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PORTO ALEGRE, MAIO E JUNHO DE 2009 • ANO III • N° 20 Estado de Direito
Dieter Grimm
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Veja também
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O Direito que emancipa
o homem
Direitos da
Convivente
Gustavo Rene Nicolau analisa
a falta de uma legislação clara
e eficaz sobre a proteção da
família no País e questiona
se é correto a convivente de
união estável ter mais direitos
do que a esposa em comunhão
universal.
Página 12
CARLOS BAILON
O Jornal Estado de Direito é um espaço
singular de inserção social, através da
cultura jurídica leva a informação que
forma, fundamentada no pensamento
de estudiosos da realidade contempo-rânea.
É com satisfação que apresen-tamos
a 20ª edição do Jornal Estado de
Direito em que reune profi ssionais de
diversos países para promover a inte-gração
cultural. O objetivo é colaborar
nas práticas de cidadania para que
todos tenham condições de participação
social e de expressão do pensamento.
Nessa edição, contamos com a colabo-ração
de juristas do Brasil, Portugal e
Alemanha. O destaque é a entrevista
com o Professor Dieter Grimm um
dos mais expressivos nomes do direito
constitucional da atualidade. Leia na
página 13.
Princípio da Proporcionalidade:
“... sempre que está envolvida
a limitação de direitos
fundamentais pela lei, ou seja,
a questão é sempre determinar
se a restrição que é feita de
um direito fundamental é
proporcional ou não.”
Direito Comum
Leandro de Mello Schmitt
aborda os desafi os para se
pôr em prática o direito
comum ou mundializado e
seus refl exos nas sociedades
Direitos Humanos
Ubiratan Cazetta avalia a
efetividade da aplicação dos
mecanismos de defesa dos
direitos humanos no Brasil
e quais as sanções que a
Comunidade Internacional
pode impor caso estes não
Para um Estado de sejam respeitados
Direito Efectivo
António Francisco de Sousa
salienta a importância da
participação popular para o
exercício efetivo do Estado de
Direito não apenas diagnos-tificado
pelo voto, mas sim
pela busca do conhecimento
jurídico a fim de se proteger e
respeitar direitos alheios.
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CPI de Minoria
Giovani Corralo apresenta as
condições para a criação de
uma CPI e questiona por que
as comissões necessitam do
apoio de apenas um terço dos
parlamentares para serem
implementadas
Catedrático Emérito da Universidade de Humboldt de Berlim, membro da
New York University School of Law
Sequestro
Relâmpago
Válter Kenji Ishida faz um
painel sobre a tipificação do
sequestro relâmpago e especi-fica
nova lei que inclui o pa-rágrafo
terceiro ao artigo 158
do Código Penal que relata o
crime de extorsão.
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Opinião Pública
Bruno Espiñeira Lemos
refl ete sobre a prostração
do Legislativo e o receio
da infl uência dos meios de
comunicação e da opinião
pública de infl uenciar nas
decisões jurídicas
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Ambiente
Luís Paulo Sirvinskas
discorre sobre a necessidade
de maior conscientização
de empresas e governos na
defesa do meio ambiente e no
cumprimento da legislação
ambiental em um mercado
globalizado
Estado 2 de Direito, maio e junho de 2009
Estado de Direito
Investir em Conhecimento Estado de Direito Comunicação Social Ltda.
O Jornal Estado de Direito como referencial científico
do projeto: “Conhecer o Direito é Desenvolver a Cidada-nia”,
continua firme na sua linha de disseminar gratui-tamente
o conhecimento de renomados juristas a toda a
população. Do mesmo modo, leva palestras, sempre com
a convicção da importância de sermos agentes promotores
da esperança de mais conscientização, educação jurídica
independente da formação de cada pessoa.
Nessa edição contamos com a colaboração de pro-fissionais
do Brasil, Portugal e Alemanha. Agradecemos
ao Professor Ingo Wolfgang Sarlet pelo apoio que, sem
dúvida, foi fundamental para a realização da entrevista
com Professor Dieter Grimm.
Nos dias 5 e 6 de junho participaremos da XIV Jornada
Internacional de Direito, em Gramado, Rio Grande do Sul
e nos dias 4 e 5 de julho da Gaia Commitment - Fórum do
Condomínio da Terra que será realizado, em Portugal, na ci-dade
de Gaia. O evento marca a passagem do Dia Mundial da
Terra, que tem como objetivo incentivar o desenvolvimento
de ações para conservação da Terra. No artigo “Organizar a
Vizinhança Global”, página 6, elaborado pelo professor Paulo
Magalhães, coordenador cietífico do evento, poderão obter
mais informações. Muito nos engrandece por ser o veículo
de comunicação da área jurídica convidado oficial do evento
em que estaremos registrando todos os painéis, bem como,
captando depoimentos e fotografando.
A próxima edição será feita diretamente de Portugal!
Aguardem e faço votos que venham novos convites, pois
desejamos integrar culturas e disseminar a importância
de se pensar na Terra como um imenso condomínio em
que devemos propagar a cultura jurídica preventiva para
melhor participação de cada pessoa.
Os vídeos dos eventos realizados em abril e maio
que falo na Rota Jurídica estão sendo postados no site
http://br.youtube.com/carmelagrune.
Agradeço o apoio dos patrocinadores e apoiadores
que são essenciais para a continuidade do nosso trabalho
e aos professores que compartilham seus conhecimentos
com os nossos leitores.
Um abraço,
Carmela Grüne
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um transformador da realidade social!
PAÍSES
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o jornal Estado de Direito chega a Portugal, Itália, México,
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União estável homoafetiva, até que enfim!
Apoio
*Os artigos publicados nesse jornal são responsabilidade dos autores
e não refl etem necessariamente a opinião do Jornal e informa que os
autores são únicos responsáveis pela original criação literária.
As justifi cativas são muitas, mas a causa é uma só: o pre-conceito.
Outro motivo não existe para a omissão do legislador.
O Projeto de Lei 1.151, do ano de 1995, que regula a parceria
civil registrada, para a época, foi considerado arrojado. A
única referência que existe às uniões homoafetivas é feita Lei
11.340/06 – a chamada Lei Maria da Penha – que, ao criar
mecanismos para coibir a violência doméstica, trouxe moderno
conceito de família: uma relação íntima de afeto, independente
da orientação sexual.
O silêncio da lei, no entanto, não impediu conquistas
no âmbito do Judiciário. Quer fazendo analogia com a união
estável, quer invocando os princípios constitucionais que asse-guram
o direito à igualdade e o respeito à dignidade, a Justiça
vem deferindo direitos no âmbito do Direito das Famílias e do
Direito Sucessório. O próprio Superior Tribunal de Justiça, ao
afastar a extinção do processo sob o fundamento da impossi-bilidade
jurídica do pedido, garantiu às uniões de pessoas do
mesmo sexo acesso à justiça.
Tudo isso, porém, não supre o direito à segurança jurídica
que só a norma legal confere. O silêncio é a forma mais per-versa
de exclusão, pois impõe constrangedora invisibilidade
que afronta um dos mais elementares direitos, que é o direito
à cidadania, base de um Estado que se quer democrático de
direito.
A aprovação da Lei da Parceria Civil Registrada,
nesta altura dos acontecimentos, seria um retrocesso. Daí
o signifi cado do Projeto de Lei 4.914/2009, que inclui um
artigo ao Código Civil (1.727-A), para que sejam aplicadas às
uniões de pessoas do mesmo sexo os dispositivos referentes
à união estável, exceto a regra que admite sua conversão em
casamento.
O projeto tem o mérito de contornar o aparente óbice
constitucional que limita o reconhecimento da união estável
aos heterossexuais. De outro lado, para evitar que se diga tratar-se
do temido “casamento gay”, de modo expresso é afastada
a incidência do dispositivo que autoriza a transformação da
união estável em casamento.
A proposta busca somente consagrar em lei o que de há
muito vem sendo assegurado pela jurisprudência. Claro que
esta não é a solução que melhor atende ao princípio da igual-dade,
mas, ao menos, acaba com histórica omissão que gera
enorme insegurança e impõe o calvário da via judicial para o
reconhecimento de direitos.
Enfi m, é chegada a hora de resgatar o débito que a sociedade
tem para com signifi cativa parcela da população que não mais
pode fi car à margem do sistema jurídico. Insistir no silêncio
afronta o direito fundamental à felicidade – o mais importante
compromisso do Estado para com todos os cidadãos.
*Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões,
Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça-RS, Vice-Presidenta Nacional
do IBDFAM, www.mariaberenice.com.br
Maria Berenice Dias*
Estado de Direito, maio e junho de 2009 3
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PORTO ALEGRE
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55 (51) 4009-2500
Estado 4 de Direito, maio e junho de 2009
Para um Estado de Direito Efectivo
A expressão Estado de direito está na moda
há algumas décadas. Não há Estado moderno
que não invoque para si o atributo de Estado de
direito, incluindo aqueles que não passam de
ditaduras disfarçadas. A generalidade das Cons-tituições
ocidentais não só consagra expressa-mente
esta forma de Estado, como também re-conhece
um vasto leque de direitos fundamentais
que são considerados imprescindíveis no Estado
de direito. E vão mais longe ao reconhecerem
expressamente formas de organização adminis-trativa
e instituições que são exigências próprias
do Estado de direito, como acontece, por exemplo,
com o poder local autónomo, no primeiro caso,
e com os tribunais independentes, no segundo
caso. Tudo isto é comum ao mundo ocidental (e
para além dele). A fórmula Estado de direito é
também frequentemente transformada pelo
poder político em bandeira de progresso, civis-mo
e respeito pelos direitos e liberdades dos
cidadãos. À partida, parece haver toda a justifi-cação
e razão de ser para este ponto de vista. O
Parlamento é constituído pelos representantes
do povo, que o elege em eleições livres e perió-dicas,
competindo-lhe fazer as leis (mais impor-tantes)
e fiscalizar a acção do Governo, que
também goza de legitimidade democrática. Pa-rece
que o sistema é realmente perfeito. Não
faltam políticos, talvez mesmo a maioria, segui-dos
por uma pequena parte da população, a
sustentar que este não é o sistema perfeito, mas
será o caminho certo para lá chegarmos. Faltará
apenas aperfeiçoar alguns “pequenos detalhes”.
Ora, é preciso discordar frontalmente desta visão
optimista e simplista, porque de facto estamos
muito longe do Estado de direito efectivo. Não
nos faltam apenas os mencionados “pequenos
detalhes”. O que temos é sobretudo o Estado
de direito declarado; o que estamos longe al-cançar
é o Estado de direito efectivo, isto é, o
Estado de direito tornado realidade, aquele
que chega efectivamente, nas suas múltiplas
vertentes, ao dia-a-dia dos cidadãos. O primeiro
é fácil de conseguir, porque basta apenas escre-vê-
lo nas leis principais; o segundo é difícil de
alcançar, sendo tarefa de décadas, se houver
grande empenho nisso. Para podermos passar
de um para o outro, temos de ter em linha de
conta o seguinte: o Estado de direito meramen-te
declarado, mas ainda não suficientemente
concretizado, satisfaz muito bem os interesses
do “poder instituído”, à cabeça do qual estão os
titulares de cargos políticos e as cúpulas da
Administração Pública (presidentes, chefes e
directores de serviço, administradores, etc.).
Para esses, o Estado de direito declarado satisfaz
plenamente. Este sistema de “faz de conta” ga-rante-
lhes a situação de privilégio (traduzida em
salários elevados, lugares de poder e prestígio
- que muito bem fazem ao seu ego - , espaço para
o “tráfico de influências”, etc.) face à maioria da
população. Por isso, de forma egoísta e insensí-veis
às dificuldades dos outros, fazem tudo para
defender o status quo. Estão sentados à mesa do
grande banquete, vivem no “país das maravi-lhas”,
tudo lhes corre bem. Por isso, não são
necessárias mudanças de fundo. Este é o desu-mano
Estado de direito declarado. As décadas
de experiência já realizada comprovam-no. In-quieta-
nos, enquanto seres humanos e humanis-tas,
que o sistema “Estado de direito” possa ser
aproveitado para esconder e perpetuar injustiça,
desigualdade, exploração do homem. Por isso,
algo terá de ser mudado, para que a esmagadora
maioria da população deixe de viver no seu “vale
de lágrimas”, ao mesmo tempo que uma minoria
se mantém comodamente instalada no seu “país
das maravilhas”. É longo o caminho a percorrer
para alcançarmos níveis aceitáveis de igualdade
e de justiça social. Sabendo, embora, que a
perfeição é um absoluto humanamente inalcan-çável,
reconhecemos todavia a possibilidade de
atingirmos um bom nível de efectivação do Es-tado
de direito. Por isso, não podemos perder
tempo. Urge pôr toda a sociedade a reflectir
sobre o que tem de ser feito. Uma coisa é certa:
esse não é um trabalho que possa ser deixado
apenas nas mãos do “poder instalado”, com a
alegada “participação” pelo voto “livre” e perió-dico
dos cidadãos. Sabemos que as eleições têm
servido sobretudo para “legitimar” o “poder
instalado”, dando-lhe um cariz “democrático”,
precisamente o que lhes faz falta para manter
um sistema de aparências. Participação sim, mas
não apenas essa do voto, de tantos em tantos
anos. É fundamental interiorizar que não pode-mos
esperar que sejam os outros, os que estão
bem, a generosamente proceder às alterações
necessárias para a efectivação do Estado de
direito, renegando voluntariamente aos seus
privilégios (e dos familiares e amigos). Os cida-dãos
não podem deixar a sua sorte apenas na
boa vontade do poder instalado que, inequivo-camente,
cuida antes de mais dos seus próprios
interesses. Tal atitude de passividade não tem
produzido frutos. Será mais sensato partir do
princípio de que ninguém abre mão de privilé-gios,
se a tal não for obrigado. Cumpre então
perguntar o que fazer, se o voto afinal se trans-formou
num instrumento que em larga medida,
ou mesmo em última análise, se converteu con-tra
os interesses da maioria? Será que apenas
restará a revolução sangrenta? A resposta é cla-ramente
não! Guerras e revoluções sangrentas
nunca resolveram coisa nenhuma. O que é ne-cessário
e urgente é criar nos cidadãos uma
consciencialização dos seus direitos, informá-los
de que podem e devem protestar e indignar-se
com a injustiça e a desigualdade, para que o
“poder instalado” sinta que está a ser atentamen-te
observado e que não pode “pisar o risco” (por
exemplo, nas frequentes práticas corruptivas).
É urgente tornar a actividade administrati-va
transparente e assegurar um efectivo
sistema de controlo externo, quer através de
órgãos independentes face à Administração, quer
através da acção dos tribunais. Sobretudo o
controlo jurisdicional tem de ser extrema-mente
exigente com a Administração, fazen-do
um cerco apertado em matéria de poderes
discricionários, “margens de apreciação”, impar-cialidade,
igualdade, justiça, boa fé, proporcio-nalidade,
etc. Sem uma acção determinada dos
tribunais nestes domínios, a Administração tem
todo o espaço de manobra para criar injustiças
e desigualdades efectivas, não obstante as leis
formalmente o proibirem (o que corresponde,
António Francisco de Sousa*
“... o Estado de direito tornado
realidade, aquele que chega
efectivamente, nas suas
múltiplas vertentes, ao dia-a-dia
dos cidadãos.”
“O que é necessário e urgente
é criar nos cidadãos uma
consciencialização dos seus
direitos...”
“Os cidadãos não podem
deixar a sua sorte apenas na
boa vontade do poder instalado
que, inequivocamente, cuida
antes de mais dos seus
próprios interesses.”
ONU
ONU
Estado de Direito, maio e junho de 2009 5
em geral, à situação que temos). A interpretação
e aplicação meramente formal do Estado de di-reito
permite constantes e graves injustiças e
mesmo ilegalidades materiais. Os tribunais têm
de se consciencializar que a Administração, sem
controlo jurisdicional, resvala inevitavelmente
para o arbítrio e, por conseguinte, não se realiza
Políticas públicas, sexismo e colonialismo
A hegemonia do processo de modernidade
ocidental invisibilizou as relações coloniais, sexistas
e racistas que com ela estavam entrelaçadas, o que
tem se refl etido na formulação das políticas públi-cas.
Reconhecer, pois, o caráter discriminatório ou
excludente de determinadas medidas legislativas,
administrativas ou judiciais é a outra face necessária
da análise dos chamados processos de inclusão.
Primeiro, porque a inclusão implica, sempre,
a necessidade de decidir quem são os membros do
grupo. O agente que estabelece a inclusão está, ele
mesmo, “além” da inclusão: o processo de inclusão
é, de certa forma, um processo de novos proces-sos
de exclusão. Esta dupla face, que permitiu a
invisibilização dos processos de desigualdade,
diferença colonial e de exclusão racial e sexual, é
que se põe a nu quando os mecanismos de inclusão
hoje utilizados são postos em ação: não é à toa que
as “ações afi rmativas” passem, até certa medida,
como “excludentes” daqueles que nunca se viram
“benefi ciários” do sistema, porque “naturalizadas”
as relações sociais. Ou que “gente branca de olhos
azuis” se veja vítima de “discriminação racial” ou
homens sintam-se “atingidos” por medidas que
reduzam o grau de desigualdade salarial ou ocupa-cional
experenciada pelas mulheres. Opera-se ora
pela negação das diferenças, ora pela absolutização
das diferenças.
Segundo, porque mesmo a defi nição dos termos
- gênero, sexo, sexualidade- não escapa de um
questionamento de um suposto universalismo. Que
tipo de relações sociais serão produzidas, ocultadas
ou mesmo visibilizadas se for utilizado o conceito
chinês de “xingbie” ao invés do convencional
“gênero” ou o árabe “shudhudh” para as relações
designadas como “homoeróticas”? Até que ponto
a “descolonização” da linguagem permite sejam
os fenômenos vistos de outra forma? Quais são
as formas possíveis de tradução entre os distintos
conhecimentos ( e, pois, de os tornar inteligíveis)? O
que é visto como eventual violação à dignidade com
a utilização de novos termos? A constitucionalização
do bem viver- “sumak kawsay” (no Equador) ou
“suma qamaña” (na Bolívia)- e atribuição de direitos
à natureza (“pachamama”) são dois bons exercícios
legislativos neste sentido.
Terceiro, porque determinadas práticas e formas
de lutas são vistas como “naturais” (ou únicas) e,
portanto, são reproduzidos os mecanismos de um
contínuo “desenvolvimento” e de etapas “necessá-rias”
para a “modernidade”. É possível, por exem-plo,
aceitar a “universalização” do “sair do armário”
defendido pelo movimento gay internacional ou,
pelo contrário, as táticas de “coming home” de
asiáticos são culturalmente mais “empoderadoras”
dos movimentos naquele continente? O “secula-rismo”
ocidental clássico é sempre a melhor forma
de defesa dos direitos das mulheres ou é possível
pensar um feminismo islâmico, com uma episte-mologia
corânica que trabalhe com formas mais
emancipatórias para 49 países que assumem o Islã
como religião ofi cial? E que dizer de um feminismo
indígena, assentado numa epistemologia aimará,
que, conforme salienta Silvia Rivera, está centrada
no “escutar” a “Pachamama” ( mãe terra) e não mais
na “visão”? A “descolonização” dos sentidos altera
o entendimento e a formulação de nossas lutas
contemporâneas?
Quarto, porque sendo entrelaçadas as desiguais
opressões, as lutas contra o racismo, sexismo e
colonialismo devem estabelecer distintas formas
de cooperação ou de prevalência. Como lembra
bell hooks, os homens negros podem ser vítimas
do racismo, mas o sexismo pode permitir que
oprimam as mulheres; as mulheres brancas podem
ser vítimas do sexismo, mas o racismo permite que
explorem negros e negras. Da mesma forma, as
mulheres ocidentais e brancas podem estabelecer
a melhor forma de as islâmicas serem “libertadas”
(invisibilizando, portanto, o colonialismo), ou o
movimento ecológico ocidental fi xar os parâmetros
para “preservação ambiental” a ser realizada pelos
indígenas ( ignorando, pois, conhecimentos diferen-ciados).
A luta por justiça cognitiva é a outra face
da luta por justiça social.
Quinto, porque todo o debate da intercultura-lização
nas políticas públicas demonstra o caráter
“experimental” de tais inovações, que procuram
“descolonizar”, ainda que parcialmente, as formas
de intervenção de e no Estado. As políticas “afi rma-tivas”
( que não se reduzem a “cotas”, mas envolvem
medidas pró ativas), imperfeitas que sejam na sua
aplicação, instáveis em sua elaboração, e mesmo
transitórias na formulação, implicam um grau de
“experimentação” na busca de soluções, demons-trando
que a aparente “neutralidade” das políticas
estatais não impediu o racismo mascarado de
“miscigenação”, o machismo estabilizado no âmbito
“privado” e a manutenção de todo um sistema de
“colonialismo interno”.
O impacto do reconhecimento da demodiversi-dade
(diferentes instituições com distintos graus de-mocráticos),
da sociodiversidade (distintos grupos so-ciais)
e da cosmodiversidade (diferentes cosmologias)
dentro de um Estado que sempre se viu homogêneo
ainda está para ser avaliado e testado nos próximos
anos. As lutas contra o racismo, o colonialismo e o
sexismo são muito mais complexas que a teoria social
e a prática jurídico-política vem admitindo. Terão os
poderes públicos (Judiciário incluído) ou o Ministério
Público se dado conta desta realidade?
*Mestre em Direito ( ULBRA/RS), doutorando Universidad
Pablo Olavide ( Espanha), chefe de gabinete no TRF-4ª
Região, é organizador do livro “Direitos humanos na sociedade
cosmopolita” ( Ed. Renovar, 2004).
César Augusto Baldi*
o Estado de direito. Temos, portanto, dois pila-res
fundamentais para a efectivação do Estado
de direito: por um lado, cidadãos conscientes,
informados, exigentes com os detentores do
poder, dispostos a protestar, a criticar e a de-nunciar
as injustiças e as violações da lei, apoia-dos
pelos advogados e pelas instituições políticas
e administrativas (cujos titulares de cargos têm
de se concentrar no cumprimento escrupuloso
dos seus deveres funcionais); por outro lado,
tribunais, conscientes do seu papel decisivo para
a efectivação do Estado de direito, fortemente
empenhados em cumprir efectivamente os seus
deveres, com exigência e sem receios. Há certa-mente
outros complementos importantes, tais
como uma justiça barata e célere, mas os dois
pilares referidos são, a nosso ver, os pontos
fulcrais de uma reforma profunda que tem de
ser feita, se queremos ter, daqui por alguns anos,
um Estado de direito efectivo. Poderá haver
necessidade de algumas alterações legislativas
(sobretudo nos planos do reforço da transpa-rência
da acção administrativa e de uma
maior e mais efectiva responsabilização dos
detentores do poder). Mas o acento tónico está
sobretudo numa nova atitude dos cidadãos e
dos tribunais, tudo em nome da justiça social
e do bem comum. Por enquanto, o que temos é
a realidade de profunda injustiça social, das
constantes violações dos direitos e liberdades
dos cidadãos, da discriminação, da falta de ética,
enfim, uma sociedade desumanizada que hipo-critamente
invoca para si o epíteto de Estado de
direito. A verdade é que as vítimas do sistema
são os principais responsáveis pela sua existên-cia
e perpetuação, na medida em que se deixam
iludir na ideia de que vivem num Estado de
direito. Acordemos, indignemo-nos, gritemos,
protestemos, critiquemos, exijamos uma Admi-nistração
Pública transparente e, com o apoio
de um controlo intenso e efectivo dos tribunais,
teremos, daqui por alguns anos ou décadas, um
Estado de direito efectivo.
*Mestre em Direito pelas Universidades de Freiburg (Alemanha)
e de Coimbra, Doutor em Direito e em Letras pela Universidade
do Porto, Portugal. Professor de Direito Administrativo da
Faculdade de Direito da Universidade do Porto.
“As lutas contra o racismo, o
colonialismo e o sexismo são
muito mais complexas que a
teoria social e a prática jurídico-política
vem admitindo.”
“... o acento tónico está
sobretudo numa nova atitude
dos cidadãos e dos tribunais,
tudo em nome da justiça social
e do bem comum.”
“... o sexismo pode permitir
que oprimam as mulheres; as
mulheres brancas podem ser
vítimas do sexismo, mas o
racismo permite que explorem
negros e negras.”
AGÊNCIA BRASIL
Estado 6 de Direito, maio e junho de 2009
Organizar a Vizinhança Global
Este será talvez maior desafio que se colo-cou
até hoje à humanidade! Ao descobrirmos
que entre a crosta terrestre, o mar, a atmosfera
e os seres vivos, existe um emaranhado de in-terligações
permanentes que sustentam a vida
no planeta, temos de adaptar o nosso modo
de vida e organização a este funcionamento
global da Biosfera. Somos todos vizinhos, todos
dependemos de todos e problemas globais não
se resolvem de forma isolada.
A busca de uma solução, para nos adap-tarmos
a esta realidade que nos era desconhe-cida,
passa obrigatoriamente, não pela busca
de novas formas de sancionar, mas sim, pela
assunção do papel de “organizador” do direito,
actuando assim de forma preventiva. E embora
para muitos este seja um problema do ambiente
e das ciências ambientais, parece-nos que a
crise ambiental tem a sua origem na deficiente
adaptação das nossas sociedades ao funciona-mento
da Biosfera. Por isso, a solução requer
uma nova abordagem jurídica a nível planetar
aliada a uma nova contabilidade relativamente
aos serviços vitais que os ecossistemas prestam,
e sem os quais, a vida tal como a conhecemos,
não é possível.
Depois de desvendadas estas ligações, as
abordagens as estas questões não podem ser
mais isoladas de todas as implicações e inte-racções
que se operaram como feedbacks, entre
todos os sistemas. Isto é, por exemplo, a análise
económica não pode deixar de ter em conta o
efeitos globais de determinada actividade, bem
como o sistema jurídico tem de absorver esta
globalização dos efeitos dos comportamentos de
cada um, e incorporar em si as consequências
económicas.
Este papel preventivo de organização, que
cabe em primeira linha ao Direito, é quase
desconhecido na vida de cada cidadão - sempre
visto de uma maneira impositiva e negativa “o
que não é proibido é permitido” fazendo com
que toda a sociedade encare a cultura jurídica
voltada para o litígio e não a busca da solidarie-dade,
diálogo, paz e justiça social. Este papel
tem de ser de novo assumido na sociedade
do futuro, organizando uma vizinhança, que
até há pouco tempo nos era completamente
desconhecida.
O que é o Condomínio da Terra?
As últimas descobertas acerca do funcio-namento
global da atmosfera, alteraram por
completo a percepção que tínhamos do planeta
que habitamos. Para o direito poder continuar
a desempenhar o seu papel de organizador das
sociedades, terá de ter a capacidade de ques-tionar-
se sobre alguns institutos jurídicos que
permaneceram intocáveis durante séculos.
O facto de todos os cidadãos ou Estados,
poderem afectar de forma positiva ou negativa
bens de que todos dependem e em que nenhum
deles se pode excluir do seu consumo, obriga
à procura de um sistema que permita a con-ciliação
dos legítimos interesses individuais
de cada cidadão ou Estado, com os interesses
colectivos de todos os habitantes do planeta e
dos inegáveis direitos das gerações futuras.
O modelo jurídico do condomínio permite
precisamente a conciliação destes interesses
normalmente opostos, através da definição e
delimitação das partes comuns, e que reque-rem
uma administração comum, relativamente
às partes individuais. Consegue de forma
absolutamente fantástica e com uma perfeita
“engenharia jurídica”.
E tal como as escadas, telhado e corredores
de um prédio, também o nosso planeta tem
partes comuns. Partes essas que são imprescin-díveis
à vida humana e que estão a precisar de
manutenção urgente. Se num prédio garantimos
a manutenção das partes comuns através do
Condomínio, porque não fazemos o mesmo para
o planeta? O Condomínio, depois de separar
e organizar o que são partes comuns e partes
individuais, permite que os interesses indivi-duais
e colectivos, em muitos casos opostos, se
conciliem e se tornem interdependentes. E se
aceitássemos o desafio de combinarmos a vida
com as ideias e pensássemos a Terra como um
imenso Condomínio?
Quais são as Partes Comuns?
A atmosfera, a hidrosfera e a biodiversidade,
são partes comuns do planeta. Não só porque
ultrapassam todas as fronteiras e os serviços que
prestam não podem ser divididos mas também
porque todos dependemos delas para viver e
todos as podemos afectar de forma positiva
ou negativa.
A atmosfera protege a vida no planeta e
o facto de criarmos fronteiras, não impede a
livre circulação do ar, de forma constante, por
todo o globo.
A hidrosfera é o conjunto de todas as águas
do planeta, águas que circulam de forma inces-sante
por todo o planeta, independentemente
das fronteiras políticas. Ninguém consegue pa-rar
ou dividir o ciclo da água, ou sequer prever
para onde é que a água vai a seguir.
A biodiversidade define-se como a totalida-de
dos recursos vivos e dos recursos genéticos
do planeta. O conjunto das formas de vida do
planeta compõe um ecossistema global e os
serviços essenciais que a biodiversidade presta,
não respeitam qualquer fronteira.
Serviços dos Ecossistemas
A Biodiversidade e os ecossistemas, são os
“motores” das partes comuns, ou seja, são eles
que sustentam a regulação dos ciclos da nature-za,
sendo determinantes no funcionamento dos
serviços ambientais vitais. Estes serviços podem
ser definidos como aqueles capazes de sustentar
e satisfazer as condições de vida humana, e
portanto serviços de interesse comum.
Soberania Complexa
A Soberania Complexa é uma proposta
de coexistência de soberanias autónomas num
espaço colectivo, ou seja, um poder político,
supremo e independente, relativo à fracção ter-ritorial
de cada Estado, e partilhado, no que
concerne às partes insusceptíveis de divisão ju-rídica,
(atmosfera, hidrosfera e biodiversidade)
das quais todos os povos são funcionalmente
dependentes.
Economia de Simbiose
A Economia de Simbiose propõe uma
articulação daquilo a que se poderia chamar
de “economia da manutenção dos sistemas
vitais” com a tradicional economia de produ-ção.
Aproveitando a valoração económica dos
Serviços Ecológicos Vitais já desenvolvida pela
Economia Ambiental, integra-se esta valoração
com o conceito de partes comuns, proposta pela
Soberania Complexa. Tornar possível a gestão
global dos bens indivisíveis, é o objectivo.
Valoração dos Serviços
Ambientais
Para entender o conceito agora proposto, é
fundamental distinguir a soberania ou proprie-dade
que é exercida sobre os ecossistemas, dos
serviços vitais que estes prestam. Estes serviços
não se confinam a nenhuma linha de fronteira,
a nenhuma forma de titularidade ou soberania,
são “usados” por todos, em qualquer ponto
do planeta e por isso são de interesse comum.
Se o valor destes serviços vitais é de alguma
forma incalculável, precisamente porque são
vitais, resta-nos a certeza de que os ecossis-temas
prestam serviços cujo valor económico
deveria ser muito superior aos lucros gerados
pela exploração tradicional dos seus recursos.
As árvores deveriam valer mais vivas do que o
valor da sua madeira!
Gaia Commitment - Forúm do Condo-mínio
da Terra - Decorrerá na Cidade de Gaia
nos próximos dias 4 e 5 de Julho. Este evento
vai trazer a Portugal vários oradores de todo o
Mundo das áreas de Ambiente e Ciências asso-ciadas,
Economia e Direito, para se debater esta
ideia e juntos procurarmos um projecto global
para perpetuar as nossas sociedades através
da preservação do ambiente natural. Entre os
parceiros que vão debater “Como Organizar a
Vizinança Global?”, vai estar o Jornal Estado
de Direito, que desde o início mostrou a
abertura e o espaço necessário para o jurista
pensar, imaginar e inventar, buscando novas
soluções, sem estar preso a paradigmas que
demonstaram já não funcionarem no planeta
que conhecemos hoje. Cedo percebeu o papel
primordial e preventivo de organização que
falta fazer a nível global e a necessidade de
envolvimento de toda a sociedade na inserção
dos cidadãos nas várias dimensões do que é
o “jurídico”. Por isso, pela sua identificsação
com este projecto e pelo papel absolutamente
central que o Brasil irá desenpenhar no futuro
ambiental do planeta, esta é uma parceria em
que depositamos todas as esperanças.
* L i c e n c i a d o p e l a U n i v e r s i d a d e d o Po r t o , P ó s -
graduado pela Universaidade de Coimbra, e aluno do
Doutoramento da Universidade de Salamanca. Autor do
livro “O Condomínio da Terra” publicado pela Editora
Almedina.
Paulo Magalhães*
DIVULGAÇÃO
Estado de Direito, maio e junho de 2009 7
Já é possível falarmos em um
Direito comum ou “mundializado”?
Desde a idéia do Estado de Direito, como forma
de proteger o indivíduo das arbitrariedades do poder
temporal, foi pensado e criado um poderoso instru-mento:
o Direito Positivo. Nos sistemas decorrentes
da família romano-germânica de Direito, o Direito
Positivo pode ser simbolizado e explicado a partir da
idéia de lei. Um mecanismo de “dever-ser” dissociado
da moral e da religião. Ciência, portanto.
Ocorre que a partir do aumento cada vez mais
crescente da sociedade, vamos ver uma profusão de
normas que torna a ordem jurídica pouco palpável,
digerível. Sentimos, assim, a necessidade de um
“Direito comum”, comum em todos os sentidos,
acessível a todos e que não fosse imposto de cima
ou por instituições ilegítimas.
O Direito uniforme vem se apresentando, após
o advento da criação da sociedade das nações, das
organizações de Direito Internacional, do consenso
de Washington, da União Européia, da nova Lex
Mercatoria, enfi m, de sistemas de formação de ordens
jurídicas independentes do Estado nacional, como
um mecanismo plural, mas que, paradoxalmente,
reduz a complexidade e a própria pluralidade. Não
permite aos povos manter sua identidade cultural e
jurídica. As que ainda as mantêm, estão a mercê do
que André-Jean Arnaud (In: Globalização e Direito
I) chama de la mondialisation, e que atua como ameaça
às peculiaridades de cada povo.
Surge, desta forma, um novo ideário jurídico,
para além do pluralismo e da complexidade dos
sistemas de Direito. Um Direito reinventado, um
“Direito Comum” (Mireille Delmas-Marty. In: Por
um Direito comum).
No plano da formação das normas, como ins-tância
suprema está o Parlamento. Este deve agir
com prudência e parcimônia, jamais devendo ceder
a pressões pouco ou nada legítimas dos escritórios
de legislação a mando de entidades privadas. Embora
arriscada, a redução da complexidade do sistema
jurídico-normativo, deve estar voltada à compreensão
das normas pelos seus destinatários últimos: o cida-dão,
o “homem médio” dos positivistas exegéticos.
Como exemplo de áreas do Direito interno
que devem dispor de normas mais facilmente com-preensíveis
estão o Direito do Trabalho, Tributário,
Financeiro, Alfandegário, Ambiental e, sem qualquer
dúvida, o Econômico, a servir de exemplo as leis
anti-trust. Atualmente, nestas áreas, o arcabouço
jurídico apresenta-se tão complexo e confuso que
até os advogados mais habilidosos encontram difi cul-dades
de compreender o que o positivismo jurídico
denominou de mens legis. Onde está, aqui, portanto,
o Direito Comum pretendido por alguns importantes
juristas da atualidade?
Considerados estes desafi os, será ainda possível um
Direito Comum? Algumas situações que bem retratam a
difi culdade merecem destaque: em 1987, um tribunal
de Nova Jersey reconheceu a validade de um contrato de
“barriga de aluguel” e determinou à locadora da barriga
a entrega da criança aos pais, tomadores do “serviço”;
em 1988, um tribunal da Califórnia entendeu que um
doador de sangue por ser proprietário das células no
mesmo contidas, tinha direito a royalties sobre os me-dicamentos
fabricados a partir de tais células; em 1988,
uma clínica britânica recrutou cidadãos turcos que
quisessem vender seus rins. Ou seja, nestes exemplos,
o corpo humano é coisa que faz parte do comércio. Seria
possível conciliar esta posição com a de outros sistemas
normativos que entende estar este fora do comércio?
Até quando, em um cenário de direito mercantilizado,
alguma coisa permanecerá fora do comércio? Este é
apenas um dos inúmeros e inimagináveis exemplos
que podem ser formulados a partir da perspectiva de
um direito mundial ou “comum”.
Dentre estes e outros, vai o espaço nacional
cedendo lugar a novas formas de Direito, fundadas
em normas internacionais e supranacionais, onde
prevalece a preocupação econômica que, quase
sempre, passa ao largo do código dos povos, sendo
este produto do tempo, da tradição.
Como exemplo a ser seguido, cabe lembrar
Malone x Reino Unido (agosto de 1984): a lei deve
ser “sufi cientemente acessível; o cidadão deve poder
dispor de informações sufi cientes, nas circunstâncias
da causa, sobre as normas jurídicas aplicáveis a um
dado caso; em segundo lugar, só se pode considerar
como lei uma norma enunciada com sufi ciente preci-são
para permitir a um cidadão reger sua conduta”.
E como atores principais na concepção de um
Direito Comum, estão também juízes e advogados.
Estes últimos, em especial, deverão cuidar para não se
transformar em “comerciantes do direito”, expressão
de Dezalay (In: Marchands de droit, Fayard, 1992).
Os primeiros, juízes, sem formar uma “ditadura da
toga”, deverão interpretar o direito de modo a pos-sibilitar
a concretização dos direitos fundamentais
do homem e dos povos. Cabe ao legislador, em
especial, evitar a “orgia das leis” (Grant Gilmore),
e servir de mecanismo de fi ltro para normas vindas
de fora pouco ou nada coincidentes com os valores
que também devem preservar como “fabricantes de
leis”, em certas situações impostas de forma unilateral
como condição ao recebimento de vantagem pessoal
ou outro fi m particular.
Para fi nalizar este breve ensaio, importante afi r-mar
que Direito Comum é Direito acessível a todos,
Direito que não simpatiza com o “abuso do direito
de legislar”. Lembrando Portalis, o Direito deve ser
compreendido apenas como meio de comunicação
entre “a lei e o povo” se o povo saiba ou possa saber
que a lei existe e que existe como lei.
*Advogado. Mestre em Direito pela Universidade do Vale do
Rio dos Sinos. Professor de Direito Internacional na FEEVALE
(Novo Hamburgo -RS, Brasil) e UNISINOS (São Leopoldo
– RS, Brasil).
Leandro de Mello Schmitt*
Estado 8 de Direito, maio e junho de 2009
Direitos Humanos: realidade ou discurso?
Falar em redução da importância das frontei-ras
e em internacionalização crescente do nosso
cotidiano chega a ser hoje um lugar-comum, um
clichê que, por vezes, expressa muito pouco.
Às facilidades tecnológicas que nos permitem
saber instantaneamente o que se passa em países
distantes, acompanhar seu cotidiano (conhecer
da situação do trânsito ao prato do dia no res-taurante
ou a agenda cultural) e que deixam
seus habitantes, longes no espaço, ao alcance
de um toque no teclado, somam-se as intensas
relações diplomáticas e comerciais, que tornam a
convivência internacional uma intrincada malha
social e econômica, em que um incidente na
Rússia afeta diretamente a bolsa de valores em
São Paulo, em interesses que se entrelaçam e,
muitas vezes, se chocam.
Neste contexto, ganham força as obrigações
que os países assumem publicamente, prome-tendo
cumprir e defender um conjunto mínimo
de valores comuns, que estabelecem mecanismos
de proteção dos direitos humanos. São vários os
tratados internacionais já assinados, cuidando de
direitos civis e políticos, econômicos, sociais e
culturais, proteção ao meio ambiente, tratamento
adequado a refugiados, proibição de discriminação
de gênero, raça ou credo e assim por diante.
O Brasil, cuja Constituição Federal solene-mente
eleva a dignidade da pessoa humana à
condição de fundamento da própria existência
republicana e que reafirma que a presença do
país no cenário internacional tem a prevalência
dos direitos humanos como um de seus prin-cípios,
é signatário de vários destes tratados
e aceitou expressamente a jurisdição da Corte
Interamericana de Direitos Humanos.
Este gesto, pleno de significados simbólicos,
demonstra a importância que o respeito aos
direitos humanos assume em nosso dia-a-dia,
permitindo que a comunidade internacional
conheça de casos concretos onde o Estado
brasileiro tenha descumprido os compromissos
assumidos e violado direitos daqueles que vivem
em território nacional.
Assim, deixar de garantir o direito à vida
ou à saúde, não decidir em tempo adequado os
casos que são levados ao Poder Judiciário, não
investigar crimes, deixar impunes os autores
de medidas lesivas aos direitos humanos são
exemplos simples de situações que, acontecidas
no Brasil, mesmo atingindo apenas brasileiros,
podem gerar uma condenação internacional.
Esta condenação pode trazer várias conseqü-ências:
expor o Brasil a censura internacional (re-conhecimento
público de desrespeito aos direitos
humanos), obrigar à reparação dos danos, tanto
com o pagamento de indenizações em dinheiro,
quanto com a especificação de obrigação de fazer
(repor o estado anterior daquele cujo direito foi
violado; adotar medidas públicas de reconhe-cimento
da falha estatal e adoção de políticas
públicas para evitar a repetição do ato etc).
Como se sabe, no âmbito internacional os
municípios, o Distrito Federal e os estados-mem-bros
não tem capacidade de agir e assim como
não podem assumir encargos (financiamentos,
acordos, contratos etc), também não podem ser
responsabilizados. Isso faz com que a punição
internacional que decorra de atos imputados aos
estados-membros (por ação ou omissão) recaia
sobre o ente federal, como se deu, por exemplo,
na condenação imposta pela Corte Interameri-cana
de Direitos Humanos em razão da morte
de Damião Ximenes Lopes, ocorrida no Ceará,
em uma clínica médica privada, conveniada ao
Sistema Único de Saúde, onde se internara para
tratamento psiquiátrico.
A forma federativa, então, embora possa
influir em determinados casos concretos, não
poderá ser utilizada como escudo para evitar a
punição internacional que decorra da violação
dos direitos humanos.
Este quadro permite, então, afirmar a
existência de, ao menos, um duplo reconheci-mento
do interesse federal, que decorre quer da
obrigação da União de implementar as regras
constitucionais (e não é outro o motivo que pode
levar à intervenção por violação aos princípios
sensíveis, prevista no artigo 34, VII, “a”, da
Constituição Federal), quer da necessidade de
atribuir eficácia aos compromissos internacio-nais
assumidos.
Não se trata, por certo, de extinguir a estru-tura
federativa, mas, sim, de reconhecer o papel
reservado à União.
E é exatamente nesta teia de relações que se
insere o Incidente de Deslocamento de Competên-cia
- IDC, introduzido pela Emenda Constitucional
45/2004, e que permite ao Procurador-Geral da
República provocar o Superior Tribunal de Justiça
para transferir, para a Justiça Federal, fatos que
estejam submetidos ao Poder Judiciário Estadual.
Situações que, em regra, seriam de com-petência
da Justiça Estadual, se observada a
possibilidade de responsabilização internacional
do Brasil por violação dos atos internacionais
de proteção dos direitos humanos, poderão ser
deslocadas para a Justiça Federal, desde que de-monstrada
a necessidade de tal ato para efetivar
a proteção que se busca.
Esta medida de força não implica, é bom
ressaltar, a criação de um juízo de exceção ou
uma condenação prévia daqueles que vierem
a ser apontados como responsáveis pelo ato
ilícito, uma vez que os fatos serão transferidos
para o âmbito de atuação de um juiz federal
previamente instituído, também dotado de
todas as garantias da magistratura nacional, a
quem também compete zelar pela ampla defesa
e devido processo legal. A rigor, o deslocamento
pode se dar até em benefício do acusado, liberan-do-
o de um processo custoso e lento ou, ainda,
direcionado a condená-lo.
Por ser medida excepcional, normalmente
vista como um voto de desconfiança na estrutura
de poder do estado-membro, o IDC deve, de
fato, ser usado com ponderação, mas não pode
ser visto como um jogo de força, pois, antes
de tudo, é um instrumento capaz de ajudar na
implementação dos direitos humanos, com um
custo institucional muito inferior ao de uma
intervenção federal e muito mais efetivo do que
o simples “empréstimo” temporário da Polícia
Federal para a investigação de um crime.
Conhecer e tornar eficaz o IDC é, portanto,
medida salutar, que pode tornar o debate sobre
o respeito aos direitos humanos um assunto
central na agenda pública brasileira, despindo
a discussão de seu caráter meramente retórico
e buscando uma efetiva capacidade de mudar a
triste realidade que ainda nos cerca.
*Procurador da República. Diretor da ANPR – Associação
Nacional dos Procuradores da República. Mestre em
Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará.
Docente da ESMPU – Escola Superior do Ministério
Público da União. Autor do livro Direitos Humanos
e Federalismo: o Incidente de Deslocamento de
Competência (Atlas, 2009)
Ubiratan Cazetta*
“... deixar impunes os autores
de medidas lesivas aos direitos
humanos são exemplos
simples de situações que,
acontecidas no Brasil, mesmo
atingindo apenas brasileiros,
podem gerar uma condenação
internacional.”
“... o Incidente de
Deslocamento de Competência
- IDC, introduzido pela Emenda
Constitucional 45/2004, e
que permite ao Procurador-
Geral da República provocar
o Superior Tribunal de Justiça
para transferir, para a Justiça
Federal, fatos que estejam
submetidos ao Poder Judiciário
Estadual.”
“A forma federativa, então,
embora possa influir em
determinados casos concretos,
não poderá ser utilizada como
escudo para evitar a punição
internacional...”
MARCO DORMINO, ONU
Estado de Direito, maio e junho de 2009 9
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Estado 10 de Direito, maio e junho de 2009
Normatividade constitucional no século XXI
Completará vinte anos, em 09 de novembro
de 2009, a queda do Muro de Berlim. A derruba-da
das paredes e cercas de arame que separaram
a Alemanha por vinte e oito anos, entretanto,
pelo menos no que toca ao seu simbolismo,
tem muito mais a ver com o soerguimento e a
consolidação de relações políticas, econômicas
e sociais que, emergindo no início da segunda
metade do século XX, desestabilizaram concei-tos
e maneiras de compreender o mundo que,
até então, revelavam-se suficientes para que se
pudesse saciar a curiosidade humana.
Tenho em vista, especialmente, a globaliza-ção,
que, de acordo com ULRICH BECK (Poder
y Contra-Poder en La era Global: la nueva
economia política mundial, Paidós Estado y So-ciedad,
2004), abarca, simultaneamente, ideias
de interconexão, de fluxos transfronteiriços e
de superação de espaço e de tempo, assinalando
uma transformação histórica de decomposição
da modernidade ou, nas palavras de ALAIN
TOURAINE (Crítica da Modernidade, 7ª ed.,
Vozes, 2002.), “de uma modernização endóge-na,
do triunfo das luzes da razão e das leis da
natureza”.
Concepções outras, no entanto, agregaram-se
ao longo da década de noventa e do início do
século XXI, contribuindo para uma elucidação
do atual momento histórico.
Destaque-se a noção de risco que, para
ULRICH BECK (World Risk Society, Blackwell
Publishers, 2001), consubstancia “uma abor-dagem
moderna para prever e controlar as
futuras consequências da ação humana, as várias
consequências não planejadas da modernização
radicalizada. (...) uma tentativa institucionaliza-da,
um mapa cognitivo, para colonizar o futuro.”
Toda sociedade tem experimentado perigos,
todavia, sustenta BECK, o regime de risco é
uma função da nova ordem: não nacional, mas
global. Intimamente conectado com um processo
de tomada de decisão administrativo e técnico,
“risco pressupõe decisão (…) previamente
tomada com normas fixas de calculabilidade,
conectando meios e fins ou causas e efeitos. Tais
normas são precisamente o que a ‘sociedade de
risco mundial’ invalidou. Tudo isso se tornou
muito evidente com o seguro privado, talvez o
melhor símbolo da calculabilidade e da seguran-ça
alternativa – que não cobre desastre nuclear,
nem mudanças climáticas e suas consequências,
nem a quebra econômica da Ásia, nem o risco
pouco-provável e de elevada-consequência das
várias formas de tecnologia futura.”
Igualmente relevante se afigura a compreen-são
das mudanças atinentes ao poder soberano,
que HARDT, M. e NEGRI, A. analisam sob a
ideia diretiva de Império. Esclarecem os autores
(Império, 6ª ed., Record, 2004) que se trata,
atualmente, de atentar para um novo registro
de autoridade que alcança toda a produção e
reprodução da vida. O Império, dizem, “não
estabelece um centro territorial de poder, nem
se baseia em fronteiras ou barreiras fixas (...) O
conceito de Império caracteriza-se fundamen-talmente
pela ausência de fronteiras: o poder
exercido pelo Império não tem limites. Antes e
acima de tudo, portanto, o conceito de Império
postula um regime que efetivamente abrange a
totalidade do espaço, ou que de fato governa o
mundo ‘civilizado’ (...) o Império se apresenta
(...) como um regime sem fronteiras temporais,
e, nesse sentido, fora da História ou no fim da
História (...) O objeto de seu governo é a vida
social como um todo e assim o Império se apre-senta
como um paradigma de biopoder.”
Ideologia que se tem beneficiado da organi-zação
Imperial – de certa forma sua gestora – é
o neoliberalismo. Na medida em que o poder
soberano se organiza de maneira difusa, em
rede, e o mercado, principalmente na economia
internacional, consegue mitigar a soberania dos
Estados em determinados assuntos, espraia-se
o discurso de que se tem de buscar, prepon-derantemente,
a liberdade individual e a livre
empresa. Aos Estados incumbe manter, como no
liberalismo clássico, a estrutura administrativa
básica, garantindo, por exemplo, serviços públi-cos
de base – água, saneamento e educação – a
integridade da moeda e a segurança mediante
utilização de recursos militares e ações de
polícia. A intervenção direta na economia e no
mercado deve ser evitada.
A um contexto assim, que denomino situ-ação
de exceção permanente (CORVAL, P.R.S.,
Teoria Constitucional e Exceção Permanente,
Juruá, 2009), evidentemente, não está imune
a Constituição e a sua capacidade reguladora e
integradora da realidade social: sua normativi-dade.
Problemático é dizer se continua adequado
o entendimento acerca da normatividade cons-titucional
construído sob o influxo da teoria
pós-1945.
Embora crítica no que toca ao isolamento
entre realidade social e normatividade, a teoria
pós-1945 caracteriza-se por justapor, lado a
lado, esses elementos. Realidade e norma, aí,
se condicionariam reciprocamente para atribuir
à Constituição uma força própria motivadora e
ordenadora da vida social.
Onde, contudo, semelhante força normativa
num cenário político e econômico global-na-cional
gerador de dominação, propagador de
violência e contrário à criatividade constituinte
do ser humano, que revela características se-melhantes
àquelas encontradas em estados de
exceção, emergência ou sítio da primeira metade
do século XX, nos quais os preceitos fixados
na ordem jurídica, embora vigentes, não são
efetivados e em que se reafirma a lógica da in-suficiência
do regime democrático, a capacidade
de a constituição regular a vida é, sem dúvida,
ameaçada?
Nada melhor, portanto, do que buscar na
ideia mesma de exceção – adjetivada, nos últimos
tempos, pela permanência – categoria capaz de
contribuir para o entendimento do fenômeno
jurídico-político, em especial, do direito cons-titucional.
A exceção permanente encontra ponto
de partida na doutrina sustentada por CARL
SCHMITT – para quem, na exceção, o sujeito
da soberania não está adstrito a um catálogo de
competências, mas à decisão, subsistindo, toda-via,
“em sentido jurídico, uma ordem, mesmo
que não uma ordem jurídica.” (Teologia Política,
Del Rey, 2006) É consolidada, entretanto, numa
perspectiva ideológica distinta, na formulação
de GIORGIO AGAMBEN (Estado de Exceção,
Boitempo, 2004), que, em apertada síntese, em
harmonia com Walter Benjamin, postula ser
a exceção, o momento político originário, um
espaço vazio.
A relação entre norma e vida já não é de
simples reciprocidade, mas de imanência: o
dado normativo não é autônomo, estando, como
numa linha paralela, em mera correspondência
com a realidade. Em vez disso, a realidade social
é, além de sua parte integrante, por ele também
integrada, compondo um espaço de indiscerni-bilidade
a exigir o exercício de uma violência
pura, criadora, capaz de se viabilizar por meios
não-jurídicos de entendimento.
Enquanto a normatividade autônoma pós-
1945 pretende manter contato pleno com a
realidade, mas, ao enfrentá-la, manifesta certa
repugnância pelo que está diante de si e se
isola na mera reciprocidade – almeja emanci-pação,
conquistas pela sua capacidade regente,
mas, confrontado com o real, transmuta-se
em imobilidade – a normatividade, à luz da
exceção permanente, trata da criação/inscri-ção
do âmbito de sua própria referência na
vida social, de modo que a distinção entre
normatividade e realidade perde sua razão de
ser, emergindo espaços de solução de conflito
não juridicizados.
Reestruturada, nessas linhas gerais, a norma-tividade
constitucional, repercussões surgirão,
sem dúvida, no que se refere ao entendimento
da Constituição, dos direitos fundamentais, da
hermenêutica constitucional e da atividade dos
tribunais constitucionais.
Neste artigo, contudo, ponho em relevo
apenas duas grandes diretivas que, acredito,
emergem para a teoria constitucional do século
XXI sob as lentes da exceção permanente: (i)
a revalorização do processo histórica na com-preensão
do fenômeno político constitucional
e (ii) a ampliação do espaço destinado ao agir
político.
A influência do processo histórico, ninguém
ignora, encontra na teoria constitucional clássica
e na teoria pós-1945 seu ponto de partida. Toda-via,
na medida em que redimensionada a própria
compreensão da tensão entre normatividade
e vida não se poderá ler, de igual maneira, a
influência do dado histórico. Bem adverte JOSÉ
RIBAS VIEIRA que “em razão mesmo da grandeza
desse denso fluir histórico, ao qual a constituição
de forma constate defronta, não podemos, pro-vavelmente,
reduzir as fronteiras do atual cons-titucionalismo
somente a um esgotamento, por
exemplo, do paradigma constitucional pós-45, a
uma única variável explicativa seja a de caráter
valorativo ou de matriz política.” (Perspectivas
da teoria constitucional contemporânea, Lumen
Juris, 2007)
Na óbvia referência da teoria pós-1945 ao
processo histórico é luz externa para a compre-ensão
do direito. Sob a categoria da exceção,
em vez disso, por ele se sinaliza a insuficiência
mesma das análises que se pretendem exclusi-vamente
jurídicas no âmbito da teoria consti-tucional.
A ampliação do espaço destinado ao agir
político decorre de se reconhecer uma zona de
indiscernibilidade entre norma e realidade, em
que não se afigura possível inscrever no registro
jurídico a totalidade do fenômeno político-cons-titucional.
Trata-se, grosso modo, de assumir que
a conquistas e consolidação de direitos e valores
perpassa, muito mais do que o âmbito de um dis-curso
jurídico, em específico de direito constitu-cional,
nosso agir político. Noutras palavras: a
atribuição de direitos, de uma cidadania jurídica,
por mais desejável que possa ser não é suficiente
para viabilizar, qualitativamente, a emancipação
e a conquista de “novos” direitos, a exemplo dos
intermináveis debates concernentes aos direitos
humanos sociais. É preciso explorar a potência
destrutiva e constituinte da multidão que se
espalha pelo globo para alcançar ou manter, em
um nível que transcende a própria juridicidade,
objetivos e conquistas que, em determinado
momento histórico, no discurso constitucional
estrito, não se mostra acessível.
*Mestre em Ciências Jurídicas pela PUC-Rio; Advogado;
Assessor na Procuradoria Regional da República – 2ª
Região/Ministério Público Federal; graduado em Direito
na PUC-Rio, 2004. Autor do livro “Teoria Constitucional
e Exceção Permanente - Uma Categoria para a Teoria
Constitucional no Século XXI” publicado pela Editora
Juruá.
Paulo Roberto dos Santos Corval*
“Aos Estados incumbe manter,
como no liberalismo clássico,
a estrutura administrativa
básica, garantindo, por
exemplo, serviços públicos de
base – água, saneamento e
educação...”
“A ampliação do espaço
destinado ao agir político
decorre de se reconhecer uma
zona de indiscernibilidade entre
norma e realidade, em que não
se afigura possível inscrever
no registro jurídico a totalidade
do fenômeno político-constitucional.”
“... ponho em relevo apenas
duas grandes diretivas que,
acredito, emergem para a
teoria constitucional do século
XXI sob as lentes da exceção
permanente: (i) a revalorização
do processo histórica na
compreensão do fenômeno
político constitucional e (ii) a
ampliação do espaço destinado
ao agir político.”
“A relação entre norma e
vida já não é de simples
reciprocidade, mas de
imanência: o dado normativo
não é autônomo, estando,
como numa linha paralela, em
mera correspondência com a
realidade.”
Estado de Direito, maio e junho de 2009 11
As normas constitucionais admitem interpretação?
Já virou lugar comum dizer que a Constituição
da República de 1988, vintenária no ano passado,
resulta na mais perfeita expressão do pacto popular,
representando a democracia brasileira após muitos
anos de ditadura militar. Não é por outro motivo,
aliás, que recebe o nome de Constituição Cidadã.
Ao referendar o Estado Democrático de Direito, ela
assegura o aprimoramento das instituições sob o
apanágio das conquistas materializadas mediante
a tutela das cláusulas pétreas, mecanismos respon-sáveis
por proteger direitos fundamentais na sua
mais essencial aptidão qualitativa.
Ocorre que uma das mais sintomáticas lições
enraizadas nos manuais de direito constitucional
– a supremacia e a força normativa do texto cons-titucional–
vem sofrendo ramifi cações cuja espe-cifi
cidade merece ser disseminada com profunda
sobriedade à sociedade brasileira. Isto porque não
basta a mera proclamação vazia de que o ordena-mento
constitucional constitui o ápice das leis,
situando-se acima das demais normas jurídicas,
devendo estas subordinarem-se hierarquicamente
na conformidade dos conteúdos expostos na Lei
Maior. A garantia da constitucionalidade dos atos
normativos e dos comportamentos em geral ini-cia-
se da própria interpretação da Magna Carta,
quando ela mesma sofre o processo interpretativo
concretizador da justiça que dali emana.
Daquela lição basilar de proeminência constitu-cional
retumba a interpretação das leis de acordo com
a Constituição. Em conseqüência, todas as leis, por
exemplo, devem guardar conformidade com o acervo
constitucional de conteúdos e procedimentos, o que
implica sua regular formação e, mais importante, cor-respondente
compatibilidade material (de conteúdo
adequado aos ditames constitucionais). Nessa senda,
ganhou realce a fi gura dos princípios constitucionais,
através dos quais se permite não apenas declarar uma
norma como inconstitucional, mas conferir-lhe inter-pretação
em consonância aos expedientes axiológicos
erigidos pelo Texto Maior.
Porém, e aqui enaltecemos o ponto nevrálgico
da discussão, será que a própria Constituição
merece ser interpretada de acordo com os critérios
nela ditados? Nenhuma resposta no direito merece
ser dada de antemão, sem o confronto com um
caso concreto, exatamente pela inerência de ser a
ciência jurídica descendente da razão prática. Há
alguns meses o Supremo Tribunal Federal, a quem
compete dizer o que a Constituição representa na
sua vitalidade cotidiana, foi confrontado com uma
situação bastante peculiar. Determinado político
fora processado perante instância privilegiada, de
acordo com os ditames legais e, ao ser acossado
pela iminência de julgamento, resolveu renunciar
ao seu mandato. A questão posta no STF redun-da
no seguinte: deve este tribunal adentrar no
mérito da renúncia – claramente configuradora
de manejo em prol da imediata procrastinação
processual e de mediata impunidade do réu, tendo
em vista que a remessa dos autos para a compe-tência
ordinária implicará em inevitável extinção
de punibilidade – ou simplesmente interpretar
mecanicamente o artigo 53, §1º da Constituição?
O respectivo artigo deduz, em conformidade aos
julgamentos desta Corte, que deputados e sena-dores
serão julgados pelo Tribunal de Cúpula, na
constância de seu mandato. Uma vez desprovidos
da condição de parlamentar, seja por qualquer
motivo, dentre eles, a renúncia, a competência
de julgamento é retomada pelas regras comuns
de competência.
Parte dos Ministros do STF, em minoria, se
inclinaram pela desconsideração da renúncia por
qualificá-la nítido abuso de direito, propósito dia-metralmente
contraditório a um alegado direito
subjetivo de renunciar; neste sentido, remanes-ceria
ao Tribunal a prerrogativa de julgar o réu. A
tese vencedora, no entanto, preferiu – para usar
do verbo corrente no caso – renunciar à análise
do caso concreto em benefício, como consta da
decisão, “do que ocorre normalmente”, sem se
apegar a circunstâncias “extravagantes”.
Ora, uma das diretrizes primordiais da nossa
Constituição revela o desígnio pelo devido proces-so
legal, nele consagrando a devida consideração
das especifi cidades do caso concreto para efeito
de se promover a justiça. Neste exemplo, o STF
acatou verdadeira exegese do texto constitucional,
ao simplesmente condecorar o sentido literal
contido nas palavras de sua expressão, em vez de
realizar adequada interpretação de acordo com
os seus cânones mais elevados, como é o caso do
princípio da moralidade, a informar que também
as regras constitucionais merecem interpretação
auto-refl exiva. Ao fi m e ao cabo, parece-nos, a
interpretação mais recomendável seria aquela
adotada pela minoria da Corte, ao fazer persistir a
competência de o STF julgar aquele ex-político.
* Advogado, Professor Universitário, Mestre e Doutorando em
Direito pela UNISINOS
Mauricio Martins Reis*
“A garantia da
constitucionalidade dos
atos normativos e dos
comportamentos em
geral inicia-se da própria
interpretação da Magna
Carta...”
“... todas as leis, por
exemplo, devem guardar
conformidade com o acervo
constitucional de conteúdos e
procedimentos, o que implica
sua regular formação e, mais
importante, correspondente
compatibilidade material.”
Estado 12 de Direito, maio e junho de 2009
Uma pergunta sem resposta:
afinal, quais são os direitos sucessórios da convivente?
Apesar de estarmos em 2009, o Brasil ainda está
na idade das trevas quando o assunto em pauta é
a proteção da família, entendida esta no sentido
constitucional da expressão. Como em muitos
outros aspectos, não temos um texto constitucional
efi caz, uma norma suprema que conceda direitos e
prerrogativas ao indivíduo.
O art. 226 § 3º da Constituição (que eleva a
união estável ao status de entidade familiar) parece
ter a mesma efi cácia do 7º, V (o salário mínimo
será sufi ciente para atender às necessidades vitais
básicas do trabalhador e de sua família no que tange
a moradia, alimentação, educação, saúde, lazer,
vestuário, higiene, transporte e previdência social).
Ninguém responde hoje com segurança e fi rmeza à
seguinte pergunta: na prática, no formal de partilha,
quais são os direitos sucessórios da convivente da
união estável.
Só a título de curiosidade vale registrar que em
1940 (!) o art. 258 do Código Civil boliviano (escrito
pelo jurista Angel Ossório) previu ao concubino
supérstite direito hereditário idêntico ao do cônju-ge,
numa regra tão justa quanto clara, eliminando
quaisquer resquícios de dúvida.
Dentre os seis artigos que o Código brasileiro
reservou para regulamentar a união estável está o
famoso 1.790, talvez um dos piores artigos da his-tória
jurídica de nosso país. Em síntese o dispositivo
demarca o conjunto de bens nos quais a convivente
herdará com o falecimento de seu parceiro. Esse
local no qual a convivente concorrerá com os outros
herdeiros do fi nado é exatamente a parte que coube
ao falecido na meação dos bens comuns.
Explicando melhor: Reúne-se tudo o que o casal
construiu ao longo de sua parceria de vida. Metade
já pertence à convivente, afi nal, o regime é o da
comunhão parcial de bens (levamos 112 anos de
República para estabelecer esse regime sem ressalvas
para a união estável). A outra metade pertencia,
portanto, ao falecido. É nesta outra metade que a
convivente herdará, segundo o artigo já citado.
O detalhe é que – se a hipótese fosse de casa-mento
sob comunhão parcial – a esposa herdaria
nos bens particulares do falecido marido (bens que
ele herdou, recebeu de doação ou mesmo comprou,
mas antes de casar).
Neste ponto, cabe uma observação muito
relevante. Não é sempre que o cônjuge herdará em
melhores condições do que o companheiro. Imagine
a hipótese em que há enorme prevalência de bens
comuns e quantidade reduzida de bens particulares.
Neste caso, concorrendo com um fi lho comum, o
companheiro meará e depois herdará metade dos
bens comuns, enquanto que o cônjuge nas mesmas
condições apenas meará, fazendo a sucessão sobre
os reduzidos bens particulares existentes.
Da maneira pela qual a lei estabelece, a con-vivente
de união estável pode acabar tendo mais
direitos do que a esposa em comunhão universal.
Imagine que José e Maria se uniram no ano de 1970
e – como a imensa maioria da população brasileira
– pouco herdaram, conquistando a maior parte
do seu patrimônio durante a vida de casados. Tal
enlace durou exatamente 39 anos, quando José
falece. No momento do inventário, os bens parti-culares
trazidos por José ao casamento limitam-se
a poucos livros e um carro muito velho, ao passo
que o patrimônio construído ao longo da vida do
casal perfaz considerável soma em dinheiro liquido,
além de dezenas de bens imóveis a garantir a renda
da viúva. O casal teve dois fi lhos.
Se José e Maria tivessem se casado sob o regime
da comunhão universal de bens, Maria não teria
direitos sucessórios (a pessoa casada em comunhão
universal não herda do cônjuge quando concorre
com descendentes). Faria jus então à sua meação,
levando 50% da grande massa patrimonial adquirida
na constância do casamento.
Se o caso fosse de união estável, pela letra fria
da lei em vigor, Maria faria jus a 50% da meação e
ainda herdaria sobre os outros 50%, concorrendo
com seus dois fi lhos justamente na massa de bens
mais volumosa, levando, portanto, uma maior
quantidade de bens do que no primeiro caso.
Percebe-se, portanto, que vivemos hoje uma
situação de convulsão legislativa. A lei ora parece
conceder mais direitos aos cônjuges, ora pende radi-calmente
para o lado da convivente, não se podendo
responder ao certo – para efeitos sucessórios – qual
é a melhor opção patrimonial: se o casamento ou
a união estável.
O próprio STJ percebeu tal descompasso: “A
diferença nas regras adotadas pelo código para um
e outro regime gera profundas discrepâncias, che-gando
a criar situações em que, do ponto de vista
do direito das sucessões, é mais vantajoso não se
casar” (MC 14.509/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi,
3ª Turma, julgado em 21/8/2008).
A Escola Paulista da Magistratura em curso reali-zado
em 2006 proferiu a Conclusão n.º 1 a respeito
da concorrência sucessória do convivente: “Afi gura-se
inconstitucional a previsão do art. 1.790 do CC ao
atribuir a participação do companheiro na sucessão
em concorrência com os fi lhos sobre os bens havidos
onerosamente durante a convivência”.
Juízes de 1ª instância também têm decidido pela
inconstitucionalidade do art. 1.790:“A regra inscrita
no art. 1.790 do CC padece, realmente, do vício da
inconstitucionalidade” (Processo n.º 03.092595-9,
da 3ª Vara da Família e Sucessões do Foro Central
de São Paulo).
Porém, após afastar a incidência do artigo 1.790,
os magistrados devem se atentar para não deixar
a convivente sem herança. Exclui-se o art. 1.790
e concede-se o quê? Nesse cenário parece que os
princípios gerais do Direito indicam que o caminho
adotado é mesmo o de se atribuir à convivente os
mesmos direitos sucessórios da esposa casada em
comunhão parcial, conforme a Bolívia já fez há
quase setenta anos.
A conclusão que se chega é que no Brasil,
o homicida – antes de praticar seu crime – tem
informações claras a respeito das conseqüências
do seu ato. Sabe com precisão qual a pena mínima
e máxima que poderá sofrer, tem condições de
conhecer os recursos que terá a sua disposição,
as regras para o sursis, as normas sobre liberdade
provisória etc.
Já a mulher que encontra seu parceiro de vida,
que deseja com ele formar o núcleo básico da so-ciedade,
com ingredientes de afeto, consideração,
amor e respeito, auxiliando o Estado no ofereci-mento
de pessoas educadas e bem criadas para o
desenvolvimento de uma sociedade evoluída, não
obtém respostas seguras a respeito das normas que
pautarão sua vida familiar, especifi camente no que
tange às conseqüências sucessórias desta união.
*Bacharel em Direito, Mestre e doutorando pela Faculdade
de Direito da USP. Entre os livros publicados pela Editora
Atlas destacamos “Medidas Provisórias: o Executivo que
legisla“, “Direito Civil: Sucessões - v. 9” e “Direito Civil:
Parte Geral - v. 3”
Gustavo Rene Nicolau*
MARCELLOCASAL JR ABR
Estado de Direito, maio e junho de 2009 13
Entrevista
Lei Fundamental Alemã
O Professor Dieter Grimm (*) palestrou no dia 08 de abril, no Goethe-Institut Porto Alegre, na Conferên-cia
Lei Fundamental da Alemanha 60 anos de conquistas, desafi os e perspectivas, nessa oportunidade o
Jornal Estado de Direito registrou a entrevista. Confi ra!
Estado de Direito: Primeiramente, gostaría-mos
que o senhor explicasse um pouco como
funciona o ingresso na Magistratura alemã,
considerando também sua atuação como
Magistrado do Tribunal Constitucional Federal
Alemão?
Dieter Grimm: Existe uma diferenciação
entre um Juiz que atua na Jurisdição ordinária e
os Juízes do Tribunal Constitucional, em termos
de ingresso. Um juiz de carreira (togado) é no-meado
de acordo com a sua qualidade e seus
conhecimentos pelo Ministério da Justiça, com
base nas notas auferidas nas provas realizadas
pelos diversos estados da federação e que
asseguram o acesso às carreiras jurídicas, exi-gindo
uma nota mínima para os que pretendem
ingressar na Magistratura, sendo chamados
de acordo com as vagas disponibilizadas. Já o
Juiz do Tribunal Constitucional é eleito. Metade
dos juízes do Tribunal Constitucional é eleita
por uma das casas do Parlamento e metade
pela outra casa, sendo o mandato de doze
anos. O entrevistado considera esta uma boa
regra, pois além de ter que ser escolhido por
uma das casas do Parlamento, a eleição se dá
pela maioria qualificada de dois terços, o que
significa que esse juiz vai ter que ter um apoio
de pelo menos dois partidos majoritários, o que
impede que seja escolhida uma pessoa que
tenha posições extremadas. Isso não significa
que um juiz que não pertença a um determinado
partido político vá ser preterido, mas é uma boa
regra na escolha dos juízes.
ED: O Senhor poderia fazer um balanço
sobre os 60 anos da lei fundamental alemã ao
longo de sua trajetória existencial, especialmen-te
sobre a sua força normativa e receptividade
pela população?
DG: Ele acredita que a atual Constituição
Alemã, a Lei Fundamental de 1949 , é a mais im-portante
da Alemanha até agora, por pelo menos
quatro motivos. 1. Num primeiro sentido, temos
uma questão temporal, visto que a Constituição
de 1848, do Império, durou 47 anos, a Cons-tituição
de Weimar, por 17 anos, ao passo que
a Lei Fundamental de 1949 completa 60 anos
agora em maio. 2. Em segundo lugar é uma
questão de relevância. As pessoas vislumbram
na Constituição uma obra de significado para as
suas vidas, pois a Constituição tem peso nas
suas escolhas e elas se identificam com a sua
Constituição, o que está fortemente vinculada à
criação e ao papel desempenhado pelo Tribunal
Constitucional, no que diz com a proteção e
desenvolvimento do direito constitucional,
bem como com a formação, na Alemanha, do
assim designado “patriotismo constitucional”.
3. Um terceiro fator, vinculado à identificação
do indivíduo com a Lei Fundamental, reside na
possibilidade de qualquer pessoa, sempre que
estiver diante de uma suposta violação a direito
fundamental, pode ajuizar diretamente uma
reclamação constitucional sem qualquer cus-to,
buscando um pronunciamento do Tribunal
Constitucional. 4. Em quarto lugar porque essa
Lei Fundamental serviu de exemplo também
para diversas outras Constituições que foram
elaboradas após 1949.
ED: A Lei Fundamental define a Alemanha
como um Estado Social. Qual a razão dessa
opção e não a de positivar direitos sociais,
econômicos e culturais?
DG: O professor acredita que há especial-mente
dois motivos pelos quais não foram
positivados os direitos fundamentais sociais.
Primeiro, porque a experiência anterior que
eles tinham era a experiência da Constituição
de Weimar, que sobre esse aspecto, apesar de
ter positivado direitos fundamentais sociais,
não teve sucesso. Sendo eles considerados
de menor importância, sua força normativa
não foi desenvolvida e assim eram tidos como
meras declarações políticas, destituídas de
vinculatividade. A partir daí, a idéia era não
repetir essa tentativa de positivar direitos fun-damentais
sociais.
A segunda razão, que é a mais importante,
é que no Conselho Constituinte havia certa
polarização política entre Liberais e Social-
Democratas. Ambos os lados tinham mais
ou menos a mesma força e isso fez com que
nenhum conseguisse estabelecer - os Liberais
a ausência total de normas sociais e os Sociais
Democratas a positivação mais ampla dos
direitos sociais – predominantemente seus
interesses. Dada essa igualdade de forças, o
compromisso entre os dois lados foi alcançado
justamente na figura dessa norma que institui o
Estado Alemão como um Estado Social, apesar
de a Lei Fundamental não positivar direitos
sociais propriamente ditos.
ED: Quais os mecanismos de controle de
constitucionalidade das leis alemãs?
DG: O entrevistado refere novamente que foi
precisamente com a Lei Fundamental de 1949
que, pela primeira vez na historia da Alemanha,
foi estabelecida uma Corte Constitucional, já
que isso não foi previsto nas Constituições
anteriores e essa Corte tem amplos poderes
para justamente analisar a constitucionalidade
de atos do governo. Isso foi um reflexo da ex-periência
com o nazismo, um período durante
qual praticamente não se ligava para a lei, não
havia qualquer controle dos atos do governo,
seja do Poder Executivo, seja do Poder Legis-lativo,
razão pela qual se previu uma eficiente
Jurisdição Constitucional, representada pelo
Tribunal Constitucional Federal, que decide de
cinco a seis mil casos por ano.
ED: Para a tutela dos direitos fundamentais a
população conta com a “queixa ou reclamação
constitucional”. Como funciona esse procedi-mento
e qual tem sido seu papel efetivo para
o desenvolvimento, proteção e promoção dos
direitos fundamentais?
DG: No que tange à Reclamação Constitu-cional
(Verfassungsbeschwerde), o entrevista-do
asseverou que qualquer pessoa pode trazer
uma demanda perante a Corte, designadamente
nos casos de violações de direitos fundamen-tais
por parte do Estado. Isso significa que
não são apenas cidadãos alemães que podem
ajuizar essa reclamação, mas também estran-geiros
que estejam na Alemanha no momento
da violação. Claro que há algumas condições
para o uso da Reclamação Constitucional.
O primeiro, dentre os mais importantes, é a
exaustão dos outros meios para a cessação
dessa violação, ou seja, as instâncias inferiores
da Jurisdição devem ser acessadas antes de se
recorrer ao Tribunal Constitucional. Também há
o limite temporal de quatro semanas, ou seja,
até quatro semanas após o ato que violou ou
supostamente violou um direito é que é possível
ingressar com a Reclamação. O entrevistado
reiterou que desses cinco a seis mil casos que
a Corte julga anualmente, em torno de 95%
são sobre casos individuais. Quando se trata
de casos mais relevantes, as decisões são
tomadas pelo Plenário da Corte, ao passo que
nos demais casos a decisão é afeta a um cole-giado
composto por três Juízes. Precisamente
o fato de que qualquer pessoa pode fazer essa
Reclamação Constitucional contribui para o
alto respeito que os alemães têm pela Corte
Constitucional.
ED: O Princípio da Proporcionalidade tem
sua origem na Alemanha? A sua aplicação na
jurisprudência constitucional alemã diverge
muito da de outros países, como é o caso dos
Estados Unidos?
DG: De fato, a origem do Princípio da Pro-porcionalidade
é alemã. Ele surgiu no direito
administrativo, no século XIX, em questões vin-culadas
ao direito de polícia. Apenas em 1950
é que a Corte Constitucional passou a utilizar
o princípio, tornando-se ele em um princípio de
direito constitucional. O princípio é usado pela
Corte Constitucional sempre que está envolvida
a limitação de direitos fundamentais pela lei,
ou seja, a questão é sempre determinar se a
restrição que é feita de um direito fundamental
é proporcional ou não. Além disso, é feito
também um teste de proporcionalidade dos
atos do Executivo que aplicam as leis. É uma
aplicação de dois tempos: primeiro verifica-se
se a lei é proporcional na sua limitação que
faz dos direitos fundamentais e, no segundo
momento, se o ato que aplica aquela lei tam-bém
é proporcional. O entrevistado acredita
que os direitos fundamentais na Alemanha
são protegidos justamente pelo Princípio da
Proporcionalidade.
ED: Como se dá a relação entre o Tribunal
Constitucional e os demais Órgãos Estatais?
DG: A Corte Constitucional Alemã na ver-dade
é um órgão muito poderoso, justamente
por essa ampla prerrogativa de controle cons-titucional.
O que acontece então é que diversos
atos do governo, bem como algumas decisões
de instâncias inferiores da jurisdição, são decla-rados
inconstitucionais. Isso significa que por
vezes os outros poderes são tolhidos nos seus
interesses e nas suas intenções e nem sempre
gostam disso. Neste contexto, o entrevistado
frisa desconhecer situação na qual a Corte foi
desobedecida, o que se deve principalmente
ao grande apoio popular do qual goza a Corte
Constitucional. Ou seja, como a população
apóia a Corte o custo político, para os partidos
políticos e para órgãos dos três Poderes, no
sentido de não cumprirem uma decisão ema-nada
pela Corte, seria muito grande.
ED: Para finalizar, o senhor poderia falar
CARLOS BAILON
sobre o que significa o Estado de Direito na sua
concepção e qual a contribuição alemã e da Lei
Fundamental para a afirmação e compreensão
de tal modelo?
DG: O mais básico de tudo é justamente
a idéia de que ele consagra o império da lei,
isso é, assegurar que a forma de exercício do
poder político esteja em conformidade com a
lei. Disso resultam pelo menos quatro aspectos
a considerar: a) que o próprio Estado do qual
emanam as leis, e não apenas os indivíduos,
está submetido a essas leis; b) que todos
aqueles atos estatais que submetem o cidadão
a fazer ou deixar de fazer alguma coisa emanam
da lei, o que, para o entrevistado, é justamente
o contrário do império do arbítrio; c) Outro
aspecto relevante é que tudo depende então de
existir a lei, o que significa que algumas coisas
precisam ser reguladas, como por exemplo, a
proteção de diversos direitos. A regulação pelo
legislador, por sua vez, não assegura por si só
um conteúdo legítimo e justo às leis, de tal sorte
que são necessárias garantias de conteúdo
dessas leis, para que elas sejam justas, ou seja,
que haja respeito dos direitos fundamentais no
que tange ao conteúdo da lei; d) O quarto as-pecto
seria que o Estado de Direito não funciona
sozinho: as instituições muitas vezes sentem-se
inclinadas a não cumprir a lei (o que inclui a
Constituição) o que significa que é necessário
que haja órgãos de controle. É neste plano que
assume importância a Corte Constitucional.
Para este controle ser realmente efetivo,
para garantir o Estado de Direito, é necessário
que não só a jurisdição como um todo, mas
especialmente a Corte Constitucional seja inde-pendente
em relação aos demais poderes.
(*) Catedrático Emérito da Universidade de Humboldt de Berlim,
membro da New York University School of Law, Professor
Visitante de Direito (Georges Lurcy Visiting Professor of Law) da
Yale Law School e Professor Visitante no Programa “International
Legal Studies Courses und Reading Groups” (2008-2009)
da Harvard Law School. Foi Professor na Universidade de
Bielefeld, no Instituto Max-Planck de História do Direito
Europeu de Frankfurt, além de Professor e Reitor (2001-2007)
do Instituto de Estudos Avançados (Wissenschaftskolleg) de
Berlim, e Magistrado do Tribunal Constitucional Federal Alemão
(1987-1999). Tradução: Ivar Alberto M. Hartmann. Revisão da
tradução: Ingo Wolfgang Sarlet
especial
Estado 14 de Direito, maio e junho de 2009
Àqueles a que tudo julgam, a que tudo estarão a julgar?
Chega 2009 e um tema se mantém na pauta. A
Reforma do Judiciário (ao lado da constante reforma
processual) ocupa a mente de juristas, juízes, advo-gados,
políticos, jornalistas e deveria estar na mira
de todo o brasileiro preocupado com os rumos da
cidadania, como um bonus pater familias, cuja casa
esteja (constantemente) em obras. Não obstante a
importância da horizontalidade do respectivo de-bate,
o que nos ocupa por ora é o rumo que toma a
verticalização do tema na Imprensa, no Legislativo e
dentro do Poder Judiciário, no contexto da Sociedade
do Espetáculo, pulsante na esfera pública.
No ano que encerrou, 2008, a jovem Consti-tuição
Federal festejava seus vinte anos e a idosa
codifi cação civil os seus cinco anos no Brasil. Dentre
os muitos eventos dedicados aos aniversários, eu
destacaria um momento em específi co. Na abertura
do Congresso da OAB, dedicado ao Código, onde
tive a honra de ladear o ilustre amigo, Prof. Antonio
Junqueira de Azevedo (USP), seguindo à sua fala.
Disse assim, o preclaro doutrinador paulista, como
arauto do evento: “Nunca se viu, na sociedade bra-sileira,
tão grande fuga do Poder Judiciário, como
nesses cinco anos de vigência do Código Civil. A
sociedade está fugindo do Judiciário. Exemplo disso
é o crescimento dos juízos de conciliação e das cortes
de arbitragem.” A fala seguinte, coube a mim. Disse
eu, no momento vestibular de minha conferência:
“Nunca se viu, na história desses muitos brasis, uma
acorrida tão grande ao Poder Judiciário, como nesses
vinte anos de vigência da Carta. À luz da edifi cação
de uma Estado Social, no desenvolvimento de sua
imanente cidadania, o povo, para bem além de suas
elites, inicia paulatinamente à acessar o Judiciário. Em
detrimento de juízos excepcionais, não raro dirigidos
pela mais diversa forma de criminalidade. Onde não
houver Estado, alguém ocupará seu papel.”
Destaque maior vai para o fato de que não há
divergência alguma entre minha conferência e a do
Prof. Junqueira. Apenas estavamos a falar de brasis
distintos, dentre os muitos brasis que se abrigam no
“território real” (?) dentro do “mundo real”. Em um
deles, de mega-corporações e empreendimentos, essa
fuga é uma evidência; porém no Brasil-favela, irredu-tível
a fórmulas em seus paradoxos, uma mudança
no sentido contrário se pôs em curso. Mesmo que
fosse em um “horário diferido”, com um algo “fora
de expediente”, então chamado “Juizado de Pequenas
Causas”, certas camadas da população passaram
a acessar espaços de cidadania que não lhes eram
permitidos. Destaque-se o esforço em prol do cha-mado
acesso à justiça, corporifi cado em especial nas
Defensorias Públicas que se espalham nas unidades
da federação; onde, vergonhosamente, o estado de
SC até hoje não o implementou, negando realização
de direitos fundamentais de muitas comunidades
necessitadas.
Ocorre que, precedentemente a qualquer dis-cussão
sobre acesso à justiça, deve-se ter uma sólida
noção do que tomamos por Jurisdição e, sem dúvida
relevante perquirir na contemporaneidade nacional,
o que percebe-se como um mínimo jurisdicional
necessário. Afi nal, ao vetar a auto-tutela dos direitos
subjetivos pelos particulares, o Poder Público atrai
para si um dever de prestar uma adequada juris-dição
aos respectivos direitos. Ou seja, um dever
de jurisdicionar minimamente e com efi cácia os
direitos subjetivos de seus administrados, adequando
procedimentos e ritos à singularidade das lides que
aportam diariamente nos foros e tribunais. De modo
indisponível.
É nesse contexto que gostaria de proceder alguns
destaques que viabilizem uma crítica, quiçá útil, aos
rumos da discussão das muitas reformas pensadas
em torno do processo e do Judiciário. Principalmente
para não corrermos o risco de reduzir a discussão à
tematização, mormente em torno da efi ciência, de
números e resultados; mera expressão da percepção
do drama processual das partes como um número
lançado à capa dos autos.
Nesse contexto, importante destaque vai para as
diversas manifestações e a crescente simpatia para
com as iniciativas conciliatórias. Em 2008 chegou-se
a ver em solo nacional, mutirões em unidades da
federação, não sem aplauso da Presidência do STF;
fato certamente indicativo de uma tendência. Na
imprensa as respectivas autoridades emolduram tais
iniciativas sinalizando com a impossibilidade de ins-truir-
se e julgar tantos processos. Perceba-se o quanto
isso é chocante. Não a afi rmação, propriamente, mas
como ela passou em branco. Certamente dissesse
o Ministro da Saúde, em meio à uma suposta ou
afi rmada crise do sistema de saúde, que o problema
do setor decorreria do excesso de doentes no Brasil,
estaria sendo indagado do sentido de suas palavras.
Já o Judiciário parece ter certas prerrogativas decor-rentes
do hermetismo jurídico; não raro úteis para o
silêncio do espaço público. Desse modo percebe-se
o quanto é forçado um acordo nos processos, com
diversas marcações de audiências conciliatórias, não
raro ancoradas em risíveis (quando não trágicas)
tentativas quase coativas de não se instruir os feitos.
Bom para todos... Quais todos ??? Talvez àqueles que
acusem os recursos como vilões procrastinatórios.
Serão eles que retiram efetividade do processo ao
suspender seu trâmite ? Para isso, o efeito suspensivo
deveria ser regra na esfera recursal... Mas não é...
Não obstante, distribuída uma separação, esta, antes
de qualquer apreciação irá, no estado do RS, para o
Projeto Conciliação. Somente após começar-se-á a
discutir seu mérito... Depois de quanto tempo ???
E se houver alguma urgência nesse ínterim, com
a alteração do estado fático do objeto litigioso ??
Implementa-se a tipologia do atentado. Quem vai
apreciar a respectiva cautelar ? O Projeto Concilia-ção
??? E a dependência por conexão que resulta no
apensamento ?? Basta explicar ao Juiz e apressar o
Cartório para desapensar, não é ?? Quanto tempo terá
passado ??? Como apreciar a cautelar em dependência
(ou seja, não preparatória, incidental) sem os autos
principais ?
Perceba-se o quanto da credibilidade da De-mocracia
é posta em risco com tal aposta da admi-nistração
da Justiça e regulação do processo. Nesse
passo, importa perquirir se alguém ousaria apontar
a realidade processual trabalhista como exemplo de
efetividade processual, no contexto brasileiro. Qual
a efi cácia, portanto, da problemática unifi cação do
processo de conhecimento com o de execução, no
último conjunto de reformas do processo civil? O
procedimento mudou ?? Tudo virou uma grande
monitória ??? Aumentou-se a efetividade do processo
civil ???? Já iniciativas como juizados especiais intine-rantes
existentes em regiões mais pobres, ou ainda a
iniciativa manauara do Juizado Especial de Trânsito,
onde um pequeno cartório e sala de audiências circula
em um veículo e julga in loco os respectivos litígios,
fi cam fora do foco dos “diálogos”. Parece-me, estas
últimas experiências, estarem muito mais próximas
de iniciativas em prol da efetividade do processo do
que as demais. Não obstante, o que comparece ao
espaço público para um monólogo acéfalo, parece o
contrário. E isso é muito signifi cativo.
Voltemos, pois, aos recursos (sem trocadilhos).
Direito, ao fi m e ao cabo, lida com valores, de modo
a trazer a subjetividade qual sua sombra (em verdade
sua luz). Isso é fato (o que também é valor) irretor-quível,
mesmo quando negado nas teorias apegadas
ao fetiche da neutralidade. Neutralidade de todos
!! Sistema, Juiz, Legislador... Isso quando a própria
teoria é o elemento de menor neutralidade, dentre
os players metafisicamente privilegiados. Temas
recorrentes podem revelar problemas recorrentes.
Aqui não se vislumbra exceção. Por trás de tudo,
o outro. “O inferno são os outros”, já disse Sartre,
mesmo “entre quatro paredes”. Diferença. Alteridade.
O outro.
Não há processo sem o outro; não havendo
Direito sem alteridade. Essa frase tem implica-ções
carentes de serem razoavelmente exploradas
nos limites de um editorial; mas revela amplas
possibilidades de investigar o tema em liça. Até
porque tratar a reforma do Processo é tratar de
alteridade. De mudança... Ou não... Como se trata
também, especifi camente no recurso. Reformar...
Ou não... Simulacro. Paradoxalmente, processo é
representação e, portanto, sempre mapa; nunca
território. Assim perceberia Boudrillard. Os atores
(ou fantoches) processuais, estão imersos na Matrix.
Em alguma medida, demandar é adormecer. Sonhar
com conceitos e embalar pretensões.
A norma é a inimiga da alteridade, sempre que
tomada no paradigma tradicional. De outra banda,
ela também é a própria afi rmação dessa alteridade.
Normaliza-se, e portanto normatiza-se, somente o
que oscila. Nunca o que é estático ou sem relativos.
Sem relatividade não há medida. Rule... Sem relati-vidade,
qualquer medida é desmedida... Qualquer
verdade é desmentida...
E sequer chegamos a tocar no tema recursal... Tal-vez
como um recurso retórico... Talvez não... O tema
merece editorial próprio. Até lá... Sem recurso...
* Possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1992),
mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (1998) e doutorado em Direito pela
Universidade Federal do Paraná (2000). Atualmente é professor
titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
profissional liberal - Ricardo Aronne Advocacia e Consultoria
Jurídica, professor convidado da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
Ricardo Aronne*
Interrogações sobre Direito Processual e Simulacro na Sociedade do Espetáculo
LUIZ SILVEIRA -SCO- STF