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Gattaca e a Nova Cosmologia Humana

Clonagem, engenharia genética, organismos geneticamente modificados, Projeto Genoma
Humano, terapia gênica: a moderna biotecnologia tem potencial para alterar profundamente a
natureza e o próprio ser humano, e vem levantando polêmicas éticas. Os debates sobre
questões científicas costumam apresentar continuidades e descontinuidades conceituais no
transcorrer da história. Descobertas ou invenções surgem carregadas de valores éticos,
religiosos, bem como de aspectos econômicos, políticos e de forças sociais. Em alguns
períodos históricos, o homem teria pensado que a terra era achatada, em outros, que era o
centro do universo. Ao longo do tempo, portanto, noções e conceitos estão a todo instante
em pleno processo de mutação e são constantemente reinterpretados e mesmo reinventados,
além dessas compreensões terem marcado o pensamento de várias gerações. E o cinema não
ficou indiferente a isto, como no filme que iremos analisar. Este filme apresenta uma
discussão sobre a comercialização das técnicas de manipulação genética que garantem uma
vida "tranqüila" e "bem-sucedida" para o ser geneticamente perfeito. O nome Gattaca
relaciona-se às primeiras letras de nucleotídeos do DNA e é condizente com a discussão a
respeito do destino de uma pessoa ser determinado pela sua composição genética. O
trabalho consiste na compreensão de algumas de suas instâncias representativas,
problematizando as noções de determinismo biológico e cultural a ele
associadas.Transpassam o trabalho as discussões sobre “natureza humana”, representação e
apropriação ideológica de modelos científicos e morais.Situa-se portanto dentro do debate
histórico entre natureza , cultura e ciência,e as suas possíveis conseqüências nos
empreendimentos de uma representação da construção cosmológica ocidental.

O filme se passa em um futuro, talvez bem próximo, em que as técnicas de engenharia
genética seriam capazes de orientar a produção de filhos "perfeitos". No entanto, alguns
casais ainda seguem o "método tradicional" e deixam que as leis da meiose e da fecundação
ao acaso gerem seus filhos, chamados "Inválidos". É assim que nasce o personagem principal
do filme, Vincent (talvez uma alusão a "vencedor").Vincent trabalha em uma empresa de vôos
espaciais, GATTACA. Essas letras representam as bases nitrogenadas do DNA e são
semelhantes a um trecho do DNA cortado por um tipo de enzima de restrição, que são as
enzimas fundamentais para a engenharia genética, já que permitem cortar o DNA de um
organismo e inserir o DNA de outro organismo.Vincent está determinado a fazer parte de uma
equipe em um vôo para Titã, uma lua de Saturno. Para isso, porém, ele tem de esconder sua
"identidade genética", já que possui um problema cardíaco sério, que provocará sua morte por
volta dos 30 anos. Vincent esconde esse problema apresentando nos exames amostras do
sangue e da urina de Jerome, um indivíduo geneticamente "perfeito", que, por acidente, ficou
paraplégico.

A sociedade de Gattaca está dividida em duas “classes sociais”, os Válidos, os “filhos da
Ciência”, produtos da engenharia genética e da eugenia social, e os Inválidos, os “filhos de
Deus”, submetidos ao acaso da Natureza e às impurezas genéticas. Gattaca retrata uma
sociedade de classe cuja técnica de manipulação do código genético tornou-se prática
cotidiana de controle social.No final, a trama de Gattaca sugere um drama familiar, um “filho
de Deus”, nascido do acaso da Natureza, outro, produto de um planejamento genético quase
perfeito. O que se observa é que o tema da técnica de manipulação genética perpassa todo
o drama policial (e familiar) de Gattaca. Apesar do mais alto controle social garantido pelo
registro genético, a espécie humana continua a mesma: dividida em classes sociais e se
utilizando de subterfúgios escusos e clandestinos para atingir seus interesses egoístas. Ao
lado dos mais sofisticados recursos de manipulação genética, que hoje estão se tornando
realidade pelos avanços da engenharia genética e da biologia molecular, assistimos a um jogo
de ambição e fraude, seja a de Vincent para ter acesso à corporação Gattaca e realizar seu
sonho de tornar-se astronauta; ou do diretor Josef, de Gattaca (representado pelo escritor
Gore Vidal, num papel especial), que assassina outro diretor num jogo de poder.

Numa sociedade de controle social quase-absoluto, os “de baixo” apelam para fraudes sutis,
clandestinas, como forma de resistência individual ao totalitarismo do destino genético. Nesse
ambiente de resistência individual, pode-se perceber certa solidariedade entre os “de baixo”,
como a atitude condescendente do faxineiro Caesar (representado por Ernest Borgnine) ou
pelo médico Lamar, que aparentam certa simpatia pelos ideais transgressores de
Vincent/Jerome.

Questões Eticas

Há portanto, as implicações morais (o que é certo, o que é errado) das aplicações da
medicina e da biotecnologia. Assim,o filme nos leva a questões do tipo: Seria ético que os
pais escolhessem o sexo e outras características da criança? Uma pessoa deve ser informada
se um teste genético indicar que ela poderá desenvolver uma doença incurável no futuro?
Empresas e companhias de seguro têm o direito de realizar testes genéticos em seus
funcionários ou em candidatos a um emprego para detectar doenças que poderão se
desenvolver no futuro e assim impedir seu desenvolvimento profissional ? Isso já pode ser
feito em relação às doenças recessivas ligadas ao cromossomo X. Nesse caso, são usadas
técnicas de reprodução assistida para implantar apenas embriões femininos e heterozigotos
para a doença. Mas será que esses procedimentos ficarão restritos às doenças ou as
pessoas poderão se achar no direito de escolher algumas características de seus filhos, como
a cor dos olhos ou o nível de inteligência? Será que haverá então uma divisão entre os que
poderão pagar por esses testes e, em alguns casos, por sua cura, e os que não poderão?
Nesse caso, haveria o risco de uma discriminação baseada no código genético de cada um.As
questões não param: É desejável uma sociedade que controla e determina o que cada um
deve querer ou pode realizar? E quem decide esse controle? É justo discriminar e cortar o
acesso ao que uma pessoa quer a partir de "imperfeições" genéticas, como ocorre com
Vincent, em oposição a seu irmão perfeito (Anton), que, por isso, tem todas as chances? E
qual o critério de perfeição? Imperfeito é aquele que é "diferente"? Aliás, no filme aparece um
pianista de seis dedos em cada mão, capaz de tocar uma peça especialmente criada para
ele. Os seis dedos representam uma "imperfeição"? Será que alguém, para ser feliz, tem de
ser "perfeito"? No filme, descobrimos que Jerome Eugene ("eugene", em grego, significa "bons
genes"), o amigo paraplégico de Vincent, tenta se matar por não ter vencido um concurso.A
diferença entre o que é e o que deve ser implica em que, mesmo no caso de existir uma
influência genética nas diferenças de habilidades (em termos estatísticos) entre indivíduos,
qualquer pessoa deve ter o direito de desenvolver seu potencial como achar melhor. Não é
possível extrair um juízo de valor a partir de uma teoria científica. Em outras palavras: valores
pertencem à esfera ética e não à esfera científica, e a ciência não pode dar conta de todas
as necessidades humanas, nem é a única forma de conhecer e de se relacionar com o
mundo.No filme , isto acontece na corporação Gattaca, mas poderia se passar num Campo de
Concentração ou numa sociedade totalitária qualquer. E Vincent representa o homem - em
sua luta contra o sistema, agora representado pelos imperativos categóricos da eugenia
social. A ambição individualista de Vincent é que conduz a trama. A sua luta é contra o
destino de classe – ou casta? - agora demarcado, graças ao avanço da técnica, pelo
estigma do destino genético. É um destino genético produzido pelo homem, mas que, na
medida em que é produto de um afastamento das barreiras naturais – o domínio do código da
vida - numa sociedade de classe, tende a tornar-se uma “segunda natureza”. É contra essa
“segunda natureza”, produzida pela manipulação técnica, que Vincent se revolta e busca uma
saída individual.

Em Gattaca, os proletários seriam os Inválidos, os Condenados da Terra. Apesar disso, a
atitude arrogante do verdadeiro Jerome diante de um policial que o interroga, numa certa
passagem do filme, sugere que, mesmo entre os Válidos existe uma certa hierarquia de classe
- a não ser que os policiais, guardiães da Ordem genético-fascista da sociedade de Gattaca,
sejam da classe dos Inválidos. Não podemos culpar a técnica em si, mas a forma social que a
desenvolve e se apropria dela.

Primeira Natureza X Segunda Natureza

Gattaca sugere o dualismo Acaso (ligado a “primeira natureza”) versus Planejamento
(imperativo da “segunda natureza”). Pode-se apreender no filme, certa nostalgia de um
passado distante em que um fio de cabelo era apenas um fio de cabelo (ou uma mera
lembrança afetiva), e não um registro genético capaz de denunciar a identidade de classe
das pessoas, através de exame de DNA. A luta de Vincent não é apenas contra o Sistema de
Gattaca, mas contra si mesmo, contra seus fluidos e restos corporais capazes de denúncia-lo
como Inválido. É o estranhamento assumindo proporções abismais, atingindo o próprio ser
orgânico do homem, objeto de uma rede controlativa, de uma “grade”, talvez uma nova forma
de ciberespaço, capaz de aprofundar o controle social.

Mas apesar do clima totalitário, o filme expõe as falhas irremediáveis de Gattaca e do seu
sistema de controle. Contra a técnica que supostamente desumaniza o homem, na verdade,
o diretor e roteirista Andrew Niccol sugere uma “natureza humana” recalcitrante às
imposições sistêmicas. O filme dá a entender que, apesar de suas imperfeições, Vincent tem
uma determinação que lhe permite vencer suas limitações, ir para o espaço (talvez uma
metáfora para a capacidade de escapar de suas deficiências genéticas) e até vencer seu
irmão mais "perfeito" em uma aposta de natação. A força de Vincent viria então de uma
capacidade de livre arbítrio, capaz de modificar seu "destino genético". Genes, afinal, não são
destino, mas propensões. Isso quer dizer que os genes são um dos fatores que influem em
nossas características. Não podemos esquecer que o ambiente - em sentido amplo, o que
inclui a cultura e os fatores psicossociais - também deve ser levado em conta. Além disso, o
fato de que podemos prever as conseqüências de nossas ações - inclusive em um futuro
distante -, aumenta nosso poder de modificar nosso comportamento.

Devemos considerar também que o problema não é a ciência, mas sim como decidimos aplicar
o conhecimento científico. A pesquisa científica pode criar medicamentos que salvam vidas,
mas pode também criar armas de destruição em massa. O fundamental é que a sociedade
esteja bem-informada para tomar decisões, baseadas em princípios éticos, de modo a usar a
ciência para melhorar a qualidade de vida dos seres humanos e para manter a saúde
ambiental de nosso planeta. Cabe então à sociedade decidir seu futuro.Finalmente, é um erro
inferir como as coisas devem ser a partir de como as coisas são. Independentemente do
papel do gene nas características, o que é determinado ou influenciado geneticamente não é
necessariamente bom (ou mau), nem deve necessariamente ser estimulado.

Questões Psico-socio-economicas

À medida que o capitalismo busca o alargamento de seus limites, encontramos uma noção
para ilustrar o quanto esse sistema necessita, para sua própria perpetuação, de uma forma
de "inclusão diferencial". Trata-se de um processo de reinvenção constante e contínua do
sistema, no qual se parte da idéia "politicamente correta" de que não há mais diferenciações
no processo de entrada na dinâmica produtiva do mercado capitalista. Em princípio, todos
são igualmente capazes de se inserir no processo competitivo. É o próprio mercado que vai
selecionar e hierarquizar.Nesse sentido, a hierarquização se dará no próprio convívio social.
Nem todos estarão aptos a alcançar o que é visto como modelo ideal a ser vislumbrado na
dinâmica capitalista. Considerando que a produção e o consumo são os pilares mais
importantes do sistema vigente, todos os indivíduos com necessidades especiais, como a
Síndrome de Down por exemplo, serão considerados aptos a alçar vôos competitivos mais
altos quando se revelarem capazes de se aproximar da chamada normalidade. Aqueles que
não conseguirem entrar nessa disputa inerente à lógica capitalista, poderão ser inseridos no
mesmo patamar dos "invalidos" do filme Gattaca, sendo essa portanto uma forma mais
sofisticada de exclusão social.

Autores como Deleuze nos ajudam a compreender como o sistema gera mecanismos próprios
para capturar a subjetividade dos indivíduos e sobrepor suas formas e expressões. Diante
disso, o papel dos meios de comunicação de massa passa a ser fundamental na sociedade
contemporânea, denominado por diversos autores como o Quarto Poder, sobretudo em
função de sua capacidade de produzir modos de vida e dinâmicas sociais. A mídia é um
potente disparador de processos de subjetivação, porque ela investe como ninguém no
cotidiano de cada indivíduo, buscando adequar comportamentos e maneiras de pensar de
acordo com os interesses do capitalismo.

Trata-se de dizer que o capitalismo está sempre pronto a criar novos desejos ou a se
apropriar dos fluxos que não estejam de acordo com a sua dinâmica de funcionamento. Desse
ponto de vista, quanto maior for a "inclusão diferencial", mais eficaz será o controle e a
passividade diante do estabelecido como hegemônico. Conforme nos disse Deleuze , "não
existe exterior, não existem as pessoas de fora. Só existem pessoas que deveriam ser como
nós, e cujo crime é não o serem" .

Entre as continuidades e descontinuidades dos debates em torno controle genético , através
da decifração do código genético e modernas formas de comunicação como a internet pode
estar apontando para a idéia de que eventuais diferenças estão sendo dissipadas pela
instrumentalização científica, sufocando qualquer possibilidade de resistência à subjetividade
forjada permanentemente pelo capitalismo.

Nesse sentido, poderíamos nos indagar se apenas com o desenvolvimento das informações
genéticas e do prenúncio de um futuro mais sadio para a humanidade, estaríamos
engendrando novos modos de existência? Ou então, o que fazer com os processos de
resistência daqueles que de alguma maneira não se ajustam ou não querem se adequar às
padronizações e serializações impostas pela subjetividade capitalista?

A apropriação das descobertas científicas continua sendo uma questão premente de ser
discutida nos dias de hoje. O Projeto Genoma Humano, por exemplo, vem sendo alardeado por
grande parte da mídia como o caminho para a cura da maioria dos males que afetam a saúde
da humanidade, subestimando-se a possibilidade do surgimento de efeitos colaterais. Talvez
seja interessante fazer algumas ponderações necessárias para a ampliação desse debate, e
nada como voltar ao passado para perceber que "alguns dos males que a ciência e suas
aplicações provocam nascem do desejo de fazer o bem.

Trata-se, portanto, de buscar avaliar os possíveis efeitos da ciência na humanidade, que são
diversos e muitas vezes imprevisíveis. O problema é, na maioria das vezes, esse debate se
manter praticamente circunscrito à comunidade científica, que tende a se autoproclamar
como foco de disseminação de verdades totalizantes sobre as pesquisas em andamento.
"Quem fala de ciências conhecendo-as em detalhe e de primeira mão? Os próprios cientistas.
Também falam de ciência os professores, os jornalistas, o grande público, só que falam de
longe, ou com a incontornável mediação dos cientistas. 'Para falar de ciência é preciso ser
especialista', declara-se, de modo a bloquear de antemão qualquer pesquisa direta de campo.
Esse estado de coisas seria muito chocante em política ou economia. Imaginemos um político
dizendo: 'Só os políticos estão aptos a falar de política', (...), ou um jornalista: 'Eu sou a
corrente de transmissão dos políticos, aquela que explica ao público o que é preciso pensar'"

Se pensarmos bem,há muitas maneiras de abordar esse problema pelo aspecto da
racionalidade humana. Pode-se negar o problema ou reduzi-lo ao domínio da lógica habitual,
da normalidade e da boa adaptação social . Dessa perspectiva, corrigi-se as falhas, de modo
a retornar às normas dominantes. Inversamente, pode-se considerar que esses
comportamentos dependem de uma lógica diferente, que deve ser estruturada como tal. Em
vez de abandoná-los à sua irracionalidade aparente, vamos então tratá-los como uma
matéria do qual se podem extrair elementos essenciais à vida da humanidade, especialmente
à sua vida de desejo e às suas potencialidades criativas .




Autor : Enio Ferreira

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  • 1. Gattaca e a Nova Cosmologia Humana Clonagem, engenharia genética, organismos geneticamente modificados, Projeto Genoma Humano, terapia gênica: a moderna biotecnologia tem potencial para alterar profundamente a natureza e o próprio ser humano, e vem levantando polêmicas éticas. Os debates sobre questões científicas costumam apresentar continuidades e descontinuidades conceituais no transcorrer da história. Descobertas ou invenções surgem carregadas de valores éticos, religiosos, bem como de aspectos econômicos, políticos e de forças sociais. Em alguns períodos históricos, o homem teria pensado que a terra era achatada, em outros, que era o centro do universo. Ao longo do tempo, portanto, noções e conceitos estão a todo instante em pleno processo de mutação e são constantemente reinterpretados e mesmo reinventados, além dessas compreensões terem marcado o pensamento de várias gerações. E o cinema não ficou indiferente a isto, como no filme que iremos analisar. Este filme apresenta uma discussão sobre a comercialização das técnicas de manipulação genética que garantem uma vida "tranqüila" e "bem-sucedida" para o ser geneticamente perfeito. O nome Gattaca relaciona-se às primeiras letras de nucleotídeos do DNA e é condizente com a discussão a respeito do destino de uma pessoa ser determinado pela sua composição genética. O trabalho consiste na compreensão de algumas de suas instâncias representativas, problematizando as noções de determinismo biológico e cultural a ele associadas.Transpassam o trabalho as discussões sobre “natureza humana”, representação e apropriação ideológica de modelos científicos e morais.Situa-se portanto dentro do debate histórico entre natureza , cultura e ciência,e as suas possíveis conseqüências nos empreendimentos de uma representação da construção cosmológica ocidental. O filme se passa em um futuro, talvez bem próximo, em que as técnicas de engenharia genética seriam capazes de orientar a produção de filhos "perfeitos". No entanto, alguns casais ainda seguem o "método tradicional" e deixam que as leis da meiose e da fecundação ao acaso gerem seus filhos, chamados "Inválidos". É assim que nasce o personagem principal do filme, Vincent (talvez uma alusão a "vencedor").Vincent trabalha em uma empresa de vôos espaciais, GATTACA. Essas letras representam as bases nitrogenadas do DNA e são semelhantes a um trecho do DNA cortado por um tipo de enzima de restrição, que são as enzimas fundamentais para a engenharia genética, já que permitem cortar o DNA de um organismo e inserir o DNA de outro organismo.Vincent está determinado a fazer parte de uma equipe em um vôo para Titã, uma lua de Saturno. Para isso, porém, ele tem de esconder sua "identidade genética", já que possui um problema cardíaco sério, que provocará sua morte por volta dos 30 anos. Vincent esconde esse problema apresentando nos exames amostras do sangue e da urina de Jerome, um indivíduo geneticamente "perfeito", que, por acidente, ficou paraplégico. A sociedade de Gattaca está dividida em duas “classes sociais”, os Válidos, os “filhos da Ciência”, produtos da engenharia genética e da eugenia social, e os Inválidos, os “filhos de Deus”, submetidos ao acaso da Natureza e às impurezas genéticas. Gattaca retrata uma sociedade de classe cuja técnica de manipulação do código genético tornou-se prática cotidiana de controle social.No final, a trama de Gattaca sugere um drama familiar, um “filho de Deus”, nascido do acaso da Natureza, outro, produto de um planejamento genético quase perfeito. O que se observa é que o tema da técnica de manipulação genética perpassa todo o drama policial (e familiar) de Gattaca. Apesar do mais alto controle social garantido pelo registro genético, a espécie humana continua a mesma: dividida em classes sociais e se utilizando de subterfúgios escusos e clandestinos para atingir seus interesses egoístas. Ao lado dos mais sofisticados recursos de manipulação genética, que hoje estão se tornando realidade pelos avanços da engenharia genética e da biologia molecular, assistimos a um jogo de ambição e fraude, seja a de Vincent para ter acesso à corporação Gattaca e realizar seu
  • 2. sonho de tornar-se astronauta; ou do diretor Josef, de Gattaca (representado pelo escritor Gore Vidal, num papel especial), que assassina outro diretor num jogo de poder. Numa sociedade de controle social quase-absoluto, os “de baixo” apelam para fraudes sutis, clandestinas, como forma de resistência individual ao totalitarismo do destino genético. Nesse ambiente de resistência individual, pode-se perceber certa solidariedade entre os “de baixo”, como a atitude condescendente do faxineiro Caesar (representado por Ernest Borgnine) ou pelo médico Lamar, que aparentam certa simpatia pelos ideais transgressores de Vincent/Jerome. Questões Eticas Há portanto, as implicações morais (o que é certo, o que é errado) das aplicações da medicina e da biotecnologia. Assim,o filme nos leva a questões do tipo: Seria ético que os pais escolhessem o sexo e outras características da criança? Uma pessoa deve ser informada se um teste genético indicar que ela poderá desenvolver uma doença incurável no futuro? Empresas e companhias de seguro têm o direito de realizar testes genéticos em seus funcionários ou em candidatos a um emprego para detectar doenças que poderão se desenvolver no futuro e assim impedir seu desenvolvimento profissional ? Isso já pode ser feito em relação às doenças recessivas ligadas ao cromossomo X. Nesse caso, são usadas técnicas de reprodução assistida para implantar apenas embriões femininos e heterozigotos para a doença. Mas será que esses procedimentos ficarão restritos às doenças ou as pessoas poderão se achar no direito de escolher algumas características de seus filhos, como a cor dos olhos ou o nível de inteligência? Será que haverá então uma divisão entre os que poderão pagar por esses testes e, em alguns casos, por sua cura, e os que não poderão? Nesse caso, haveria o risco de uma discriminação baseada no código genético de cada um.As questões não param: É desejável uma sociedade que controla e determina o que cada um deve querer ou pode realizar? E quem decide esse controle? É justo discriminar e cortar o acesso ao que uma pessoa quer a partir de "imperfeições" genéticas, como ocorre com Vincent, em oposição a seu irmão perfeito (Anton), que, por isso, tem todas as chances? E qual o critério de perfeição? Imperfeito é aquele que é "diferente"? Aliás, no filme aparece um pianista de seis dedos em cada mão, capaz de tocar uma peça especialmente criada para ele. Os seis dedos representam uma "imperfeição"? Será que alguém, para ser feliz, tem de ser "perfeito"? No filme, descobrimos que Jerome Eugene ("eugene", em grego, significa "bons genes"), o amigo paraplégico de Vincent, tenta se matar por não ter vencido um concurso.A diferença entre o que é e o que deve ser implica em que, mesmo no caso de existir uma influência genética nas diferenças de habilidades (em termos estatísticos) entre indivíduos, qualquer pessoa deve ter o direito de desenvolver seu potencial como achar melhor. Não é possível extrair um juízo de valor a partir de uma teoria científica. Em outras palavras: valores pertencem à esfera ética e não à esfera científica, e a ciência não pode dar conta de todas as necessidades humanas, nem é a única forma de conhecer e de se relacionar com o mundo.No filme , isto acontece na corporação Gattaca, mas poderia se passar num Campo de Concentração ou numa sociedade totalitária qualquer. E Vincent representa o homem - em sua luta contra o sistema, agora representado pelos imperativos categóricos da eugenia social. A ambição individualista de Vincent é que conduz a trama. A sua luta é contra o destino de classe – ou casta? - agora demarcado, graças ao avanço da técnica, pelo estigma do destino genético. É um destino genético produzido pelo homem, mas que, na medida em que é produto de um afastamento das barreiras naturais – o domínio do código da vida - numa sociedade de classe, tende a tornar-se uma “segunda natureza”. É contra essa “segunda natureza”, produzida pela manipulação técnica, que Vincent se revolta e busca uma saída individual. Em Gattaca, os proletários seriam os Inválidos, os Condenados da Terra. Apesar disso, a atitude arrogante do verdadeiro Jerome diante de um policial que o interroga, numa certa
  • 3. passagem do filme, sugere que, mesmo entre os Válidos existe uma certa hierarquia de classe - a não ser que os policiais, guardiães da Ordem genético-fascista da sociedade de Gattaca, sejam da classe dos Inválidos. Não podemos culpar a técnica em si, mas a forma social que a desenvolve e se apropria dela. Primeira Natureza X Segunda Natureza Gattaca sugere o dualismo Acaso (ligado a “primeira natureza”) versus Planejamento (imperativo da “segunda natureza”). Pode-se apreender no filme, certa nostalgia de um passado distante em que um fio de cabelo era apenas um fio de cabelo (ou uma mera lembrança afetiva), e não um registro genético capaz de denunciar a identidade de classe das pessoas, através de exame de DNA. A luta de Vincent não é apenas contra o Sistema de Gattaca, mas contra si mesmo, contra seus fluidos e restos corporais capazes de denúncia-lo como Inválido. É o estranhamento assumindo proporções abismais, atingindo o próprio ser orgânico do homem, objeto de uma rede controlativa, de uma “grade”, talvez uma nova forma de ciberespaço, capaz de aprofundar o controle social. Mas apesar do clima totalitário, o filme expõe as falhas irremediáveis de Gattaca e do seu sistema de controle. Contra a técnica que supostamente desumaniza o homem, na verdade, o diretor e roteirista Andrew Niccol sugere uma “natureza humana” recalcitrante às imposições sistêmicas. O filme dá a entender que, apesar de suas imperfeições, Vincent tem uma determinação que lhe permite vencer suas limitações, ir para o espaço (talvez uma metáfora para a capacidade de escapar de suas deficiências genéticas) e até vencer seu irmão mais "perfeito" em uma aposta de natação. A força de Vincent viria então de uma capacidade de livre arbítrio, capaz de modificar seu "destino genético". Genes, afinal, não são destino, mas propensões. Isso quer dizer que os genes são um dos fatores que influem em nossas características. Não podemos esquecer que o ambiente - em sentido amplo, o que inclui a cultura e os fatores psicossociais - também deve ser levado em conta. Além disso, o fato de que podemos prever as conseqüências de nossas ações - inclusive em um futuro distante -, aumenta nosso poder de modificar nosso comportamento. Devemos considerar também que o problema não é a ciência, mas sim como decidimos aplicar o conhecimento científico. A pesquisa científica pode criar medicamentos que salvam vidas, mas pode também criar armas de destruição em massa. O fundamental é que a sociedade esteja bem-informada para tomar decisões, baseadas em princípios éticos, de modo a usar a ciência para melhorar a qualidade de vida dos seres humanos e para manter a saúde ambiental de nosso planeta. Cabe então à sociedade decidir seu futuro.Finalmente, é um erro inferir como as coisas devem ser a partir de como as coisas são. Independentemente do papel do gene nas características, o que é determinado ou influenciado geneticamente não é necessariamente bom (ou mau), nem deve necessariamente ser estimulado. Questões Psico-socio-economicas À medida que o capitalismo busca o alargamento de seus limites, encontramos uma noção para ilustrar o quanto esse sistema necessita, para sua própria perpetuação, de uma forma de "inclusão diferencial". Trata-se de um processo de reinvenção constante e contínua do sistema, no qual se parte da idéia "politicamente correta" de que não há mais diferenciações no processo de entrada na dinâmica produtiva do mercado capitalista. Em princípio, todos são igualmente capazes de se inserir no processo competitivo. É o próprio mercado que vai selecionar e hierarquizar.Nesse sentido, a hierarquização se dará no próprio convívio social. Nem todos estarão aptos a alcançar o que é visto como modelo ideal a ser vislumbrado na dinâmica capitalista. Considerando que a produção e o consumo são os pilares mais importantes do sistema vigente, todos os indivíduos com necessidades especiais, como a Síndrome de Down por exemplo, serão considerados aptos a alçar vôos competitivos mais
  • 4. altos quando se revelarem capazes de se aproximar da chamada normalidade. Aqueles que não conseguirem entrar nessa disputa inerente à lógica capitalista, poderão ser inseridos no mesmo patamar dos "invalidos" do filme Gattaca, sendo essa portanto uma forma mais sofisticada de exclusão social. Autores como Deleuze nos ajudam a compreender como o sistema gera mecanismos próprios para capturar a subjetividade dos indivíduos e sobrepor suas formas e expressões. Diante disso, o papel dos meios de comunicação de massa passa a ser fundamental na sociedade contemporânea, denominado por diversos autores como o Quarto Poder, sobretudo em função de sua capacidade de produzir modos de vida e dinâmicas sociais. A mídia é um potente disparador de processos de subjetivação, porque ela investe como ninguém no cotidiano de cada indivíduo, buscando adequar comportamentos e maneiras de pensar de acordo com os interesses do capitalismo. Trata-se de dizer que o capitalismo está sempre pronto a criar novos desejos ou a se apropriar dos fluxos que não estejam de acordo com a sua dinâmica de funcionamento. Desse ponto de vista, quanto maior for a "inclusão diferencial", mais eficaz será o controle e a passividade diante do estabelecido como hegemônico. Conforme nos disse Deleuze , "não existe exterior, não existem as pessoas de fora. Só existem pessoas que deveriam ser como nós, e cujo crime é não o serem" . Entre as continuidades e descontinuidades dos debates em torno controle genético , através da decifração do código genético e modernas formas de comunicação como a internet pode estar apontando para a idéia de que eventuais diferenças estão sendo dissipadas pela instrumentalização científica, sufocando qualquer possibilidade de resistência à subjetividade forjada permanentemente pelo capitalismo. Nesse sentido, poderíamos nos indagar se apenas com o desenvolvimento das informações genéticas e do prenúncio de um futuro mais sadio para a humanidade, estaríamos engendrando novos modos de existência? Ou então, o que fazer com os processos de resistência daqueles que de alguma maneira não se ajustam ou não querem se adequar às padronizações e serializações impostas pela subjetividade capitalista? A apropriação das descobertas científicas continua sendo uma questão premente de ser discutida nos dias de hoje. O Projeto Genoma Humano, por exemplo, vem sendo alardeado por grande parte da mídia como o caminho para a cura da maioria dos males que afetam a saúde da humanidade, subestimando-se a possibilidade do surgimento de efeitos colaterais. Talvez seja interessante fazer algumas ponderações necessárias para a ampliação desse debate, e nada como voltar ao passado para perceber que "alguns dos males que a ciência e suas aplicações provocam nascem do desejo de fazer o bem. Trata-se, portanto, de buscar avaliar os possíveis efeitos da ciência na humanidade, que são diversos e muitas vezes imprevisíveis. O problema é, na maioria das vezes, esse debate se manter praticamente circunscrito à comunidade científica, que tende a se autoproclamar como foco de disseminação de verdades totalizantes sobre as pesquisas em andamento. "Quem fala de ciências conhecendo-as em detalhe e de primeira mão? Os próprios cientistas. Também falam de ciência os professores, os jornalistas, o grande público, só que falam de longe, ou com a incontornável mediação dos cientistas. 'Para falar de ciência é preciso ser especialista', declara-se, de modo a bloquear de antemão qualquer pesquisa direta de campo. Esse estado de coisas seria muito chocante em política ou economia. Imaginemos um político dizendo: 'Só os políticos estão aptos a falar de política', (...), ou um jornalista: 'Eu sou a corrente de transmissão dos políticos, aquela que explica ao público o que é preciso pensar'" Se pensarmos bem,há muitas maneiras de abordar esse problema pelo aspecto da
  • 5. racionalidade humana. Pode-se negar o problema ou reduzi-lo ao domínio da lógica habitual, da normalidade e da boa adaptação social . Dessa perspectiva, corrigi-se as falhas, de modo a retornar às normas dominantes. Inversamente, pode-se considerar que esses comportamentos dependem de uma lógica diferente, que deve ser estruturada como tal. Em vez de abandoná-los à sua irracionalidade aparente, vamos então tratá-los como uma matéria do qual se podem extrair elementos essenciais à vida da humanidade, especialmente à sua vida de desejo e às suas potencialidades criativas . Autor : Enio Ferreira