelidade?”, com estas palavras de
Vinícius de Moraes, João Maria foi trazido de volta à realidade. “O que o
senhor acha?”, quis saber do mestre o jovem poeta. “Por que a pergunta, filho?”,
retrucou. “É que o nosso amigo Zé está tentando me convencer que a fidelidade
é um conceito relativo e que, dependendo das circunstâncias, não precisa ser
levada em conta. Eu já penso que a fidelidade é fruto do amor genuíno,
imortal”, explicou Vinícius. João – que nunca dizia nada de pronto – pensou
por um momento e respondeu com voz pausada. “A fidelidade é uma convenção
social. Uma forma mesmo de controle, quase sempre calcada no outro. Eu quero
dizer, via de regra, o exercício da fidelidade é praticado em favor de algo ou
alguém em detrimento de nós mesmos. Nesse ponto, concordo com o amigo Zé que
ela não deva ser absoluta”, ponderou. “Então a fidelidade no amor não é
pressuposto inquestionável?”, quis saber mais Vinícius. “O amor não é imortal,
meu poetinha”, respondeu João Maria secamente. “O amor é uma chama cuja força
varia de acordo com o sopro do vento. Ou seja, de acordo com a intensidade de
cada momento”, completou. “Pois então que seja infinito enquanto durar”,
intrometeu-se Zé Pelintra em voz alta. “E o amor da minha deusa loura pelo
marido já durou o que tinha de durar. O amor dela agora é meu e juntos vamos
vivê-lo em cada vão momento”, comemorou.
João tomou mais um gole de uísque e olhando para o amigo de longa data,
quis saber: “Zé Pelintra, meu irmão da noite, o que o faz pensar que essa
mulher também lhe tem afeto?” Como era de seu feitio, Zé Gomes esboçou um
sorriso e replicou ao companheiro: “Lembra quando o amigo passou uma semana
em São Paulo, no mês passado? Pois bem, eu, claro, não deixei de frequentar o
nosso ponto – até teu copo ficou colocado aí. Acontece que por três noites
seguidas essa mulher, essa deusa loura, ficou andando aqui pela Lapa como que
a procurar alguém. Ela não tinha jeito de dama da noite, eu as conheço bem,
como bem sabeis. Mais de uma vez ela me olhou e quase veio falar comigo. Mas
quando eu fazia menção de me levantar, ela virava as costas”, explicou. “E o
senhor acha que ela estava à vossa procura, Seu Zé?”, interrompeu Vinícius.
“E não? A minha fama de bom amante já se espalhou por toda a cidade
maravilhosa e mulheres de todos os cantos vêm me procurar. Mas depois ela
sumiu e aí eu é que fui procurá-la. Acredita que a danada deu uma de difícil?”,
respondeu Zé Gomes sem nenhuma modéstia.
O que era somente uma desconfiança tornou-se uma certeza para João
Maria. A deusa loura de Zé Pelintra era a sua amante Amparo, esposa do
sargento Savério. Após elegantemente pedir licença aos colegas, o escritor
levantou-se e foi ao banheiro. Enquanto lavava o rosto, olhou-se no espelho
e pela primeira vez na vida, sentiu vergonha de si mesmo. A teoria da
imortalidade do amor defendida por Vinícius havia mexido consigo. “Essa
mulher sabe que você é casado?”, lembrou-se dos gritos furiosos de Marina.
“Parece que não, para ela ter a petulância de perguntar, como é mesmo? ‘O que
ainda te prende aqui?’”, a voz da jovem esposa ecoava em sua cabeça. Mas sim,
Amparo sabia que João era casado. Entretanto, Zé Pelintra, seu melhor amigo,
ignorava que os dois tinham um caso e o marido não tinha conhecimento que
ela esperava um filho de outro homem. Essa situação poderia ser um golpe
terrível na reputação do escritor e acabar de vez com as pretensões de ser
admitido na Academia Brasileira de Letras. A vergonha que sentia era por
importar-se muito mais com o status social que com “a outra”, a quem realmente
amava. Em um inédito acesso de fúria, João Maria cerrou o punho direito e
esmurrou o vidro do espelho até quebrá-lo.
A lua estava alta no céu quando João voltou à mesa. Zé Gomes e Vinícius
estranharam a mão ensanguentada, mas não ousaram perguntar nada, dado o
estado visivelmente alterado do escritor. Em seu íntimo, ele sabia que aquilo
não acabaria bem. Algo de trágico se anunciava para aquela noite. Mas como
demover Zé Gomes da ideia fixa de conquistar a mulher matando-lhe o marido?
A Lapa estava lotada e o som de música e de pessoas conversando começou a
provocar tonturas em João Maria. A vontade era de sair dali imediatamente,
porém não podia abandonar o amigo. A situação permaneceu inalterada ainda
por mais uma hora. Nesse ínterim, o trio trocou pouquíssimas palavras e o
estado de embriaguez começava a se manifestar. “Talvez, afinal de contas, o
sargento não venha tomar satisfações”, supôs João, um pouco mais aliviado. Se
assim fosse, considerou fortemente a possibilidade de fugir com Amparo para
a Inglaterra, onde tinha estudado na juventude e possuía muitos amigos.
“Covarde! Covarde! Covarde! Mil vezes covarde!”, esbravejou Zé Pelintra
em pé e com a faca em punho. “Eu sou José Gomes da Silva, batizado por meu
querido poeta, Jão das Letras, de Seu Zé Pelintra. Sou o rei da noite e comigo
ninguém pode. Que todos saibam que existe um homem na cidade de São Sebastião
do Rio de Janeiro, cujo nome não sei e nem quero saber, que não honra as calças
que veste e tem medo de defender a honra da mulher”. Enquanto Vinícius apenas
ria da performance teatral de Zé Gomes, julgando não passar de mais um de
seus rompantes, João Maria tentou acalmá-lo. Ato inútil, Zé Pelintra ficou
ainda mais irritado e desta vez subiu na mesa para dizer novamente tudo o
que havia dito antes. Por uma fração de segundos a música parou e nenhuma
voz se ouviu. Zé Gomes ainda lançou mais uma vez seu brado aos céus. Quando
finalmente se calou, ficou olhando para a lua e as estrelas, que naquela noite
tinham um brilho diferente. “Safado!” A ofensa, dita em voz alta, rompeu a
quietude do ambiente. Zé virou-se para ver de onde partira tamanho
desrespeito. Mal tinha olhado para trás, ouviu o estampido seco do revólver
do sargento Sáverio. O tiro acertou em cheio o rosto de José Gomes da Silva, o
lendário Zé Pelintra. Movido por uma força desconhecida, João Maria lançou-
se contra o militar em uma luta de vida ou morte. Vinícius de Moraes e os
outros habitués não ousaram intrometer-se. No calor da briga, a arma de fogo
foi lançada para longe e foi nervosamente apanhada pela mulher loura que
acabara de chegar ao local. Seu grito agudo fez com que os dois interrompessem
a contenda. “Parem com isso. Se não, eu acabo com a minha vida agora mesmo”,
disse apontando o revólver contra o ouvido.
Diante da iminência de uma tragédia, Savério e João concordaram com uma
trégua e se desvencilharam. Contudo, a mulher mantinha a mesma atitude de
ameaça. Uma mistura de ódio e incompreensão dominava o olhar do militar e
ele não pronunciou uma única palavra. Como a amada mostrava-se resoluta,
João Maria ignorou as consequências e pôs-se a falar. “Amparo, minha vida,
minha estrela matutina, eu te imploro, não faça isso. Abaixe essa arma. Pense
no nosso amor, pense no nosso filho que está para nascer”, balbuciou com a voz
sôfrega. A inusitada declaração pública de amor provocou na mulher um pranto
convulsivo. Lentamente João se encaminhou a ela e, tirando o paletó, envolveu-
a num terno abraço e cuidadosamente tomou-lhe a pistola da mão. Ao fazer isso,
nem se apercebeu do terrível erro que acabava de cometer. O rival, agora mais
louco de ódio do que nunca por descobrir que a esposa tinha um caso secreto e
ainda por cima esperava um filho de outro homem, em um misto de desespero e
desejo insano de vingança, sacou de outra arma que trazia escondida no coturno
e precipitou-se em direção ao casal. “Desgraçada! Eu te mato, sua prostituta!”
Novamente impelido por uma força desconhecida, João Maria entrou na frente
da amante protegendo-a com o próprio corpo. O tiro, à queima roupa, atingiu-
lhe o peito, próximo ao coração e o fez tombar. Antes que pudesse disparar
outro tiro, Savério foi contido por Vinícius de Moraes e os garçons do bar.
Em pânico, Amparo apertou o corpo de João Maria contra si e, vendo que o amado
ainda respirava, clamou por socorro. Com dificuldade, os olhos do poeta
encontraram os da musa. Sua voz era apenas um sussurro.
- Amparo... amor da minha vida... me perdoe... eu te imploro... cuide de
nosso filho... diga que lhe amo... faça com que ele... tenha orgulho de mim...
- Não, não, não, meu amor! João, você não vai morrer. Eu te proíbo! Nós
vamos criar nosso filho longe daqui, na Inglaterra, como sempre sonhamos. Meu
amor, em nome de Deus, por tudo o que é mais sagrado, não me deixe.
“Não me deixe” – ironia das ironias, o primeiro e o último encontro entre
João Maria e Amparo terminavam com a mesma súplica.
Naquela manhã de domingo, há exato um ano, o sol iluminava a cidade com
um brilho carinhoso. Não se via nenhuma nuvem e o azul do céu e o azul do mar
eram como o reflexo um do outro. João Maria de Albuquerque participava de um
café da manhã especial junto com outros escritores na aristocrática
Confeitaria Colombo. Os homens das letras se alternavam na leitura dos
próprios poemas e de autores estrangeiros. Porém, mais do que a paixão pela
poesia em si, havia uma enorme competição de egos como pano de fundo no sarau.
E para tanto valia toda sorte de exibições, como recitar em outros idiomas.
Nisso João era mestre. Poliglota e dono de uma voz grave, ele declamava William
Shakespeare, Pablo Neruda, Charles Baudelaire e Catulo no original.
Especialmente inspirado, recitou – de memória – o famoso monólogo “To be or
not to be” do príncipe Hamlet, da peça homônima. O escritor sabia que o
desempenho seria primordial na batalha que travava com o romancista
Sebastião de Mello pela cadeira vaga na Academia Brasileira de Letras. Depois
de declamar, obteve muitas palmas e passou a vez para o concorrente. Enquanto
Mello recitava, João sentiu estar sendo observado. Ainda demorou um momento
até que olhasse de lado. A princípio não notou nada de anormal nas pessoas ao
redor, atentas à performance do adversário. Mas então, como quando o céu se
abre depois de uma tempestade por detrás das nuvens, João Maria deparou-se
com o mais lindo par de olhos azuis que já tinha visto na vida. Ela tinha
traços finos, estatura mediana e corpo esguio. Só com algum esforço, o poeta
conseguiu notar o dourado dos cabelos por baixo da touca. Foi quando prestou
atenção no resto do uniforme e ficou claro que se tratava de uma das várias
atendentes da confeitaria.
João Maria agora era escravo daquele olhar azul celeste. Inútil a
tentativa de não encará-la. Ainda que timidamente, a moça sorriu e João quase
derrubou o café. Ela sorriu novamente e ele tentou disfarçar cofiando o
bigode. Nesse momento o sorriso encantador da jovem desapareceu e o
constrangimento ficou nítido. Sem perceber, João tinha feito o movimento com
a mão esquerda e a aliança de ouro no dedo anelar refletiu a luz da manhã
ensolarada. Quando a sessão de leitura terminou, o poeta procurou inutilmente
pela linda mulher que havia lhe provocado um turbilhão de emoções no coração.
Mas não se deu por vencido. Oferecendo uma pequena gorjeta ao rapaz do caixa,
inquiriu com certo ar de desinteresse o nome da moça. “Amparo”, foi a resposta.
O escritor saiu da confeitaria junto com os colegas escritores, mas só foi até
a esquina. Andou mais um pouco e viu algo que podia dar-lhe novo alento, uma
chance de desfazer a má impressão deixada. E o que seria melhor do que um
buquê de rosas? Agora só faltava um cartão com a mensagem certa. Metódico e
perfeccionista na composição de seus versos, nunca passara pela aflição de
escrever algo às pressas. Após alguns torturantes instantes, caprichou na
caligrafia:
“Amparo,
Em teus olhos estão todos os azuis da natureza. O azul dos mistérios do
mar; o azul da liberdade do céu e o azul delicado da borboleta que deixa um
beijo de amor em cada rosa que visita”.
Em seguida, pagou nova gorjeta para que um menino entregasse as flores
sem demora. Enquanto esperava o guri voltar, ficou lendo o jornal. E qual não
foi a surpresa quando viu o garoto, na porta do estabelecimento, lhe
apontando? A primeira reação foi virar as costas e sair andando. Todavia algo
muito mais forte o impediu. Ele quedou-se mais surpreso ainda quando Amparo,
com as flores em mãos, veio em sua direção. Habituado a falar para multidões,
João Maria ficou desconcertado quando a mulher parou diante de si. “Eu só
vim agradecer pelas flores e pelo cartão. Gostei muito, mas não posso aceitar”,
disse com voz firme. “Por favor, eu insisto”, retrucou o escritor. “Mas o senhor
é casado. Isso não está certo”, rebateu. “Sim, não nego que sou casado. Eu não
costumo ficar de paqueras, mas é que a senhorita é muito linda e mexeu deveras
comigo”, tentou explicar.
Por um momento, nenhuma palavra foi pronunciada enquanto o homem e a
mulher se olhavam ali no meio da calçada. Finalmente ela tomou a iniciativa.
“O senhor é um homem muito galante e deve se divertir às custas de moças
inexperientes como eu. Peço que aceite as minhas desculpas pelo
constrangimento que lhe causei lá dentro da confeitaria”. Agora não era mais
somente a beleza de Amparo que chamava a atenção do escritor. A sua voz doce
era um complemento perfeito à sua eloquência. Outra vez ela fez menção de
devolver o buquê, mas João antecipou-se: “Queira me perdoar pela grosseria.
De forma alguma eu quis lhe desrespeitar. Só peço que fique com as flores. Que
elas possam embelezar o teu dia, assim como você embelezou o meu”. Ela sorriu.
Depois de agradecer novamente, virou-se e sumiu no meio da multidão. O poeta
ainda ficou parado, como que em estado de transe. “E então, voltas no mesmo
bonde que nós?”, foi essa pergunta, feita pelo escritor Sebastião Mello, que
fez com que João Maria retornasse ao momento presente. “Agradecido pela
gentileza da oferta, caros amigos, mas acho que ainda vou ficar mais um tempo
por aqui, haja vista que a minha senhora foi visitar os pais em Petrópolis e
estou sozinho em casa”.
Livre de olhares curiosos, João agora usaria de uma de suas maiores
virtudes: a paciência. Como não sabia a que horas Amparo sairia do trabalho,
sentou-se estrategicamente na direção da porta da frente do comércio e pôs-
se a esperar. Somente duas horas depois é que a mulher que havia lhe encantado
os olhos apareceu na rua, já sem o uniforme. Seus cabelos loiros e ondulados
iam até um pouco abaixo do ombro. Ela usava um vestido branco com detalhes
floreados e a silhueta das pernas se insinuava sob o reflexo do sol. Quando
notou que João Maria caminhava em sua direção, a primeira reação foi sorrir
de forma a explicitar o contentamento. Depois se conteve, ao lembrar-se do
estado civil do poeta que tanto admirava. “Com licença, senhorita Amparo. Se
me permite, gostaria de falhar-se por alguns instantes”, interpelou. “Não sei
se seria prudente, senhor João Maria”, respondeu enfatizando a palavra
senhor. “Por favor, não me tome por inconveniente, mas eu insisto”. Após
hesitar um pouco, Amparo resolveu dar-lhe a atenção solicitada. “Muito
obrigado pela gentileza, senhorita. Posso convidá-la para um sorvete?” Convite
aceito, os dois caminharam por algumas quadras até encontrarem um local
discreto. Embora não soubessem explicar, João e Amparo sentiam como se aquele
fosse um reencontro depois de longa separação. A jovem contou que era natural
do Rio mesmo e que aquele trabalho era apenas temporário. Com o salário,
compraria um piano usado e voltaria a dar aulas, ofício que exercia antes de
ter de vender o instrumento para ajudar no tratamento da doença da mãe. Por
sua vez, o escritor falava da tristeza de viver um casamento de aparências
com uma mulher que não podia lhe dar filhos. A conversa durou por quase três
horas até que ambos não conseguiam mais disfarçar o fogo da paixão que se
acendia. “Você confia em mim?”, disse João olhando profundamente nos olhos
azuis da moça. “Sim, confio”, respondeu ela sem pensar. Mandando a discrição
às favas, João Maria tomou-a pela mão e chamando um cocheiro, dirigiram-se
para um hotel no centro da cidade.
Já era tarde da noite quando o casal parou de fazer amor. Amparo não
morava muito distante de João iria lhe garantir o transporte. Ainda na cama,
beijaram-se longa e ternamente. Insegura por ter acabado de perder a
inocência, ela repousou a cabeça no ombro do poeta e pediu: “Por favor, não me
deixe...”
Nunca havia se ouvido silêncio tão profundo na Lapa. Dois de seus mais
ilustres frequentadores haviam se encontrado com a morte. Foi o jovem
Vinícius de Moraes que fechou os olhos do poeta e, após ajudar Amparo a se
levantar, cobriu o corpo do mestre estendido no chão frio. O poetinha fez o
mesmo com José Gomes. Seguindo uma inspiração sobrenatural, propôs um brinde
aos reis da noite. Uma dose de uísque foi colocada ao lado de cada corpo e,
erguendo os copos, todos os boêmios fizeram um brinde de despedida a Jão das
Letras e Zé Pelintra. Em seguida, Vinícius recitou um dos mais conhecidos
sonetos de João Maria de Albuquerque. Somente Amparo não prestou atenção. O
único ânimo que tinha para viver estava em seu ventre, filho do homem que
amava e que agora jazia morto.
6
Ao despertar, mais uma vez de olhos fechados, tudo que João
Guilherme percebia eram cores. Infinitas cores. Sentia como se o corpo
estivesse flutuando muito acima do chão, embora o coração estivesse pesado.
Reviver cenas de uma encarnação anterior tinha mexido muito consigo.
Repentinamente, foi acometido de uma crise de choro. A separação trágica da
amada dilacerava-lhe a alma. Tentou abrir os olhos ou pelo menos mover alguma
parte do corpo. Inútil. Instantes depois, adormecia de novo.
“Meu amigo, hora de abrir os olhos!”, a voz era de Zé Pelintra. Com muito
esforço João conseguiu atender ao pedido do compadre. A alguns metros,
Vinícius de Moraes fez uma saudação com um sorriso. “Onde estamos?”, indagou
o professor. “Nós estamos onde você quiser. Imagine um lugar e pronto -
estaremos lá”, explicou o exu. O jornalista imaginou o Corcovado. Durante
alguns minutos os três amigos nada disseram. Até que Vinícius, levantando-se
do degrau onde sentava, olhou para João e falou: “Bem, uma parte da história
você já conhece”. “Meu Deus... tudo isso é demais pra minha cabeça”, desabafou
João. ”Joãosinho...” antes que o poetinha completasse a sentença, o professor
perguntou com ênfase: “E o que aconteceu a Amparo? E ao meu filho?”. Novo
silêncio. “Filha, Jão, filha...” esclareceu por fim Zé Pelintra.
“Muito bem cavalheiros, vamos direto ao ponto”, estabeleceu Vinícius de
Moraes. “Antes que a história toda seja revelada, é preciso que você se encontre
com alguém”, completou. O jornalista respirou aliviado ao inferir que o
encontro seria com Amparo. Só podia ser. A convicção era tanta que ele nem se
deu ao trabalho de pedir qualquer esclarecimento aos amigos. “E o que estamos
esperando? Vamos logo”, alvoreceu-se. “Onde você vai, compadre, Vinícius e eu
não podemos ir. Só desejamos que tenha a coragem e a humildade de fazer o que
deve ser feito”, exortou Zé Pelintra. Coragem e humildade – essas tinham sido
exatamente as palavras de Ogum quando do encontro na praia de Ipanema. João
Guilherme respirou fundo e, fechando os olhos, fez uma prece silenciosa ao
rei guerreiro. Quando terminou, Vinícius de Moraes e Zé Pelintra tinham
desaparecido.
O poeta olhou ao redor de si e nada viu. O silêncio era sepulcral. Uma
leve brisa começou a soprar. A brisa ficou então mais forte e um calafrio
atravessou-lhe o corpo. Ele não resistiu ao choque e caiu de joelhos no chão.
João não precisou olhar para trás para sentir a forte presença que havia se
manifestado. “Amparo?”, perguntou timidamente. “A cara está diferente, mas
você continua o atrevido de sempre, não é mesmo?”, foi a resposta que teve.
Virando-se, João Guilherme defrontou-se com o homem pelo qual tinha sido
morto: Sargento Savério.
- Desgraçado, você acabou com a minha vida, poeta de merda.
- E você com a minha.
- Você tirou de mim a única pessoa que amei.
- Um homem não espanca a mulher que diz amar.
- Não quando a mulher é fiel.
Depois da primeira vez com Amparo, muitas outras se sucederam. A ponto
de João Maria alugar uma casa somente para esses encontros. A intenção era
que a amante morasse definitivamente na residência, até que ele se separasse
da mulher. Entretanto, a jovem preferiu continuar morando com os pais. Depois
de quase um ano de espera e como a separação prometida nunca acontecia,
seguindo os conselhos da mãe, ela resolveu encerrar o romance e finalmente
dar uma chance ao recém-promovido sargento do exército, Savério Anunciação.
O ambiente foi sendo tomado por uma forte luz vermelha. Os dois homens
se olhavam com profundo rancor. Foi quando João Guilherme teve a nítida
impressão de já ter visto o militar na atual encarnação e em alguma anterior
a do Rio de Janeiro. “A sua sorte é que não tenho a permissão de acabar de vez
com você”, bradou Savério. O jornalista não replicou a provocação. Apenas
fechou os olhos. “Coragem e humildade”, as palavras do Rei Ogum vieram-lhe
forte no coração. “Meu irmão”, começou a dizer com serenidade na voz,
“realmente o que fiz foi errado. Eu desonrei a tua esposa e a minha também.
Tudo em nome do orgulho. Amparo foi a melhor coisa que me aconteceu na vida.
Eu a amava do fundo do coração, mas isso não me dava o direito de fazer o que
fiz”. Um profundo sentimento de vergonha inundava a alma de João Guilherme.
No caminho espiritual que havia escolhido, a evolução moral era algo levado
extremamente a sério. E era isso que buscava de todo o coração. Ele sabia que
devia controlar as paixões e os pensamentos para não ser dominado pelo ego. E
foi pensando no Cristo que conseguiu harmonizar-se e de seu coração começou
a fluir uma pequena esfera de luz alaranjada. O brilho foi se expandindo e a
sinceridade das palavras do poeta de alguma forma tinha mexido com o
sargento. O tom rubro de seu rosto começou a desvanecer. “Por que você não se
casou com ela quando pôde? Era só você ter se separado da sua mulher”. “Eu
tive medo. Parece que minha vida toda foi sempre marcada pelo medo. Mas
perante o Divino Pai Eterno, que nos colocou frente a frente novamente, eu
peço humildemente o teu perdão. Eu ainda estou encarnado e agora fica óbvio
que os espíritos superiores me trouxeram aqui para isso”, disse João, de cabeça
baixa.
Confuso com o que acabara de ouvir, Savério hesitou por um breve
instante. Mas logo as lembranças da humilhação sofrida e do desprezo de Amparo
desencadearam uma forte onda de energia negativa em seu íntimo e, envolto
novamente por uma luz rubra, respondeu: “Depois de morto todo mundo fica
bonzinho. Pois guarde o arrependimento pra si mesmo, filho da puta. Eu não te
perdoarei nunca e não vou descansar enquanto você não pagar por tudo que me
fez. Em breve, muito breve, nos veremos novamente”. Tomado de espanto pela
ameaça, o poeta pensou em pedir esclarecimentos, mas foi surpreendido pela
aparição de Zé Pelintra e Vinícius de Moraes. Savério e Zé trocaram um olhar
que deixou claro para o professor que eles tinham passado pela mesma situação
em algum momento de suas vidas. Sem notar, os quatro espíritos formavam a
figura de uma cruz. Antes que qualquer palavra pudesse ser dita, uma luz
branca surgiu no meio deles. O brilho foi se intensificando até resplandecer
em todo o ambiente. Mais uma vez, João viu-se sozinho e, ofuscado pela
claridade, fechou os olhos e foi tomado por imenso frio. Seu corpo começou a
tremer e ele entrou em uma crise de pânico. “Jesus, Jesus, Jesus, o maravilhoso
nome de Jesus...”, repetiu incontáveis vezes. Vagarosamente os batimentos
cardíacos foram voltando ao normal. Nesse momento despertou, mas de olhos
fechados. Enquanto pensava em tudo que acontecera, sentiu que sua mão era
envolvida por outra. A sensação foi de profunda paz e o professor ouviu uma
voz familiar a lhe sussurrar no ouvido: “Não tenha medo, meu amor. Eu estou
contigo”.
7
Embora convicto de que estava acordado, João Guilherme não conseguia
abrir os olhos ou mover qualquer parte do corpo. “Eu sou o fogo violeta com a
chama do sétimo raio; eu sou a elevação na libertação da minha alma”, repetiu
mentalmente durante alguns minutos na tentativa de consolar seu espírito.
Também lembrou-se dos hinos do Santo Daime que mais gostava, inclusive alguns
que ele próprio havia recebido. Em seguida vieram-lhe à mente a lembrança da
amada Mãe Oxum e do protetor Rei Ogum. São Miguel Arcanjo, Nossa Senhora da
Conceição e por fim, da Virgem Mãe Maria Santíssima. Sob as bênçãos de todos
esses seres divinos, o poeta adormeceu novamente. O sono que o havia dominado
era pesado e sem sonhos. Somente depois de algumas horas é que o primeiro
deles veio. Nele, via a si mesmo ainda criança ao lado do avô Floriano. Na
primeira infância, fora ele o seu verdadeiro pai, até João ser adotado pelos
tios e mudasse de casa. Ao ver o amado avô e pai, começou a chorar. Inútil a
tentativa de tentar se comunicar com o velho de cintilantes olhos azuis. O
poeta não estava desdobrado. Era um sonho tradicional. Nele, revia uma cena
ocorrida há muito tempo quando jogava damas com o patriarca da família na
calçada da humilde casa em que moravam com o resto da numerosa parentalha.
Ao olhar para si quando menino, João Guilherme lembrou-se de uma frase
atribuída ao escritor português José Saramago de que “fiz tudo na vida para
me tornar um homem que não envergonhasse a criança que fui”. O professor
ainda gastou um tempo olhando para as mãos de seu pai. Garimpeiro de
profissão, o homem robusto que tinha vindo sozinho do longínquo estado do
Pará, tinha as mãos nodosas e calejadas, exatamente como as descritas pelo
poeta Mário Quintana no poema “Meu velho pai”. João Guilherme sentia a alma
repleta do mais puro amor e paz. Erguendo a cabeça, olhou para o céu nublado
e quando retornou o olhar a cena havia se desfeito. Ele estava sozinho na rua
deserta. Tontura, tremores pelo corpo, visão turva, sequidão na garganta e por
fim João despertava. Desta vez, ainda que de olhos fechados, conseguiu notar
alguns vultos diante de si. Estranhou que a luz estivesse acesa e, ato contínuo,
não conseguia falar.
8
Em sua busca espiritual, o professor João Guilherme Ribeiro era um voraz
consumidor de livros e filmes. Em um dos filmes que tinha assistido, o
protagonista vivia em constante estado de sonho e, como não conseguia nunca
despertar, julgou estar morto. Este era o pensamento que lhe ocupava a mente
agora. Além dos vultos, ele conseguia notar o som de vozes, embora não fosse
possível discernir o que diziam. Impotente diante da situação, o jornalista
resolveu tentar dormir e fazer a projeção astral. Durante quase uma hora,
usou as técnicas que aprendera nas várias oficinas que tinha participado. O
sono chegou lenta e suavemente. Quando a sensação de balonamento
intensificou-se, soube que já podia deixar o corpo. Para vencer a escuridão,
repetiu o comando mental de luz. Ele ficou surpreso e não menos frustrado ao
notar que não estava no Rio de Janeiro, como tinha sido até o momento, e sim
na própria cidade natal – Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso. O professor
estava no centro histórico, no chamado Calçadão. Pela total ausência de pessoas
na rua, julgou que deveria ser de madrugada e pôs-se a caminhar lentamente.
“O sinhô é um anjo?”, a pergunta inusitada foi feita por um menino maltrapilho
que estava deitado entre papelões embaixo de um toldo. “Por que você acha que
sou um anjo”, respondeu João de forma simpática. “É que o sinhô tá tudo de
branco. Tirano o chapéu e a camisa”, replicou o garoto.
Quando o menino levantou-se é que o jornalista percebeu nele a ausência
do cordão de prata. Tratava-se de um espírito desencarnado. “Não, eu não sou
um anjo. Mas me fala, o que você está fazendo sozinho aqui, meu filho?”,
questionou. “Eu num tô sozinho, dotô. Eu tô com meus amigo. Qué vê eles?”,
rebateu a criança.
Levantando as outras partes da barraca improvisada de papelão, a
irrequieta figura cutucou outros dois garotos que dormiam. “Ô, nóis tem
visita”. Esquálidos e sujos, os três pareciam irmãos. “E então, desde quando
vocês estão aqui?”, quis saber João Guilherme. “Nóis num sabe, dotô”, respondeu
o que aparentava ser o mais velho. “E como vocês vieram parar aqui?”,
perguntou tomando o cuidado para não deixar transparecer que os garotos já
tinham morrido, pois havia a possibilidade de eles não saberem disso. “Nóis
num se alembra”, replicou o mesmo guri.
– E quantos anos vocês têm?
- Nóis num sabe.
Aquela situação começou a causar uma profunda angústia no coração de
João. Não ter ciência da morte e não se recordar da própria identidade era
deveras cruel com qualquer um – muito mais com uma criança. Sem ter mais o
que perguntar, decidiu ficar calado. Havia um misto de encanto e devoção no
olhar que os meninos lhe dirigiam. O professor pensou em convidá-los para
fazer uma prece, mas antes que o fizesse, ouviu uma forte freada de carro,
vindo da avenida paralela. Os moleques também ouviram e seus olhos foram
tomados de um terrível pânico. “Corre, corre, corre. Eles tá vino! Eles tá
vino!”, gritava o mais velho enquanto sumiam na escuridão. O poeta ainda
esperou para ver de quem se tratava, porém, ninguém apareceu. Novamente
sozinho, volitou até o terraço de um alto prédio comercial a menos de 200
metros. Lá de cima, podia ver toda a cidade. Embora sabendo que já tinha sido
carioca, era pela amada Cuiabá que seu coração batia mais forte.
“Saudosista, hein seu Jão das Letras?”. Só existia uma pessoa no mundo
que o chamava assim. Claro, Zé Pelintra tinha voltado. “Por onde andou, amigo?
Senti a tua falta”, disse João abrindo um sorriso. “Eu venho daqui, dali, de
todo lugar”, respondeu o orixá simulando um passo de samba.
- Por acaso você sabe quem eram aqueles meninos que encontrei agora há
pouco?
- Claro que sei. E você também sabe – e muito bem. Mas não se preocupe
que no momento certo você vai se lembrar.
O poeta não disse mais nada. Apenas ficou olhando para as luzes que
brilhavam pequeninas lá embaixo na rua. Depois, respirou fundo, e disse: “Meu
amigo, meu irmão, José Gomes, vulgo Zé Pelintra, humildemente peço o vosso
perdão”.
- Mas do que você está falando, homem?
- Eu tive uma grande parcela de culpa com o que lhe aconteceu. Na maneira
como você desencarnou. Eu deveria ter lhe avisado desde o início sobre Amparo.
Na verdade, naquela noite, o marido dela foi à Lapa procurando por mim e não
por ti.
- Não, meu irmão. Ele estava atrás de mim mesmo. Tudo bem que ele
desconfiava da mulher, mas ele não sabia de você. Além do mais, Jão, e você
sabe muito bem disso, tudo o que acontece na Terra só acontece porque assim
permite nosso Divino Pai Eterno. Você não tem culpa de nada.
- E você não encarnou mais depois?
- Não. Mas enquanto não recebo essa dádiva, vou me dedicando à missão
que me foi confiada pelo nosso bom Deus.
- E que missão é essa?
- Cuidar de você, meu irmão. De você e de outros poetas boêmios.
João Guilherme riu da última frase de Zé Pelintra e com a mão no ombro
do amigo confessou: “Eu não sou mais boêmio, seu Zé. Há seis anos que não boto
uma gota de álcool na boca. Até na roda de samba parei de ir”. “E eu não sei?
O ex-rei da noite carioca agora só quer saber de tomar Daime e expandir a
consciência”, disse seu Zé soltando uma gargalhada que ecoou no coração da
noite. Diante da resposta hilária, João não resistiu e caiu na risada também.
Os dois espíritos ficaram juntos no alto do prédio durante o resto da
madrugada relembrando os velhos tempos. “Hora de cantar pra subir”, disse Zé
Pelintra quando o sol começou a insinuar-se no horizonte. “Você precisa
descansar, poeta. Ainda vem muita demanda por aí. Feche os olhos, por favor”,
completou. Os amigos se abraçaram e, quando João Guilherme abriu os olhos,
Seu Zé tinha sumido no meio dos primeiros raios do astro rei. Havia muita
coisa a ser esclarecida e a mais importante era: o que teria acontecido a
Amparo? E à sua filha? Mas se tinha algo que ele tinha aprendido nos últimos
dias era que tudo tem seu tempo. Consolado por esta certeza, o jornalista
fechou os olhos novamente e voltou ao corpo físico.
9
Ao contrário do que vinha acontecendo nas últimas vezes em que
despertava do estado de projeção, desta vez, ao invés de estar de olhos fechados
e envolto de escuridão, João Guilherme estava de olhos semicerrados e tinha
diante de si uma suave luz que mesclava as cores azul, branca, violeta e
laranja. Ainda sem conseguir levantar-se, ergueu as mãos na tentativa de vê-
las. Porém, tudo que viu foram figuras disformes. Para João Guilherme não
havia mais dúvida: ele havia desencarnado. A princípio a sensação foi de
tristeza, depois de profunda gratidão por tudo que tinha conseguido aprender
em sua busca espiritual na Terra. Talvez agora pudesse juntar-se, até a
próxima encarnação, aos dois irmãos espirituais - Vinícius de Moraes e Zé
Pelintra - e auxiliar outras almas encarnadas ou desencarnadas. Sem saber
exatamente o que fazer naquela hora em particular, apenas esperava. A
expectativa era de que cedo ou tarde algum espírito viesse resgatá-lo.
Enquanto isso, rezou mentalmente por muitos de seus familiares e amigos.
Todavia, à medida que o tempo passava e nada acontecia, sua aflição
começava a aumentar. Ele tinha aprendido que o desprendimento da alma do
corpo, após a morte, estava diretamente relacionado ao grau de apego à matéria.
Havia relatos de que, em alguns casos, esse processo durava até anos. Outra
coisa que o incomodava em demasia é que, por mais que se esforçasse, não
conseguia lembrar-se rigorosamente de nenhum acontecimento dos últimos dias
– muito menos como tinha sido a sua passagem. A hipótese mais palpável era de
ter sido um acidente de moto, pois, apesar de estar prestes a completar 45 anos,
a saúde estava em excelentes condições. Por causa desse pensamento, João chorou
mais uma vez e ficou a imaginar o quanto os pais adotivos, familiares e amigos
teriam sofrido. Enquanto divagava a respeito de seu infortúnio, o poeta
adormeceu. Pouco, ou muito tempo depois, ele não tinha essa noção, despertou.
Ele estava sentado em um banco de madeira, em um grande salão, no que parecia
ser uma espécie de igreja. Não foi difícil reconhecer o lugar. O salão ficava
na mesma rua onde tinha encontrado os três meninos. Aquele era o prédio do
centro espírita mais antigo de Cuiabá. Mesmo não sendo daquela linha
espiritualista específica, tinha estado ali por muitas vezes para assistir as
palestras.
Embora o local estivesse vazio, João Guilherme conseguia ouvir vozes de
crianças. Elas falavam rápido e ao mesmo tempo e o jornalista ficou feliz ao
reconhecer a voz do garoto mais velho. Depois de atravessar várias paredes,
chegou à uma sala onde se encontrava o trio. Eles estavam em pé, atrás de um
homem sentado à mesa, junto com outros quatro. O senhor tinha lápis e papel à
mão e apenas ouvia a tagarelice dos guris. O professor compreendeu que tinha
ido parar em uma seção mediúnica e, receoso a princípio, decidiu tentar ajudar,
obedecendo a intuição. “Meus queridos, vocês têm que falar um de cada vez e
devagar, se não eles não poderão ajudar”, disse chamando a atenção dos
pequeninos. “Nóis num sabe falá cum eles. Eles é dotô e nóis é burro”, disse o
mais velho, demonstrando alegria ao ver de quem se tratava. “Não, meu querido.
Não é assim. Estes homens têm uma missão muito bonita e importante. Basta você
falar com calma que eles vão te compreender e levar a mensagem até quem você
quiser. Para quem você gostaria de mandar um recado? Sua mãe?”
Ao ouvirem a palavra mãe, os três meninos abraçaram-se e puseram-se a
chorar. Novamente seguindo a intuição, João teve uma ideia que talvez
resolvesse o problema. Aproximando-se do médium escrevente, disse: “Com a
devida licença, amado irmão, peço permissão para falar”. Autorização
concedida, o poeta continuou: “Antes de mais nada, eu saúdo a todos em nome do
soberano Deus e de nosso Senhor Jesus Cristo. Estão aqui os espíritos de três
meninos que perambulam por estas ruas. Eu os encontrei por acaso outro dia.
Pelo que pude compreender, eles desencarnaram e ainda não sabem. Estão muito
assustados, demonstrando medo de alguém que supostamente os estaria
perseguindo. Digo isso porque quando estive com eles, ouvimos uma forte freada
de carro e isso despertou pânico nos pobrezinhos, a ponto de saírem correndo.
Entrei nesta abençoada reunião também por acaso e humildemente ofereço-me
para falar com eles, caso tenham alguma pergunta”. “Revela-nos primeiro a
tua identidade”, disse o médium em tom austero. A réplica pegou o professor de
surpresa. Não era sua intenção identificar-se. Contudo, ele sabia que essa era
uma medida de praxe, pois muitos espíritos inferiores intrometiam-se nas
reuniões com o único propósito de semear a confusão e a discórdia. “Meu nome
é João Guilherme Ribeiro, nascido e criado em Cuiabá. Na Terra fui professor,
jornalista e escritor. Minha passagem aconteceu recentemente. Quando em vida,
tive a honra de, por muitas vezes, vir a esta Casa para aprender sobre a
Doutrina”, respondeu calma e firmemente. “O senhor poderia, por gentileza,
perguntar aos meninos os seus nomes?”, solicitou o espírita. João repetiu a
pergunta mas, outra vez, as crianças não conseguiram lembrar-se. Quando
preparava-se para explicar a situação, elas saíram correndo. Rapidamente o
poeta colocou os médiuns a par da situação e pôs-se a seguir os três garotos.
Quando chegou ao calçadão, conhecido como Rua de Baixo, reparou que eles
corriam em direção ao chamado Beco do Candeeiro – a primeira rua da cidade –
fundada pelos bandeirantes. Quando os alcançou, foi com um aperto no coração
que viu os meninos encostarem-se, retraídos e abraçados, contra a parede. “Num
mata nóis, num mata nóis, num mata nóis”, imploravam aos berros. Diante da
cena, João Guilherme compreendeu plenamente do que se tratava. Dez anos antes,
as crianças - que eram meninos de rua - tinham sido assassinadas naquela
viela histórica. Ele mesmo já tinha escrito uma matéria sobre a chacina. Com
muito esforço, o jornalista conseguiu conter o choro. “Meninos, eu sou do bem.
Eu sou amigo. Eu não vou machucar vocês. Juro por Deus”, disse lentamente.
Depois de certa hesitação, foi o garoto mais velho que tomou a dianteira: “Se
o sinhô é amigo, intão leva nóis pá nossa casa. Nóis num qué mais ficá na rua”.
Ciente da inutilidade de perguntar onde ficava a casa, o poeta fez
mentalmente uma prece e pediu ajuda aos espíritos de luz. Ele aguardou a
resposta de olhos fechados e ela veio. Sentando-se entre os guris, abraçou-os
e pediu para que pensassem em Deus. Os quatro ficaram quietos por um longo
tempo até que uma forte luz começou a brilhar e João Guilherme os viu
dormindo, de madrugada, na pracinha, a poucos metros dali. Os três estavam
amontoados, embrulhados em papelões e sob um cobertor velho. Eles não
despertaram com a freada estridente que se fez ouvir. Do interior do automóvel
desceram três homens, todos três revólveres à mão. Quando chegaram bem perto,
cada qual escolheu um dos meninos como alvo e disparou duas vezes. Sem pressa,
certificaram-se de que as vítimas tinham morrido e depois de entrar no carro,
saíram cantando os pneus. Por mais esforço que tenha feito, João não conseguiu
ver nem os rostos dos homens e nem a placa do carro. Profundamente chocado,
sentiu os corpos franzinos tremerem de frio contra o seu e rogou a Deus pela
alma dos novos amigos. Quando saíram do transe, João Guilherme perguntou se
tinham visto o mesmo que ele. Resposta afirmativa, estava na hora de os
meninos continuarem a jornada espiritual. Colocando-os em pé, o professor
pediu que fechassem os olhos e pensassem em suas mães, posto que não eram
irmãos. Em seguida, o quarteto sobrevoou a cidade por uma longa distância. A
casa do primeiro, o mais velho, era muito humilde. No quarto, dormindo junto
com a mãe, estavam três adolescentes. O garoto beijou o rosto de cada um deles.
Demorou-se com a mãe e depois de também beijá-la, sussurrou-lhe no ouvido
coisas que João não conseguiu escutar. Quando estavam saindo, o jornalista
ouviu os gritos de desespero da mulher, desperta após a visita do filho: “Eu
sabia. Eu sabia. Eu sabia que foi ele que matou meu guri. Aquele desgraçado
matou meu guri!” Nas duas casas seguintes cumpriu-se basicamente o mesmo
ritual. A diferença estava no número de parentes. O cochicho às mães era igual
e o poeta compreendeu que qualquer que tivesse sido a revelação, não lhe dizia
respeito.
Cumprido o itinerário, os quatro espíritos ainda andaram por quase cem
metros na rua deserta e esburacada. A luz da lua os guiava. “Deus lhe pague
por sua ajuda, irmão João Guilherme. Está na hora de esses meninos descansarem
em paz”, disse a senhora negra que os aguardava na esquina. Ela aparentava
ter 60 anos, tinha um manto azul sobre a cabeça e usava um vestido cor de
cana. Atrás de si, uma esfera de luz branca começou a surgir e aumentar de
tamanho, até atingir aproximadamente três metros. Com um sorriso de enorme
ternura, a anciã convidou os garotos a entrar no portal. O professor tentou
fazer o mesmo, mas foi impedido. “Não filho, a tua hora ainda não chegou. Você
é um moço tão inteligente... mas pensando que já desencarnou, esqueceu de tirar
a prova da forma mais simples. Lembra como é, meu querido?”, questionou com
voz cheia de bondade. “Claro, o cordão de prata! Como pude me esquecer?”, pensou
João. E passando a mão pela nuca sentiu a vibração de pura energia do feixe.
Um pouco acanhado, olhou para a anciã como que a desculpar-se pelo vacilo.
Novamente, ela apenas sorriu e, abençoando-o, também entrou no portal. O
jornalista estava novamente sozinho, mas um sentimento de gratidão vibrava
em cada minúscula parte de seu ser. O coração exultava de amor a Deus e a
todos os seres viventes. Ele olhou para a lua, que brilhava radiante no céu,
agradeceu ao Cristo pelo dom da vida e rezou um Pai Nosso e uma Ave Maria
pelas almas dos garotos.
O que vivia agora, na prática, excedia a tudo o que tinha lido em termos
de espiritualidade. Totalmente conectado ao momento presente, já não
necessitava compreender o mistério das coisas, uma vez que ele mesmo
encontrava-se em unicidade com o Universo, portanto também era parte desse
mistério. A mente, enfim, tinha sido superada pela Consciência. Vencido o
pensamento, nada mais do que um dos sentidos, João Guilherme finalmente havia
encontrado o Eu Sou – a centelha divina que pulsa no interior de todas as
coisas.
10
O murmúrio fez com que João Guilherme acordasse. Sem poder abrir os
olhos, ainda não conseguia discernir o que duas ou três pessoas à sua volta
diziam. Aquela situação o incomodava sobremaneira. Quem seriam aqueles
espíritos? O poeta decidiu não se preocupar mais e começou a reconstruir
mentalmente todas as experiências vividas no astral na noite anterior.
Lembrou-se da triste história dos três meninos. Eles supostamente tinham sido
assassinados a mando dos comerciantes da região cansados dos inúmeros assaltos
e da inércia da polícia. A chacina teve grande repercussão midiática e pressão
popular por justiça. Mesmo assim a polícia jamais encontrou os autores do
crime. Em homenagem à memória das crianças, grupos de direitos humanos
fizeram um monumento em tamanho natural que foi colocado na rua em que
foram covardemente mortos. Na estátua, dois dos meninos estão agachados,
encolhidos e se protegendo com os braços e o terceiro estirado sem vida no
chão, exatamente como visto pelo jornalista. Nesse instante, teve a ideia de,
assim que possível, procurar a mãe do menino mais velho, pois tinha reparado
bem em sua fisionomia e não teria muita dificuldade em reconhecê-la.
Se sua vida tinha mudado totalmente nos últimos dois anos, agora então
é que jamais seria a mesma novamente. Sabia que tinha de ler, estudar e
principalmente amar mais. No grupo de estudos esotéricos que frequentava, o
professor tinha ouvido de uma amiga muito sábia, que o Daime ensinava as
pessoas a sonhar. Aí estava a chave de tudo: era preciso despertar dentro do
sonho e o poeta estava vivendo tudo isso em uma intensidade que jamais
cogitara. Aquilo tudo não podia ser simplesmente fruto de sua mente. Mais do
que nunca se mantinha atento ao estado de presença, de viver o único momento
que realmente existe: o agora. As agruras do passado e as expectativas do
futuro não tinham mais influência em seu estado de espírito. Enquanto
meditava sobre essas coisas, adormeceu e repentinamente sentiu um enorme
incômodo na altura do peito. Novamente desdobrado, viu-se deitado em uma cama
e com o olhar fixo em si mesmo, entrou no próprio corpo, percorrendo cada
parte dele. Logo em seguida, o psicossoma do professor estava de novo ajustado
ao corpo físico, ou pelo menos quase. Havia um desnível, como quando a imagem
da televisão está desfocada e apresenta uma espécie de sombra. João Guilherme
sentiu como se seu coração estivesse sendo aberto por uma espécie de bisturi.
Mas o que teria acontecido ao seu coração? Sem encontrar uma resposta
plausível, apenas aguardou pelo fim do procedimento.
Nas mirações provocadas pelo Daime, não era raro João ver-se em lindos
jardins cercado de muitos tipos de flores. Quando abriu os olhos, percebeu que
estava desdobrado e em um desses jardins, muito provavelmente no fim da tarde.
Lembrou-se do soneto de Shakespeare que dizia “quando a hora dobra em triste
e tardo toque...” O jornalista examinava minuciosamente tudo o que estava a
sua frente. As orquídeas roxas que brotavam dos troncos das árvores, as rosas
vermelhas e brancas que bailavam ao sabor da doce brisa. O canto dos
passarinhos. A relva verde. A água cristalina do riacho que corria
preguiçosamente. O céu era um espetáculo à parte. A luz dourada do sol dava
ao firmamento um tom laranja inexistente em todos os pores-do-sol que já
tinha visto. O cenário diante do qual estava era uma linda declaração de amor
da natureza ao Pai criador. À medida que caminhava, ia percebendo novos e
lindos detalhes. Borboletas, abelhas, beija-flores, formigas, cigarras,
lagartixas – cada coisa tinha o devido encanto e mistério. O poeta entrou no
pequeno rio de águas rasas e foi seguindo o curso. Quando parava e olhava pra
baixo, podia perceber uma infinidade de peixinhos a seguir seu passeio.
Depois de caminhar por algumas dezenas de metros, saiu da água e chegou
a uma espécie de clareira. Ali a mata era mais fechada, mas mesmo durante o
lusco-fusco, a luz do sol ainda era intensa. Sentou-se em uma grande pedra,
ficou imóvel e em silêncio, tornando-se, também, parte do cenário. Ele tinha
se fundido à natureza e sentia toda a energia que emanava do lugar. Por causa
desse estado de transmutação, não percebeu que era observado atenta e
ternamente. Só depois de algum tempo é que teve a sensação de que não estava
sozinho. Embora sem poder vê-la, a presença que se manifestava lhe fez com
que o espírito exultasse de felicidade. Uma onda de alegria agitou seu coração
e não foi possível conter as lágrimas. Era ela que estava ali! Ele tinha
certeza! João Guilherme não se conteve e levantou-se. Girando o corpo em todas
as direções, procurou ansioso pelo rosto da alma gêmea. “Amparo, meu amor,
finalmente”, disse em voz alta.
Porém, o êxtase inicial deu lugar à frustração, pois, por mais que a
chamasse, ela não aparecia. De súbito, recuperou a lucidez e compreendeu que
teria de conter os sentimentos e os pensamentos se quisesse se comunicar com
a amada. De volta à pedra, fechou os olhos e calou a mente e o coração.
Novamente em harmonia, apenas aguardou. A luz do sol não era mais do que uma
centelha dourada no horizonte, quando uma doce e suave voz se fez ouvir em
seu coração: “Meu amado, há tanto tempo que te espero. Já nos encontramos e
nos separamos tantas vezes no curso reencarnatório. Mas tende bom ânimo, a
eternidade nos aguarda de braços abertos. Sê forte. Recorda-te de mim.
Recorda-te da nossa filha. Recorda-te de ti. Não passará muito tempo até que
estejamos juntos novamente. Tu tens uma grande missão diante de si, confiada
pelo Pai Celestial e pela Mãe Terrena. Complete-a com amor e devoção. Estarei
sempre contigo. Nos momentos de angústia e sofrimento, pense em mim que eu
virei para acalentar-lhe o coração. Minha alma e tua alma são uma só. Eu amo
você”.
Quando percebeu-se sozinho novamente, o poeta viu que o manto negro da
noite havia sido esparramado sobre o céu trazendo a lua e suas milhares de
estrelas. Havia paz em seu coração. Com novo ânimo e transbordando de
felicidade, levantou-se e dançou sob a luz do luar. Em seguida, tomado por um
grande torpor, recostou-se na grande pedra e dormiu.
11
Quando João Guilherme abriu os olhos dentro do sonho e olhou para si
mesmo, não se viu. O corpo astral havia se diluído num feixe de luz dourada.
À sua volta, centenas de milhares de pontos luminosos vagavam
harmoniosamente. Não havia nenhuma pergunta em seu coração, pois ele estava
além da mente e dos pensamentos. Ele apenas pertencia; estava entre as
estrelas. Ao longe, viu o sol. Impossível resistir ao brilho incandescente.
Incontáveis esferas de energia de diferentes matizes vinham dele e voltavam
para a estrela de primeira grandeza. O jornalista sentiu como que todas as
moléculas do corpo se expandirem quase que ao ponto de explodir, para depois
diminuírem novamente. João tinha muitas músicas prediletas. Composições que
lhe tocavam no mais íntimo da alma. Contudo, nem mesmo os maestros Heitor
Villa-Lobos, Wolfgang Amadeus Mozart e Ludwig Von Beethoven – seus
compositores favoritos – jamais poderiam conceber melodia tão sublime como a
que ouvia agora. Ele ouvia na fonte a mais pura expressão do amor divino. A
sílaba que contém em si o mundo inteiro – o presente, o passado e o futuro.
Era como se todos os astros entoassem o “om”, o primeiro e o último acorde da
perfeita sinfonia cósmica que se chama Universo. Finalmente entendia o
pedido de Pablo Neruda ao carteiro que sonhava em ser poeta: “E se ouvir o
som das estrelas, grave”. Depois de vagar disforme pelo espaço sideral, seu
corpo astral começou a se recompor e ser puxado de volta à órbita da Terra. O
destino, enfim, era o Rio de Janeiro.
Quando chegou ao Corcovado, estava sozinho. Após um tempo de meditação,
seguiu a intuição e volitou até Ipanema. Embora fosse início de noite, a praia
estava lotada. Demasiadamente lotada por sinal. Uma multidão sem fim, como
em um imenso formigueiro, indo e vindo em todas as direções. Não foi difícil
notar que, separados pela morte, o que via a frente era uma interação
inconsciente de espíritos encarnados e desencarnados. João não sabia qual
grupo lhe causava mais compaixão. Os vivos exalavam uma nauseante energia
negativa e pensamentos egóicos que contaminavam toda a atmosfera. Os mortos
choravam, gritavam, implorando misericórdia. Muitos estavam desfigurados. Um
moço negro com o peito todo ensanguentado bradava: “É certo isso, meu Deus?
Um trabalhador, um pai de família como eu morrer feito um cachorro?” Um
grupo de espíritos desencarnados mantinha, ali mesmo no calçadão, relações
sexuais da forma mais depravada possível. Diante da cena deprimente, o
jornalista decidiu virar as costas, mas algo lhe chamou a atenção. Entre as
dezenas de pessoas que participavam da orgia, havia algumas encarnadas, pois
era possível ver seus cordões de prata. Isso fez com que o professor se
lembrasse que havia lido que a frequência dos nossos pensamentos quando
despertos nos atrai, no sono, para perto de outros que estejam nessa mesma
frequência. A bem da verdade, havia muitos outros vivos em estado de sono
profundo perambulando pela orla. Eles lembravam sonâmbulos caminhando às
cegas. Para seu consolo, João Guilherme notou que cada um deles era escoltado
por uma aura de luz.
O professor também notou um senhor desencarnado de aparentemente 70
anos que chorava convulsivamente. Apiedado da pobre alma, João aproximou-se.
”O senhor me dê licença”, disse em tom respeitoso. Diante do olhar surpreso do
homem, o poeta prosseguiu: “Graça e paz por parte do Nosso Senhor Jesus Cristo.
Perdoe-me pela indiscrição, mas como o vi chorando, julguei que talvez eu
pudesse ser de alguma serventia”. “Você por acaso é um anjo que veio me dizer
que obtive autorização para reencarnar? Se sim, é bem-vindo. Se não, me deixe
em paz”, respondeu com voz carregada de rancor. “Não, meu senhor. Eu não sou
um anjo. Perdoe-me pelo aborrecimento”, replicou João. O velhinho olhou na
direção do mar. As águas estavam escuras naquela noite e não havia estrelas
no céu. “Meu dinheiro! Tudo que eles querem é meu dinheiro. Mas isso eles nunca
vão ter. O dinheiro é meu! Meu!”, resmungou. Ele repetiu o desabafo por várias
vezes. Seus braços estavam postos em forma de xis contra o peito, como se
abraçasse fortemente alguma coisa, mas não havia nada. “O que você está
olhando? Eu sei muito bem que você está dando uma de bonzinho pra ficar com
o meu dinheiro. Mas o dinheiro é meu! Entendeu? Meu!”, esbravejou o ancião. E
continuou a gritar “ladrões, ladrões, só tem ladrão nesse mundo”, correndo sem
rumo pela praia.
Enquanto observava o homem ainda tão preso à matéria, ou aquilo que na
espiritualidade chamava-se de ilusão, o jornalista fez uma prece em favor da
pobre alma sofredora. Em meio àquele cenário de tamanha tristeza que via em
um dos principais pontos turísticos da amada Rio de Janeiro, João colocou em
xeque o título de “cidade maravilhosa”. Ele locomoveu-se por três ou quatro
quilômetros até ter a nítida impressão de que estava sendo seguido. Depois de
parar, lentamente virou-se e notou um adolescente com um semblante que
misturava encanto e medo. Nessa hora, o rapaz fez menção de voltar e, fazendo
isso, o poeta percebeu – pelo cordão de prata - que se tratava de um encarnado
em estado de projeção astral, exatamente assim como ele. “Ei, espere!”, disse
João Guilherme com firmeza. O moço parou. “Pelo amor de Deus, o senhor pode
me ajudar? Eu não sei como vim parar aqui. Acho que eu morri”, falou o rapaz
evitando encarar o poeta.
- Calma, meu filho! Em primeiro lugar, você não está morto. Você está
acordado dentro do sonho. Alguns chamam isso de viagem astral. É a primeira
vez que lhe acontece?
- Não! Mas nunca tinha sido tão forte assim. Eu quero voltar pro meu
corpo. Eu tenho medo de não conseguir mais. Me ajuda, por favor.
João pediu para o jovem se acalmar e, aproximando-se, ministrou-lhe um
passe energético. Depois disse: “Encare o que está acontecendo como uma dádiva.
Veja só quantas pessoas estão aqui, andando de olhos fechados, feito cegos.
Qual é a tua graça?”
- Meu nome é Saulo.
- Prazer Saulo. Eu sou o João Guilherme. Você é daqui do Rio mesmo?
- Sim, sou.
Agora que o adolescente estava mais tranquilo, o professor prosseguiu:
“Então Saulo, pouquíssimas pessoas conseguem acordar dentro do sonho. Isso
ainda é raro, mas daqui um tempo será muito comum. A humanidade está passando
por um despertar espiritual muito forte. Sinta-se honrado por esta
experiência”.
- Mas eu nunca pedi por isso. Minha família acha que estou ficando louco.
Já estão falando até em me internar.
- Não se preocupe que isso não vai acontecer. Há muitos livros que podem
lhe ajudar. Faz assim: na próxima vez que você for dormir, reze para o teu
anjo da guarda para que ele te guie no mundo astral. Você pode não ver, mas
ele está aqui neste exato momento.
- E você consegue vê-lo?
- Não, não consigo. Mas posso sentir a sua presença.
- E como eu faço pra acordar? Pra voltar ao corpo?
Desta vez a resposta do jornalista não foi imediata. Como poderia dizer
algo que nem mesmo ele sabia, uma vez que não se lembrava da última vez em
que estivera desperto? João pensou, pensou e por fim disse: “Meu amigo, o teu
anjo da guarda te conduzirá de volta quando isso for necessário. Mas você pode
voltar, por exemplo, estalando os dedos e visualizando o teu corpo físico”.
- Como? Assim?
Ao estalar o dedo o moço sumiu da vista do professor. Com um sorriso no
rosto, João Guilherme percebia a ironia da cena. Ora, se tinha dado certo com
o menino, por que não daria consigo? Todavia, mesmo depois de estalar o dedo
uma, duas, três, quatro, cinco vezes, ele continuava no mesmo lugar. João não
resistiu e soltou uma imensa gargalhada. “Agora deu pra rir sozinho, Seu Jão
das Letras?”, gracejou Zé Pelintra. “Deixa o homem, compadre Zé. É melhor ser
alegre que ser triste”, intrometeu-se Vinícius de Moraes. O trio estava
novamente reunido. O poeta ficou a encarar os amigos como que a esperar a
instrução de qual seria o próximo passo. Em função da insistência do silêncio
dos boêmios, João Guilherme cobrou: “E então, o que faremos agora? Para onde
iremos? Quando me encontrarei com Amparo?”
“Êita homem, aquieta este espírito”, repreendeu seu Zé. “Tudo a seu tempo”,
finalizou. “Joãosinho”, começou Vinícius, “a cidade inteira ficou sabendo do
ocorrido daquela noite. Saiu em todos os jornais. Marina ficou louca de ódio.
Como vingança, ela quis tomar a filha de Amparo”, acrescentou. “Mas me fala
logo de uma vez, o que aconteceu com elas?”, disse o professor rispidamente
para logo em seguida desculpar-se: “Perdoe-me, meu amigo, você tem sido um
verdadeiro irmão. Eu não tenho o direito de falar assim contigo”. “Calma, Jão”,
disse seu Zé abraçando o compadre. “Com o escândalo, Amparo foi despedida e os
pais não a aceitaram de volta, mesmo com uma filhinha pra criar. Ela batizou
a menina com o nome de Julieta, por causa da peça que vocês costumavam ler
em voz alta. Para não passar fome, foi trabalhar como doméstica em casas de
família, mas por causa do bebê, sempre acabava despedida. Ela nunca conseguiu
dar as aulas de piano que queria”, explicou o mentor espiritual. Com muito
esforço para não chorar, João ouvia a tudo em silêncio. “Sem ter pra onde ir,
ela veio me procurar. Falou que vocês planejavam mudar-se para a Inglaterra
depois que você se separasse de Marina. Ela tinha umas economias e pediu minha
ajuda para ver se conseguia alguma família para recebê-la em Londres até que
arrumasse trabalho e pudesse pagar um aluguel. Pela graça do nosso bom Deus,
consegui entrar em contato com os Stewart, o mesmo casal que te recebeu no
tempo em que viveu lá, lembra?”, disse Vinícius de Moraes. “Sim, sim! Os Stewart!
O casal de ativistas escritores”, recordou-se João. “Eles adotaram Amparo e
Julieta como filhas”, acrescentou Vinícius olhando para Zé Pelintra como que
a pedir para continuar com o relato. “Jão, depois de três anos, Amparo caiu
gravemente doente e veio a falecer logo em seguida. Os Stewart continuaram a
cuidar de criança, claro”.
João Guilherme não podia mais conter as lágrimas. Sentando-se na areia,
diante do mar silencioso e debaixo da noite escura, entregou-se a um pranto
que lhe doía em cada recanto do ser. Vinícius e Zé Pelintra não ousaram dizer
nada. Depois de um longo tempo é que ele quis saber como tinha sido a vida da
filha que nunca conheceu. “Ela tornou-se escritora, casou-se com um músico e
veio morar aqui no Rio outra vez”, contou Vinícius. “E quando poderei
encontrar-me com Amparo?”, questionou João quase que a implorar aos amigos.
“Em breve, irmão. Mas antes você deve encontrar-se com outra pessoa”, afirmou
Zé Pelintra. “Que o nosso divino Pai Eterno lhe conceda a coragem e a
humildade de fazer o que é necessário”, disse o exu abraçando o amigo. Ao ouvir
pela terceira vez a mesma orientação, o professor não teve dúvida de quem o
esperava.
Não havia mais nada a ser falado. O grande reencontro havia chegado ao
fim e os três homens sabiam disso. João Maria de Albuquerque, Marcus Vinícius
de Moraes e José Gomes da Silva elevaram os olhos para o céu e foram saudados
pelo brilho da lua que finalmente havia surgido. João e Zé tiraram os chapéus
e juntaram-se a Vinícius em uma prece de louvor e agradecimento à Virgem Mãe
Maria Santíssima. Não houve palavras de adeus. Eles somente se olharam e
estava tudo dito. João Guilherme fechou os olhos e quando os abriu viu, à meia
distância, uma figura feminina com vestes azuis a pairar por sobre as águas.
Respeitosamente, o poeta curvou-se e sussurou: “Alodê, Iemanjá, odoiá”.
Graciosamente a deusa das águas acenou a lhe abençoar e elevou-se em direção
à lua.
12
João Guilherme foi acordado por um choro abafado. Ele estava de volta
ao corpo físico quase que da mesma forma de sempre: de olhos fechados e em
estado de catalepsia. Embora não pudesse mover um só músculo, desta vez
conseguia ouvir pequenos soluços bem ao seu lado. Eles balbuciavam algumas
palavras que, com muito esforço, o poeta conseguiu interpretar. “Me perdoa, me
perdoa, me perdoa”, clamava o pranto feminino. Esforço inútil tentar
reconhecer a voz. Ela lhe chegava toda distorcida. João procurou projetar-se
novamente para fora do corpo e pôr fim àquele mistério. Mais um esforço
inútil. Quem quer que fosse, recebeu sinceras vibrações de amor fraterno.
Feito isso, o choro cessou. Silêncio. Aquela visita deixou o jornalista deveras
intrigado. Como morava sozinho e não estava morto, então ele só podia ter sido
visitado por um espírito. A intuição lhe dizia que não era a presença nem de
Amparo e nem de Marina. Ainda que recém-desperto, o professor sentia o corpo
exausto e, vencido pelo cansaço, adormeceu novamente.
Mesmo que visivelmente precisando de uma pintura, externamente o velho
casarão continuava imponente. De estilo clássico, tinha sido construído quando
da chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro. João demorou a entrar. A
vibração que saía do interior do antigo lar estava carregada de uma intensa
energia negativa. E ele sabia quem lhe esperava lá dentro. Ao olhar para si,
foi com espanto que notou que tinha novamente a aparência do tempo de João
Maria. O bigode cuidadosamente aparado, os cabelos penteados para trás e
impecáveis com a ajuda de gomalina. Porém, se ele estava igual ao passado, o
mesmo não se podia dizer da cidade. Os carros que trafegavam pela avenida
Atlântida revelavam que o ano era mesmo o de 2014. “O que está em cima é como
o que está embaixo”, pensou em voz alta, relembrando um dos princípios do
hermetismo. Ao entrar na ampla sala de visitas viu um casal de idosos
prestando atenção ao que dizia um homem de aproximadamente 30 anos. João
procurou pelos cordões de prata e os viu. “Alguns espíritos ficam tão apegados
a um lugar que mesmo depois de desencarnados continuam morando nele. Eles se
recusam a acreditar que morreram e passam a viver em uma espécie de realidade
alternativa”, explicou o homem. Sua fala deixou o poeta com o coração apertado.
“Pobre Marina”, pensou. “E o que nós podemos fazer? Eu não aguento mais ouvir
barulhos macabros durante a noite, principalmente o ranger de madeira como
de uma cadeira de balanço”, reclamou um dos velhinhos. “Rogar aos espíritos
de luz que os convençam a aceitar que desencarnaram e seguir seu caminho”,
respondeu o orientador espiritual.
Dando as mãos, os três leram a Consagração do Aposento e a Prece de
Cáritas. O poeta tinha uma profunda reverência por essas orações. Elas faziam
parte de um cd que ele havia gravado na sua voz e distribuído aos amigos mais
próximos. “Gratidão, meus irmãos”, disse João ao término do momento devocional.
“Vocês ouviram isso?”, perguntou sobressaltada a idosa. “Isso o quê?”, quis
saber o marido. “Alguém disse ‘gratidão, meus irmãos’”, respondeu. Eles deram
as mãos novamente e se concentraram. “Estou sentindo uma presença aqui. Não
é o mesmo espírito que habita esta casa. É outro. Sua energia é boa. Ele está
em paz”, revelou o amigo que visitava o casal. O professor ponderou por alguns
instantes continuar com a comunicação, mas preferiu subir para resolver a
situação pendente de uma voz por todas.
A porta de madeira maciça do quarto estava fechada e João Guilherme
passou através dela e considerou surreal a sobreposição de imagens. Ele via
ao mesmo tempo o quarto com a antiga e a nova decoração. Marina estava sentada
na cadeira de balanço na qual costumava bordar, à beira da porta. A cama do
novo casal de inquilinos estava bem do lado. A princípio, a esposa não percebeu
que não estava só. Depois, sentiu um arrepio e inferindo ser por causa do
vento, fechou a enorme janela que possuía uma sacada que dava de frente para
o mar. João apenas a observava. O incômodo do arrepio repetiu-se e ela
levantou-se subitamente da cadeira. “O que é que você quer, alma penada? Eu
já disse que não vou sair da minha casa. Vai embora daqui. Você não tem o
direito de perturbar a paz dos vivos”, bradou a mulher a esmo. Antes de
qualquer coisa, o poeta fez uma prece ao seu mentor espiritual na esperança
de que Vinícius de Moraes aparecesse – o que não aconteceu. Porém, sua
sensitividade lhe dizia que estava sendo assistido por espíritos superiores.
“Marina, sou eu, o João Maria”, disse da forma mais carinhosa que conseguiu.
A ex-esposa parou de costurar e fitou o enorme quadro na parede. Nele
estava pintado o retrato do casal em trajes de gala. “Por que você me
abandonou? Por que não fui merecedora do teu amor? Só porque não podia lhe
dar um filho? Agora estou aqui, viúva, sozinha e humilhada. Sua morte foi tão
trágica, meu bem...”, lamentou-se entre lágrimas. João Guilherme elevou o
pensamento em prece e pediu a Deus que permitisse tornar-se visível para a
ex-mulher. Nesse instante, ela levou um choque e como que adormeceu por alguns
segundos. Quando abriu os olhos, soltou um grito de pavor. “João Maria! Então
era você o fantasma que ficou me assombrando todos esses anos? Que fazia todos
aqueles barulhos estranhos? Mesmo depois de morto você ainda não me deixa em
paz, pelo amor de Deus?”, desabafou. O descontrole emocional fez com que ela
derrubasse a caixa de costuras e a cadeira de balanço. Na tentativa de
defender-se, abriu as janelas julgando que a luz do sol afugentaria o espírito
intruso. No andar de baixo, o casal e o visitante ouviam todos esses sons, com
exceção da voz da mulher prestes a entrar em estado de histeria.
Sem dirigir-lhe uma só palavra, João se concentrava para que o espírito
de luz que o assistia usasse seu fluido universal para acalmar a mulher. Por
muitos minutos, Marina ficou encolhida sob o dossel da cama com o travesseiro
sobre a cabeça até finalmente resolver encarar o que considerava ser o
fantasma do ex-marido. “Por que você está fazendo isso comigo, João? Você já
me fez sofrer demais. Deixa pelo menos eu viver a minha vida em paz”, disse
com os olhos banhados de lágrimas. “Marina, por favor, me escute. O que tenho
a lhe dizer é muito importante”, começou o professor. “Eu não sou mais o homem
com quem você se casou. Depois da minha morte, eu reencarnei em outra vida,
em outra cidade. É de lá que eu vim para lhe dizer que é você que não está
mais no mundo dos vivos. Ao não aceitar a morte, você criou uma espécie de
universo particular, que só você vê. Você nunca estranhou que ninguém – nem
mesmo os teus pais – vem lhe visitar?”
- Todo mundo me odeia, até mamãe e papai. Por isso que eles não vêm aqui.
E eu não preciso deles também. Estou muito bem sozinha. O que não suporto são
esses barulhos que você fica fazendo pela casa para me assustar.
- Não, Marina. É justamente o contrário. É você que está assustando as
pessoas que agora estão morando aqui no casarão. Elas estão lá embaixo rezando
pela tua alma.
- Você está querendo me deixar louca! Não basta a humilhação de ser
trocada por uma empregadinha de padaria? Não basta? Que culpa tenho eu de
não poder gerar filhos? Como fui cega em acreditar que um dia você me amou.
Você estava era de olho no dinheiro da minha família. Você estava de olho
neste casarão. Agora me diga, onde você teria chegado sem mim? Você acha que
as tuas poesias chinfrins te levariam a algum lugar? Você nunca passou de um
bêbado metido a intelectual que passava as noites enchendo a cara na companhia
de um negro sujo. Até os teus estudos na Inglaterra foram pagos pelo meu pai.
Eu te amei, João. Eu te amei do fundo do meu coração. Mas você nunca gostou
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS
ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

25 tragédia oculta
25   tragédia oculta25   tragédia oculta
25 tragédia ocultaFatoze
 
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 12 - Pensaste Nisto?
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 12 - Pensaste Nisto?Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 12 - Pensaste Nisto?
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 12 - Pensaste Nisto?Ricardo Azevedo
 
Um enigma entre estantes (conto)
Um enigma entre estantes (conto)Um enigma entre estantes (conto)
Um enigma entre estantes (conto)AnaRita9
 
A caverna dos Antigos - Lobsang Rampa
A caverna dos Antigos  - Lobsang RampaA caverna dos Antigos  - Lobsang Rampa
A caverna dos Antigos - Lobsang RampaJosé Azeredo
 
Alvorecer de um novo dia
Alvorecer de um novo diaAlvorecer de um novo dia
Alvorecer de um novo diaclaudiovcorreia
 
Ceu e inferno o castigo
Ceu e inferno o castigoCeu e inferno o castigo
Ceu e inferno o castigoIasmine Ally
 
( Esoterismo) a rosa de paracelso
( Esoterismo)   a rosa de paracelso( Esoterismo)   a rosa de paracelso
( Esoterismo) a rosa de paracelsoSusy Diaz
 
Unic 01 - camoes sonetos-2018-pr wsf
Unic 01 - camoes sonetos-2018-pr wsfUnic 01 - camoes sonetos-2018-pr wsf
Unic 01 - camoes sonetos-2018-pr wsfWelington Fernandes
 
Evangelho animais 55
Evangelho animais 55Evangelho animais 55
Evangelho animais 55Fatoze
 
Evangelho animais 32
Evangelho animais 32Evangelho animais 32
Evangelho animais 32Fatoze
 
SLIDE DA PALESTRA-PODCAST "CONHECENDO OS SEGREDOS DO PODCAST DO LIVRO BLACK W...
SLIDE DA PALESTRA-PODCAST "CONHECENDO OS SEGREDOS DO PODCAST DO LIVRO BLACK W...SLIDE DA PALESTRA-PODCAST "CONHECENDO OS SEGREDOS DO PODCAST DO LIVRO BLACK W...
SLIDE DA PALESTRA-PODCAST "CONHECENDO OS SEGREDOS DO PODCAST DO LIVRO BLACK W...Raquel Alves
 
002 cartas de uma morta maria joao de deus - chico xavier - ano 1935
002 cartas de uma morta   maria joao de deus - chico xavier - ano 1935002 cartas de uma morta   maria joao de deus - chico xavier - ano 1935
002 cartas de uma morta maria joao de deus - chico xavier - ano 1935Everton Ferreira
 
Evangelho animais 95
Evangelho animais 95Evangelho animais 95
Evangelho animais 95Fatoze
 
Evangelho animais 93
Evangelho animais 93Evangelho animais 93
Evangelho animais 93Fatoze
 
Evangelho animais 94
Evangelho animais 94Evangelho animais 94
Evangelho animais 94Fatoze
 

Mais procurados (19)

25 tragédia oculta
25   tragédia oculta25   tragédia oculta
25 tragédia oculta
 
Uma anfora de agua
Uma anfora de aguaUma anfora de agua
Uma anfora de agua
 
Capítulo 1 - Volko
Capítulo 1 - VolkoCapítulo 1 - Volko
Capítulo 1 - Volko
 
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 12 - Pensaste Nisto?
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 12 - Pensaste Nisto?Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 12 - Pensaste Nisto?
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 12 - Pensaste Nisto?
 
Rosemary Brown e os mestres da música
Rosemary Brown e os mestres da músicaRosemary Brown e os mestres da música
Rosemary Brown e os mestres da música
 
Um enigma entre estantes (conto)
Um enigma entre estantes (conto)Um enigma entre estantes (conto)
Um enigma entre estantes (conto)
 
A caverna dos Antigos - Lobsang Rampa
A caverna dos Antigos  - Lobsang RampaA caverna dos Antigos  - Lobsang Rampa
A caverna dos Antigos - Lobsang Rampa
 
Alvorecer de um novo dia
Alvorecer de um novo diaAlvorecer de um novo dia
Alvorecer de um novo dia
 
Ceu e inferno o castigo
Ceu e inferno o castigoCeu e inferno o castigo
Ceu e inferno o castigo
 
( Esoterismo) a rosa de paracelso
( Esoterismo)   a rosa de paracelso( Esoterismo)   a rosa de paracelso
( Esoterismo) a rosa de paracelso
 
Unic 01 - camoes sonetos-2018-pr wsf
Unic 01 - camoes sonetos-2018-pr wsfUnic 01 - camoes sonetos-2018-pr wsf
Unic 01 - camoes sonetos-2018-pr wsf
 
Evangelho animais 55
Evangelho animais 55Evangelho animais 55
Evangelho animais 55
 
Evangelho animais 32
Evangelho animais 32Evangelho animais 32
Evangelho animais 32
 
SLIDE DA PALESTRA-PODCAST "CONHECENDO OS SEGREDOS DO PODCAST DO LIVRO BLACK W...
SLIDE DA PALESTRA-PODCAST "CONHECENDO OS SEGREDOS DO PODCAST DO LIVRO BLACK W...SLIDE DA PALESTRA-PODCAST "CONHECENDO OS SEGREDOS DO PODCAST DO LIVRO BLACK W...
SLIDE DA PALESTRA-PODCAST "CONHECENDO OS SEGREDOS DO PODCAST DO LIVRO BLACK W...
 
002 cartas de uma morta maria joao de deus - chico xavier - ano 1935
002 cartas de uma morta   maria joao de deus - chico xavier - ano 1935002 cartas de uma morta   maria joao de deus - chico xavier - ano 1935
002 cartas de uma morta maria joao de deus - chico xavier - ano 1935
 
Tributo à Yvonne do Amaral Pereira
Tributo à Yvonne do Amaral PereiraTributo à Yvonne do Amaral Pereira
Tributo à Yvonne do Amaral Pereira
 
Evangelho animais 95
Evangelho animais 95Evangelho animais 95
Evangelho animais 95
 
Evangelho animais 93
Evangelho animais 93Evangelho animais 93
Evangelho animais 93
 
Evangelho animais 94
Evangelho animais 94Evangelho animais 94
Evangelho animais 94
 

Semelhante a ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

Tambores de angola
Tambores de angolaTambores de angola
Tambores de angolasiaromjo
 
Nuvem negra flipsanck pdf
Nuvem negra flipsanck pdfNuvem negra flipsanck pdf
Nuvem negra flipsanck pdfGabriel171
 
Sonambulismo, êxtase e dupla vista - Livro dos Espíritos - Allan Kardec
Sonambulismo, êxtase e dupla vista - Livro dos Espíritos - Allan KardecSonambulismo, êxtase e dupla vista - Livro dos Espíritos - Allan Kardec
Sonambulismo, êxtase e dupla vista - Livro dos Espíritos - Allan Kardecmarjoriestavismeyer
 
Midnight Sun de
Midnight Sun de Midnight Sun de
Midnight Sun de vickvc
 
Apresentação de Sofia de Mello Breyner Andresen
Apresentação  de  Sofia de Mello Breyner AndresenApresentação  de  Sofia de Mello Breyner Andresen
Apresentação de Sofia de Mello Breyner AndresenMaria Costa
 
Mulheres-Perséfone e sua descida ao submundo através da poesia.pdf
Mulheres-Perséfone e sua descida ao submundo através da poesia.pdfMulheres-Perséfone e sua descida ao submundo através da poesia.pdf
Mulheres-Perséfone e sua descida ao submundo através da poesia.pdfMarceliEduardaGambat
 
Obra literária "O caçador de palavras" de Walcyr Carrasco
Obra literária "O caçador de palavras" de Walcyr CarrascoObra literária "O caçador de palavras" de Walcyr Carrasco
Obra literária "O caçador de palavras" de Walcyr CarrascoIEE Wilcam
 
Especial água viva
Especial água vivaEspecial água viva
Especial água vivaAna Batista
 
5 o natal diferente
5   o natal diferente5   o natal diferente
5 o natal diferenteFatoze
 
Poetas da contemporaneidade: Adélia Prado, Manoel de Barros e José Paulo Paes
Poetas da contemporaneidade: Adélia Prado, Manoel de Barros e José Paulo PaesPoetas da contemporaneidade: Adélia Prado, Manoel de Barros e José Paulo Paes
Poetas da contemporaneidade: Adélia Prado, Manoel de Barros e José Paulo PaesPaula Back
 
Santa Benedita Cambiagio
Santa Benedita CambiagioSanta Benedita Cambiagio
Santa Benedita CambiagioSBProv
 
Maria, a Mãe de Jesus
Maria, a Mãe de JesusMaria, a Mãe de Jesus
Maria, a Mãe de JesusAntonino Silva
 

Semelhante a ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS (20)

Huberto Rohden - De Alma Para Alma
Huberto Rohden - De Alma Para AlmaHuberto Rohden - De Alma Para Alma
Huberto Rohden - De Alma Para Alma
 
Tambores de angola
Tambores de angolaTambores de angola
Tambores de angola
 
Tambores de angola
Tambores de angolaTambores de angola
Tambores de angola
 
Tambores de angola
Tambores de angolaTambores de angola
Tambores de angola
 
Nuvem negra flipsanck pdf
Nuvem negra flipsanck pdfNuvem negra flipsanck pdf
Nuvem negra flipsanck pdf
 
Primeiras 15 páginas:
Primeiras 15 páginas: Primeiras 15 páginas:
Primeiras 15 páginas:
 
Osho a harmonia oculta
Osho   a harmonia ocultaOsho   a harmonia oculta
Osho a harmonia oculta
 
Cartas de uma morta
Cartas de uma mortaCartas de uma morta
Cartas de uma morta
 
Sonambulismo, êxtase e dupla vista - Livro dos Espíritos - Allan Kardec
Sonambulismo, êxtase e dupla vista - Livro dos Espíritos - Allan KardecSonambulismo, êxtase e dupla vista - Livro dos Espíritos - Allan Kardec
Sonambulismo, êxtase e dupla vista - Livro dos Espíritos - Allan Kardec
 
Midnight Sun de
Midnight Sun de Midnight Sun de
Midnight Sun de
 
Apresentação de Sofia de Mello Breyner Andresen
Apresentação  de  Sofia de Mello Breyner AndresenApresentação  de  Sofia de Mello Breyner Andresen
Apresentação de Sofia de Mello Breyner Andresen
 
Mulheres-Perséfone e sua descida ao submundo através da poesia.pdf
Mulheres-Perséfone e sua descida ao submundo através da poesia.pdfMulheres-Perséfone e sua descida ao submundo através da poesia.pdf
Mulheres-Perséfone e sua descida ao submundo através da poesia.pdf
 
Obra literária "O caçador de palavras" de Walcyr Carrasco
Obra literária "O caçador de palavras" de Walcyr CarrascoObra literária "O caçador de palavras" de Walcyr Carrasco
Obra literária "O caçador de palavras" de Walcyr Carrasco
 
Especial água viva
Especial água vivaEspecial água viva
Especial água viva
 
5 o natal diferente
5   o natal diferente5   o natal diferente
5 o natal diferente
 
Bela e a fera
Bela e a feraBela e a fera
Bela e a fera
 
A Bela e a Fera
A Bela e a FeraA Bela e a Fera
A Bela e a Fera
 
Poetas da contemporaneidade: Adélia Prado, Manoel de Barros e José Paulo Paes
Poetas da contemporaneidade: Adélia Prado, Manoel de Barros e José Paulo PaesPoetas da contemporaneidade: Adélia Prado, Manoel de Barros e José Paulo Paes
Poetas da contemporaneidade: Adélia Prado, Manoel de Barros e José Paulo Paes
 
Santa Benedita Cambiagio
Santa Benedita CambiagioSanta Benedita Cambiagio
Santa Benedita Cambiagio
 
Maria, a Mãe de Jesus
Maria, a Mãe de JesusMaria, a Mãe de Jesus
Maria, a Mãe de Jesus
 

ALMAS EM SONHO JOHNNY MARCUS

  • 3. “Eu não tenho uma alma. Eu sou uma alma. Eu tenho um corpo”. C. S. LEWIS
  • 5. Prefácio do autor “Almas em Sonho” é uma flor colhida no jardim da minha alma. É a luz de amor que propago para o Universo. Assim como a maioria dos romancistas estreantes, não resisti à tentação de incluir um pouco de mim na história. É uma espécie de “Memórias Inventadas” de Manoel de Barros, ou aquilo que chamo de “autobiografia não-autorizada”. Apesar de ter nascido a partir da minha experiência com o Daime, este livro não é sobre o Daime. Muito menos uma tentativa de doutrinação. “Almas em Sonho” é o primeiro passo de uma nova etapa na minha caminhada espiritual. A espiritualidade tem sido muito generosa comigo nos últimos três anos. Amados irmãos de luz me orientaram e inspiraram na conclusão desta obra. Destaque especial para Seu Zé Pelintra, querido companheiro de luta, e minha mentora espiritual Eleanor. Ciente da resistência por parte da crítica literária especializada em relação àquilo que convencionou-se chamar de literatura esotérica, gnóstica, espiritualista ou de autoajuda, meu esforço foi de escrever um romance com toda a sua estrutura de forma a torná-lo interessante a qualquer tipo de leitor. Acima de tudo, “Almas em Sonho” é uma linda história de amor interrompida e retomada no curso de várias encarnações. É a incansável busca do ser humano pelo autoconhecimento, pela Verdade e, consequentemente, por Deus. Limitações de ordem financeira, tão comuns a escritores iniciantes, impediram – por ora - a publicação do livro físico. A disponibilização deste arquivo digital encerra uma agonia de quase um ano, desde que “Almas em Sonho” foi concluído e gentilmente revisado por Marta Cocco e Luiz Renato Souza Pinto. Grande parte foi escrita enquanto eu morava no “Condado da Rainha”, nome informal da paradisíaca chácara onde está instalada a igreja daimista “Mestre Irineu”. A energia do lugar e todos os seres divinos que ali habitam permitiram que eu pudesse trabalhar em harmonia e paz; e para que “Almas em Sonho” exalasse o doce perfume do amor do Cristo Cósmico. Boa leitura. Namastê!
  • 6. 1 - Luz! Luz! Luz! – por várias vezes repetiu mentalmente João Guilherme, depois de dar-se conta do estado em que se encontrava. A princípio, só percebeu fracos lampejos a sua volta. Em seguida, conseguiu distinguir sombras em movimento ainda na penumbra do ambiente. E, de repente, como quando todas as luzes de um lugar são acesas instantaneamente, viu-se coberto pelo brilho da lua cheia que pairava no céu. Em estado de êxtase, olhou para a paisagem com os olhos de uma criança na primeira visita a um bosque. Tudo tinha uma nitidez cristalina e um encanto único. Cintilantes lumes vagavam lentamente e a leve brisa que soprava na noite embalava as flores verde-fosforescentes da vegetação nativa. Os sons naturais da noite se misturavam à uma dulcíssima voz que entoava um cântico quase inaudível. Pequenas esferas brancas de luz flutuavam a certa distância. Às vezes, elas desapareciam para logo depois ressurgirem dilatando-se e assumindo formas que lembravam uma figura humana. Só depois de algum tempo João reconheceu que estava em uma área da chácara onde morava. Temendo uma recaída crônica dos surtos de sonambulismo dos tempos de infância, passou a mão por trás da nuca e sentiu o cordão de prata. Um sentimento de gratidão lhe envolveu a alma por aquilo que considerava uma bênção e fez uma prece pedindo a proteção de seu mentor espiritual. Em seguida, caminhou lentamente pela mata. Ele parecia flutuar tamanha a leveza e a sensação de liberdade. Ao mover-se nesse mundo de densidades mais sutis, como se fosse um fantasma, passava – literalmente - através das plantas e árvores. O contato de seu fluido universal com os da mata causava leves choques de energia. Ele caminhou mais um pouco até chegar a um cantinho que considerava especial. Um pequeno descampado onde havia quatro tocos de madeira que serviam de banquinhos e uma pequena mesa rústica feita a partir de um tronco, onde gostava de ficar em estado de recolhimento, meditando. Era ali que dirigia as preces aos Elementais da Natureza, os espíritos da Terra, Água, Fogo e Ar. Por alguma razão desconhecida, sempre que fazia as orações naquele lugar, embora se esforçasse para em falar em português, era recorrente que as palavras saíssem em inglês – idioma que lecionava há mais de vinte anos. O professor ficou imóvel e em silêncio por vários minutos. Quando ia abrindo a boca para começar a prece, riu ao lembrar que a palavra falada só é necessária no mundo físico. Nas dimensões superiores, a comunicação é feita
  • 7. pela frequência do pensamento. João Guilherme elevou a mente e procurou na memória momentos felizes da vida. Também jornalista e poeta, sempre pedia aos Elementais por inspiração para escrever seus textos e poemas. De plena posse dos olhos da alma, viu formas de luz saírem por detrás, de cima e de dentro das árvores e, pelo que conseguiu entender, rodearam-lhe a dançar uma espécie de ciranda astral. Feixes de energia de todas as cores, especialmente azul e dourada, tomavam conta do cenário. Diante de si passavam imagens de lugares onde lembrava ter estado e rostos de pessoas com quem havia convivido. Sua capacidade cognitiva estava ampliada centenas de vezes. Inúmeros poemas, melodias e textos surgiam simultaneamente. O primeiro instinto foi o de reter o máximo possível daquele turbilhão para escrever a respeito quando voltasse ao estado de vigília, pois sabia que, de volta à matéria, a memória não seria completa. Afligido por esse temor, sentiu um frio repentino. A garganta ficou totalmente seca; teve tonturas, a visão ficou turva e tudo era escuridão novamente. Ele estava de volta ao corpo físico.
  • 8. 2 Como de costume, João Guilherme acordou de olhos fechados. Por experiência, sabia que se os abrisse estaria definitivamente desperto e não pegaria mais no sono. O estado de catalepsia, contudo, permanecia. Por isso procurou relaxar, mas o máximo que conseguiu foi cair em um sono profundo e sem sonhos. Se bem que não ignorava o fato de que sonhamos todas as noites. Mas desta vez, não sonhou mesmo. O corpo ficou imerso em profundo estado de repouso por dez horas até que abrisse os olhos. Agora, de novo no plano astral, não foi preciso repetir mentalmente o comando luz. Ele estava em pé no meio da estrada de chão que dava acesso à sua residência. O sol brilhava intensamente e tinha uma luz cuja beleza excedia qualquer tentativa de descrição. João girou o olhar prestando atenção em tudo e resolveu voltar para casa para fazer uma verificação. É que a maioria dos espíritos desencarnados, diferente do que pregam os supersticiosos, não está nas ruas, encruzilhadas ou cemitérios, e sim dentro dos lares. O professor queria saber que espíritos lhe faziam companhia. Era só preciso tomar o cuidado de não entrar no quarto onde o corpo físico dormia, pois isso o levaria automaticamente de volta a ele. O jornalista flutuou a curta distância que o levou à varanda da modesta moradia. Como acontecia todo dia no meio da tarde, um cristal lapidado em forma de diamante, preso a uma espiral metálica e pendurado na viga de madeira por uma linha de pescar espalhava múltiplos raios coloridos, proporcionando um lindo efeito visual. Vistos com os olhos anímicos, os pontos luminosos ficavam ainda mais fascinantes. Era na pequena área externa que João estacionava a moto estilo custom. Ao dar por sua falta, lembrou-se de ter mandado fazer uma revisão geral para colocá-la à venda, pois planejava comprar uma importada do mesmo modelo. Ele só ficou mesmo cismado com a ausência da rede na qual sempre deitava para ler livros espiritualistas. Quando estava prestes a entrar, ouviu um som inconfundível. Virou-se e viu os dois gatos pretos com quem dividia a casa miando em sua direção. O poeta não gostava de chamá-los de seus. Achava inconcebível um ser vivo pertencer a outro. “Orfeu, irmãozinho! Wicca, bruxinha! O que vocês estão fazendo aqui fora sozinhos?” Os bichanos não correram até o amigo, como sempre faziam. Apenas ficaram miando, fixando o olhar no rumo em que João estava. Wicca tinha sido batizada assim em referência ao termo original para bruxa, em
  • 9. inglês. O nome de Orfeu fora dado por causa do menestrel mitológico, filho de Calíope e Apolo. E também em homenagem ao protagonista da peça “Orfeu da Conceição”, de Vinícius de Moraes. - Fiquei honrado com a lembrança, caro João Guilherme. Muito obrigado! Ouvir aquela voz forte, embora calma, e vinda sabe-se lá de onde, foi um grande susto para o professor. Ele virou-se para todos os lados e não viu ninguém. Pensou nos famosos espíritos zombeteiros. Olhou mais uma vez e nada. Até que, depois de instantes que pareceram uma eternidade, escutou bem atrás de si: - A bênção, João! Ao virar-se, não podia acreditar no que tinha diante de si. Mas era ele. Só podia. Não tinha como errar. O jornalista estava frente a frente com o espírito do poeta Vinícius de Moraes, que então lhe disse: - Meu amigo, meu irmão, não tenha medo. Estou aqui em missão de paz em nome do Nosso Divino Pai Eterno, Deus Todo Poderoso. Saravá! João sabia que espíritos inferiores jamais saudavam em nome de Deus e por isso replicou respeitosamente a saudação inicial imortalizada no samba do próprio Vinícius e Baden Powell. “A bênção! Saravá!” Os olhos azuis do menestrel estavam mais azuis do que nunca. Ele usava uma camisa verde de mangas compridas e uma calça levemente marron. Ambos eram de linho. Os óculos de grau eram idênticos aos que sempre usara em vida. O professor não ousava fazer nenhuma pergunta, uma vez que o poeta tinha dito que viera em missão de paz. “Meu amado irmão, espíritos superiores me enviaram para vir ter contigo. De hoje em diante, passaremos muitos momentos juntos, e tudo será esclarecido paulatinamente”, disse Vinícius após uma pausa. Em seguida, tocando o ombro de João Guilherme com a mão direita, pediu: “Feche os olhos e eleve o pensamento. Nós vamos viajar”. Tomado de súbita coragem e com a cautela para não ser grosseiro ou desrespeitoso, o jornalista indagou: “Perdoe-me pelo ceticismo mas, antes de ir a qualquer lugar, preciso saber se o senhor realmente é quem diz ser”. Vinícius pareceu qualquer coisa ofendido, mas depois sorriu com bondade e respondeu com ternura: “Meu irmão, a tua dúvida é pertinente. Melhor ainda, é saudável. Realmente posso ser qualquer um. Assim sendo, devo esclarecer que faço parte da falange espiritual dos poetas. Você deveria ser capaz de reconhecer um semelhante, já que também faz parte dela. Muito embora palavras
  • 10. bonitas possam ocultar seres de pouca luz, a sinceridade delas não é algo de se imitar. Não foi o supremo mestre Cristo Jesus que ensinou que a boca fala do que o coração está cheio?” João Guilherme envergonhou-se da incredulidade. Percebendo a situação, Vinícius de Moraes chegou bem perto e completou olhando-lhe no fundo dos olhos: “Amado, certa vez lestes um livro sobre mediunidade, lembra-te?” O professor respondeu positivamente com um pequeno aceno de cabeça. - E o que o espírito que ditou o livro disse quando questionado sobre qual era o mais alto grau de mediunidade? - Ele disse que era a intuição. Que é quando entramos em comunicação com o nosso Ser Divino. - Perfeito. Consulte então a intuição e me diga se estou a mentir sobre minha identidade. João Guilherme olhou mais profundamente para os dois pingos de céu que o espírito tinha nos olhos. Em seguida fechou os seus e viu que ele falava a verdade. “Sinto-me honrado pela companhia e aceite minhas sinceras desculpas pela falta de fé”, disse com humildade. O mentor espiritual apenas sorriu novamente e, tocando o ombro de João, arrematou: “Podemos viajar agora?” Instintivamente o jornalista fechou os olhos e um grande clarão, seguido de uma espécie de estrondo, quase o fizeram perder os sentidos. Em seguida, sentiu o corpo suspenso no ar e ser conduzido por um vórtice de luz azulada.
  • 11. 3 “Chegamos!”, exclamou o mentor Vinícius de Moraes. João Guilherme abriu os olhos e reconheceu de imediato a paisagem. Era o lugar mais lindo onde já tinha estado. Os dois espíritos estavam aos pés do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, cidade pela qual o professor nutria uma paixão imensa, apesar de só ter estado lá uma vez e por pouco tempo. Sua alma irradiava alegria diante de tão belo cenário. Ao longe, o sol começava a fazer o trajeto derradeiro de todos os dias, emprestando ao céu e ao mar uma luz rósea. “Rio de sol, de céu, de praia e mar...” cantarolou Vinícius bem baixinho. E virando-se para João, disse com certa pompa irônica na voz: “Eis que o filho pródigo à casa torna”. Diante do espanto do jornalista, prosseguiu: “Sim, irmãozinho. A tua intuição sempre esteve correta. Você já morou mesmo na cidade maravilhosa. E olha que foi em uma época gloriosa”. João Guilherme não sabia o que dizer. Virou-se e viu o Cristo de abraços abertos como a dizer “bem-vindo, meu filho”. Não resistindo, chorou de emoção diante das primeiras estrelinhas que prometiam que aquela seria uma noite divinamente iluminada. - A última vez em que esteve aqui na cidade, você voou de asa delta, não é mesmo? - Sim. E foi uma experiência única. Pena que só durou cinco minutos. O jornalista jamais se esquecera daqueles cinco minutos. Da paz de espírito ao sentir o vento frio no cume da Pedra da Gávea; da adrenalina ao correr, amparado pelo instrutor, rampa abaixo e saltar em direção ao infinito, de entregar a alma à floresta e ao mar que o saudavam lá de baixo e soltar um grito de liberdade reprimido por tanto tempo no peito. “Volare, ô, ô...!”, entoou Vinícius precipitando o corpo ribanceira abaixo. “Você não vem, Joãosinho?”, gritou sem olhar para trás. Despertado pelo chamado e feliz com o tratamento carinhoso, João lembrou-se das oficinas de projeção e daquilo que se denominava volitar, não pensou duas vezes e lá foi realizar seu sonho de Ícaro. Ele alternava o olhar entre o azul do céu e o azul do mar. Flutuando por sobre as águas, imagens aleatórias e não muito nítidas de sua encarnação no Rio de Janeiro lhe vinham à mente. Eles então pousaram na praia de Ipanema. “Onde mais?”, pensou João Guilherme em meio a um sorriso. “Eu ouvi isso”, reprimiu Vinícius simpaticamente. Era óbvio que sendo o pensamento a forma de comunicação no astral, não havia espaço para segredos - concluiu o professor.
  • 12. O poeta parou em frente ao mar no que parecia ser uma atitude de oração e permaneceu assim por vários minutos. Em seguida, entrou na água com roupa e tudo e desapareceu. O professor só conseguiu vê-lo novamente quando já estava a pelo menos cinquenta metros da praia, por cima da imensidão azul. - E Vinícius de Moraes caminhou sobre as águas – pensou João Guilherme. - Eu ouvi isso também! - respondeu o mentor em meio à uma gargalhada. O jornalista foi até onde Vinícius estava e ficou ao seu lado. “Já perdi a conta das vezes que recitei ‘Minha Namorada’”, confessou constrangido. “E eu não sei? Meu irmão, se não me engano, você recitou esse poema para todas as suas namoradas”, comentou Vinícius dando destaque para o “todas” e aumentando o constrangimento de João. - Mas os poemas de amor não foram escritos para serem recitados às mulheres? - Poema é coisa séria, querido. Se você fizesse ideia do que ele causa na cabeça e no coração de uma mulher...! A propósito, por que você não recitava os teus próprios? - Nunca me senti muito à vontade para declamar minha poesia. Sempre a achei meio chinfrim. Mas uma vez escrevi um poema de uma só estrofe que me deixou muito feliz. - E como era? - “Vivo ao lado da poesia,/ nela me completo./ De costas pro mundo./ De frente pro verso”. Bonito, né? - Obrigado! -Hã?! Como assim, “obrigado”? - Fui eu quem lhe soprou isso. Fim de noite no bar do Chicão. Como sempre, sozinho na mesa do canto. Terceira cerveja. Usou o guardanapo para escrever. Correto? João Guilherme ficou impressionado. Tinha sido isso mesmo. Vinicius então lhe explicou que muito da produção musical e poética de grandes artistas era, em parte, o tipo de psicografia classificada como inspirada - que ocorre quando o espírito sugere o texto à pessoa através do pensamento. - Mas eu só sugeri os dois últimos versos. Os dois primeiros são da tua lavra mesmo. - E o que achou? - Chinfrins!
  • 13. Percebendo o abatimento de João com a crítica negativa, Vinícius abraçou-o de lado e falou ternamente: “Ninguém nunca se tornou poeta, mas poeta de verdade, vivendo “ao lado” da poesia. O mais correto seria dizer “na” poesia. Estar ao lado não significa necessariamente estar com. A poesia é uma mulher possessiva, ciumenta. Ela não admite ser dividida com ninguém. Ou você se entrega de corpo e alma ou nada feito. Fazer poesia ou samba não é contar piada. Você precisa ressuscitar a veia poética, meu filho”. Os homens ficaram em silêncio e o céu agora estava coberto de estrelas e o reflexo prateado da lua cobria os espíritos que flutuavam sobre o mar calmo. De repente, ouviu-se ao longe um som que parecia o início de um tremor. Como não se lembrava de ter presenciado um maremoto, o jornalista afirmou: “Ouço um tropel nas ondas do mar”. “É Ogum com seus cavaleiros”, esclareceu Vinícius de Moraes. O barulho foi ficando cada vez mais intenso. O coração de João Guilherme batia na mesma intensidade daquelas centenas de cascos que se aproximavam. E eis que ao longe, sob a luz da lua cheia e do manto estelar que iluminavam a noite da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, surge ele, o Orixá guerreiro, rodeado por seu exército. O Rei Ogum apeia de seu cavalo branco e caminha até Vinícius de Moraes. O poeta ajoelha-se com a perna esquerda, deixando a direita de apoio. Com a mão esquerda fechada ao lado do corpo, bate com o punho cerrado da mão direita no peito e exclama em alta voz: “Ogu yê!” O rei de ébano retribui a saudação sem, contudo, curvar-se. A princípio João fica sem saber como agir, até que instintivamente repete os mesmos gestos de Vinícius. A entidade o saúda de volta, também sem curvar-se e o encara. O professor vê centenas de estrelas, luas, planetas e sóis nos olhos do Orixá. Ogum oferece ajuda para que João Guilherme se levante. Agora o Rei guerreiro coloca as mãos sobre cada ombro do jornalista e diz com voz de trovão: “O amor e o perdão são as forças mais poderosas do universo, meu filho. Que o Divino Pai Eterno, Jesus Cristo Redentor e a Virgem Mãe Maria Santíssima lhe abençoem com a coragem e a humildade para fazer o que deve ser feito”. Ogum ainda olhou para João mais uma vez antes de virar-se, montar em seu cavalo e depois de dar ordens aos seus generais, sumir na imensidão do mar, com a mesma pompa e circunstância com que tinha chegado. João Guilherme levantou os olhos como que a procurar alguma explicação para o que tinha acabado de acontecer, mas só viu clarões de luz que lembravam remotamente uma aurora boreal.
  • 14. De volta à areia, manteve-se em silêncio por um longo tempo. Por mais que tentasse, não conseguia acessar os arquivos de memória de sua encarnação no Rio de Janeiro. Obviamente, a chave para a sentença misteriosa de Ogum. “Não se esqueça de que você ainda está encarnado”, disse o guia espiritual Vinícius de Moraes, surgindo ao seu lado, para em seguida completar: “A matéria é forte impeditivo para muitas ações aqui nas esferas mais sutis. Eu sei que o que você mais quer agora são respostas e elas virão quando tiverem de vir”. - E qual o próximo passo? - Divertir-se! Ante o olhar surpreso do amigo, o anjo poeta acrescentou: “E para onde vamos, você tem de estar vestido apropriadamente”. Como que em um passe de mágica, o professor agora trajava um paletó e calça de linho na cor creme. A camisa, também de linho, era marrom escura e ele não usava gravata. Como último acessório, tinha um chapéu marron de pêlo na cabeça. - Para onde vamos, Vinícius? - Para o único lugar onde ele pode estar. - “Ele”? Ele quem? E que lugar é esse? - Na Lapa, Joãosinho, na Lapa!
  • 15. 4 Era cedo quando João Guilherme e Vinícius de Moraes chegaram. A Lapa ainda estava relativamente vazia. Somente alguns bares tinham clientes sentados às mesas postas na calçada. João gastou um bom tempo olhando para os arcos por onde, há muitos anos, passavam os trens. - Jão das Letras! E não é que quem é morto sempre aparece? Surpreso com a saudação gritada, o jornalista olhou para trás e facilmente identificou o rei da boêmia carioca. Terno branco completo, sapatos de cromo, gravata vermelha e chapéu panamá branco. Era Zé Pelintra, o Exu malandro. O guia aproximou-se de João Guilherme e lhe deu um forte abraço. “Salve, mestre!”, disse em meio ao enorme sorriso. “Mestre?”, indagou João. “E como não? Vinícius, meu irmão, o que aconteceu com a memória do menestrel?”, inquiriu seu Zé com sarcasmo. “Cavalheiros, vamos nos sentar”, sugeriu o poeta. Zé Pelintra e Vinicius sentaram-se normalmente, mas quando João tentou fazer o mesmo, passou direto da cadeira e afundou-se no chão. A situação inusitada provocou gargalhadas nos espíritos desencarnados. “Joãosinho, use o poder anímico para manipular o fluido universal da cadeira para que então você consiga se sentar”, orientou Vinícius de Moraes. Meio sem jeito, João pediu orientações mais claras. Seu Zé riu novamente e explicou: “Apenas deseje sentar-se, mestre”. O professor obedeceu e desta vez teve sucesso. Constrangido pelos olhares fixos dos colegas em sua direção, João Guilherme virou-se de lado e viu, no plano físico, uma bonita loira que passava. “Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça...” gracejou Vinícius. “Isso é de fazer virar a cabeça de qualquer homem, não é mesmo mestre?”, provocou Zé Pelintra. João, por sua vez, não disse nada. O silêncio da mesa só foi quebrado por Vinícius de Moraes alguns minutos depois. “Amado irmão Zé, João ainda está encarnado e não se lembra totalmente de sua encarnação aqui no Rio. Fui instruído por espíritos superiores a procurá-lo e depois vir até você. Temos de ajudá-lo em uma missão”. Dito isso, pediu que os três dessem as mãos, fechassem os olhos e pensassem em Jesus Cristo. “Divino Pai Eterno, vós que sois todo poder e bondade, abençoai-nos com a Vossa luz no caminho que devemos trilhar. Que o amor de Cristo Jesus e da Virgem Maria Santíssima esteja em nossos corações para que o perdão, a justiça e a verdade prevaleçam”, orou. João Guilherme sentiu o corpo todo estremecer e a cabeça girar – o que fez com que seu Zé Pelintra e Vinícius lhe
  • 16. segurassem mais forte as mãos. A mente foi bombardeada por fortíssimos raios de luz e ele começou a suar frio. A situação incômoda fez com que o jornalista vomitasse várias vezes. Quando os batimentos cardíacos se estabilizaram, começou a ouvir centenas de vozes. Ao abrir os olhos, viu uma pequena multidão de pessoas conversando animadamente pelos bares da Lapa. Somente três homens, em uma mesa à parte, estavam calados. “Até que a gente era bonito, não é mesmo?”, brincou Vinícius de Moraes. “Eu continuo bonito até hoje”, protestou Zé Pelintra. Mais uma vez, o professor manteve-se em silêncio.
  • 17. 5 Entre os três, João – o mais velho – é quem tinha o semblante mais pesado. Naquela época, ele não se chamava João Guilherme Ribeiro, mas sim João Maria de Albuquerque – um dos escritores mais conceituados do Brasil. Além de escrever poesias, também fazia sucesso com romances. Cultuado pelos aspirantes a poeta da época, foi assim que conheceu o ainda rapaz Vinícius de Moraes, que havia terminado a faculdade de Direito recentemente. João Maria, ou “Jão” das Letras – alcunha que recebeu do inseparável parceiro da boêmia José Gomes da Silva. Apesar da fama, do dinheiro e de ser casado com uma das mulheres mais lindas do Rio de Janeiro, Marina Vital – João não era um homem feliz. Sua obra por vezes deixava transparecer um homem atormentado pela dor. E para aplacá-la o poeta se embriagava, noite após noite, junto com Zé Gomes. No chiste entre amigos, enquanto Zé o chamava de Jão das Letras, este o chamava de “Zé Pelintra” – de certa forma, um jeito de carinhoso de dizer “pilantra”, como alternativa ao termo “malandro” – ainda não em voga. Zé Pelintra era um negro forte e alto, oriundo de Pernambuco. Falastrão e conquistador inveterado, era o contraponto de João Maria, sempre recatado e discreto. A primeira mesa no bar do Pereirinha era cativa dos dois. Ali “ficavam ébrios como cavalheiros”, como explicava Zé Gomes. Muitos dos mais belos sonetos do escritor foram compostos nessas noites. O jovem Vinícius havia conquistado a simpatia dos boêmios veteranos com suas poesias e ia ter com eles pelo menos duas vezes por semana. Como João era “o” poeta, Vinícius passou a ser chamado por Zé de “poetinha”. Mas naquela noite o clima estava pesado entre os três amigos. Zé Pelintra, mulherengo incorrigível, havia se engraçado para o lado de uma loira lindíssima - e casada. A mulher não havia gostado dos gracejos e, farta com a insistência, contou tudo ao marido. Este, por sua vez, fez saber na Lapa que, naquela noite, queria encontrar-se com Zé Gomes para tomar satisfações. Zé Pelintra, inconsequente como sempre, comemorou o fato. “Pronto! O corno vem aqui me desafiar e eu acabo com ele”, disse passando a mão pelo cabo de osso do punhal“. E como prêmio, ganho uma deusa loura”, contou olhando para João, como que a esperar por aprovação. Mas o poeta não pronunciou uma única palavra e sorveu lentamente mais um gole de uísque e fechou os olhos como que a reviver algum sonho distante. João Maria pensava no próprio casamento, marcado por brigas e ciúme, que só se mantinha na aparência. E para piorar, a
  • 18. esposa não podia ter filhos – verdadeira obsessão do escritor. A situação tinha ficado insuportável quando Marina achou no bolso do paletó dele uma carta com letra e perfume de mulher. Na pequena correspondência, que não tinha assinatura, lia-se: “João, meu poeta adorado, minha vida nunca mais pode ser a mesma depois que lhe conheci. Nossas noites de amor reacenderam o fogo da paixão em meu coração. Quando estou em teus braços sinto-me uma mulher em toda a plenitude. Cada instante longe de ti é como um açoite à minha alma. Por favor, liberte-me dessa prisão que tem sido a minha vida neste casamento mentiroso. Eu não o amo. Amo somente a ti, bem o sabes. Vamos embora para longe. Podemos ser felizes em qualquer lugar. O que ainda te prende aqui? Estou disposta a tudo pra ficar ao teu lado. Em breve nascerá o fruto do nosso amor. Em pouco tempo não será mais possível esconder minha situação. Por favor, João, não vire as costas pra mim. P.S.: Muito obrigada pelo poema publicado no jornal. Chorei de emoção”. O conteúdo da carta foi como uma bofetada para Marina. Agora estava claro o porquê de João quase não procurá-la, da frieza e irritação constantes. Naquela madrugada, quando o esposo chegou, a mulher decidiu confrontá-lo pela última vez. “Então quer dizer que o senhor tem um caso com uma mulher casada e ainda por cima vai ter um filho com ela? Que linda atitude para o respeitado escritor João Maria de Albuquerque, não é mesmo?”, gritou com a carta na mão, em um tom ao mesmo tempo sarcástico e ameaçador. Como de costume, João não esboçou nenhuma reação. Depois de alguns instantes e com um semblante austero, encaminhou-se em direção à esposa, tomou-lhe a carta das mãos e trancou-se no escritório até o amanhecer. “Fidelidade... afinal, o que significa fidelidade?”, com estas palavras de Vinícius de Moraes, João Maria foi trazido de volta à realidade. “O que o senhor acha?”, quis saber do mestre o jovem poeta. “Por que a pergunta, filho?”, retrucou. “É que o nosso amigo Zé está tentando me convencer que a fidelidade é um conceito relativo e que, dependendo das circunstâncias, não precisa ser levada em conta. Eu já penso que a fidelidade é fruto do amor genuíno, imortal”, explicou Vinícius. João – que nunca dizia nada de pronto – pensou por um momento e respondeu com voz pausada. “A fidelidade é uma convenção social. Uma forma mesmo de controle, quase sempre calcada no outro. Eu quero
  • 19. dizer, via de regra, o exercício da fidelidade é praticado em favor de algo ou alguém em detrimento de nós mesmos. Nesse ponto, concordo com o amigo Zé que ela não deva ser absoluta”, ponderou. “Então a fidelidade no amor não é pressuposto inquestionável?”, quis saber mais Vinícius. “O amor não é imortal, meu poetinha”, respondeu João Maria secamente. “O amor é uma chama cuja força varia de acordo com o sopro do vento. Ou seja, de acordo com a intensidade de cada momento”, completou. “Pois então que seja infinito enquanto durar”, intrometeu-se Zé Pelintra em voz alta. “E o amor da minha deusa loura pelo marido já durou o que tinha de durar. O amor dela agora é meu e juntos vamos vivê-lo em cada vão momento”, comemorou. João tomou mais um gole de uísque e olhando para o amigo de longa data, quis saber: “Zé Pelintra, meu irmão da noite, o que o faz pensar que essa mulher também lhe tem afeto?” Como era de seu feitio, Zé Gomes esboçou um sorriso e replicou ao companheiro: “Lembra quando o amigo passou uma semana em São Paulo, no mês passado? Pois bem, eu, claro, não deixei de frequentar o nosso ponto – até teu copo ficou colocado aí. Acontece que por três noites seguidas essa mulher, essa deusa loura, ficou andando aqui pela Lapa como que a procurar alguém. Ela não tinha jeito de dama da noite, eu as conheço bem, como bem sabeis. Mais de uma vez ela me olhou e quase veio falar comigo. Mas quando eu fazia menção de me levantar, ela virava as costas”, explicou. “E o senhor acha que ela estava à vossa procura, Seu Zé?”, interrompeu Vinícius. “E não? A minha fama de bom amante já se espalhou por toda a cidade maravilhosa e mulheres de todos os cantos vêm me procurar. Mas depois ela sumiu e aí eu é que fui procurá-la. Acredita que a danada deu uma de difícil?”, respondeu Zé Gomes sem nenhuma modéstia. O que era somente uma desconfiança tornou-se uma certeza para João Maria. A deusa loura de Zé Pelintra era a sua amante Amparo, esposa do sargento Savério. Após elegantemente pedir licença aos colegas, o escritor levantou-se e foi ao banheiro. Enquanto lavava o rosto, olhou-se no espelho e pela primeira vez na vida, sentiu vergonha de si mesmo. A teoria da imortalidade do amor defendida por Vinícius havia mexido consigo. “Essa mulher sabe que você é casado?”, lembrou-se dos gritos furiosos de Marina. “Parece que não, para ela ter a petulância de perguntar, como é mesmo? ‘O que ainda te prende aqui?’”, a voz da jovem esposa ecoava em sua cabeça. Mas sim, Amparo sabia que João era casado. Entretanto, Zé Pelintra, seu melhor amigo, ignorava que os dois tinham um caso e o marido não tinha conhecimento que
  • 20. ela esperava um filho de outro homem. Essa situação poderia ser um golpe terrível na reputação do escritor e acabar de vez com as pretensões de ser admitido na Academia Brasileira de Letras. A vergonha que sentia era por importar-se muito mais com o status social que com “a outra”, a quem realmente amava. Em um inédito acesso de fúria, João Maria cerrou o punho direito e esmurrou o vidro do espelho até quebrá-lo. A lua estava alta no céu quando João voltou à mesa. Zé Gomes e Vinícius estranharam a mão ensanguentada, mas não ousaram perguntar nada, dado o estado visivelmente alterado do escritor. Em seu íntimo, ele sabia que aquilo não acabaria bem. Algo de trágico se anunciava para aquela noite. Mas como demover Zé Gomes da ideia fixa de conquistar a mulher matando-lhe o marido? A Lapa estava lotada e o som de música e de pessoas conversando começou a provocar tonturas em João Maria. A vontade era de sair dali imediatamente, porém não podia abandonar o amigo. A situação permaneceu inalterada ainda por mais uma hora. Nesse ínterim, o trio trocou pouquíssimas palavras e o estado de embriaguez começava a se manifestar. “Talvez, afinal de contas, o sargento não venha tomar satisfações”, supôs João, um pouco mais aliviado. Se assim fosse, considerou fortemente a possibilidade de fugir com Amparo para a Inglaterra, onde tinha estudado na juventude e possuía muitos amigos. “Covarde! Covarde! Covarde! Mil vezes covarde!”, esbravejou Zé Pelintra em pé e com a faca em punho. “Eu sou José Gomes da Silva, batizado por meu querido poeta, Jão das Letras, de Seu Zé Pelintra. Sou o rei da noite e comigo ninguém pode. Que todos saibam que existe um homem na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, cujo nome não sei e nem quero saber, que não honra as calças que veste e tem medo de defender a honra da mulher”. Enquanto Vinícius apenas ria da performance teatral de Zé Gomes, julgando não passar de mais um de seus rompantes, João Maria tentou acalmá-lo. Ato inútil, Zé Pelintra ficou ainda mais irritado e desta vez subiu na mesa para dizer novamente tudo o que havia dito antes. Por uma fração de segundos a música parou e nenhuma voz se ouviu. Zé Gomes ainda lançou mais uma vez seu brado aos céus. Quando finalmente se calou, ficou olhando para a lua e as estrelas, que naquela noite tinham um brilho diferente. “Safado!” A ofensa, dita em voz alta, rompeu a quietude do ambiente. Zé virou-se para ver de onde partira tamanho desrespeito. Mal tinha olhado para trás, ouviu o estampido seco do revólver do sargento Sáverio. O tiro acertou em cheio o rosto de José Gomes da Silva, o lendário Zé Pelintra. Movido por uma força desconhecida, João Maria lançou-
  • 21. se contra o militar em uma luta de vida ou morte. Vinícius de Moraes e os outros habitués não ousaram intrometer-se. No calor da briga, a arma de fogo foi lançada para longe e foi nervosamente apanhada pela mulher loura que acabara de chegar ao local. Seu grito agudo fez com que os dois interrompessem a contenda. “Parem com isso. Se não, eu acabo com a minha vida agora mesmo”, disse apontando o revólver contra o ouvido. Diante da iminência de uma tragédia, Savério e João concordaram com uma trégua e se desvencilharam. Contudo, a mulher mantinha a mesma atitude de ameaça. Uma mistura de ódio e incompreensão dominava o olhar do militar e ele não pronunciou uma única palavra. Como a amada mostrava-se resoluta, João Maria ignorou as consequências e pôs-se a falar. “Amparo, minha vida, minha estrela matutina, eu te imploro, não faça isso. Abaixe essa arma. Pense no nosso amor, pense no nosso filho que está para nascer”, balbuciou com a voz sôfrega. A inusitada declaração pública de amor provocou na mulher um pranto convulsivo. Lentamente João se encaminhou a ela e, tirando o paletó, envolveu- a num terno abraço e cuidadosamente tomou-lhe a pistola da mão. Ao fazer isso, nem se apercebeu do terrível erro que acabava de cometer. O rival, agora mais louco de ódio do que nunca por descobrir que a esposa tinha um caso secreto e ainda por cima esperava um filho de outro homem, em um misto de desespero e desejo insano de vingança, sacou de outra arma que trazia escondida no coturno e precipitou-se em direção ao casal. “Desgraçada! Eu te mato, sua prostituta!” Novamente impelido por uma força desconhecida, João Maria entrou na frente da amante protegendo-a com o próprio corpo. O tiro, à queima roupa, atingiu- lhe o peito, próximo ao coração e o fez tombar. Antes que pudesse disparar outro tiro, Savério foi contido por Vinícius de Moraes e os garçons do bar. Em pânico, Amparo apertou o corpo de João Maria contra si e, vendo que o amado ainda respirava, clamou por socorro. Com dificuldade, os olhos do poeta encontraram os da musa. Sua voz era apenas um sussurro. - Amparo... amor da minha vida... me perdoe... eu te imploro... cuide de nosso filho... diga que lhe amo... faça com que ele... tenha orgulho de mim... - Não, não, não, meu amor! João, você não vai morrer. Eu te proíbo! Nós vamos criar nosso filho longe daqui, na Inglaterra, como sempre sonhamos. Meu amor, em nome de Deus, por tudo o que é mais sagrado, não me deixe. “Não me deixe” – ironia das ironias, o primeiro e o último encontro entre João Maria e Amparo terminavam com a mesma súplica.
  • 22. Naquela manhã de domingo, há exato um ano, o sol iluminava a cidade com um brilho carinhoso. Não se via nenhuma nuvem e o azul do céu e o azul do mar eram como o reflexo um do outro. João Maria de Albuquerque participava de um café da manhã especial junto com outros escritores na aristocrática Confeitaria Colombo. Os homens das letras se alternavam na leitura dos próprios poemas e de autores estrangeiros. Porém, mais do que a paixão pela poesia em si, havia uma enorme competição de egos como pano de fundo no sarau. E para tanto valia toda sorte de exibições, como recitar em outros idiomas. Nisso João era mestre. Poliglota e dono de uma voz grave, ele declamava William Shakespeare, Pablo Neruda, Charles Baudelaire e Catulo no original. Especialmente inspirado, recitou – de memória – o famoso monólogo “To be or not to be” do príncipe Hamlet, da peça homônima. O escritor sabia que o desempenho seria primordial na batalha que travava com o romancista Sebastião de Mello pela cadeira vaga na Academia Brasileira de Letras. Depois de declamar, obteve muitas palmas e passou a vez para o concorrente. Enquanto Mello recitava, João sentiu estar sendo observado. Ainda demorou um momento até que olhasse de lado. A princípio não notou nada de anormal nas pessoas ao redor, atentas à performance do adversário. Mas então, como quando o céu se abre depois de uma tempestade por detrás das nuvens, João Maria deparou-se com o mais lindo par de olhos azuis que já tinha visto na vida. Ela tinha traços finos, estatura mediana e corpo esguio. Só com algum esforço, o poeta conseguiu notar o dourado dos cabelos por baixo da touca. Foi quando prestou atenção no resto do uniforme e ficou claro que se tratava de uma das várias atendentes da confeitaria. João Maria agora era escravo daquele olhar azul celeste. Inútil a tentativa de não encará-la. Ainda que timidamente, a moça sorriu e João quase derrubou o café. Ela sorriu novamente e ele tentou disfarçar cofiando o bigode. Nesse momento o sorriso encantador da jovem desapareceu e o constrangimento ficou nítido. Sem perceber, João tinha feito o movimento com a mão esquerda e a aliança de ouro no dedo anelar refletiu a luz da manhã ensolarada. Quando a sessão de leitura terminou, o poeta procurou inutilmente pela linda mulher que havia lhe provocado um turbilhão de emoções no coração. Mas não se deu por vencido. Oferecendo uma pequena gorjeta ao rapaz do caixa, inquiriu com certo ar de desinteresse o nome da moça. “Amparo”, foi a resposta. O escritor saiu da confeitaria junto com os colegas escritores, mas só foi até a esquina. Andou mais um pouco e viu algo que podia dar-lhe novo alento, uma
  • 23. chance de desfazer a má impressão deixada. E o que seria melhor do que um buquê de rosas? Agora só faltava um cartão com a mensagem certa. Metódico e perfeccionista na composição de seus versos, nunca passara pela aflição de escrever algo às pressas. Após alguns torturantes instantes, caprichou na caligrafia: “Amparo, Em teus olhos estão todos os azuis da natureza. O azul dos mistérios do mar; o azul da liberdade do céu e o azul delicado da borboleta que deixa um beijo de amor em cada rosa que visita”. Em seguida, pagou nova gorjeta para que um menino entregasse as flores sem demora. Enquanto esperava o guri voltar, ficou lendo o jornal. E qual não foi a surpresa quando viu o garoto, na porta do estabelecimento, lhe apontando? A primeira reação foi virar as costas e sair andando. Todavia algo muito mais forte o impediu. Ele quedou-se mais surpreso ainda quando Amparo, com as flores em mãos, veio em sua direção. Habituado a falar para multidões, João Maria ficou desconcertado quando a mulher parou diante de si. “Eu só vim agradecer pelas flores e pelo cartão. Gostei muito, mas não posso aceitar”, disse com voz firme. “Por favor, eu insisto”, retrucou o escritor. “Mas o senhor é casado. Isso não está certo”, rebateu. “Sim, não nego que sou casado. Eu não costumo ficar de paqueras, mas é que a senhorita é muito linda e mexeu deveras comigo”, tentou explicar. Por um momento, nenhuma palavra foi pronunciada enquanto o homem e a mulher se olhavam ali no meio da calçada. Finalmente ela tomou a iniciativa. “O senhor é um homem muito galante e deve se divertir às custas de moças inexperientes como eu. Peço que aceite as minhas desculpas pelo constrangimento que lhe causei lá dentro da confeitaria”. Agora não era mais somente a beleza de Amparo que chamava a atenção do escritor. A sua voz doce era um complemento perfeito à sua eloquência. Outra vez ela fez menção de devolver o buquê, mas João antecipou-se: “Queira me perdoar pela grosseria. De forma alguma eu quis lhe desrespeitar. Só peço que fique com as flores. Que elas possam embelezar o teu dia, assim como você embelezou o meu”. Ela sorriu. Depois de agradecer novamente, virou-se e sumiu no meio da multidão. O poeta ainda ficou parado, como que em estado de transe. “E então, voltas no mesmo
  • 24. bonde que nós?”, foi essa pergunta, feita pelo escritor Sebastião Mello, que fez com que João Maria retornasse ao momento presente. “Agradecido pela gentileza da oferta, caros amigos, mas acho que ainda vou ficar mais um tempo por aqui, haja vista que a minha senhora foi visitar os pais em Petrópolis e estou sozinho em casa”. Livre de olhares curiosos, João agora usaria de uma de suas maiores virtudes: a paciência. Como não sabia a que horas Amparo sairia do trabalho, sentou-se estrategicamente na direção da porta da frente do comércio e pôs- se a esperar. Somente duas horas depois é que a mulher que havia lhe encantado os olhos apareceu na rua, já sem o uniforme. Seus cabelos loiros e ondulados iam até um pouco abaixo do ombro. Ela usava um vestido branco com detalhes floreados e a silhueta das pernas se insinuava sob o reflexo do sol. Quando notou que João Maria caminhava em sua direção, a primeira reação foi sorrir de forma a explicitar o contentamento. Depois se conteve, ao lembrar-se do estado civil do poeta que tanto admirava. “Com licença, senhorita Amparo. Se me permite, gostaria de falhar-se por alguns instantes”, interpelou. “Não sei se seria prudente, senhor João Maria”, respondeu enfatizando a palavra senhor. “Por favor, não me tome por inconveniente, mas eu insisto”. Após hesitar um pouco, Amparo resolveu dar-lhe a atenção solicitada. “Muito obrigado pela gentileza, senhorita. Posso convidá-la para um sorvete?” Convite aceito, os dois caminharam por algumas quadras até encontrarem um local discreto. Embora não soubessem explicar, João e Amparo sentiam como se aquele fosse um reencontro depois de longa separação. A jovem contou que era natural do Rio mesmo e que aquele trabalho era apenas temporário. Com o salário, compraria um piano usado e voltaria a dar aulas, ofício que exercia antes de ter de vender o instrumento para ajudar no tratamento da doença da mãe. Por sua vez, o escritor falava da tristeza de viver um casamento de aparências com uma mulher que não podia lhe dar filhos. A conversa durou por quase três horas até que ambos não conseguiam mais disfarçar o fogo da paixão que se acendia. “Você confia em mim?”, disse João olhando profundamente nos olhos azuis da moça. “Sim, confio”, respondeu ela sem pensar. Mandando a discrição às favas, João Maria tomou-a pela mão e chamando um cocheiro, dirigiram-se para um hotel no centro da cidade. Já era tarde da noite quando o casal parou de fazer amor. Amparo não morava muito distante de João iria lhe garantir o transporte. Ainda na cama, beijaram-se longa e ternamente. Insegura por ter acabado de perder a
  • 25. inocência, ela repousou a cabeça no ombro do poeta e pediu: “Por favor, não me deixe...” Nunca havia se ouvido silêncio tão profundo na Lapa. Dois de seus mais ilustres frequentadores haviam se encontrado com a morte. Foi o jovem Vinícius de Moraes que fechou os olhos do poeta e, após ajudar Amparo a se levantar, cobriu o corpo do mestre estendido no chão frio. O poetinha fez o mesmo com José Gomes. Seguindo uma inspiração sobrenatural, propôs um brinde aos reis da noite. Uma dose de uísque foi colocada ao lado de cada corpo e, erguendo os copos, todos os boêmios fizeram um brinde de despedida a Jão das Letras e Zé Pelintra. Em seguida, Vinícius recitou um dos mais conhecidos sonetos de João Maria de Albuquerque. Somente Amparo não prestou atenção. O único ânimo que tinha para viver estava em seu ventre, filho do homem que amava e que agora jazia morto.
  • 26. 6 Ao despertar, mais uma vez de olhos fechados, tudo que João Guilherme percebia eram cores. Infinitas cores. Sentia como se o corpo estivesse flutuando muito acima do chão, embora o coração estivesse pesado. Reviver cenas de uma encarnação anterior tinha mexido muito consigo. Repentinamente, foi acometido de uma crise de choro. A separação trágica da amada dilacerava-lhe a alma. Tentou abrir os olhos ou pelo menos mover alguma parte do corpo. Inútil. Instantes depois, adormecia de novo. “Meu amigo, hora de abrir os olhos!”, a voz era de Zé Pelintra. Com muito esforço João conseguiu atender ao pedido do compadre. A alguns metros, Vinícius de Moraes fez uma saudação com um sorriso. “Onde estamos?”, indagou o professor. “Nós estamos onde você quiser. Imagine um lugar e pronto - estaremos lá”, explicou o exu. O jornalista imaginou o Corcovado. Durante alguns minutos os três amigos nada disseram. Até que Vinícius, levantando-se do degrau onde sentava, olhou para João e falou: “Bem, uma parte da história você já conhece”. “Meu Deus... tudo isso é demais pra minha cabeça”, desabafou João. ”Joãosinho...” antes que o poetinha completasse a sentença, o professor perguntou com ênfase: “E o que aconteceu a Amparo? E ao meu filho?”. Novo silêncio. “Filha, Jão, filha...” esclareceu por fim Zé Pelintra. “Muito bem cavalheiros, vamos direto ao ponto”, estabeleceu Vinícius de Moraes. “Antes que a história toda seja revelada, é preciso que você se encontre com alguém”, completou. O jornalista respirou aliviado ao inferir que o encontro seria com Amparo. Só podia ser. A convicção era tanta que ele nem se deu ao trabalho de pedir qualquer esclarecimento aos amigos. “E o que estamos esperando? Vamos logo”, alvoreceu-se. “Onde você vai, compadre, Vinícius e eu não podemos ir. Só desejamos que tenha a coragem e a humildade de fazer o que deve ser feito”, exortou Zé Pelintra. Coragem e humildade – essas tinham sido exatamente as palavras de Ogum quando do encontro na praia de Ipanema. João Guilherme respirou fundo e, fechando os olhos, fez uma prece silenciosa ao rei guerreiro. Quando terminou, Vinícius de Moraes e Zé Pelintra tinham desaparecido. O poeta olhou ao redor de si e nada viu. O silêncio era sepulcral. Uma leve brisa começou a soprar. A brisa ficou então mais forte e um calafrio atravessou-lhe o corpo. Ele não resistiu ao choque e caiu de joelhos no chão.
  • 27. João não precisou olhar para trás para sentir a forte presença que havia se manifestado. “Amparo?”, perguntou timidamente. “A cara está diferente, mas você continua o atrevido de sempre, não é mesmo?”, foi a resposta que teve. Virando-se, João Guilherme defrontou-se com o homem pelo qual tinha sido morto: Sargento Savério. - Desgraçado, você acabou com a minha vida, poeta de merda. - E você com a minha. - Você tirou de mim a única pessoa que amei. - Um homem não espanca a mulher que diz amar. - Não quando a mulher é fiel. Depois da primeira vez com Amparo, muitas outras se sucederam. A ponto de João Maria alugar uma casa somente para esses encontros. A intenção era que a amante morasse definitivamente na residência, até que ele se separasse da mulher. Entretanto, a jovem preferiu continuar morando com os pais. Depois de quase um ano de espera e como a separação prometida nunca acontecia, seguindo os conselhos da mãe, ela resolveu encerrar o romance e finalmente dar uma chance ao recém-promovido sargento do exército, Savério Anunciação. O ambiente foi sendo tomado por uma forte luz vermelha. Os dois homens se olhavam com profundo rancor. Foi quando João Guilherme teve a nítida impressão de já ter visto o militar na atual encarnação e em alguma anterior a do Rio de Janeiro. “A sua sorte é que não tenho a permissão de acabar de vez com você”, bradou Savério. O jornalista não replicou a provocação. Apenas fechou os olhos. “Coragem e humildade”, as palavras do Rei Ogum vieram-lhe forte no coração. “Meu irmão”, começou a dizer com serenidade na voz, “realmente o que fiz foi errado. Eu desonrei a tua esposa e a minha também. Tudo em nome do orgulho. Amparo foi a melhor coisa que me aconteceu na vida. Eu a amava do fundo do coração, mas isso não me dava o direito de fazer o que fiz”. Um profundo sentimento de vergonha inundava a alma de João Guilherme. No caminho espiritual que havia escolhido, a evolução moral era algo levado extremamente a sério. E era isso que buscava de todo o coração. Ele sabia que devia controlar as paixões e os pensamentos para não ser dominado pelo ego. E foi pensando no Cristo que conseguiu harmonizar-se e de seu coração começou a fluir uma pequena esfera de luz alaranjada. O brilho foi se expandindo e a sinceridade das palavras do poeta de alguma forma tinha mexido com o
  • 28. sargento. O tom rubro de seu rosto começou a desvanecer. “Por que você não se casou com ela quando pôde? Era só você ter se separado da sua mulher”. “Eu tive medo. Parece que minha vida toda foi sempre marcada pelo medo. Mas perante o Divino Pai Eterno, que nos colocou frente a frente novamente, eu peço humildemente o teu perdão. Eu ainda estou encarnado e agora fica óbvio que os espíritos superiores me trouxeram aqui para isso”, disse João, de cabeça baixa. Confuso com o que acabara de ouvir, Savério hesitou por um breve instante. Mas logo as lembranças da humilhação sofrida e do desprezo de Amparo desencadearam uma forte onda de energia negativa em seu íntimo e, envolto novamente por uma luz rubra, respondeu: “Depois de morto todo mundo fica bonzinho. Pois guarde o arrependimento pra si mesmo, filho da puta. Eu não te perdoarei nunca e não vou descansar enquanto você não pagar por tudo que me fez. Em breve, muito breve, nos veremos novamente”. Tomado de espanto pela ameaça, o poeta pensou em pedir esclarecimentos, mas foi surpreendido pela aparição de Zé Pelintra e Vinícius de Moraes. Savério e Zé trocaram um olhar que deixou claro para o professor que eles tinham passado pela mesma situação em algum momento de suas vidas. Sem notar, os quatro espíritos formavam a figura de uma cruz. Antes que qualquer palavra pudesse ser dita, uma luz branca surgiu no meio deles. O brilho foi se intensificando até resplandecer em todo o ambiente. Mais uma vez, João viu-se sozinho e, ofuscado pela claridade, fechou os olhos e foi tomado por imenso frio. Seu corpo começou a tremer e ele entrou em uma crise de pânico. “Jesus, Jesus, Jesus, o maravilhoso nome de Jesus...”, repetiu incontáveis vezes. Vagarosamente os batimentos cardíacos foram voltando ao normal. Nesse momento despertou, mas de olhos fechados. Enquanto pensava em tudo que acontecera, sentiu que sua mão era envolvida por outra. A sensação foi de profunda paz e o professor ouviu uma voz familiar a lhe sussurrar no ouvido: “Não tenha medo, meu amor. Eu estou contigo”.
  • 29. 7 Embora convicto de que estava acordado, João Guilherme não conseguia abrir os olhos ou mover qualquer parte do corpo. “Eu sou o fogo violeta com a chama do sétimo raio; eu sou a elevação na libertação da minha alma”, repetiu mentalmente durante alguns minutos na tentativa de consolar seu espírito. Também lembrou-se dos hinos do Santo Daime que mais gostava, inclusive alguns que ele próprio havia recebido. Em seguida vieram-lhe à mente a lembrança da amada Mãe Oxum e do protetor Rei Ogum. São Miguel Arcanjo, Nossa Senhora da Conceição e por fim, da Virgem Mãe Maria Santíssima. Sob as bênçãos de todos esses seres divinos, o poeta adormeceu novamente. O sono que o havia dominado era pesado e sem sonhos. Somente depois de algumas horas é que o primeiro deles veio. Nele, via a si mesmo ainda criança ao lado do avô Floriano. Na primeira infância, fora ele o seu verdadeiro pai, até João ser adotado pelos tios e mudasse de casa. Ao ver o amado avô e pai, começou a chorar. Inútil a tentativa de tentar se comunicar com o velho de cintilantes olhos azuis. O poeta não estava desdobrado. Era um sonho tradicional. Nele, revia uma cena ocorrida há muito tempo quando jogava damas com o patriarca da família na calçada da humilde casa em que moravam com o resto da numerosa parentalha. Ao olhar para si quando menino, João Guilherme lembrou-se de uma frase atribuída ao escritor português José Saramago de que “fiz tudo na vida para me tornar um homem que não envergonhasse a criança que fui”. O professor ainda gastou um tempo olhando para as mãos de seu pai. Garimpeiro de profissão, o homem robusto que tinha vindo sozinho do longínquo estado do Pará, tinha as mãos nodosas e calejadas, exatamente como as descritas pelo poeta Mário Quintana no poema “Meu velho pai”. João Guilherme sentia a alma repleta do mais puro amor e paz. Erguendo a cabeça, olhou para o céu nublado e quando retornou o olhar a cena havia se desfeito. Ele estava sozinho na rua deserta. Tontura, tremores pelo corpo, visão turva, sequidão na garganta e por fim João despertava. Desta vez, ainda que de olhos fechados, conseguiu notar alguns vultos diante de si. Estranhou que a luz estivesse acesa e, ato contínuo, não conseguia falar.
  • 30. 8 Em sua busca espiritual, o professor João Guilherme Ribeiro era um voraz consumidor de livros e filmes. Em um dos filmes que tinha assistido, o protagonista vivia em constante estado de sonho e, como não conseguia nunca despertar, julgou estar morto. Este era o pensamento que lhe ocupava a mente agora. Além dos vultos, ele conseguia notar o som de vozes, embora não fosse possível discernir o que diziam. Impotente diante da situação, o jornalista resolveu tentar dormir e fazer a projeção astral. Durante quase uma hora, usou as técnicas que aprendera nas várias oficinas que tinha participado. O sono chegou lenta e suavemente. Quando a sensação de balonamento intensificou-se, soube que já podia deixar o corpo. Para vencer a escuridão, repetiu o comando mental de luz. Ele ficou surpreso e não menos frustrado ao notar que não estava no Rio de Janeiro, como tinha sido até o momento, e sim na própria cidade natal – Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso. O professor estava no centro histórico, no chamado Calçadão. Pela total ausência de pessoas na rua, julgou que deveria ser de madrugada e pôs-se a caminhar lentamente. “O sinhô é um anjo?”, a pergunta inusitada foi feita por um menino maltrapilho que estava deitado entre papelões embaixo de um toldo. “Por que você acha que sou um anjo”, respondeu João de forma simpática. “É que o sinhô tá tudo de branco. Tirano o chapéu e a camisa”, replicou o garoto. Quando o menino levantou-se é que o jornalista percebeu nele a ausência do cordão de prata. Tratava-se de um espírito desencarnado. “Não, eu não sou um anjo. Mas me fala, o que você está fazendo sozinho aqui, meu filho?”, questionou. “Eu num tô sozinho, dotô. Eu tô com meus amigo. Qué vê eles?”, rebateu a criança. Levantando as outras partes da barraca improvisada de papelão, a irrequieta figura cutucou outros dois garotos que dormiam. “Ô, nóis tem visita”. Esquálidos e sujos, os três pareciam irmãos. “E então, desde quando vocês estão aqui?”, quis saber João Guilherme. “Nóis num sabe, dotô”, respondeu o que aparentava ser o mais velho. “E como vocês vieram parar aqui?”, perguntou tomando o cuidado para não deixar transparecer que os garotos já tinham morrido, pois havia a possibilidade de eles não saberem disso. “Nóis num se alembra”, replicou o mesmo guri. – E quantos anos vocês têm? - Nóis num sabe.
  • 31. Aquela situação começou a causar uma profunda angústia no coração de João. Não ter ciência da morte e não se recordar da própria identidade era deveras cruel com qualquer um – muito mais com uma criança. Sem ter mais o que perguntar, decidiu ficar calado. Havia um misto de encanto e devoção no olhar que os meninos lhe dirigiam. O professor pensou em convidá-los para fazer uma prece, mas antes que o fizesse, ouviu uma forte freada de carro, vindo da avenida paralela. Os moleques também ouviram e seus olhos foram tomados de um terrível pânico. “Corre, corre, corre. Eles tá vino! Eles tá vino!”, gritava o mais velho enquanto sumiam na escuridão. O poeta ainda esperou para ver de quem se tratava, porém, ninguém apareceu. Novamente sozinho, volitou até o terraço de um alto prédio comercial a menos de 200 metros. Lá de cima, podia ver toda a cidade. Embora sabendo que já tinha sido carioca, era pela amada Cuiabá que seu coração batia mais forte. “Saudosista, hein seu Jão das Letras?”. Só existia uma pessoa no mundo que o chamava assim. Claro, Zé Pelintra tinha voltado. “Por onde andou, amigo? Senti a tua falta”, disse João abrindo um sorriso. “Eu venho daqui, dali, de todo lugar”, respondeu o orixá simulando um passo de samba. - Por acaso você sabe quem eram aqueles meninos que encontrei agora há pouco? - Claro que sei. E você também sabe – e muito bem. Mas não se preocupe que no momento certo você vai se lembrar. O poeta não disse mais nada. Apenas ficou olhando para as luzes que brilhavam pequeninas lá embaixo na rua. Depois, respirou fundo, e disse: “Meu amigo, meu irmão, José Gomes, vulgo Zé Pelintra, humildemente peço o vosso perdão”. - Mas do que você está falando, homem? - Eu tive uma grande parcela de culpa com o que lhe aconteceu. Na maneira como você desencarnou. Eu deveria ter lhe avisado desde o início sobre Amparo. Na verdade, naquela noite, o marido dela foi à Lapa procurando por mim e não por ti. - Não, meu irmão. Ele estava atrás de mim mesmo. Tudo bem que ele desconfiava da mulher, mas ele não sabia de você. Além do mais, Jão, e você sabe muito bem disso, tudo o que acontece na Terra só acontece porque assim permite nosso Divino Pai Eterno. Você não tem culpa de nada. - E você não encarnou mais depois?
  • 32. - Não. Mas enquanto não recebo essa dádiva, vou me dedicando à missão que me foi confiada pelo nosso bom Deus. - E que missão é essa? - Cuidar de você, meu irmão. De você e de outros poetas boêmios. João Guilherme riu da última frase de Zé Pelintra e com a mão no ombro do amigo confessou: “Eu não sou mais boêmio, seu Zé. Há seis anos que não boto uma gota de álcool na boca. Até na roda de samba parei de ir”. “E eu não sei? O ex-rei da noite carioca agora só quer saber de tomar Daime e expandir a consciência”, disse seu Zé soltando uma gargalhada que ecoou no coração da noite. Diante da resposta hilária, João não resistiu e caiu na risada também. Os dois espíritos ficaram juntos no alto do prédio durante o resto da madrugada relembrando os velhos tempos. “Hora de cantar pra subir”, disse Zé Pelintra quando o sol começou a insinuar-se no horizonte. “Você precisa descansar, poeta. Ainda vem muita demanda por aí. Feche os olhos, por favor”, completou. Os amigos se abraçaram e, quando João Guilherme abriu os olhos, Seu Zé tinha sumido no meio dos primeiros raios do astro rei. Havia muita coisa a ser esclarecida e a mais importante era: o que teria acontecido a Amparo? E à sua filha? Mas se tinha algo que ele tinha aprendido nos últimos dias era que tudo tem seu tempo. Consolado por esta certeza, o jornalista fechou os olhos novamente e voltou ao corpo físico.
  • 33. 9 Ao contrário do que vinha acontecendo nas últimas vezes em que despertava do estado de projeção, desta vez, ao invés de estar de olhos fechados e envolto de escuridão, João Guilherme estava de olhos semicerrados e tinha diante de si uma suave luz que mesclava as cores azul, branca, violeta e laranja. Ainda sem conseguir levantar-se, ergueu as mãos na tentativa de vê- las. Porém, tudo que viu foram figuras disformes. Para João Guilherme não havia mais dúvida: ele havia desencarnado. A princípio a sensação foi de tristeza, depois de profunda gratidão por tudo que tinha conseguido aprender em sua busca espiritual na Terra. Talvez agora pudesse juntar-se, até a próxima encarnação, aos dois irmãos espirituais - Vinícius de Moraes e Zé Pelintra - e auxiliar outras almas encarnadas ou desencarnadas. Sem saber exatamente o que fazer naquela hora em particular, apenas esperava. A expectativa era de que cedo ou tarde algum espírito viesse resgatá-lo. Enquanto isso, rezou mentalmente por muitos de seus familiares e amigos. Todavia, à medida que o tempo passava e nada acontecia, sua aflição começava a aumentar. Ele tinha aprendido que o desprendimento da alma do corpo, após a morte, estava diretamente relacionado ao grau de apego à matéria. Havia relatos de que, em alguns casos, esse processo durava até anos. Outra coisa que o incomodava em demasia é que, por mais que se esforçasse, não conseguia lembrar-se rigorosamente de nenhum acontecimento dos últimos dias – muito menos como tinha sido a sua passagem. A hipótese mais palpável era de ter sido um acidente de moto, pois, apesar de estar prestes a completar 45 anos, a saúde estava em excelentes condições. Por causa desse pensamento, João chorou mais uma vez e ficou a imaginar o quanto os pais adotivos, familiares e amigos teriam sofrido. Enquanto divagava a respeito de seu infortúnio, o poeta adormeceu. Pouco, ou muito tempo depois, ele não tinha essa noção, despertou. Ele estava sentado em um banco de madeira, em um grande salão, no que parecia ser uma espécie de igreja. Não foi difícil reconhecer o lugar. O salão ficava na mesma rua onde tinha encontrado os três meninos. Aquele era o prédio do centro espírita mais antigo de Cuiabá. Mesmo não sendo daquela linha espiritualista específica, tinha estado ali por muitas vezes para assistir as palestras. Embora o local estivesse vazio, João Guilherme conseguia ouvir vozes de crianças. Elas falavam rápido e ao mesmo tempo e o jornalista ficou feliz ao
  • 34. reconhecer a voz do garoto mais velho. Depois de atravessar várias paredes, chegou à uma sala onde se encontrava o trio. Eles estavam em pé, atrás de um homem sentado à mesa, junto com outros quatro. O senhor tinha lápis e papel à mão e apenas ouvia a tagarelice dos guris. O professor compreendeu que tinha ido parar em uma seção mediúnica e, receoso a princípio, decidiu tentar ajudar, obedecendo a intuição. “Meus queridos, vocês têm que falar um de cada vez e devagar, se não eles não poderão ajudar”, disse chamando a atenção dos pequeninos. “Nóis num sabe falá cum eles. Eles é dotô e nóis é burro”, disse o mais velho, demonstrando alegria ao ver de quem se tratava. “Não, meu querido. Não é assim. Estes homens têm uma missão muito bonita e importante. Basta você falar com calma que eles vão te compreender e levar a mensagem até quem você quiser. Para quem você gostaria de mandar um recado? Sua mãe?” Ao ouvirem a palavra mãe, os três meninos abraçaram-se e puseram-se a chorar. Novamente seguindo a intuição, João teve uma ideia que talvez resolvesse o problema. Aproximando-se do médium escrevente, disse: “Com a devida licença, amado irmão, peço permissão para falar”. Autorização concedida, o poeta continuou: “Antes de mais nada, eu saúdo a todos em nome do soberano Deus e de nosso Senhor Jesus Cristo. Estão aqui os espíritos de três meninos que perambulam por estas ruas. Eu os encontrei por acaso outro dia. Pelo que pude compreender, eles desencarnaram e ainda não sabem. Estão muito assustados, demonstrando medo de alguém que supostamente os estaria perseguindo. Digo isso porque quando estive com eles, ouvimos uma forte freada de carro e isso despertou pânico nos pobrezinhos, a ponto de saírem correndo. Entrei nesta abençoada reunião também por acaso e humildemente ofereço-me para falar com eles, caso tenham alguma pergunta”. “Revela-nos primeiro a tua identidade”, disse o médium em tom austero. A réplica pegou o professor de surpresa. Não era sua intenção identificar-se. Contudo, ele sabia que essa era uma medida de praxe, pois muitos espíritos inferiores intrometiam-se nas reuniões com o único propósito de semear a confusão e a discórdia. “Meu nome é João Guilherme Ribeiro, nascido e criado em Cuiabá. Na Terra fui professor, jornalista e escritor. Minha passagem aconteceu recentemente. Quando em vida, tive a honra de, por muitas vezes, vir a esta Casa para aprender sobre a Doutrina”, respondeu calma e firmemente. “O senhor poderia, por gentileza, perguntar aos meninos os seus nomes?”, solicitou o espírita. João repetiu a pergunta mas, outra vez, as crianças não conseguiram lembrar-se. Quando
  • 35. preparava-se para explicar a situação, elas saíram correndo. Rapidamente o poeta colocou os médiuns a par da situação e pôs-se a seguir os três garotos. Quando chegou ao calçadão, conhecido como Rua de Baixo, reparou que eles corriam em direção ao chamado Beco do Candeeiro – a primeira rua da cidade – fundada pelos bandeirantes. Quando os alcançou, foi com um aperto no coração que viu os meninos encostarem-se, retraídos e abraçados, contra a parede. “Num mata nóis, num mata nóis, num mata nóis”, imploravam aos berros. Diante da cena, João Guilherme compreendeu plenamente do que se tratava. Dez anos antes, as crianças - que eram meninos de rua - tinham sido assassinadas naquela viela histórica. Ele mesmo já tinha escrito uma matéria sobre a chacina. Com muito esforço, o jornalista conseguiu conter o choro. “Meninos, eu sou do bem. Eu sou amigo. Eu não vou machucar vocês. Juro por Deus”, disse lentamente. Depois de certa hesitação, foi o garoto mais velho que tomou a dianteira: “Se o sinhô é amigo, intão leva nóis pá nossa casa. Nóis num qué mais ficá na rua”. Ciente da inutilidade de perguntar onde ficava a casa, o poeta fez mentalmente uma prece e pediu ajuda aos espíritos de luz. Ele aguardou a resposta de olhos fechados e ela veio. Sentando-se entre os guris, abraçou-os e pediu para que pensassem em Deus. Os quatro ficaram quietos por um longo tempo até que uma forte luz começou a brilhar e João Guilherme os viu dormindo, de madrugada, na pracinha, a poucos metros dali. Os três estavam amontoados, embrulhados em papelões e sob um cobertor velho. Eles não despertaram com a freada estridente que se fez ouvir. Do interior do automóvel desceram três homens, todos três revólveres à mão. Quando chegaram bem perto, cada qual escolheu um dos meninos como alvo e disparou duas vezes. Sem pressa, certificaram-se de que as vítimas tinham morrido e depois de entrar no carro, saíram cantando os pneus. Por mais esforço que tenha feito, João não conseguiu ver nem os rostos dos homens e nem a placa do carro. Profundamente chocado, sentiu os corpos franzinos tremerem de frio contra o seu e rogou a Deus pela alma dos novos amigos. Quando saíram do transe, João Guilherme perguntou se tinham visto o mesmo que ele. Resposta afirmativa, estava na hora de os meninos continuarem a jornada espiritual. Colocando-os em pé, o professor pediu que fechassem os olhos e pensassem em suas mães, posto que não eram irmãos. Em seguida, o quarteto sobrevoou a cidade por uma longa distância. A casa do primeiro, o mais velho, era muito humilde. No quarto, dormindo junto com a mãe, estavam três adolescentes. O garoto beijou o rosto de cada um deles. Demorou-se com a mãe e depois de também beijá-la, sussurrou-lhe no ouvido
  • 36. coisas que João não conseguiu escutar. Quando estavam saindo, o jornalista ouviu os gritos de desespero da mulher, desperta após a visita do filho: “Eu sabia. Eu sabia. Eu sabia que foi ele que matou meu guri. Aquele desgraçado matou meu guri!” Nas duas casas seguintes cumpriu-se basicamente o mesmo ritual. A diferença estava no número de parentes. O cochicho às mães era igual e o poeta compreendeu que qualquer que tivesse sido a revelação, não lhe dizia respeito. Cumprido o itinerário, os quatro espíritos ainda andaram por quase cem metros na rua deserta e esburacada. A luz da lua os guiava. “Deus lhe pague por sua ajuda, irmão João Guilherme. Está na hora de esses meninos descansarem em paz”, disse a senhora negra que os aguardava na esquina. Ela aparentava ter 60 anos, tinha um manto azul sobre a cabeça e usava um vestido cor de cana. Atrás de si, uma esfera de luz branca começou a surgir e aumentar de tamanho, até atingir aproximadamente três metros. Com um sorriso de enorme ternura, a anciã convidou os garotos a entrar no portal. O professor tentou fazer o mesmo, mas foi impedido. “Não filho, a tua hora ainda não chegou. Você é um moço tão inteligente... mas pensando que já desencarnou, esqueceu de tirar a prova da forma mais simples. Lembra como é, meu querido?”, questionou com voz cheia de bondade. “Claro, o cordão de prata! Como pude me esquecer?”, pensou João. E passando a mão pela nuca sentiu a vibração de pura energia do feixe. Um pouco acanhado, olhou para a anciã como que a desculpar-se pelo vacilo. Novamente, ela apenas sorriu e, abençoando-o, também entrou no portal. O jornalista estava novamente sozinho, mas um sentimento de gratidão vibrava em cada minúscula parte de seu ser. O coração exultava de amor a Deus e a todos os seres viventes. Ele olhou para a lua, que brilhava radiante no céu, agradeceu ao Cristo pelo dom da vida e rezou um Pai Nosso e uma Ave Maria pelas almas dos garotos. O que vivia agora, na prática, excedia a tudo o que tinha lido em termos de espiritualidade. Totalmente conectado ao momento presente, já não necessitava compreender o mistério das coisas, uma vez que ele mesmo encontrava-se em unicidade com o Universo, portanto também era parte desse mistério. A mente, enfim, tinha sido superada pela Consciência. Vencido o pensamento, nada mais do que um dos sentidos, João Guilherme finalmente havia encontrado o Eu Sou – a centelha divina que pulsa no interior de todas as coisas.
  • 37. 10 O murmúrio fez com que João Guilherme acordasse. Sem poder abrir os olhos, ainda não conseguia discernir o que duas ou três pessoas à sua volta diziam. Aquela situação o incomodava sobremaneira. Quem seriam aqueles espíritos? O poeta decidiu não se preocupar mais e começou a reconstruir mentalmente todas as experiências vividas no astral na noite anterior. Lembrou-se da triste história dos três meninos. Eles supostamente tinham sido assassinados a mando dos comerciantes da região cansados dos inúmeros assaltos e da inércia da polícia. A chacina teve grande repercussão midiática e pressão popular por justiça. Mesmo assim a polícia jamais encontrou os autores do crime. Em homenagem à memória das crianças, grupos de direitos humanos fizeram um monumento em tamanho natural que foi colocado na rua em que foram covardemente mortos. Na estátua, dois dos meninos estão agachados, encolhidos e se protegendo com os braços e o terceiro estirado sem vida no chão, exatamente como visto pelo jornalista. Nesse instante, teve a ideia de, assim que possível, procurar a mãe do menino mais velho, pois tinha reparado bem em sua fisionomia e não teria muita dificuldade em reconhecê-la. Se sua vida tinha mudado totalmente nos últimos dois anos, agora então é que jamais seria a mesma novamente. Sabia que tinha de ler, estudar e principalmente amar mais. No grupo de estudos esotéricos que frequentava, o professor tinha ouvido de uma amiga muito sábia, que o Daime ensinava as pessoas a sonhar. Aí estava a chave de tudo: era preciso despertar dentro do sonho e o poeta estava vivendo tudo isso em uma intensidade que jamais cogitara. Aquilo tudo não podia ser simplesmente fruto de sua mente. Mais do que nunca se mantinha atento ao estado de presença, de viver o único momento que realmente existe: o agora. As agruras do passado e as expectativas do futuro não tinham mais influência em seu estado de espírito. Enquanto meditava sobre essas coisas, adormeceu e repentinamente sentiu um enorme incômodo na altura do peito. Novamente desdobrado, viu-se deitado em uma cama e com o olhar fixo em si mesmo, entrou no próprio corpo, percorrendo cada parte dele. Logo em seguida, o psicossoma do professor estava de novo ajustado ao corpo físico, ou pelo menos quase. Havia um desnível, como quando a imagem da televisão está desfocada e apresenta uma espécie de sombra. João Guilherme sentiu como se seu coração estivesse sendo aberto por uma espécie de bisturi.
  • 38. Mas o que teria acontecido ao seu coração? Sem encontrar uma resposta plausível, apenas aguardou pelo fim do procedimento. Nas mirações provocadas pelo Daime, não era raro João ver-se em lindos jardins cercado de muitos tipos de flores. Quando abriu os olhos, percebeu que estava desdobrado e em um desses jardins, muito provavelmente no fim da tarde. Lembrou-se do soneto de Shakespeare que dizia “quando a hora dobra em triste e tardo toque...” O jornalista examinava minuciosamente tudo o que estava a sua frente. As orquídeas roxas que brotavam dos troncos das árvores, as rosas vermelhas e brancas que bailavam ao sabor da doce brisa. O canto dos passarinhos. A relva verde. A água cristalina do riacho que corria preguiçosamente. O céu era um espetáculo à parte. A luz dourada do sol dava ao firmamento um tom laranja inexistente em todos os pores-do-sol que já tinha visto. O cenário diante do qual estava era uma linda declaração de amor da natureza ao Pai criador. À medida que caminhava, ia percebendo novos e lindos detalhes. Borboletas, abelhas, beija-flores, formigas, cigarras, lagartixas – cada coisa tinha o devido encanto e mistério. O poeta entrou no pequeno rio de águas rasas e foi seguindo o curso. Quando parava e olhava pra baixo, podia perceber uma infinidade de peixinhos a seguir seu passeio. Depois de caminhar por algumas dezenas de metros, saiu da água e chegou a uma espécie de clareira. Ali a mata era mais fechada, mas mesmo durante o lusco-fusco, a luz do sol ainda era intensa. Sentou-se em uma grande pedra, ficou imóvel e em silêncio, tornando-se, também, parte do cenário. Ele tinha se fundido à natureza e sentia toda a energia que emanava do lugar. Por causa desse estado de transmutação, não percebeu que era observado atenta e ternamente. Só depois de algum tempo é que teve a sensação de que não estava sozinho. Embora sem poder vê-la, a presença que se manifestava lhe fez com que o espírito exultasse de felicidade. Uma onda de alegria agitou seu coração e não foi possível conter as lágrimas. Era ela que estava ali! Ele tinha certeza! João Guilherme não se conteve e levantou-se. Girando o corpo em todas as direções, procurou ansioso pelo rosto da alma gêmea. “Amparo, meu amor, finalmente”, disse em voz alta. Porém, o êxtase inicial deu lugar à frustração, pois, por mais que a chamasse, ela não aparecia. De súbito, recuperou a lucidez e compreendeu que teria de conter os sentimentos e os pensamentos se quisesse se comunicar com a amada. De volta à pedra, fechou os olhos e calou a mente e o coração. Novamente em harmonia, apenas aguardou. A luz do sol não era mais do que uma
  • 39. centelha dourada no horizonte, quando uma doce e suave voz se fez ouvir em seu coração: “Meu amado, há tanto tempo que te espero. Já nos encontramos e nos separamos tantas vezes no curso reencarnatório. Mas tende bom ânimo, a eternidade nos aguarda de braços abertos. Sê forte. Recorda-te de mim. Recorda-te da nossa filha. Recorda-te de ti. Não passará muito tempo até que estejamos juntos novamente. Tu tens uma grande missão diante de si, confiada pelo Pai Celestial e pela Mãe Terrena. Complete-a com amor e devoção. Estarei sempre contigo. Nos momentos de angústia e sofrimento, pense em mim que eu virei para acalentar-lhe o coração. Minha alma e tua alma são uma só. Eu amo você”. Quando percebeu-se sozinho novamente, o poeta viu que o manto negro da noite havia sido esparramado sobre o céu trazendo a lua e suas milhares de estrelas. Havia paz em seu coração. Com novo ânimo e transbordando de felicidade, levantou-se e dançou sob a luz do luar. Em seguida, tomado por um grande torpor, recostou-se na grande pedra e dormiu.
  • 40. 11 Quando João Guilherme abriu os olhos dentro do sonho e olhou para si mesmo, não se viu. O corpo astral havia se diluído num feixe de luz dourada. À sua volta, centenas de milhares de pontos luminosos vagavam harmoniosamente. Não havia nenhuma pergunta em seu coração, pois ele estava além da mente e dos pensamentos. Ele apenas pertencia; estava entre as estrelas. Ao longe, viu o sol. Impossível resistir ao brilho incandescente. Incontáveis esferas de energia de diferentes matizes vinham dele e voltavam para a estrela de primeira grandeza. O jornalista sentiu como que todas as moléculas do corpo se expandirem quase que ao ponto de explodir, para depois diminuírem novamente. João tinha muitas músicas prediletas. Composições que lhe tocavam no mais íntimo da alma. Contudo, nem mesmo os maestros Heitor Villa-Lobos, Wolfgang Amadeus Mozart e Ludwig Von Beethoven – seus compositores favoritos – jamais poderiam conceber melodia tão sublime como a que ouvia agora. Ele ouvia na fonte a mais pura expressão do amor divino. A sílaba que contém em si o mundo inteiro – o presente, o passado e o futuro. Era como se todos os astros entoassem o “om”, o primeiro e o último acorde da perfeita sinfonia cósmica que se chama Universo. Finalmente entendia o pedido de Pablo Neruda ao carteiro que sonhava em ser poeta: “E se ouvir o som das estrelas, grave”. Depois de vagar disforme pelo espaço sideral, seu corpo astral começou a se recompor e ser puxado de volta à órbita da Terra. O destino, enfim, era o Rio de Janeiro. Quando chegou ao Corcovado, estava sozinho. Após um tempo de meditação, seguiu a intuição e volitou até Ipanema. Embora fosse início de noite, a praia estava lotada. Demasiadamente lotada por sinal. Uma multidão sem fim, como em um imenso formigueiro, indo e vindo em todas as direções. Não foi difícil notar que, separados pela morte, o que via a frente era uma interação inconsciente de espíritos encarnados e desencarnados. João não sabia qual grupo lhe causava mais compaixão. Os vivos exalavam uma nauseante energia negativa e pensamentos egóicos que contaminavam toda a atmosfera. Os mortos choravam, gritavam, implorando misericórdia. Muitos estavam desfigurados. Um moço negro com o peito todo ensanguentado bradava: “É certo isso, meu Deus? Um trabalhador, um pai de família como eu morrer feito um cachorro?” Um grupo de espíritos desencarnados mantinha, ali mesmo no calçadão, relações sexuais da forma mais depravada possível. Diante da cena deprimente, o
  • 41. jornalista decidiu virar as costas, mas algo lhe chamou a atenção. Entre as dezenas de pessoas que participavam da orgia, havia algumas encarnadas, pois era possível ver seus cordões de prata. Isso fez com que o professor se lembrasse que havia lido que a frequência dos nossos pensamentos quando despertos nos atrai, no sono, para perto de outros que estejam nessa mesma frequência. A bem da verdade, havia muitos outros vivos em estado de sono profundo perambulando pela orla. Eles lembravam sonâmbulos caminhando às cegas. Para seu consolo, João Guilherme notou que cada um deles era escoltado por uma aura de luz. O professor também notou um senhor desencarnado de aparentemente 70 anos que chorava convulsivamente. Apiedado da pobre alma, João aproximou-se. ”O senhor me dê licença”, disse em tom respeitoso. Diante do olhar surpreso do homem, o poeta prosseguiu: “Graça e paz por parte do Nosso Senhor Jesus Cristo. Perdoe-me pela indiscrição, mas como o vi chorando, julguei que talvez eu pudesse ser de alguma serventia”. “Você por acaso é um anjo que veio me dizer que obtive autorização para reencarnar? Se sim, é bem-vindo. Se não, me deixe em paz”, respondeu com voz carregada de rancor. “Não, meu senhor. Eu não sou um anjo. Perdoe-me pelo aborrecimento”, replicou João. O velhinho olhou na direção do mar. As águas estavam escuras naquela noite e não havia estrelas no céu. “Meu dinheiro! Tudo que eles querem é meu dinheiro. Mas isso eles nunca vão ter. O dinheiro é meu! Meu!”, resmungou. Ele repetiu o desabafo por várias vezes. Seus braços estavam postos em forma de xis contra o peito, como se abraçasse fortemente alguma coisa, mas não havia nada. “O que você está olhando? Eu sei muito bem que você está dando uma de bonzinho pra ficar com o meu dinheiro. Mas o dinheiro é meu! Entendeu? Meu!”, esbravejou o ancião. E continuou a gritar “ladrões, ladrões, só tem ladrão nesse mundo”, correndo sem rumo pela praia. Enquanto observava o homem ainda tão preso à matéria, ou aquilo que na espiritualidade chamava-se de ilusão, o jornalista fez uma prece em favor da pobre alma sofredora. Em meio àquele cenário de tamanha tristeza que via em um dos principais pontos turísticos da amada Rio de Janeiro, João colocou em xeque o título de “cidade maravilhosa”. Ele locomoveu-se por três ou quatro quilômetros até ter a nítida impressão de que estava sendo seguido. Depois de parar, lentamente virou-se e notou um adolescente com um semblante que misturava encanto e medo. Nessa hora, o rapaz fez menção de voltar e, fazendo isso, o poeta percebeu – pelo cordão de prata - que se tratava de um encarnado
  • 42. em estado de projeção astral, exatamente assim como ele. “Ei, espere!”, disse João Guilherme com firmeza. O moço parou. “Pelo amor de Deus, o senhor pode me ajudar? Eu não sei como vim parar aqui. Acho que eu morri”, falou o rapaz evitando encarar o poeta. - Calma, meu filho! Em primeiro lugar, você não está morto. Você está acordado dentro do sonho. Alguns chamam isso de viagem astral. É a primeira vez que lhe acontece? - Não! Mas nunca tinha sido tão forte assim. Eu quero voltar pro meu corpo. Eu tenho medo de não conseguir mais. Me ajuda, por favor. João pediu para o jovem se acalmar e, aproximando-se, ministrou-lhe um passe energético. Depois disse: “Encare o que está acontecendo como uma dádiva. Veja só quantas pessoas estão aqui, andando de olhos fechados, feito cegos. Qual é a tua graça?” - Meu nome é Saulo. - Prazer Saulo. Eu sou o João Guilherme. Você é daqui do Rio mesmo? - Sim, sou. Agora que o adolescente estava mais tranquilo, o professor prosseguiu: “Então Saulo, pouquíssimas pessoas conseguem acordar dentro do sonho. Isso ainda é raro, mas daqui um tempo será muito comum. A humanidade está passando por um despertar espiritual muito forte. Sinta-se honrado por esta experiência”. - Mas eu nunca pedi por isso. Minha família acha que estou ficando louco. Já estão falando até em me internar. - Não se preocupe que isso não vai acontecer. Há muitos livros que podem lhe ajudar. Faz assim: na próxima vez que você for dormir, reze para o teu anjo da guarda para que ele te guie no mundo astral. Você pode não ver, mas ele está aqui neste exato momento. - E você consegue vê-lo? - Não, não consigo. Mas posso sentir a sua presença. - E como eu faço pra acordar? Pra voltar ao corpo? Desta vez a resposta do jornalista não foi imediata. Como poderia dizer algo que nem mesmo ele sabia, uma vez que não se lembrava da última vez em que estivera desperto? João pensou, pensou e por fim disse: “Meu amigo, o teu anjo da guarda te conduzirá de volta quando isso for necessário. Mas você pode voltar, por exemplo, estalando os dedos e visualizando o teu corpo físico”. - Como? Assim?
  • 43. Ao estalar o dedo o moço sumiu da vista do professor. Com um sorriso no rosto, João Guilherme percebia a ironia da cena. Ora, se tinha dado certo com o menino, por que não daria consigo? Todavia, mesmo depois de estalar o dedo uma, duas, três, quatro, cinco vezes, ele continuava no mesmo lugar. João não resistiu e soltou uma imensa gargalhada. “Agora deu pra rir sozinho, Seu Jão das Letras?”, gracejou Zé Pelintra. “Deixa o homem, compadre Zé. É melhor ser alegre que ser triste”, intrometeu-se Vinícius de Moraes. O trio estava novamente reunido. O poeta ficou a encarar os amigos como que a esperar a instrução de qual seria o próximo passo. Em função da insistência do silêncio dos boêmios, João Guilherme cobrou: “E então, o que faremos agora? Para onde iremos? Quando me encontrarei com Amparo?” “Êita homem, aquieta este espírito”, repreendeu seu Zé. “Tudo a seu tempo”, finalizou. “Joãosinho”, começou Vinícius, “a cidade inteira ficou sabendo do ocorrido daquela noite. Saiu em todos os jornais. Marina ficou louca de ódio. Como vingança, ela quis tomar a filha de Amparo”, acrescentou. “Mas me fala logo de uma vez, o que aconteceu com elas?”, disse o professor rispidamente para logo em seguida desculpar-se: “Perdoe-me, meu amigo, você tem sido um verdadeiro irmão. Eu não tenho o direito de falar assim contigo”. “Calma, Jão”, disse seu Zé abraçando o compadre. “Com o escândalo, Amparo foi despedida e os pais não a aceitaram de volta, mesmo com uma filhinha pra criar. Ela batizou a menina com o nome de Julieta, por causa da peça que vocês costumavam ler em voz alta. Para não passar fome, foi trabalhar como doméstica em casas de família, mas por causa do bebê, sempre acabava despedida. Ela nunca conseguiu dar as aulas de piano que queria”, explicou o mentor espiritual. Com muito esforço para não chorar, João ouvia a tudo em silêncio. “Sem ter pra onde ir, ela veio me procurar. Falou que vocês planejavam mudar-se para a Inglaterra depois que você se separasse de Marina. Ela tinha umas economias e pediu minha ajuda para ver se conseguia alguma família para recebê-la em Londres até que arrumasse trabalho e pudesse pagar um aluguel. Pela graça do nosso bom Deus, consegui entrar em contato com os Stewart, o mesmo casal que te recebeu no tempo em que viveu lá, lembra?”, disse Vinícius de Moraes. “Sim, sim! Os Stewart! O casal de ativistas escritores”, recordou-se João. “Eles adotaram Amparo e Julieta como filhas”, acrescentou Vinícius olhando para Zé Pelintra como que a pedir para continuar com o relato. “Jão, depois de três anos, Amparo caiu gravemente doente e veio a falecer logo em seguida. Os Stewart continuaram a cuidar de criança, claro”.
  • 44. João Guilherme não podia mais conter as lágrimas. Sentando-se na areia, diante do mar silencioso e debaixo da noite escura, entregou-se a um pranto que lhe doía em cada recanto do ser. Vinícius e Zé Pelintra não ousaram dizer nada. Depois de um longo tempo é que ele quis saber como tinha sido a vida da filha que nunca conheceu. “Ela tornou-se escritora, casou-se com um músico e veio morar aqui no Rio outra vez”, contou Vinícius. “E quando poderei encontrar-me com Amparo?”, questionou João quase que a implorar aos amigos. “Em breve, irmão. Mas antes você deve encontrar-se com outra pessoa”, afirmou Zé Pelintra. “Que o nosso divino Pai Eterno lhe conceda a coragem e a humildade de fazer o que é necessário”, disse o exu abraçando o amigo. Ao ouvir pela terceira vez a mesma orientação, o professor não teve dúvida de quem o esperava. Não havia mais nada a ser falado. O grande reencontro havia chegado ao fim e os três homens sabiam disso. João Maria de Albuquerque, Marcus Vinícius de Moraes e José Gomes da Silva elevaram os olhos para o céu e foram saudados pelo brilho da lua que finalmente havia surgido. João e Zé tiraram os chapéus e juntaram-se a Vinícius em uma prece de louvor e agradecimento à Virgem Mãe Maria Santíssima. Não houve palavras de adeus. Eles somente se olharam e estava tudo dito. João Guilherme fechou os olhos e quando os abriu viu, à meia distância, uma figura feminina com vestes azuis a pairar por sobre as águas. Respeitosamente, o poeta curvou-se e sussurou: “Alodê, Iemanjá, odoiá”. Graciosamente a deusa das águas acenou a lhe abençoar e elevou-se em direção à lua.
  • 45. 12 João Guilherme foi acordado por um choro abafado. Ele estava de volta ao corpo físico quase que da mesma forma de sempre: de olhos fechados e em estado de catalepsia. Embora não pudesse mover um só músculo, desta vez conseguia ouvir pequenos soluços bem ao seu lado. Eles balbuciavam algumas palavras que, com muito esforço, o poeta conseguiu interpretar. “Me perdoa, me perdoa, me perdoa”, clamava o pranto feminino. Esforço inútil tentar reconhecer a voz. Ela lhe chegava toda distorcida. João procurou projetar-se novamente para fora do corpo e pôr fim àquele mistério. Mais um esforço inútil. Quem quer que fosse, recebeu sinceras vibrações de amor fraterno. Feito isso, o choro cessou. Silêncio. Aquela visita deixou o jornalista deveras intrigado. Como morava sozinho e não estava morto, então ele só podia ter sido visitado por um espírito. A intuição lhe dizia que não era a presença nem de Amparo e nem de Marina. Ainda que recém-desperto, o professor sentia o corpo exausto e, vencido pelo cansaço, adormeceu novamente. Mesmo que visivelmente precisando de uma pintura, externamente o velho casarão continuava imponente. De estilo clássico, tinha sido construído quando da chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro. João demorou a entrar. A vibração que saía do interior do antigo lar estava carregada de uma intensa energia negativa. E ele sabia quem lhe esperava lá dentro. Ao olhar para si, foi com espanto que notou que tinha novamente a aparência do tempo de João Maria. O bigode cuidadosamente aparado, os cabelos penteados para trás e impecáveis com a ajuda de gomalina. Porém, se ele estava igual ao passado, o mesmo não se podia dizer da cidade. Os carros que trafegavam pela avenida Atlântida revelavam que o ano era mesmo o de 2014. “O que está em cima é como o que está embaixo”, pensou em voz alta, relembrando um dos princípios do hermetismo. Ao entrar na ampla sala de visitas viu um casal de idosos prestando atenção ao que dizia um homem de aproximadamente 30 anos. João procurou pelos cordões de prata e os viu. “Alguns espíritos ficam tão apegados a um lugar que mesmo depois de desencarnados continuam morando nele. Eles se recusam a acreditar que morreram e passam a viver em uma espécie de realidade alternativa”, explicou o homem. Sua fala deixou o poeta com o coração apertado. “Pobre Marina”, pensou. “E o que nós podemos fazer? Eu não aguento mais ouvir barulhos macabros durante a noite, principalmente o ranger de madeira como
  • 46. de uma cadeira de balanço”, reclamou um dos velhinhos. “Rogar aos espíritos de luz que os convençam a aceitar que desencarnaram e seguir seu caminho”, respondeu o orientador espiritual. Dando as mãos, os três leram a Consagração do Aposento e a Prece de Cáritas. O poeta tinha uma profunda reverência por essas orações. Elas faziam parte de um cd que ele havia gravado na sua voz e distribuído aos amigos mais próximos. “Gratidão, meus irmãos”, disse João ao término do momento devocional. “Vocês ouviram isso?”, perguntou sobressaltada a idosa. “Isso o quê?”, quis saber o marido. “Alguém disse ‘gratidão, meus irmãos’”, respondeu. Eles deram as mãos novamente e se concentraram. “Estou sentindo uma presença aqui. Não é o mesmo espírito que habita esta casa. É outro. Sua energia é boa. Ele está em paz”, revelou o amigo que visitava o casal. O professor ponderou por alguns instantes continuar com a comunicação, mas preferiu subir para resolver a situação pendente de uma voz por todas. A porta de madeira maciça do quarto estava fechada e João Guilherme passou através dela e considerou surreal a sobreposição de imagens. Ele via ao mesmo tempo o quarto com a antiga e a nova decoração. Marina estava sentada na cadeira de balanço na qual costumava bordar, à beira da porta. A cama do novo casal de inquilinos estava bem do lado. A princípio, a esposa não percebeu que não estava só. Depois, sentiu um arrepio e inferindo ser por causa do vento, fechou a enorme janela que possuía uma sacada que dava de frente para o mar. João apenas a observava. O incômodo do arrepio repetiu-se e ela levantou-se subitamente da cadeira. “O que é que você quer, alma penada? Eu já disse que não vou sair da minha casa. Vai embora daqui. Você não tem o direito de perturbar a paz dos vivos”, bradou a mulher a esmo. Antes de qualquer coisa, o poeta fez uma prece ao seu mentor espiritual na esperança de que Vinícius de Moraes aparecesse – o que não aconteceu. Porém, sua sensitividade lhe dizia que estava sendo assistido por espíritos superiores. “Marina, sou eu, o João Maria”, disse da forma mais carinhosa que conseguiu. A ex-esposa parou de costurar e fitou o enorme quadro na parede. Nele estava pintado o retrato do casal em trajes de gala. “Por que você me abandonou? Por que não fui merecedora do teu amor? Só porque não podia lhe dar um filho? Agora estou aqui, viúva, sozinha e humilhada. Sua morte foi tão trágica, meu bem...”, lamentou-se entre lágrimas. João Guilherme elevou o pensamento em prece e pediu a Deus que permitisse tornar-se visível para a ex-mulher. Nesse instante, ela levou um choque e como que adormeceu por alguns
  • 47. segundos. Quando abriu os olhos, soltou um grito de pavor. “João Maria! Então era você o fantasma que ficou me assombrando todos esses anos? Que fazia todos aqueles barulhos estranhos? Mesmo depois de morto você ainda não me deixa em paz, pelo amor de Deus?”, desabafou. O descontrole emocional fez com que ela derrubasse a caixa de costuras e a cadeira de balanço. Na tentativa de defender-se, abriu as janelas julgando que a luz do sol afugentaria o espírito intruso. No andar de baixo, o casal e o visitante ouviam todos esses sons, com exceção da voz da mulher prestes a entrar em estado de histeria. Sem dirigir-lhe uma só palavra, João se concentrava para que o espírito de luz que o assistia usasse seu fluido universal para acalmar a mulher. Por muitos minutos, Marina ficou encolhida sob o dossel da cama com o travesseiro sobre a cabeça até finalmente resolver encarar o que considerava ser o fantasma do ex-marido. “Por que você está fazendo isso comigo, João? Você já me fez sofrer demais. Deixa pelo menos eu viver a minha vida em paz”, disse com os olhos banhados de lágrimas. “Marina, por favor, me escute. O que tenho a lhe dizer é muito importante”, começou o professor. “Eu não sou mais o homem com quem você se casou. Depois da minha morte, eu reencarnei em outra vida, em outra cidade. É de lá que eu vim para lhe dizer que é você que não está mais no mundo dos vivos. Ao não aceitar a morte, você criou uma espécie de universo particular, que só você vê. Você nunca estranhou que ninguém – nem mesmo os teus pais – vem lhe visitar?” - Todo mundo me odeia, até mamãe e papai. Por isso que eles não vêm aqui. E eu não preciso deles também. Estou muito bem sozinha. O que não suporto são esses barulhos que você fica fazendo pela casa para me assustar. - Não, Marina. É justamente o contrário. É você que está assustando as pessoas que agora estão morando aqui no casarão. Elas estão lá embaixo rezando pela tua alma. - Você está querendo me deixar louca! Não basta a humilhação de ser trocada por uma empregadinha de padaria? Não basta? Que culpa tenho eu de não poder gerar filhos? Como fui cega em acreditar que um dia você me amou. Você estava era de olho no dinheiro da minha família. Você estava de olho neste casarão. Agora me diga, onde você teria chegado sem mim? Você acha que as tuas poesias chinfrins te levariam a algum lugar? Você nunca passou de um bêbado metido a intelectual que passava as noites enchendo a cara na companhia de um negro sujo. Até os teus estudos na Inglaterra foram pagos pelo meu pai. Eu te amei, João. Eu te amei do fundo do meu coração. Mas você nunca gostou