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Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
1
2 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
Comissão Editorial
Ana Maria Dubeux Gervais
Irenilda de Souza Lima
Gilvandro Sá Leitão Rios
Flávio Henrique Albert Brayner
Guilherme José de Vasconcellos Soares
Fotos
Arquivo PDHC, Cláudio Gomes (PDHC) e Mário Farias (Diaconia).
Projeto Gráfico
Diego Jucá e Alba Almeida
Ficha Catalográfica
J26a Jalfim, Felipe Tenório, 1962 –
Agroecologia e agricultura familiar em tempos de globalização: o Caso
dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro
/ Felipe Tenório Jalfim. – Recife: Ed. do Autor, 2008.
160p. : il.
Inclui referências.
1. AGRICULTURA FAMILIAR – BRASIL – ASPECTOS SOCIAIS.
2. AGRICULTURA FAMILIAR – ADMINISTRAÇÃO. 3. AVICULTURA –
BRASIL - ASPECTOS ECONÔMICOS. 4. ECOLOGIA AGRÍCOLA –
BRASIL. 5. AGROSSILVICULTURA – BRASIL. 6. ASSOCIAÇÕES AGRÍ-
COLAS – BRASIL. 7. ECONOMIA AGRÍCOLA. I. Título.
CDU 338.1
CDD 338.1
PeR – BPE 08-0363
Impressão
Edições Bagaço
Recife, Pernambuco, junho 2008
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
3
Índice
Agradecimentos
Sobre Parceiros
Apresentação
Prefácio
PelaUniversidadedeCórdoba/ISEC
Prefácio
PelaUniversidadeFederalRuraldePernambuco/
CursodeLicenciaturaemCiênciasAgrícolas(LA)
1. INTRODUÇÃO
1.1.OProblemaesuaRelevânciaparaaAgriculturaFamiliar
1.2. Objetivos
2. INDUSTRIALIZAÇÃO AGROALIMENTAR
DA AVICULTURA NO BRASIL
2.1.AAviculturanoContextodaModernizaçãoeInternacionalização
daAgriculturaBrasileira
2.2.AAviculturanoContextodaConsolidaçãodosSistemas
AgroalimentaresGlobalizados
2.2.1.AsLimitaçõesRelacionadasaoModeloAvícolaBrasileiro
05
07
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4 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
3. O ENFOQUE AGROECOLÓGICO E O FORTALECIMENTO DA
CRIAÇÃO TRADICIONAL DE AVES COMO ALTERNATIVA AO
MODELO AVÍCOLA BRASILEIRO
3.1. OConceitodaAgroecologia
3.1.1.Elementos-chavedopontodevistadaAgroecologiaparaoEstudo
dacriaçãodegalinhasdecapoeiranaRegiãoSemi-áridadoBrasil
4. A CRIAÇÃO TRADICIONAL DE AVES NA REGIÃO SEMI-ÁRIDA
BRASILEIRA: UMA PRIMEIRA APROXIMAÇÃO
4.1.ACriaçãodeGalinhadeCapoeiranoBrasil:UmGiganteInvisível
4.2.ImportânciadosSistemasdeCriaçãodeGalinhadeCapoeirapara
osAgricultoresFamiliares
4.3.CaracterísticasPrincipaisdosSistemaseManejodaCriaçãode
GalinhadeCapoeiraDentrodaLógicadaAgriculturafamiliarnoSemi-
áridoBrasileiro
4.3.1.AsPrincipaisLimitaçõesdaCriaçãodeGalinhadeCapoeira
5. CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
69
70
73
107
108
111
119
128
139
147
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
5
São tantas as pessoas que contribuíram para a realização deste
trabalho, que me é difícil citá-las sem correr o risco de omitir alguém
que de alguma forma deu uma contribuição importante. Entretan-
to, apesar disto, na continuação eu tentarei mencionar as pessoas
que a seu modo e em certos momentos de minha caminhada fo-
ram decisivas para que eu pudesse conseguir chegar até aqui.
Agradeço aos professores Eduardo Sevilla Guzmán, Roberto
Trujillo e Marta Soler por toda a orientação acadêmica, apoio
profissional e atenção para a etapa de elaboração do presente
trabalho. Neste grupo do ISEC incluo com muito carinho minha
gratidão ao apoio das doutorandas Gloria Patricia Zuluaga e
Mariane Carvalho Vidal e dos doutorandos Marcos B. Figueire-
do e Jorge Roberto Tavares de Lima.
Com muito mais ênfase agradeço o incansável apoio que me
foi prestado por Enriqueta Tello García, do México, e Guillermo
Gamarra Rojas, do Brasil, com suas importantes contribuições
teóricas e metodológicas ao presente trabalho.
Agradecimentos
6 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
Agradeço a todos os meus amigos e amigas do Projeto Dom
Helder / Ministério do Desenvolvimento Agrário e entre estes
agradeço de uma maneira bem especial o apoio incondicional
que me deram Espedito Rufino e Fabio Santiago.
Através das pessoas de Félix Moreno e Guilheme Strauch agra-
deço a todos os demais amigos e amigas do Mestrado em
Agroecologia, que foram incríveis em termos de solidariedade,
companheirismo, amizade e carinho durante os bons e difíceis
momentos vividos durante a etapa presencial do mestrado em
Baeza, Espanha.
Ao final, mas não menos importante, agradeço o apoio cons-
tante que me foi prestado por Daniel Blackburn, Yazna Bus-
tamante, Ricardo Blackburn e por meus familiares, sobretudo,
minha esposa Glauce Albuquerque, minha mãe Shirley Jalfim,
minha tia Terezinha Jalfim e minha sogra Judite Albuquerque.
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
7
Sobre Parceiros
O Projeto Dom Helder Camara (PDHC), vinculado à Secre-
taria de Desenvolvimento Territorial (SDT), do Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA), que é resultado de um acor-
do de empréstimo entre o Fundo Internacional para o Desenvolvi-
mento da agricultura (FIDA) e o MDA, desenvolve ações referen-
ciais para o desenvolvimento sustentável do semi-árido, voltado
para agricultores/as familiares de assentamentos e comunidades
rurais. É missão do PDHC contribuir para o desenvolvimento hu-
mano, contemplando o fortalecimento da cidadania e a equidade
de gênero, geração e etnia. É objetivo do PDHC fortalecer proces-
sos locais, participativos e solidários de construção social. Esta
construção é feita em parceria com movimentos sociais e organi-
zações não-governamentais, parceiras de execução da assesso-
ria técnica continuada, envolvidas no desenvolvimento territorial,
na perspectiva da convivência com o semi-árido, gerindo recursos
sócio-políticos, ambientais, culturais, econômicos e tecnologias.
Para alcançar os seus propósitos, o PDHC vem ampliando e
fortalecendo suas linhas de ação, a partir de novas iniciativas
8 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
como o Projeto Manejo Sustentável de Terras do Sertão (Pro-
jeto Sertão), complementar e integrado ao PDHC. O Projeto
Sertão é resultado de um acordo de contribuição financeira
não-reembolsável do Governo do Brasil, através do MDA/SDT,
com o Fundo das Nações Unidas para o Meio Ambiente Mun-
dial (Global Environment Facility – GEF);
O objetivo do Projeto Sertão é minimizar as causas e os im-
pactos negativos da degradação de terras e da pobreza rural,
através do desenvolvimento de uma cultura coletiva de gestão
de conhecimento para o manejo sustentável dos recursos na-
turais que contribua para a melhoria da qualidade de vida e o
bem-estar das pessoas que dependem dos recursos naturais
do semi-árido. A estes objetivos estão associados benefícios
globais, como o uso sustentável da biodiversidade, contribuin-
do para a preservação ou restauração da função e dos serviços
proporcionados pelos ecossistemas da Caatinga, e o aumento
da fixação de gases de efeito estufa em agroecossistemas e
áreas de conservação e preservação.
O Instituto de Sociologia e Estudos Camponeses (ISEC)
da Universidade de Córdoba é um centro de pesquisa, for-
mação e extensão agrária que desenvolve um programa de
Doutorado em “Agroecologia, Sociologia e Desenvolvimento
Rural Sustentável” na Universidade de Córdoba desde o biênio
1991 -1993, havendo sido reconhecida sua “excelência” pelos
Ministérios da Administração da Educação e Ciência Espanhóis
ao atribuir-lhe a qualificação de Doutorado de Qualidade em to-
das as convocatórias até agora estabelecidas. A partir de 1996
o ISEC, junto com a Universidade Internacional de Andaluzia,
organiza um “Mestrado por Investigação” sobre Agroecologia
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
9
e Desenvolvimento Rural Sustentável em Andaluzia e América
Latina. Este Mestrado é coordenado com o citado Programa
de Doutorado, que surgiu da colaboração do Consórcio Lati-
no-Americano de Agroecologia e Desenvolvimento (CLADES)
e da Associação Latino-Americana de Educação Agrícola Su-
perior (ALEAS) com o ISEC. O conteúdo dos oito mestrados
desenvolvidos até o momento possibilitou a realização de mais
de 200 investigações de campo, em mais de 20 países latino-
americanos.
O critério prioritário para a admissão consiste na apresentação
de um Projeto de Investigação que mostre a experiência do
candidato no trabalho com comunidades de base, ainda que
não necessariamente camponesas e/ou indígenas, que desen-
volvam experiências agroecológicas com um potencial endóge-
no transformador.
Ademais dos programas de Mestrado e Doutorado, o ISEC leva
a cabo atividades de pesquisa e extensão agrárias aplicando o
enfoque da Pesquisa – Ação Participativa na qual desaparece a
separação funcional entre os dois tipos de ações referidos.
O Curso de Licenciatura em Ciências Agrícolas da Univer-
sidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), funcionando
há mais de trinta anos, tem contribuído para a formação de di-
versas gerações de professores agrícolas, tanto para as Escolas
Agrotécnicas, como para diversas agências de desenvolvimento
no Brasil. Recentemente vem sendo discutido um novo projeto
político-pedagógico, onde se incluem preocupações na linha de
uma formação referenciada socialmente e de um olhar para a
agricultura a partir da perspectiva de sustentabilidade.
10 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
Dentro desta ótica, o curso vem desenvolvendo opções de en-
sino, pesquisa e extensão a partir da teorização e de uma prá-
tica social em comunidades rurais e urbanas. Para isso, tem
contado com os seguintes apoios: Caixa Econômica Federal,
através do PRODEC, que celebrou convênio para desenvol-
vimento de trabalhos de organização comunitária e geração
de renda, em conjuntos habitacionais de baixa renda; Instituto
de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, através do PRO-
NERA, para trabalhos nas áreas de assentamento de reforma
agrária em Pernambuco; Prefeituras; Governo do Estado de
Pernambuco; Associação Brasileira das Organizações Não-
Governamentais (ABONG); Instituto de Planejamento de Apoio
ao Desenvolvimento Tecnológico e Científico (IPAD); SUDENE;
DENACOOP do Ministério da Agricultura. Mais recentemente,
vem recebendo apoio do Ministério de Desenvolvimento Agrá-
rio, por intermédio do Departamento de Assistência Técnica e
Extensão Rural da Secretaria de Agricultura Familiar, com os
Cursos de Formação de Agentes de Ater na região Nordeste e
o Seminário: “O estado da arte do ensino em Extensão Rural”,
entre outros.
Devem ser destacados, porém, duas parcerias, sempre pre-
sentes: O Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá e as
Escolas Agrotécnicas Federais. O primeiro parceiro no trabalho
por uma agricultura sustentável, o que implica um vigoroso re-
pensar sobre o ensino das ciências agrárias que desenvolve-
mos na UFRPE e o segundo viabiliza as oportunidades de práti-
cas, pelos alunos da Licenciatura, de conteúdo e metodologias
discutidas no curso.
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
11
Os recursos naturais constituem a base dos sistemas produ-
tivos agropecuários e florestais, especialmente em regiões de
práticas agrícolas com baixo nível de utilização de insumos ex-
ternos. Neste sentido, a degradação desses recursos constitui
um dos problemas prioritários da região semi-árida brasileira,
pois dessa matriz produtiva depende a maior parcela da so-
ciedade local, a agricultura familiar. A produção de alimentos e
outros bens tem como finalidade não só o auto-sustento como
também a geração de renda, elementos indispensáveis para o
bem-estar e para a reprodução do modo de vida da agricultura
familiar na região.
Diversos atores locais de desenvolvimento têm buscado alter-
nativas para reverter os processos históricos de degradação
ambiental, exclusão social e pobreza, promovendo experiên-
cias de desenvolvimento local com enfoque agroecológico.
Utilizando-se de uma abordagem territorial, o Projeto Dom Hel-
der Camara (PDHC), nos últimos quatro anos, tem identificado
Apresentação
12 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
algumas destas experiências, e a partir delas, tem estabele-
cido relações de parceria com as famílias agricultoras, ONGs
de assessoria técnica, movimentos sociais e sindicatos de
trabalhadores rurais, fortalecendo ações de desenvolvimento
humano integral. Trata-se de abordagens e práticas sociais e
tecnológicas que, aos poucos, ganham densidade geográfica
e adquirem coerência conceitual e metodológica em torno da
Agroecologia. Tais avanços permitem atribuir a essas mobili-
zações um caráter de construção coletiva da sustentabilidade
sócio-cultural, econômica e ambiental.
O Projeto Manejo Sustentável de Terras no Sertão (Projeto Ser-
tão), desenvolvido no âmbito do PDHC e coerente com a sua
missão de atuar de forma complementar a ele, tem como obje-
to central o desenvolvimento de agroecossistemas sustentáveis
que gerem benefícios locais e globais. Para tanto, vale-se da
mobilização territorial dos sujeitos e agentes do desenvolvimen-
to em torno de um projeto compartilhado e da utilização de me-
todologias participativas para geração de conhecimento, tendo
como orientação os princípios da Agroecologia.
Algumas das experiências acima referidas se destacam pelo
seu valor estratégico, especialmente aquelas relacionadas ao
principal fator limitante do ambiente físico do semi-árido, a
água. Exemplos dessas experiências incluem a barragem sub-
terrânea, as barragens sucessivas, a cisterna de placas e suas
variações, os avanços no campo da tecnologia apropriada de
irrigação e manejo da água destinada à produção de hortaliças,
tubérculos, frutas e outros alimentos.
As experiências relacionadas à criação de animais, porém, ain-
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
13
da carecem de um maior amadurecimento e melhor explicitação
dos conhecimentos existentes, dado que em poucas décadas
tem ocorrido uma transição rápida dos sistemas extensivos tra-
dicionais de criação para sistemas com menor disponibilidade
de áreas livres para o pastoreio e, conseqüentemente, menor
oferta de alimentos. Assim, constitui-se um grande desafio o
desenvolvimento de condições objetivas para que as famílias
agricultoras possam equacionar o processo da degradação de
terras causado principalmente pelo sobre-pastoreio. A questão,
então, é como intensificar os sistemas de criação de animais, de
modo que sejam ecologicamente equilibrados e com resultados
econômicos que continuem propiciando o desenvolvimento da
cultura agroecossistêmica da agricultura familiar.
O presente livro traz uma contribuição para o enfrentamento
desse desafio. Partindo de uma análise focada na compreen-
são dos sistemas tradicionais de criação de aves no semi-árido
brasileiro, apresenta um enfoque agroecológico que permite um
entendimento aprofundado da lógica camponesa. Apresenta
ainda análises da situação atual e perspectivas dos sistemas
tradicionais frente aos problemas locais e influências sofridas
pelo processo de globalização da agricultura brasileira. Por fim,
traça uma abordagem teórico-metodológica baseada na Agro-
ecologia que vai além dos sistemas tradicionais de aves, isto
é, constitui uma abordagem útil para aqueles interessados em
atuar em qualquer sistema de criação animal agroecológica jun-
to à agricultura familiar.
Consideramos oportuno destacar que, ao apoiar a publicação
deste livro, estamos cumprindo com a missão de sistematiza-
ção e socialização de conhecimentos relevantes para a inser-
14 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
ção da dimensão do desenvolvimento humano sustentável nas
ações da assessoria técnica e dos órgãos oficiais de crédito e
fomento agrícola, que atuam no apoio à agricultura familiar no
semi-árido brasileiro.
Boa leitura a todos e todas.
Espedito Rufino de Araújo
Diretor Projeto Dom Helder Camara / Projeto Sertão
Guillermo Gamarra Rojas
Coordenador Projeto Sertão
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
15
O presente texto é um Trabalho de fim de mestrado do Progra-
ma Inter-Universitário Oficial de Pós-graduação em Agroecolo-
gia desenvolvido pelo Instituto de Sociologia e Estudos Campo-
neses (ISEC) nas Universidades de Córdoba e Internacional de
Andaluzia. Como Diretor Acadêmico deste programa, fico muito
grato em escrever estas linhas para mostrar a configuração teó-
rica que tem gerado o conjunto de pesquisadores participantes
desde 1991; especificando como, neste processo de pesquisa
e docência, cumpriram um papel fundamental investigações
como a realizada por Felipe Tenório Jalfim, que aqui apresen-
tamos.
A evolução dos trabalhos empíricos que se foram realizando
no referido marco acadêmico do ISEC começou movendo-se
teoricamente dentro de uma crítica às Ciências Agropecu-
árias e Florestais, ante a incapacidade destas para resolver
os problemas sociais e meio-ambientais que iam surgindo
com o processo de cientificação dos recursos naturais que
foram originando as tecnologias que, ditadas pelo mercado,
Prefácio
PelaUniversidadedeCórdoba/ISEC
16 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
iam sendo geradas. Diante disso, como um grupo de inves-
tigadores, começamos a adotar a Perspectiva dos Estudos
Camponeses; que se encontrava no marco interdisciplinar
das Ciências Sociais e que, mediante metodologias partici-
pativas fomos evoluindo para a transdisciplinaridade. Tal mu-
dança consistiu, não só em introduzir aqueles elementos das
Ciências Naturais necessários para compreender a natureza
da agricultura industrializada e seu impacto sobre a natureza
e a sociedade, mas também, e, sobretudo, em aceitar o co-
nhecimento local camponês e/ou indígena como um elemen-
to essencial para encarar os estragos que nas sociedades
rurais e camponesas estavam gerando o Neoliberalismo e a
Globalização.
Junto à dimensão agropecuária e florestal, era necessário in-
troduzir a ecológica, não só formada do pensamento científico,
mas também construída a partir do local em forma participati-
va e, mediante processos de reflexão, perceber a importância
do político. Assim, a busca de soluções às formas de degra-
dação, causadas por este tipo de manejo agroindustrial dos
recursos naturais, levou-nos a desvelar a dualidade da ciência
(como epistemologia e como estrutura de poder), e trabalhan-
do com o povo até configurar nosso enfoque da Agroecología
como pensamento pluriepistemológico que articula os conte-
údos históricos das lutas libertadoras dos movimentos sociais
camponeses e indígenas e os saberes locais sobre o manejo
dos recursos naturais com os da ciência, como algo impres-
cindível para obter a sustentabilidade, em sua dimensão social
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
17
e política. Como assinalam dois dos primeiros graduados1
de
nosso programa de doutorado, hoje professores do mesmo,
Francisco Roberto Caporal e José Antonio Costabeber, (2002.
“Análise Multidimensional da Sustentabilidade. Uma proposta
metodológica a partir da Agroecologia”. Em: Agroecologia e
Desenvolvimento Rural Sustentável. Porto Alegre/ RS. V. 3, nº
3; 70-85: 79): “a dimensão política da sustentabilidade tem a
ver com os processos participativos e democráticos que se de-
senvolvem no contexto da produção agrícola e do desenvolvi-
mento rural, assim como com as redes de organização social e
de representação dos diversos segmentos da população rural.
Nesse contexto, o desenvolvimento rural sustentável deve ser
concebido a partir das concepções culturais e políticas próprias
dos grupos sociais considerando suas relações de diálogo e de
integração com a sociedade maior através de sua represen-
tação em espaços comunitários ou em conselhos políticos e
profissionais em uma lógica que considere aquelas dimensões
de primeiro nível como integradoras das formas de exploração
e manejo sustentável dos agroecossistemas”. Entretanto, a na-
tureza do sistema de dominação política em que se encontrem
as experiências produtivas que se articula com a sociedade civil
1 Suas teses de doutorado se encontram entre as dez realizadas nas duas primeiras
promovidas pelo ISEC, cinco das quais foram realizadas por pesquisadores brasileiros,
estando localizadas no Sul do Brasil: quatro no Rio Grande do Sul e uma em Santa
Catarina. Ademais foram desenvolvidas, em sua quase totalidade, para se implementar
de forma coordenada com as organizações de pesquisa e extensão agrária daqueles
estados. Apresentamos a seguir seus títulos, precedidos pelo nome dos autores; as
cifras entre parêntesis correspondem às datas de leitura das mesmas no Programa
de Doutorado: Joao Carlos Canuto, Agricultura ecológica en Brasil (18/02/ 98); José
Antonio Costabeber, Acción social colectiva y procesos de transición agroecológica
en Rio Grande do Sul, Brasil (15/10/98); Francisco Roberto Caporal, La extensión
agraria del sector público ante los desafíos del desarrollo sostenible (13/11/98); Eros
Marión Musoi Integración entre investigación y Extensión agraria en un contexto de
descentralización del estado y sustentabilización de políticas de desarrollo: el caso de
Santa Catarina, Brasil. (6/05/98); Joao Costa Gomes, Pluralismo metodológico en la
producción y circulación del conocimiento agrario. Fundamentación epistemológica y
aproximación empírica a casos del sur de Brasil. (20/10 99)
18 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
para gerar estas redes de solidariedade tem muito a ver com o
curso seguido pelas estratégias agroecológicas em sua busca
de incidir nas políticas agrárias.
Em geral pode dizer-se que, na situação mundial atual, as dinâ-
micas de ação agroecológica necessitam romper os marcos de
legalidade para desenvolver seus objetivos; quer dizer que as re-
des produtivas geradas cheguem a culminar em formas de ação
social coletiva pretendendo adquirir a natureza de movimentos
sociais. Entretanto, como aponta outro dos professores de nosso
programa, Enrique Leff (2002, “Agroecología e saber ambiental”,
em: Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável. Porto
Alegre/RS. V. 3, nº 1; 36-51: 47), estes “movimentos sociais as-
sociados ao desenvolvimento do novo paradigma agroecológi-
co e a práticas produtivas no meio rural não são senão parte de
um movimento mais amplo e complexo orientado na defesa das
transformações do Estado e da ordem econômica dominante. O
movimento para um desenvolvimento sustentável é parte de no-
vas lutas pela democracia direta e participativa e pela autonomia
dos povos indígenas e camponeses, abrindo perspectivas para
uma nova ordem econômica e política mundial”.
Tanto na América Latina como na Andaluzia, desde meados
dos anos oitenta, pesquisadores que mais tarde se agrupa-
riam em torno do Programa da Agroecologia do ISEC (e ainda
sem estabelecer qualquer coordenação com os nossos traba-
lhos), fomos desenvolvendo análogos processos de acompa-
nhamento às formas de ação social coletiva que iam gerando
experiências produtivas alternativas ao modo de uso industrial
dos recursos naturais. As ações camponesas e/ou indígenas
em ambos os lados do oceano tinham análoga natureza de luta
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
19
pela terra pretendendo, além disso, introduzir de forma inci-
piente propostas produtivas com claros elementos agroecoló-
gicos. Nosso trabalho, desde finais dos anos oitenta do século
passado, foi evoluindo desde a observação participante como
método inicial, até formas de interação onde nossa produção
intelectual tomasse caminhos guiados pela dinâmica dos mo-
vimentos camponeses e/ou indígenas que acompanhávamos,
ao colaborar com eles na análise das políticas agropecuárias e
florestais que lhes submetiam a situações de clara marginalida-
de e exploração socioeconômica.
O contato que estabelece uma cooperação definitiva entre os,
em certo sentido dispersos, pesquisadores latino-americanos
e o ISEC, produziu-se como conseqüência de uma estratégia
articulada pelo Consórcio Latino-americano de Agroecologia e
Desenvolvimento (CLADES) para institucionalizar a Agroecologia
na América Latina. Tal estratégia se iniciou com a organização,
em Santiago do Chile, em setembro de 1991, de uma reunião
CLADES-FAO sobre os currículos universitários em Agroeco-
logia e Desenvolvimento Rural Sustentável para introduzir nas
universidades os ensinos deste novo enfoque2
, o que não pôde
realizar-se apesar da frenética atividade que exibiu aquele grupo
inicial. Não obstante, foi possível incorporá-lo a nosso programa
de Doutorado da Universidade do Córdoba. A consolidação de-
2 Aquela reunião deu lugar a uma série de atividades nesta direção; como foi o
Curso que (organizado por Guillermo Hang sobre Agroecología y Desarrollo Sostenible)
administramos Miguel Angel Altieri (sobre os aspectos agronômicos) e eu (sobre os
aspectos sociológicos) na Faculdade de Ciências Agrárias e Florestais da Universidade
de La Plata; de onde uma semana mais tarde teve lugar a X Conferência da Associación
Latinoamericana de Educación Superior (ALEAS) na cidade de Buenos Aires de 23 a
28 de maio de 1993. ALEAS é uma associação formada por todos os reitores das
Faculdades de Ciências Agropecuárias e Florestais da América Latina (em alguns
casos se incluem a Veterinária, rompendo o tradicional corporativismo acadêmico
prevalecente) e conseqüentemente o cenário ideal para apresentar a introdução do
novo enfoque em seus currículos.
20 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
finitiva do grupo latino-americano de professores do ISEC teve
lugar em inícios de 1995, quando se desenvolveu um Ciclo de
Seminários Internacionais de Agroecología e Desenvolvimento
Sustentável na Universidade Internacional da Andaluzia (UIA),
que precederam a criação do Mestrado para a América Latina,
que desde então ali se tem realizado.
Foi assim como se gerou a experiência educativa e de pes-
quisa (os oito primeiros mestrados, prévios ao atual Programa
Oficial de Pós-graduação de Doutorado mais mestrado, tinham
uma natureza do “Master by Research”3
, com a possibilidade
de trabalho de campo durante dois anos, antes de apresentar
a Tese), realizada para fortalecer as dinâmicas produtivas que
se estavam levando a cabo, tanto nos diversos países latino-
americanos de onde procediam os alunos – que em sua grande
maioria traziam uma larga experiência das ONGs e/ou Univer-
sidades onde desenvolviam suas atividades –, como na An-
daluzia, mediante os acompanhamentos que desenvolvíamos
através do ISEC. Estes últimos constituíram o marco da nova
universidade andaluza (UIA) como campo de ação, para mos-
trar os resultados de nossa interação / pesquisa com as expe-
riências agroecológicas produtivas com que trabalhávamos e
que serviam como como agroecossistemas de gestão familiar
onde se desenvolviam os “trabalhos práticos de campo” dos
distintos cursos administrados.
Foi em certa medida a experiência adquirida como conse-
qüência das pesquisas realizadas por parte dos alunos no ISEC
(para obter os referidos graus de “Doutor” e “Mestre por In-
3 Ao adotar-se a modalidade britânica durante o funcionamento como título
universitário próprio da UIA.
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
21
vestigação”) o que fortaleceu a interação com os movimentos
sociais latino-americanos que realizavam uma agricultura de
base ecológica; permitindo-nos, ao mesmo tempo, uma con-
trastação com o trabalho que realizávamos na Andaluzia. Este
intercâmbio contribuiu, sem dúvida, para um forte componente
no desenvolvimento de bases teóricas e metodológicas com as
que fundamentamos nossa proposta agroecológica.
É importante ressaltar aqui a participação dos alunos latino-
americanos, em geral, e os brasileiros, em especial, do Pro-
grama de Doutorado do ISEC na dinâmica de articulação de
dissidências ao Neoliberalismo e a Globalização econômica
desde os diferentes movimentos sociais, nos que, em não pou-
cos casos, apareciam experiências produtivas que a agroecolo-
gia, que estávamos construindo, podia fortalecer. Isso fez com
que nos envolvêssemos naquela dinâmica, que teve diferentes
manifestações em distintos países do mundo, fortalecendo me-
diante a participação do ISEC os espaços de debate que iam
surgindo. Neste sentido, teve grande interesse nossa participa-
ção na dinâmica contra a pretendida bondade do “livre comér-
cio mundial” impulsionada pela articulação transnacional dos
estados no contexto da campanha “50 Anos Bastam” contra
o meio século de existência das instituições financeiras globais
(FMI e BIRD); que culminou no Foro Alternativo “As Outras Vo-
zes do Planeta” que se desenvolveu em Madrid, no outono de
1994. Foi neste contexto, de interação com os movimentos so-
ciais rurais latino-americanos, que surgiu nossa interação com
o Movimento Zapatista; com o qual, por outro lado, as orga-
nizações camponesas andaluzas com as que trabalhávamos
22 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
também mantinham contatos praticamente desde seus inícios4
.
Assim, foram na Andaluzia – através da interação ISEC com os
movimentos camponeses – onde apareceram os primeiros co-
mitês de apoio ao EZLN5
, primeiro, e ao MST6
, depois, que logo
se estenderiam pelo resto da Europa e demais continentes.
Em sua dinâmica de resistência e luta informacional, o EZLN
convocou o II Encontro Intergaláctico contra o Neoliberalismo
e pela Humanidade na Espanha, mediante uma celebração iti-
nerante por várias comunidades que, organizadas pela articu-
lação peninsular de movimentos sociais, eram impulsionadas
pelos comitês zapatistas locais. O ato de “encerramento” teve
lugar no Indiano, sítio cuja propriedade foi obtida após longos
anos de luta com ocupações e prisões de “camponeses sem
terra,” com quem trabalhava o ISEC, convertendo-se em uma
das experiências produtivas agroecológicas nas que se desen-
volviam as práticas do Mestrado e Doutorado, junto a outras
cooperativas agroecológicas dentro das quais se desenvolve-
ram as pesquisas, em cuja reflexão e prática sócio-política e
produtiva surgiu um modelo da agroecologia andaluza.
Mas se a contribuição brasileira foi importante na fase inicial de
4 Cf. Eduardo Sevilla Guzmán (2006: Perspectivas agroecológicas desde el
pensamiento social agrario (Córdoba: Servicio de Publicaciones de la Universidad de
Córdoba / Instituto de sociología y Estudios Campesinos; 285: cap. 1) e Sevilla Guzmán
e Joan Martinez Alier, (2006 “New rural social movements and Agroecology” (con Joan
Martínez Alier) editado por P. Cloke, Terry Marsden and P.Mooney, Handbook of Rural
Studies (London: SAGE Publications: 472-483) de onde damos conta desta histórica
relação entre movimentos camponeses de ambos os continentes.
5 Nele teve um papel central Jorge Morett Sánchez, professor de Antropologia da
Universidade de Chapingo e uma das primeiras Teses de doutorado do Programa de
Doutorado do ISEC (Las empresas multinacionales en la agricultura española, lida em
julho de 1997).
6 O estabelecimento do primeiro Comitê de Apoio ao MST se produziu graças
a coragem dos alunos brasileiros do Doutorado do ISEC, especialmente Roberto
Vicentín e Francisco R. Caporal.
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
23
configuração do Mestrado (a partir dos alunos do Doutorado),
por sua contribuição à interação com os movimentos sociais,
esta foi ainda maior quando estes começaram a intervir nas po-
líticas públicas brasileiras, primeiro no Governo do Rio Grande
do Sul (durante sua época de “Estado da Participação Popu-
lar”), tentando introduzir a Agroecologia na Extensão Agrária;
depois, no Governo Federal quando do início do governo Lula;
e finalmente, nos últimos anos, ao INTA argentino fortemente
influenciado pelo apoio brasileiro à agricultura familiar. Isso de-
terminou que a maior parte dos professores e um bom número
de estudantes do Programa de Doutorado e Mestrado7
colabo-
rassem ativamente em tais processos.
O fato de que o presente texto seja publicado é especialmente
significativo como amostra da importância da contribuição bra-
sileira ao nosso Programa de Pós-graduação; mais ainda, se se
levar em conta que a pesquisa de Felipe Tenorio Jalfim está ain-
7 Alguns dos professores e alunos participantes da implementação das referidas
políticas públicas são as seguintes: Miguel Angel Altieri (University of California.
Berkeley); Mirem Etxezarreta (Universidad Autónoma de Barcelona); Roberto García
Trujillo (Universidad de Córdoba); Steve Gliessman (University of California, Santa
Cruz); Manuel González de Molina (Universidad de Granada. Investigador del ISEC);
Enrique Leff Zimmerman (Coordinador de la Red de Formación Ambiental del
Programa de las Naciones Unidas para el Medio Ambiente PNUMA); Joan Martínez
Alier (Universidad Autónoma de Barcelona); Jan Douwe van der Ploeg (Agricultural
University of Wageningen); Peter Rosset (University of California, Berkeley); María
Salas (Universiteit Nijmegen); Alfred Siemens (University of British Columbia); Hermann
J. Tillman (Universidad de Hohenheim); Victor Manuel Toledo (Centro de Ecología de la
U.N.A.M.-México); Graham Woodgate (Wye College, University of London); Stephan
Rist (Universidad de Berna) e Tomás Rodríguez Villasante (Universidad Complutense
de Madrid); Antonio Lattuca e Graciela Ottmann (CEPAR, Rosario); Carlos Alemany,
José Luis Zubizarreta (INTA, Argentina); Susana Aparicio e Roberto Benencia (UBA,
Argentina). Entre os participantes brasileiros vinculados ao ISEC, como formados ou
com pesquisas em curso, o número é muito maior; entre estes estão: João Carlos
Canuto, João Costa Gomes, Marcos Flavio Silva Borba e Joel Enrique Cardoso
(EMBRAPA), Francisco Roberto Caporal, José Antonio Costabeber (EMATER), Eros
Marión Musoi (EPAGRI); Canrobert Casta Neto (CPDA, Universidade do Rio de Janeiro)
e o importante núcleo da Universidade Federal Rural de Pernambuco, integrado por
Jorge Roberto Tavares de Lima, Marcos B. Figueiredo, Tirso Ramón Rivas e Josenildo
de Sousa e Silva, entre outros.
24 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
da em sua fase de gestação. Com efeito, o trabalho possui uma
finura teórica que revela claramente a larga experiência acumu-
lada pelo autor em sua convivência com a agricultura familiar
do semi-árido brasileiro. Sua análise do setor avícola industrial
desvela com contundência as deficiências meio-ambientais que
possui este, ao mostrar a insustentabilidade ecológica e social
que arrasta a trajetória da modernização e globalização da avi-
cultura brasileira. Por outro lado, a aplicação do marco teórico
da Agroecologia à criação de galinhas de capoeira/caipira cons-
titui uma novidade de grande interesse; ao saber selecionar os
elementos - chave que levem à posterior elaboração de uma
consistente proposta. Tal novidade se transforma em algo mais
relevante ainda ao introduzir uma perspectiva de gênero e incor-
porar como objetivo o empoderamento da mulher, através da
criação de galinhas. Finalmente, sua aproximação à análise da
criação tradicional de galinhas no semi-árido mostra a importân-
cia que esta tem para a agricultura familiar, ao mesmo tempo em
que constitui já em si uma válida sistematização para introduzir
um posterior fortalecimento agroecológico de tal manejo.
Eduardo Sevilla Guzmán
Diretor do ISEC / Universidade de Córdoba, Espanha.
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
25
O Livro intitulado “Agroecologia e Agricultura Familiar em Tem-
pos de Globalização – O Caso dos Sistemas Tradicionais de
Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro”, de autoria de Feli-
pe Tenório Jalfim, objeto de sua dissertação defendida junto à
Universidade de Córdoba, Espanha, pela temática que aborda,
apresenta uma forte intersecção com o Curso de Licenciatura
em Ciências Agrícolas. O livro não somente evoca a importância
da valorização do conhecimento tradicional como conhecimen-
to válido e necessário para o desenvolvimento de agriculturas
sustentáveis, com ênfase o papel da mulher, mas também (re)
coloca no centro da discussão a incompatibilidade do paradig-
ma dominante com os fundamentos da Agroecologia, conce-
bida enquanto paradigma emergente. Neste ínterim o trabalho
questiona os desdobramentos da aplicação do conhecimento
técnico-científico no campo, que se materializou de forma he-
gemônica e excludente com o advento do modelo agroindus-
trial. O fato dos riscos da gripe aviária ameaçarem a autonomia
da produção da galinha de capoeira, atividade secular típica da
Prefácio
PelaUniversidadeFederalRuraldePernambuco/
CursodeLicenciaturaemCiênciasAgrícolas(LA)
26 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
agricultura familiar, parece ser bastante revelador nesse senti-
do, mas sobretudo revela a urgência e a necessidade de se re-
pensar as bases que orientam e estruturam o arcabouço cien-
tífico e tecnológico do modelo industrial de agricultura, que tem
se colocado pretensamente como caminho único (“universal”)
da agricultura, em detrimento de outros modelos sabidamente
mais sustentáveis.
Não é por acaso que essa reflexão faz eco dentro dos muros da
universidade, em especial no curso de Licenciatura em Ciências
Agrícolas (LA), que tem se pautado não só por desenvolver uma
metodologia diferenciada do ponto de vista pedagógico com a
adoção de eixos integradores e interdisciplinares no processo
de construção do conhecimento, mas também como protago-
nista de uma articulação com os agricultores camponeses e
movimentos sociais do campo através de mecanismos de troca
de conhecimento entre professores, estudantes e as famílias
camponesas. Exemplo disso são os vários e ricos eventos de
formação social e técnica realizados pelo Curso de LA no âmbi-
to do ensino, como os Estágios de Vivência, Semanas do Meio
Ambiente, Prêmio Mata Atlântica, Seminários sobre Agroecolo-
gia e mais recentemente sobre o “Ensino de Extensão Rural no
Brasil”, entre tantas outras atividades que estão contribuindo
para uma formação profissional socialmente referenciada na re-
alidade nordestina e brasileira.
Jorge Luiz Schirmer de Mattos
Coordenação de LA/UFRPE
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
27
28 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
29
Por que escrever um livro sobre a criação de galinhas de capo-
eira no Brasil? Qual a importância de apresentar um trabalho
sobre algo tão inexpressivo, quando existem tantas coisas mais
interessantes e relevantes para serem estudadas e divulgadas
dentro da Agroecologia? Por que estudar esse tipo de criação
de galinha já que atualmente o Brasil é o principal exportador
de frango do mundo? O que tem a ver a modernização e a
globalização da agricultura brasileira com as galinhas do quintal
de uma simples agricultora familiar? Não seria mais racional e
barato para as agricultoras familiares comprar frango e ovos
produzidos pelas granjas industriais que produzir em seus quin-
tais? Que importância tem essa atividade para a agricultura fa-
miliar brasileira?
1.
Introdução
30 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
Tais perguntas, entre tantas outras sobre o tema, as pessoas
me fazem há três anos, quando comecei a compartilhar minha
decisão de que a criação de galinhas de capoeira seria meu
tema de estudo no âmbito de um mestrado em Agroecologia.
As perguntas vinham de todas as direções, inclusive de pes-
soas alheias às ciências agrárias. Mas, são precisamente as
pessoas desta área as que mais questionam a relevância de
meu tema de estudo.
Entretanto, tais perguntas aumentaram meu interesse e con-
vicção sobre a importância do tema. Ainda que, em realida-
de, tenho estado interessado neste tema já faz quase 20 anos,
quando fui viver na zona rural da região semi-árida e iniciei uma
larga convivência cotidiana com os agricultores e agricultoras
familiares, onde tive a oportunidade de contribuir em processos
de intercâmbio de conhecimentos como forma de ampliação
da capacidade de resistência dos agroecossistemas tradicio-
nais frente aos efeitos da seca1
.
Entre os intercâmbios de conhecimentos que pude vivenciar,
a criação de galinhas de capoeira me chamou a atenção pelo
grande conhecimento das mulheres no manejo de suas gali-
nhas e outras aves, como também por seu interesse em buscar
alternativas para melhorar suas estratégias de produção e co-
mercialização. Já naquele tempo fizemos vários experimentos
participativos e inclusive um diagnóstico sobre a criação de ga-
linhas de capoeira e outras aves.
1 Esta inserção fazia parte de um movimento mais amplo, o qual buscava uma
mudança no enfoque das políticas públicas para esta região; se tratava de mudar o
enfoque de combate à seca para o enfoque de convivência com a seca. Esta visão e
estratégia de ação eram promovidas por uma articulação entre o movimento sindical
dos trabalhadores rurais, as ONGs, as Igrejas e o Projeto Tecnologias Alternativas
(PTA).
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
31
Depois desse período, já trabalhando no âmbito governamental2
,
fazendo a gestão de fundos de projetos de fomento ao desenvol-
vimento produtivo e social em comunidades de agricultura fami-
liar e assentamentos da reforma agrária no semi-árido brasileiro,
me reencontrei com as galinhas, ou melhor, com as agricultoras
familiares e seu interesse pela criação de galinhas de capoeira.
Na tarefa cotidiana de analisar e aprovar os projetos me dei con-
ta de aspectos interessantes e, ao mesmo tempo, preocupan-
tes no que tange o âmbito de produção de galinhas de capoei-
ra. Primeiro, percebi uma crescente demanda das agricultoras
familiares por projetos que respondessem a seus desejos de
contribuir para o aumento da renda e da segurança alimentar
de suas famílias. Segundo, notei que a maior parte dos proje-
tos elaborados com o apoio dos/das assessores/as técnicos/
as apresentavam fragilidades metodológicas e técnicas no tema
específico da criação de galinha: consideravam de maneira insu-
ficiente os conhecimentos das mulheres no tema e/ou tendiam
à formulação de sistemas “alternativos” e ecológicos em uma
linha que se aproximava daquela de substituição de insumos, e
em alguns casos, até tentavam reproduzir a lógica industrial de
criação de frangos e/ou de galinhas de postura através de uma
adequação desta às condições da agricultura familiar.
Por outro lado, nossas respostas aos assessores técnicos eram
igualmente genéricas, sem sugerir um caminho a uma criação
2 Projeto Dom Helder Camara (www.projetodomhelder.gov.br), que é resultado de
um acordo de empréstimo entre O Fundo Internacional para o Desenvolvimento da
Agricultura (FIDA) e o Ministério do Desenvolvimento Agrário do Brasil (MDA). Este
projeto tem por objetivo apoiar ações de desenvolvimento humano sustentável com
foco na agricultura familiar em comunidades rurais e áreas de reforma agrária no semi-
árido do Brasil. É executado em cooperação com os movimentos sindicais e sociais e
mais de 50 ONGs, que assessoram diretamente cerca de 12.000 famílias.
32 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
sustentável de galinhas de capoeira. Mais ainda, diante da es-
cassez de informação sobre o tema, tampouco conseguíamos
ajudá-los indicando-lhes onde buscar as referências teóricas
e metodológicas para a construção de propostas verdadeira-
mente sustentáveis.
Toda esta situação somada ao recente risco da chegada da gri-
pe aviária no Brasil, e o fato de que as indústrias transnacionais
do frango em geral estão usando a mídia global e os próprios
Estados para colocar a culpa do surgimento e dispersão deste
vírus na criação da galinha de capoeira e nas aves silvestres,
não só consolidou meu interesse e inquietude pelo tema, como
também o fez urgente e insubstituível. Entre outros motivos, por-
que ele mesmo é bem mais complexo do que parece a primeira
vista e, sobretudo, porque existem poucas e dispersas informa-
ções sistematizadas sobre o mesmo desde uma perspectiva
que considere a agricultura familiar3
e/ou a Agroecologia.
O presente trabalho é, portanto, uma primeira aproximação ao
tema, realizada com base na confrontação da informação bi-
bliográfica e demais tipos de literatura disponível com minha ex-
periência adquirida em vários anos de convivência com famílias
de agricultoras familiares na região semi-árida do Brasil.
O trabalho está organizado em cinco partes centrais: esta primeira
propõe o problema de estudo numa dimensão mais ampla e seus
3 É importante ressaltar que neste trabalho se assume o conceito de agricultura
familiar considerando que a agricultura camponesa tradicional no Brasil é a principal
parte dentro desta. Portanto, em vários momentos deste trabalho se utilizam os termos
agricultura familiar e camponesa e suas derivações com o mesmo sentido. O aspecto-
chave utilizado para o conceito de agricultura familiar está centrado naqueles que
manejam a terra, tendo-a ou não sob sua posse, através do emprego predominante
no tempo e espaço da mão-de-obra familiar, buscando alcançar a produção agrícola
e pecuária necessária à sua sobrevivência presente e futura.
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
33
objetivos; na segunda parte, se faz uma análise do setor avícola
industrial e seus riscos ambientais, socioeconômicos e efeitos
sobre a criação de galinhas de capoeira praticada pela agricul-
tura familiar; a terceira apresenta a Agroecologia como resposta,
através de uma construção teórico-metodológica que fortaleça a
criação de galinha de capoeira como alternativa ao modelo aví-
cola industrial e a quarta faz uma primeira aproximação à criação
de aves no semi-árido brasileiro. Finalizando, apresenta-se uma
breve conclusão, onde se propõe elementos para aprofundar o
tema em estudos futuros, a partir de uma perspectiva agroecoló-
gica com um enfoque participativo e que leve à ação.
1.1.OProblemaesuaRelevânciaparaaAgriculturaFamiliar
Apesar da grande importância da criação de galinhas de capo-
eira nos agroecossistemas tradicionais pelo papel que desem-
penham na soberania alimentar, geração de renda e no empo-
deramento das mulheres no meio rural brasileiro, historicamente
as políticas públicas têm esquecido esta atividade.
Essafaltadeatençãoaosetordaagriculturafamiliarporpartedas
políticas públicas não é casual, mas que constitui uma das en-
grenagens do proces-
so de modernização e
internacionalização da
agricultura brasileira,
que exclui esse tipo de
organização da produ-
ção agrícola.
34 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
Neste sentido, o complexo avícola industrial representa aquele
setor que mais incorporou o modelo neoliberal via absorção do
processo de internacionalização da agricultura brasileira, tanto
em investimentos financeiros de empresas transnacionais como
na importação (transferência) de tecnologia dos países ricos.
Portanto, em poucas décadas o modelo industrial se tornou he-
gemônico na produção de frango e ovos no Brasil. Tal modelo
foi desenvolvido dentro dos paradigmas da “revolução verde” e
do processo de globalização dos sistemas alimentares, tendo
como característica principal a concentração desta atividade
produtiva em mãos de poucas empresas nacionais e transnacio-
nais, em detrimento da participação dos agricultores familiares
na mesma. É uma atividade baseada na concentração e neces-
sidade de investimento de capital financeiro e na dependência
do uso intensivo de insumos externos aos agroecossistemas
e de pacotes tecnológicos importados. Um exemplo disto são
as linhas comerciais de frangos e galinhas de postura no Brasil
que são quase todas importadas. Com efeito, as linhas híbridas
de frango utilizadas no mundo pertencem a umas poucas com-
panhias transnacionais, as quais selecionaram estas raças para
a produção em ambientes controlados e com elevado uso de
ração, insumos e fármacos (Pont Andrés, 2005).
Com o apoio regular de políticas públicas de fomento, com
que as iniciativas da revolução verde historicamente contaram
durante vários governos, e pela intensiva associação às cor-
porações agroalimentares transnacionais, a avicultura industrial
brasileira se desenvolveu rapidamente, chegando hoje a ocupar
o primeiro lugar na exportação de frango no mundo, tanto em
volume de produção como de renda, na frente dos Estados
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
35
Unidos. Também ocupa o sétimo lugar quanto ao volume de
ovos produzidos mundialmente. Da mesma maneira, a avicul-
tura industrial já invadiu todo o mercado nos grandes centros
urbanos do Brasil e está se expandindo de maneira rápida e
agressiva para os mercados locais do meio rural.
Tal condição da avicultura industrial brasileira, expressada por sua
contribuição no superávit comercial e pelo aumento nacional no
consumo per carpita de ovo e frango, faz do complexo industrial
avícola um dos ramos mais fortes do agronegócio brasileiro. Isso
lhe permite atuar com uma força econômica e política, influen-
ciando fortemente as políticas públicas para o setor agrário e im-
pondo normas sanitárias cada vez mais restritivas à continuidade
da participação do agricultor familiar na produção de frangos e
ovos, seja para seu autoconsumo, comercialização ou ambos.
Em outras palavras, progressivamente as empresas transnacio-
nais limitam a soberania alimentar nos países em desenvolvimen-
to através de uma defesa de seus interesses corporativos em
detrimento de políticas que estimulem uma produção de alimen-
tos baseada no fortalecimento da agricultura familiar e no manejo
sustentável de seus agroecossistemas (Sevilla Guzmán, 2006a).
A transnacionalização da avicultura nacional, uma vez que es-
timula fortemente a expansão das empresas do agronegócio
de soja e milho, que estão baseadas em pacotes tecnológicos
que incorporam desde grandes monoculturas mecanizadas aos
cultivos transgênicos, representa uma das expressões recentes
mais perversas do processo de modernização do campo bra-
sileiro. Os impactos negativos da modernização do meio rural
sobre os recursos naturais e as comunidades de agricultura fa-
36 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
miliar são semelhantes em todo o mundo, sobretudo nos países
em desenvolvimento (Toledo, 2006/2007a). Em geral, o modelo
de produção “moderna”, orientada ao mercado, viabiliza-se a
partir de custos ecológicos elevados, de uma especialização
espacial, produtiva e humana. Seus impactos mais fortes estão
relacionados ao esgotamento dos recursos naturais e à ten-
dência de substituir as comunidades de agricultura familiar por
formas “modernas” de produção (Toledo, 2006/2007a).
Ainda que na região Nordeste do Brasil, onde se localiza a maior
parte do semi-árido do país, o setor avícola industrial não tenha
uma capacidade produtiva e de avanço sobre os mercados
comparável às regiões Sul, Sudeste e Centro Oeste, a agricul-
tura familiar desta região também perde cada vez mais espaço
para o setor industrial no mercado de frango e ovos.
Esta perda de mercado do produto da agricultura familiar não
é somente a favor das indústrias localizadas na própria região
Nordeste, que vêm se expandindo amplamente nas últimas
décadas, mas é também a favor das maiores corporações do
frango com sede no Sul e Sudeste do país, que conseguem
exportar frango congelado e uma enorme gama de seus deri-
vados para toda a região Nordeste.
O maior impacto que incide sobre a agricultura familiar está
relacionado à perda progressiva dos mercados locais das pe-
quenas e médias cidades do meio rural, onde historicamente
a agricultura familiar encontra um bom espaço para a venda
de frango e ovos. Isso significa um déficit importante na en-
trada de renda para as famílias de agricultores familiares, que
seguramente resultam em mudanças e debilidades ainda pou-
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
37
co conhecidas nas estratégias de diversificação da produção,
construídas durante centenas de anos pelas famílias no manejo
dos agroecossistemas desta região.
Ademais dos processos até agora mencionados, a criação de
galinha de capoeira desenvolvida pela agricultura familiar ten-
de, geralmente, a ser considerada como uma atividade mar-
ginal, com pouca ou nenhuma importância socioeconômica
nos agroecossistemas. Este fato tem ocorrido de forma geral,
simplesmente por ser uma atividade de responsabilidade das
mulheres agricultoras, em um contexto de uma sociedade rural
marcada pelo patriarcado e machismo. Tal sociedade historica-
mente faz invisível o papel que têm as mulheres no desenvolvi-
mento da agricultura. Portanto, parece que tal fato tem contri-
buído também para o afastamento dos meios acadêmicos, da
investigação aplicada e da extensão rural. Ou seja, o fato de ser
uma atividade considerada marginal, invisível do ponto de vista
socioeconômico, não agrega reconhecimento e status acadê-
mico, técnico e científico a quem se envolva com este tema.
Por outro lado, na região semi-árida4
do Brasil (figura 1), apesar
do contexto adverso ocasionado pelos motivos acima men-
4 Vale salientar que dados do INCRA/FAO (Guanziroli, 2000) demonstram que a região
Nordeste possui 2.055.157 estabelecimentos familiares, quer dizer, 49,6% do total de
estabelecimentos familiares do Brasil. Como o semi-árido brasileiro representa 59,25%
da área total do Nordeste do Brasil (CNRBC, 2004) e nas demais regiões do Nordeste
predominam os latifúndios e fazendas pecuárias, pode-se concluir que a maior parte
dos estabelecimentos familiares do Nordeste se concentra na região semi-árida. Esta
região é caracterizada por uma precipitação média abaixo de 800 mm ao ano, com
médias anuais inferiores a 400 mm, com chuvas que se distribuem de forma irregular no
tempo e espaço, com ocorrências de grandes períodos de secas. A evapotranspiração
potencial é elevada, cerca de 3.000mm anuais. É uma área heterogênea de paisagens
e povos diversos, com áreas densamente povoadas e grandes vazios demográficos
(Gamarra-Rojas, 2006). A Caatinga é a vegetação predominante no semi-árido e se
caracteriza por ser uma vegetação que varia de savanas arbustivas a bosques secos,
passando por afloramentos rochosos dominados por cactos e bromélias, até bosques
perenes de altitude (Velloso, Sampaio & Pareyn, 2002).
38 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
cionados, percebe-se que as mulheres agricultoras continuam
buscando inúmeras maneiras de resistir ao avanço do modelo
hegemônico de criação de aves, como também de todas as
outras dificuldades para a própria reprodução social da agricul-
tura familiar, inerentes ao contexto da globalização. Ademais,
nesta região, a criação de galinha de capoeira representa para
muitas mulheres uma oportunidade, entre outras, em sua luta
por uma maior autonomia econômica e reconhecimento so-
cial.
Neste sentido, já existem avanços em experiências que têm
ampliado a ocupação de espaços nos mercados locais de fran-
gos e ovos através da comercialização em feiras agroecológi-
cas. São processos em que se destacam formas organizadas
e coletivas de produção e comercialização, realizados por gru-
pos organizados de mulheres agricultoras. Estes grupos bus-
cam novas formas de organização social que contribuam para
o processo de empoderamento das mulheres e para a criação
de alternativas de venda de seus produtos através de mecanis-
mos que confiram uma maior visibilidade e valorização de seus
produtos frente aos produtos industriais. Mas, a forma predo-
minante de comercialização da produção de ovos e frangos da
Figura 1: Localização da Região Semi-árida de Brasil
Región Semiárida de Brasil
Fonte: Fernández de Lima (2007)
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
39
agricultura familiar é a forma tradicional, ou seja, através da ven-
da individualizada e direta ao consumidor nas feiras livres.
Estes processos de acesso a mercado têm, neste momento,
um duplo papel para a agricultura familiar:
• Manter vivos os costumes da população urbana das
pequenas cidades do semi-árido brasileiro em seguir
dando preferência ao sabor da carne e ovos das
galinhas de capoeira em detrimento daqueles indus-
triais. Com isso se evita a perda deste fator importante
de vantagem competitiva da avicultura tradicional frente à
avicultura industrial.
• Vinculado com este papel de manutenção dos hábitos ali-
mentares locais, que estão relacionados com o sabor, a
consistência e a coloração dos frangos e ovos provenien-
tes da criação de galinha de capoeira, a comercialização
em espaços orgânicos e agroecológicos ajuda também
a estimular o interesse do consumidor urbano por um tipo
de alimento mais saudável e ligado ao fortalecimento dos
sistemas agroalimentares locais, que reforçam a econo-
mia e agricultura local (Menezes, 2005).
Internamente aos agroecossistemas, a criação de aves tem
um papel fundamental no auto-abastecimento alimentar e na
cultura agroecosistêmica de produção da agricultura familiar,
baseada na diversificação produtiva, que é integrada por uma
série de plantas e animais, e sustentada na utilização dos
insumos locais, em maior parte disponíveis em sua própria
terra.
40 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
O enfoque deste trabalho, portanto, está livre da miopia científica,
política e cidadã provocada pela grande geração de renda para o
país aportada pelo rápido crescimento do modelo hegemônico de
produção industrial de ovos e frango. A preocupação aqui é primei-
ro buscar uma compreensão, ainda que básica, sobre os traços
centrais dos limites e riscos socioeconômicos e ambientais que leva
consigo tal modelo para a sustentabilidade da agricultura brasileira
e segundo, e mais importante neste trabalho, é contribuir para o
fortalecimento de uma alternativa ao modelo vigente que não tenha
influências socioeconômicas e ambientais negativas e ao mesmo
tempo favoreça a inclusão social, econômica e cultural da agricul-
tura familiar nas diferentes regiões do país, principalmente naquelas
alienadas historicamente das políticas e processos de desenvolvi-
mento humano, como é o caso da região semi-árida do Brasil.
1.2.Objetivos
O objetivo geral deste trabalho é elaborar uma reflexão teórico-
metodológica sobre a criação de galinha de capoeira no semi-
árido brasileiro, considerando o contexto da modernização e
globalização da agricultura brasileira.
Este objetivo geral é baseado nos seguintes objetivos específi-
cos e hipóteses:
A) Caraterizar a avicultura industrial no Brasil e suas limi-
tações ecológicas e socioeconômicas;
Este objetivo parte da hipótese de que a modernização e
globalização da avicultura brasileira vêm construindo um
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
41
modelo de sistema agroalimentar insustentável e que entre
suas influências, afeta diretamente o atual e futuro
desempenho da criação de galinhas de capoeira e seu
papel na segurança alimentar e na geração de renda da
agricultura familiar.
B) Buscar e organizar elementos para uma proposta teórico-
metodológica desde uma perspectiva agroecológica para
o estudo da criação de galinhas de capoeira no semi-
árido brasileiro.
C) Fazer uma primeira aproximação sobre os benefícios
ecológicos, econômicos e socioculturais reportados para
os sistemas tradicionais de criação de aves no semi-árido
brasileiro.
Para os objetivos B e C, a hipótese é que, interagindo com as
conseqüências do avanço da avicultura industrial, a criação de
galinha de capoeira tem um papel nos agroecossistemas tra-
dicionais que é pouco conhecido, valorizado e apoiado pelos
diversos setores que se relacionam com a agricultura familiar
do semi-árido. Por tanto, é fundamental a construção de uma
base teórico-metodológica desde uma perspectiva agroecoló-
gica que contribua para o avanço e fortalecimento desta ati-
vidade como um sistema agroalimentar sustentável para esta
região.
42 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
43
Com o objetivo de entender o contexto em que se insere a
agricultura familiar e sua atividade de criação de galinhas de
capoeira dentro da modernização e globalização da agricultura
brasileira, o presente texto analisa os traços centrais do pro-
cesso histórico de formação do complexo agroindustrial avícola
brasileiro, suas características atuais e seus principais limites
desde uma perspectiva agroecológica.
2.1. A Avicultura no Contexto da Modernização e Interna-
cionalizaçãodaAgriculturaBrasileira
Desde o período da colonização do Brasil a agricultura brasileira
tem se desenvolvido a partir de elementos que misturam uma
2.
Industrialização Agroalimentar
da Avicultura no Brasil
44 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
associação entre degradação do meio-ambiente e crescimento
das desigualdades sociais no campo. Isso está relacionado a
um modelo predatório de agricultura que sempre esteve su-
bordinado às lógicas econômicas externas, orientadas para a
transferência de riqueza, independente dos impactos negativos
nos setores ambientais e sociais gerados ao largo dos anos
(Almeida, Petersen & Cordeiro, 2001).
Este processo histórico de incorporação da economia brasilei-
ra à economia mundial, através da agricultura, teve seu início
no século XVI. Em grande medida, a formação do modelo pre-
datório da agricultura brasileira começou no período colonial,
atravessou as décadas de monarquia independente e tem sua
herança presente nos dias de hoje, sem mudanças significati-
vas em sua lógica de funcionamento (Pádua, 2002).
O cultivo da cana-de-açúcar nas regiões úmidas de solos fér-
teis, baseado na monocultura para a exportação, no latifúndio
e no trabalho escravo e depois no trabalho assalariado em con-
dições miseráveis, caracteriza bem o modelo hegemônico de
agricultura que se estabeleceu no Brasil.
Paralelamente a esse processo de formação da agricultura bra-
sileira, ocorreu a ocupação do campo por famílias que tinham
um duplo propósito, por um lado, abastecer seu autoconsu-
mo e, por outro, atender à demanda de produção de alimentos
para abastecimento das populações locais. O desenvolvimento
deste tipo de agricultura nas diferentes regiões do Brasil, e que
sempre ocuparam as terras consideradas inadequadas para os
cultivos comerciais e de exportação, formaram ao longo dos
séculos o campesinato brasileiro.
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
45
Este tipo de agricultura, com um propósito de reprodução so-
cial e abastecimento local de alimentos, tem sido baseado no
emprego de mão-de-obra familiar, numa forte dependência do
conhecimento dos recursos naturais locais (Gamarra-Rojas et
al., 2002) e, por conseguinte, uso mínimo de insumos externos
à propriedade, que sob condições de suficiente disponibilidade
de área e continuidade da transmissão da cultura, em diversas
regiões do país, permite o manejo da terra e demais recursos
naturais de forma sustentável a largo prazo.
O uso do termo camponês no Brasil foi historicamente evitado
pelas oligarquias dominantes do setor agrário. Em geral, os ter-
mos empregados para esta categoria social representavam um
sentido de desdenho e atraso. A partir da ditadura militar, que
teve início na década de sessenta, o governo militar estimulou
o uso dos termos pequeno produtor e pequeno agricultor, com
a intenção de apagar por definitivo o termo camponês, o qual
de alguma forma lembrava e o associava às “Ligas Campone-
sas”, que foi o primeiro movimento social do campo de dimensão
política nacional na luta pela terra no Brasil (Lima & Figueiredo,
2006). A partir dos anos 90 ganha terreno o uso do termo Agri-
cultura Familiar (agricultor/a familiar), tanto por investigadores de
múltiplas áreas como pelas representações dos trabalhadores/
as rurais. Esta categoria de natureza um tanto genérica incorpora
os camponeses e vários outros tipos de populações tradicionais
do campo, e em certo grau os trabalhadores/as assalariados do
campo, com o propósito de legitimação política e acesso des-
tes às políticas públicas. Este período corresponde à criação do
Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e do Programa Na-
cional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF).
46 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
As mudanças mais profundas no modelo de agricultura brasilei-
ra, e, por conseguinte na organização física, técnica e socioeco-
nômica do espaço rural brasileiro como um todo, ocorreram a
partir da segunda metade do século XX, especialmente a partir
dos anos 70, com o processo conhecido por modernização con-
servadora. Moderna, pelo uso intensivo de tecnologia e capital
contemporâneos, e conservadora, por manter ou aprofundar o
status quo nos sistemas agrários.
A modernização conservadora da agricultura brasileira foi parte
de um processo mais amplo de internacionalização do padrão
industrial de agricultura euro-americana à agricultura dos paí-
ses subdesenvolvidos da Ásia, África e América Latina, sob o
paradigma de desenvolvimento da agricultura conhecido como
“revolução verde”. Resumindo, este paradigma trouxe em seu
marco conceitual a universalização de pacotes tecnológicos
que permitiam maximizar a produtividade agrícola independen-
te das condições ecológicas, além de não tomar em conta os
aspectos sociais e culturais de cada país e suas regiões.
Assim a modernização conservadora da agricultura brasileira
teve como característica central a transformação da agricultura
tradicional em “moderna” através da incorporação dos paco-
tes tecnológicos, de mudanças produtivas e de relação com os
mercados, mas sem promover mudanças na estrutura agrária
vigente (Canuto, 1998). De acordo com este mesmo autor (Ca-
nuto, 1998. p.31), “A modernização agrícola significou uma re-
estruturação não somente da economia, mas também de um
conjunto de valores sociais e culturais.” Ou seja, a modernização
estimulou e ampliou uma visão de agricultura baseada na ma-
ximização dos resultados econômicos no curto prazo em detri-
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
47
mento dos equilíbrios dos processos naturais, sobretudo entre
os agricultores patronais1
; estabelecendo valores de competiti-
vidade e do uso industrial dos recursos naturais, sem nenhuma
preocupação sobre os aspectos sociais e ecológicos relaciona-
dos com a agricultura.
O patrocínio do Estado brasileiro foi decisivo para a industriali-
zação de sua agricultura. Assim, o Estado por um lado aban-
donou à sua própria sorte os agricultores familiares, sobretudo
os mais pobres, e as regiões menos favorecidas em termos de
solos, clima e propriedades da terra - como o caso dos agricul-
tores familiares e da região semi-árida. Por outro, estimulou e
apoiou a modernização dos agricultores patronais, assim como
as regiões com condições ambientais e socioeconômicas mais
favoráveis à industrialização – como o Sudeste e Sul do Brasil.
Este apoio ocorreu desde a readequação da estrutura para a
produção, transporte e comercialização em escala industrial até
o sistema de crédito, ensino e assistência técnica, com a mis-
são de garantir a consolidação do novo modelo agrícola (Araú-
jo, 2002).
Neste contexto, e praticamente na mesma ordem cronológica
acima citada, surge o complexo industrial avícola brasileiro. Seus
primeiros passos foram ao final da década de 50. Em 1963 já
estavam instaladas no Brasil nove empresas norte-americanas
especializadas em genética de aves para a produção industrial,
mas o crescimento acelerado do complexo avícola ocorreu na
1 No Brasil se usa o conceito de agricultura patronal para caracterizar o modelo de
agricultura cujo processo de produção agrícola e/ou pecuária é levado a cabo com
separação da gestão e trabalho, emprega predominantemente o trabalho assalariado
e tem sua ênfase na produção especializada, baseada na dependência de insumos
externos e é totalmente destinada ao mercado.
48 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
década de 70 (Sorj, Pompermayer & Coradini, 1982). “Em 1973,
já existiam dezoito empresas produtoras de matrizes no Brasil,
nove das quais eram empresas estrangeiras operando direta-
mente no país e uma empresa trabalhando com linha própria, a
Granja Guanabara” (Sorj, Pompermayer & Coradini, 1982. p.14).
Entre todos os setores agropecuários do Brasil, o setor avícola
foi o que teve resultados mais exitosos em termos da incorpora-
ção da lógica de funcionamento do processo de modernização
e internacionalização da agricultura. Dito de outra maneira, foi o
setor com maior capacidade de importar tecnologia e desenvol-
ver um sistema agroalimentar muito lucrativo para vários ramos
do setor industrial e comercial. Alcançou a máxima artificializa-
ção na produção de um ser biológico, as galinhas, em escala e
processo de produção similar aos processos industriais de qual-
quer matéria prima inanimada.
Uma produção em escala industrial somada a um trabalho de
melhoramento genético possibilitou respostas rápidas nos níveis
de produtividade da avicultura de postura e de carne, ampliando
o interesse de investimentos privados e públicos neste setor. Fi-
gueiredo (2005) aponta que em poucas décadas a evolução do
consumo per capita de carne de frango no Brasil cresceu de 14
kg/habitante/ano para 34 kg/habitante/ano. Ademais, ocupou
uma posição que o destaca como um dos maiores países ex-
portadores de frango do mundo.
Assim, em menos de duas décadas ocorreram mudanças
profundas na avicultura nacional, tornando marginal a forma
tradicional de abastecimento de carne e ovos aos mercados,
sobretudo os urbanos. Consolidou-se como um complexo
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
49
agroindustrial altamente tecnificado e de uso intensivo de capi-
tal. Tal complexo se formou sob uma forte dependência direta
do avanço de uma ampla cadeia mercantil, na sua maior par-
te ligada a empresas multinacionais ou associações do capital
destas com de grandes empresas nacionais, nos campos da
indústria de produtos químicos, rações, máquinas e equipa-
mentos, genética de aves e pacotes tecnológicos importados,
principalmente dos Estados Unidos, Europa, Japão e Israel.
A modernização do setor avícola se concentrou inicialmente no
eixo Sul e Sudeste do Brasil, onde emergiam os grandes cen-
tros urbano-industriais, por um lado, e onde as condições cli-
máticas e de solos foram favoráveis para a produção de grãos
de milho e soja dentro dos padrões “modernos”.
Estas regiões, sobretudo a região Sul, contavam com a presen-
ça de pequenos agricultores com condições socioeconômicas
favoráveis a aceitar uma relação comercial com as indústrias
avícolas sob condições de subordinação financeira e tecnoló-
gica, introduzida através do modelo de integração contratual
agricultor-indústria (Sorj, Pompermayer, Coradini, 1982).
Neste novo sistema o agricultor utiliza sua terra, normalmen-
te faz uso de um empréstimo bancário para a construção do
aviário, e fica como responsável para a engorda dos frangos
- a parte mais difícil, com mais riscos e menos rentabilidade
financeira na cadeia produtiva. Os insumos (pintinhos, fárma-
cos, ração, etc.) e serviços (assistência técnica e transporte)
são abastecidos pelas indústrias integradoras. Assim, na inte-
gração, o agricultor, chamado de “integrado”, aparece na base
da cadeia produtiva através de uma subordinação contratual
50 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
aos interesses produtivos, financeiros e padrões tecnológicos
das indústrias de abate/processamento e distribuição.
O modelo de integração promoveu um movimento de concentra-
ção na produção de frangos por unidade de produção agrícola,
pois, dada sua escala industrial, obviamente apenas uma parcela
pequena de agricultores familiares teve a possibilidade de aten-
der aos interesses e requisitos das indústrias integradoras.
O modelo de integração contratual aplicado pela indústria avícola
brasileira2
somente foi bem aceito por agricultores do tipo familiar
na região Sul do Brasil. Isso, principalmente, foi devido às carac-
terísticas de elevado custo de investimento inicial e dependência
de uma produção intensiva de grãos, uma indústria e pacote tec-
nológico com pouca aplicabilidade para os agricultores familiares
de outras regiões, sobretudo no Norte e Nordeste do país.
Na realidade, diante do novo modelo de produção avícola alta-
mente especializado em tecnologia e de investimento intensivo
de capital, a integração apareceu como a única oportunida-
de que teve uma pequena parcela da agricultura familiar para
encaixar-se na “moderna” cadeia avícola. Este fato pode ser
comprovado ao comparar a avicultura de corte com a de pos-
tura. Como a avicultura de postura não desenvolveu o modelo
de integração - porque a produção de ovos tem um mercado
apenas como produto natural, sem oferecer oportunidades de
agregar valor através do processamento industrial - os agricul-
tores familiares ficaram afastados desta cadeia produtiva, que
foi dominada por grandes empresas avícolas. Um bom exemplo
2 A integração contratual já era adotada pelo setor avícola em países desenvolvidos
antes de chegar ao Brasil.
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
51
para entender tal fato é o caso do Estado do Paraná, que em
2003 estava como 6º produtor brasileiro de ovos, com quatro
milhões de galinhas alojadas em apenas 120 granjas de postura
(Governo do Paraná, 2003).
Com efeito, o modelo da integração contratual desenvolvido no
complexo industrial avícola brasileiro é apenas uma particularida-
de de uma lógica mais ampla da internacionalização dos siste-
mas agroalimentares. Por tanto, sua lógica e princípios não são
uma invenção da indústria avícola brasileira, senão um elemento
central da estratégia neoliberal de integração vertical das explo-
rações agrárias com os setores não agrários (indústria, empresas
e comércio), sobre a qual Sevilla Guzmán (2006a, p.161) faz uma
reflexão sociológica esclarecedora:
[...] a integração vertical, que tem lugar no seio do sistema agroali-
mentar, como o processo de estabelecimento de centros de deci-
são e coordenação (geralmente fora do setor agrário) a que se vê
submetida à produção agrária como conseqüência da imposição de
condições com respeito aos inputs utilizados, as técnicas de pro-
dução empregadas e a quantidade e qualidade dos processos de
trabalho desenvolvidos nas explorações agrárias (Sevilla Guzmán,
2006ª. p.161).
2.2.AAviculturanoContextodaConsolidaçãodosSistemas
AgroalimentaresGlobalizados
Durante a última década do século XX e nos primeiros anos do
século XXI ocorreram mudanças relevantes no setor da indústria
avícola nacional, especialmente no setor de carne de frango. As
principais indústrias avícolas brasileiras se consolidaram como
modernas corporações globais, com uma cultura transnacio-
52 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
nal. Quer dizer, se ajustam à estratégia das grandes corpora-
ções agroalimentares globais, sobretudo ao jogo do avanço
de dominação quase monopolizada dos mercados nacionais e
internacionais. Assim, se começa um mecanismo de fusões e
aquisições entre indústrias nacionais com internacionais e tam-
bém onde as indústrias mais fortes deslocam as mais fracas ou
as absorvem como próprias.
A competição entre as maiores indústrias avícolas do frango
para ampliar sua expansão nos mercados nacional e internacio-
nal está promovendo novas mudanças neste setor. A principal
característica destas mudanças está no fato de que a expansão
de mercados não significa oportunidades para ampliar a pe-
quena participação do agricultor familiar na produção do frango
senão uma tendência de incorporação progressiva do médio e
grande empresário rural da região Centro Oeste do país, onde
se encontra a expansão da produção de soja e milho, baseada
em grandes áreas de monocultura.
Com isto, se busca agora um modelo ainda mais atrativo para as
empresas em termos de redução do custo final do frango para
a indústria integradora. Para isso, o objeto do ajuste segue as
tendências dos sistemas agroalimentares globalizados, de reduzir
seus custos de produção através da máxima automação e artifi-
cialização dos processos envolvidos na produção dos alimentos.
Com efeito, as principais indústrias avícolas do frango iniciaram
novos investimentos em mega-projetos de produção e proces-
samento do frango numa lógica de redução dos custos implica-
dos em todo o processo de produção, processamento e distri-
buição do frango e seus derivados. Os elementos centrais desta
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
53
nova estratégia são: maior integração geográfica e financeira
com os agricultores patronais proprietários de monoculturas de
soja e milho, reduzindo custos com logística e transações, o
que ademais possibilita às grandes indústrias utilizar a capaci-
dade dos agricultores patronais de buscar empréstimos através
dos canais públicos de crédito para investimento na estrutu-
ra produtiva e o capital de giro necessário à fase de engorda
do frango; maior lucro com o aumento da escala de produção
industrial, através do emprego de novas técnicas sofisticadas
para aumentar a densidade de aves, a climatização e tamanho
dos aviários e, ao final, alcançar um uso mais intensivo da au-
tomação com o objetivo de alcançar a máxima substituição da
mão-de-obra familiar e assalariada (Fernandes Filho, 2004).
Por sua vez, o setor avícola de ovos, apesar de suas diferenças
em termos de integração indústria de processamento com agri-
cultor, segue uma lógica similar ao complexo avícola do frango.
Assim, aumenta a concentração de aves por unidade produtiva
em escalas cada vez maiores em mãos de poucas empresas
avícolas, com maior capacidade logística de compra de ração
e distribuição da produção e uso sofisticado dos avanços nos
pacotes tecnológicos, especialmente das tecnologias de auto-
mação.
Com o processo de globalização dos sistemas alimentares da
avicultura nacional, o grande poder econômico e político do
setor avícola nacional3
se potencializa, por um lado, devido à
3 O complexo avícola industrial brasileiro está organizado já faz tempo em dois
tipos de organizações corporativas para a defesa conjunta de seus interesses: uma
que congrega todos os segmentos do sistema agroalimentar do Frango e Ovos
(com organizações nos níveis estadual e federal) e outra que congrega o setor de
exportadores de frango.
54 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
força de novas empresas transnacionais e, por outro, por sua
exigência de maior apoio por parte do governo federal em razão
de sua contribuição para o saldo positivo da balança comercial
do Brasil e elevação do consumo per capita interno de carne
de frango e ovos. Este fato refletiu diretamente em sua capaci-
dade de influenciar as políticas públicas para a agricultura, es-
pecialmente na quantidade e disponibilidade de investimentos
financeiros para desenvolver o setor avícola. Assim, no início
do século XXI o complexo industrial avícola se torna uma for-
ça econômica e política sem precedentes na historia brasileira,
sendo cada vez mais “soberano” frente aos governos estaduais
e ao governo nacional e conseguindo formular e implementar
políticas de acordo com seus interesses de expansão e resulta-
dos econômicos, independente do mandato dos governos de
servir aos interesses do povo.
2.2.1.AsLimitaçõesRelacionadasaoModeloAvícolaBrasileiro
A análise teórica das limitações do modelo avícola brasilei-
ro que se segue está centrada em dois aspectos: primeiro,
no manejo do componente principal do processo industrial
avícola, a galinha, pois o sistema avícola se baseia técnica e
cientificamente na máxima obtenção de resposta produtiva
por unidade animal, a galinha de postura ou frango, em re-
lação aos insumos e técnicas de manejo que são aplicadas;
segundo, em relação à lógica mais ampla em que se baseia
o sistema agroalimentar avícola transnacional e seus impac-
tos socioeconômicos e ambientais.
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
55
AslimitaçõesInternasàsPlantasIndustriais
A artificialização rápida e profunda do processo de produ-
ção avícola industrial tem realizado mudanças fundamentais
nos hábitos das galinhas, que são submetidas a um estresse
extremo devido aos crescentes níveis de confinamento e ou-
tras práticas de manejo, buscando a máxima produção em
um menor tempo possível (Trujillo, 1996). Ademais das con-
dições físicas e ambientais em que são criadas, as galinhas
de postura e frangos das criações industriais são linhas hí-
bridas com alto grau de seleção e homogeneização genética
obtidas como forma de expressar uma máxima produção de
carne ou de ovos.
Com o avanço da Etologia já se sabe que o estresse provoca
sofrimento e dor nos animais, e entre outros efeitos fisiológi-
cos os levam a uma redução de sua capacidade imunológica
contra as doenças infecciosas (Trujillo, 1996). Para Sousa
(2005, p. 01) “O sofrimento também resulta de privação física
ou psicológica dos animais confinados, tais como ausência
de espaço, isolamento social, impossibilidade de mover-se,
monotonia e outros”.
56 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
Nos sistemas avícolas industrializados, a falta de respeito às
necessidades de comportamento das aves se agrava for-
temente, quando está aliada a um alto nível de homogenei-
zação genética, resultado de anos de seleção genética de
linhas especializadas para a máxima capacidade produtiva,
obviamente com perdas genéticas para as características de
resistência às doenças. Com efeito, é crescente a fragilidade
das aves criadas de acordo com os sistemas industrializa-
dos ante o surgimento de doenças, o que faz freqüente o
uso progressivo de fármacos, tanto em caráter preventivo
– o uso dos antibióticos promotores de crescimento, APCs
– quanto em caráter curativo, ambos buscam garantir os ní-
veis esperados de desempenho das aves.
Apesar de que ainda pouco se conhece a respeito dos efei-
tos sobre a saúde humana dos resíduos provenientes da
ampla gama de fármacos usados na avicultura industrial, já
se sabe que o uso contínuo dos APCs significa um risco tan-
to para a saúde dos animais como para os humanos. Dado
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
57
que os APCs são a base dos mesmos antibióticos usados
em tratamento humano, seu uso contínuo permite a gera-
ção de bactérias com genes de resistência aos antibióticos,
que teoricamente podem ser transferidas a outras bactérias
dos animais e, mesmo diante de controvérsias entre cientis-
tas, as bactérias do trato digestivo humano (Fiorentin, 2005).
Para melhor entender o significado dos riscos de tal fato, é
importante observar o que expressa este autor:
Em 1999, a Comunidade Européia baniu o uso de tilosina, virgiana-
micina, espiramicina e bacitracina de zinco como APCs. Esta atitu-
de foi parte de um plano para a proibição total do uso de APCs em
2006. Em nível mundial, a Organização Mundial da Saúde (OMS)
recomendou, no ano de 2000, que classes de antibióticos usados
em humanos como terapia não devam ser usados como APCs,
permeando uma fronteira entre a postura européia, de precaução,
e a norte-americana, de liberação, enquanto não se obtenha uma
conclusão definitiva. O problema, entretanto, é que há 30 anos
uma nova classe de antibióticos não é descoberta e aquelas clas-
ses existentes têm representantes sendo usados tanto em animais
como em humanos (Fiorentin, 2005. p.02).
Portanto, a tripla combinação entre condições de estresse,
elevada densidade populacional e homogeneização genética a
que estão submetidas as aves leva a um risco permanente de
insegurança biológica nos sistemas avícolas industrializados,
de tal forma que a pro-
dução nestas condições
é alheia a um esquema
que tenha uma base de
sustentabilidade ecoló-
gica e deixa de ser um
modelo de sistema de
produção de alimentos Fonte: http://www.goveg.com/photos_chicken03.asp
58 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
que contribui para a soberania alimentar de um país. Tampou-
co pode ser um modelo de produção considerado eticamen-
te defensável, pois não é aceitável que as aves sejam vistas
como “máquinas vivas” de fazer ovos e carne, ou como uma
simples matéria prima sem vida.
Neste sentido, com o surgimento da gripe aviária em vários
países asiáticos e europeus cresce a dúvida na sociedade
sobre quem são as verdadeiras vítimas do vírus (H5N1) da
gripe aviária: a indústria avícola? As aves silvestres? Ou as
criações de galinhas de capoeira?
Até o momento, apesar de que a gripe aviária tem aparecido
de forma concentrada nas plantas altamente tecnificadas das
indústrias avícolas dos países afetados, estranhamente a culpa
vem recaindo sobre as aves de capoeira e sobre as aves sil-
vestres, pois são o setor mais vulnerável de ser utilizado pelos
grandes meios de comunicação para justificar dita doença, par-
tindo de informações um tanto precipitadas por parte dos meios
científicos e governos envolvidos diretamente com a crise.
Não obstante, as últimas investigações e evidências demons-
traram que as aves de capoeira e as aves silvestres, em vez
de culpadas são as verdadeiras vítimas da gripe aviária. Esta
afirmação se baseia na hipótese de que o vírus H5N1 da gri-
pe aviária é resultado de um processo de mutação genética.
Isto ocorreu a partir de uma transmissão de uma cepa menos
patogênica do vírus - que sempre conviveu naturalmente en-
tre as populações de aves silvestres - para aves criadas em
regime industrial, onde o vírus encontrou condições ideais
para evoluir rapidamente para formas muito patogênicas e
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
59
altamente contagiantes. Com tanta mobilização de produtos
da indústria avícola, dentro e fora dos países, foi fácil para a
nova cepa deste vírus encontrar o caminho de volta às aves
silvestres, que ainda não tem defesa contra esta nova cepa,
mas também para as criações de galinhas de capoeira, so-
bretudo nos países em que os agricultores familiares fazem
uso de ração e pintinhos de um dia comprados diretamente
à indústria avícola (GRAIN, 2006).
A FAO e a Organização Mundial para a Saúde Animal expres-
saram recentemente que existem evidências de uma possível
adaptação do H5N1 às galinhas de capoeira, mutando para
cepas menos patogênicas, e também de que a permanência
do vírus em pequenas explorações de aves de capoeira de-
pende de reabastecimento (GRAIN, 2006). A explicação para
60 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
isso pode ser a maior variedade genética, baixa densidade e
condições mais naturais da criação de aves de capoeira, que
permitem o desenvolvimento de uma imunidade natural nas
aves em liberdade. Neste sentido, em Laos, onde 90% do
abastecimento do frango é produzido pela criação de capo-
eira, a gripe aviária quase não afetou este sistema de criação,
estando os poucos casos registrados muito concentrados
nos aviários industriais, enquanto, nos grandes centros in-
dustriais de frango da Ásia, a gripe afetou fortemente as gran-
des plantas, e os casos mais graves da gripe aviária nas cria-
ções de galinhas de capoeira ocorreram exatamente perto
dos grandes centros industriais de frangos (GRAIN, 2006).
O complexo avícola brasileiro, ante a possibilidade da entrada
do vírus da gripe aviária, considera em sua estratégia de bios-
segurança a elaboração de uma legislação específica para a
criação de galinha de capoeira e avicultura familiar, cuja in-
tenção é colocar limites na forma como se faz a criação de
galinhas e outras aves em sistemas tradicionais, assim como
em sua possibilidade de acesso aos mercados (UBA-ABEF,
2005). Esta intenção, vinculada a um conceito de “modernida-
de” do campo, significa um risco à cultura agroecossistêmica
da agricultura familiar, à conservação da biodiversidade das
variedades locais de galinhas e à soberania alimentar do país.
No caso da entrada do vírus, é muito previsível que no Brasil
se repita o mesmo que vem ocorrendo na maioria dos países
em que o vírus já se disseminou. Quer dizer, a força econô-
mica e política das corporações transnacionais e nacionais
atribuirão a presença da doença à criação de galinhas de
capoeira e as aves silvestres, para forçar os Estados a pro-
Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
61
moverem uma série de ações que justifiquem erradicar ou
impor limites que tornem a criação de galinhas de capoeira
inviável.
Assim como nos outros países em que o vírus H5N1 já é uma
realidade, se impõe medidas que não implicam na mudança
do atual modelo de máxima artificialização do sistema de
criação de aves, o que representaria um erro técnico-sanitá-
rio para um efetivo combate à gripe aviária. Ademais, seria
um risco desde o ponto de vista socioeconômico e ecológi-
co. Socioeconômico, porque a criação de galinha de capo-
eira representa uma fonte de geração de renda e alimentos
de alta qualidade para a maior parte da agricultura familiar
do Brasil e ecológico porque medidas inibidoras poderiam
significar uma drástica redução da variedade genética das
variedades locais de galinhas do Brasil, com conseqüências
diretas na redução da biodiversidade.
AsLimitaçõesExternasàsPlantasIndustriais
A insustentabilidade do complexo avícola brasileiro não se
restringe apenas aos limites sócio-ecológicos até agora aqui
mencionados recorrentes do grau de artificialização e cruel-
dade a que são submetidas as galinhas, com o objetivo de
alcançar um alto nível de produtividade.
A primeira limitação que ultrapassa as fronteiras das plantas
industriais relacionasse à sua enorme dependência do abas-
tecimento de soja para manter os altos níveis de proteína na
dieta de uma grande concentração de aves por unidade de
62 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização:
O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
produção e região. Este fato estimula a criação de elos do
sistema agroalimentar avícola que possam atuar em esca-
las e ritmos produtivos capazes de atender à demanda do
complexo industrial avícola por soja em termos de tempo,
quantidade e preços, de tal maneira que permita à indústria
ganhar escala em suas operações. Neste sentido, a indústria
avícola mundial é atualmente um dos principais responsáveis
pela abertura de novas fronteiras agrícolas visualizando a ex-
pansão do cultivo de soja, geralmente através de grandes
propriedades agrícolas, de caráter empresarial, e com ado-
ção de pacotes tecnológicos de cultivo baseados na mono-
cultura, mecanização pesada e uso excessivo de fertilizantes
químicos e agrotóxicos.
O caso brasileiro é muito representativo neste sentido. Com
a impossibilidade de crescimento da produção de soja e mi-
lho na região Sul, via aumento de produtividade e incorpora-
ção de novas áreas de cultivo, o complexo industrial avícola
e seu setor de fabricação de ração, passaram a ocupar as
áreas do bioma cerrado4
, no oeste do estado da Bahia e sul
do estado do Piauí (ambos localizados no Nordeste do Bra-
sil) e ainda com mais força na região Centro Oeste do Brasil.
Como se verifica na tabela 1, entre os anos 1976/1977 e
2004/2005 a área plantada de soja na região Centro Oeste
cresceu de 378 mil para quase 11 milhões de ha. Em apenas
28 anos essa região passou por um crescimento do cultivo
de soja da ordem de 2.772 %, com um crescimento médio
anual de 12,74%, sendo hoje a região que mais contribuiu
4 O Cerrado brasileiro ocupa cerca de dois milhões de km2 e é considerado
uma das savanas mais ricas do mundo em termos de diversidade vegetal e animal
(Capobianco, 2002)
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Agricultura familiar e criação tradicional de aves no semi-árido

  • 1.
  • 2. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 1
  • 3. 2 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. Comissão Editorial Ana Maria Dubeux Gervais Irenilda de Souza Lima Gilvandro Sá Leitão Rios Flávio Henrique Albert Brayner Guilherme José de Vasconcellos Soares Fotos Arquivo PDHC, Cláudio Gomes (PDHC) e Mário Farias (Diaconia). Projeto Gráfico Diego Jucá e Alba Almeida Ficha Catalográfica J26a Jalfim, Felipe Tenório, 1962 – Agroecologia e agricultura familiar em tempos de globalização: o Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro / Felipe Tenório Jalfim. – Recife: Ed. do Autor, 2008. 160p. : il. Inclui referências. 1. AGRICULTURA FAMILIAR – BRASIL – ASPECTOS SOCIAIS. 2. AGRICULTURA FAMILIAR – ADMINISTRAÇÃO. 3. AVICULTURA – BRASIL - ASPECTOS ECONÔMICOS. 4. ECOLOGIA AGRÍCOLA – BRASIL. 5. AGROSSILVICULTURA – BRASIL. 6. ASSOCIAÇÕES AGRÍ- COLAS – BRASIL. 7. ECONOMIA AGRÍCOLA. I. Título. CDU 338.1 CDD 338.1 PeR – BPE 08-0363 Impressão Edições Bagaço Recife, Pernambuco, junho 2008
  • 4. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 3 Índice Agradecimentos Sobre Parceiros Apresentação Prefácio PelaUniversidadedeCórdoba/ISEC Prefácio PelaUniversidadeFederalRuraldePernambuco/ CursodeLicenciaturaemCiênciasAgrícolas(LA) 1. INTRODUÇÃO 1.1.OProblemaesuaRelevânciaparaaAgriculturaFamiliar 1.2. Objetivos 2. INDUSTRIALIZAÇÃO AGROALIMENTAR DA AVICULTURA NO BRASIL 2.1.AAviculturanoContextodaModernizaçãoeInternacionalização daAgriculturaBrasileira 2.2.AAviculturanoContextodaConsolidaçãodosSistemas AgroalimentaresGlobalizados 2.2.1.AsLimitaçõesRelacionadasaoModeloAvícolaBrasileiro 05 07 11 15 25 29 33 41 43 43 51 54
  • 5. 4 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 3. O ENFOQUE AGROECOLÓGICO E O FORTALECIMENTO DA CRIAÇÃO TRADICIONAL DE AVES COMO ALTERNATIVA AO MODELO AVÍCOLA BRASILEIRO 3.1. OConceitodaAgroecologia 3.1.1.Elementos-chavedopontodevistadaAgroecologiaparaoEstudo dacriaçãodegalinhasdecapoeiranaRegiãoSemi-áridadoBrasil 4. A CRIAÇÃO TRADICIONAL DE AVES NA REGIÃO SEMI-ÁRIDA BRASILEIRA: UMA PRIMEIRA APROXIMAÇÃO 4.1.ACriaçãodeGalinhadeCapoeiranoBrasil:UmGiganteInvisível 4.2.ImportânciadosSistemasdeCriaçãodeGalinhadeCapoeirapara osAgricultoresFamiliares 4.3.CaracterísticasPrincipaisdosSistemaseManejodaCriaçãode GalinhadeCapoeiraDentrodaLógicadaAgriculturafamiliarnoSemi- áridoBrasileiro 4.3.1.AsPrincipaisLimitaçõesdaCriaçãodeGalinhadeCapoeira 5. CONCLUSÃO BIBLIOGRAFIA 69 70 73 107 108 111 119 128 139 147
  • 6. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 5 São tantas as pessoas que contribuíram para a realização deste trabalho, que me é difícil citá-las sem correr o risco de omitir alguém que de alguma forma deu uma contribuição importante. Entretan- to, apesar disto, na continuação eu tentarei mencionar as pessoas que a seu modo e em certos momentos de minha caminhada fo- ram decisivas para que eu pudesse conseguir chegar até aqui. Agradeço aos professores Eduardo Sevilla Guzmán, Roberto Trujillo e Marta Soler por toda a orientação acadêmica, apoio profissional e atenção para a etapa de elaboração do presente trabalho. Neste grupo do ISEC incluo com muito carinho minha gratidão ao apoio das doutorandas Gloria Patricia Zuluaga e Mariane Carvalho Vidal e dos doutorandos Marcos B. Figueire- do e Jorge Roberto Tavares de Lima. Com muito mais ênfase agradeço o incansável apoio que me foi prestado por Enriqueta Tello García, do México, e Guillermo Gamarra Rojas, do Brasil, com suas importantes contribuições teóricas e metodológicas ao presente trabalho. Agradecimentos
  • 7. 6 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. Agradeço a todos os meus amigos e amigas do Projeto Dom Helder / Ministério do Desenvolvimento Agrário e entre estes agradeço de uma maneira bem especial o apoio incondicional que me deram Espedito Rufino e Fabio Santiago. Através das pessoas de Félix Moreno e Guilheme Strauch agra- deço a todos os demais amigos e amigas do Mestrado em Agroecologia, que foram incríveis em termos de solidariedade, companheirismo, amizade e carinho durante os bons e difíceis momentos vividos durante a etapa presencial do mestrado em Baeza, Espanha. Ao final, mas não menos importante, agradeço o apoio cons- tante que me foi prestado por Daniel Blackburn, Yazna Bus- tamante, Ricardo Blackburn e por meus familiares, sobretudo, minha esposa Glauce Albuquerque, minha mãe Shirley Jalfim, minha tia Terezinha Jalfim e minha sogra Judite Albuquerque.
  • 8. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 7 Sobre Parceiros O Projeto Dom Helder Camara (PDHC), vinculado à Secre- taria de Desenvolvimento Territorial (SDT), do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), que é resultado de um acor- do de empréstimo entre o Fundo Internacional para o Desenvolvi- mento da agricultura (FIDA) e o MDA, desenvolve ações referen- ciais para o desenvolvimento sustentável do semi-árido, voltado para agricultores/as familiares de assentamentos e comunidades rurais. É missão do PDHC contribuir para o desenvolvimento hu- mano, contemplando o fortalecimento da cidadania e a equidade de gênero, geração e etnia. É objetivo do PDHC fortalecer proces- sos locais, participativos e solidários de construção social. Esta construção é feita em parceria com movimentos sociais e organi- zações não-governamentais, parceiras de execução da assesso- ria técnica continuada, envolvidas no desenvolvimento territorial, na perspectiva da convivência com o semi-árido, gerindo recursos sócio-políticos, ambientais, culturais, econômicos e tecnologias. Para alcançar os seus propósitos, o PDHC vem ampliando e fortalecendo suas linhas de ação, a partir de novas iniciativas
  • 9. 8 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. como o Projeto Manejo Sustentável de Terras do Sertão (Pro- jeto Sertão), complementar e integrado ao PDHC. O Projeto Sertão é resultado de um acordo de contribuição financeira não-reembolsável do Governo do Brasil, através do MDA/SDT, com o Fundo das Nações Unidas para o Meio Ambiente Mun- dial (Global Environment Facility – GEF); O objetivo do Projeto Sertão é minimizar as causas e os im- pactos negativos da degradação de terras e da pobreza rural, através do desenvolvimento de uma cultura coletiva de gestão de conhecimento para o manejo sustentável dos recursos na- turais que contribua para a melhoria da qualidade de vida e o bem-estar das pessoas que dependem dos recursos naturais do semi-árido. A estes objetivos estão associados benefícios globais, como o uso sustentável da biodiversidade, contribuin- do para a preservação ou restauração da função e dos serviços proporcionados pelos ecossistemas da Caatinga, e o aumento da fixação de gases de efeito estufa em agroecossistemas e áreas de conservação e preservação. O Instituto de Sociologia e Estudos Camponeses (ISEC) da Universidade de Córdoba é um centro de pesquisa, for- mação e extensão agrária que desenvolve um programa de Doutorado em “Agroecologia, Sociologia e Desenvolvimento Rural Sustentável” na Universidade de Córdoba desde o biênio 1991 -1993, havendo sido reconhecida sua “excelência” pelos Ministérios da Administração da Educação e Ciência Espanhóis ao atribuir-lhe a qualificação de Doutorado de Qualidade em to- das as convocatórias até agora estabelecidas. A partir de 1996 o ISEC, junto com a Universidade Internacional de Andaluzia, organiza um “Mestrado por Investigação” sobre Agroecologia
  • 10. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 9 e Desenvolvimento Rural Sustentável em Andaluzia e América Latina. Este Mestrado é coordenado com o citado Programa de Doutorado, que surgiu da colaboração do Consórcio Lati- no-Americano de Agroecologia e Desenvolvimento (CLADES) e da Associação Latino-Americana de Educação Agrícola Su- perior (ALEAS) com o ISEC. O conteúdo dos oito mestrados desenvolvidos até o momento possibilitou a realização de mais de 200 investigações de campo, em mais de 20 países latino- americanos. O critério prioritário para a admissão consiste na apresentação de um Projeto de Investigação que mostre a experiência do candidato no trabalho com comunidades de base, ainda que não necessariamente camponesas e/ou indígenas, que desen- volvam experiências agroecológicas com um potencial endóge- no transformador. Ademais dos programas de Mestrado e Doutorado, o ISEC leva a cabo atividades de pesquisa e extensão agrárias aplicando o enfoque da Pesquisa – Ação Participativa na qual desaparece a separação funcional entre os dois tipos de ações referidos. O Curso de Licenciatura em Ciências Agrícolas da Univer- sidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), funcionando há mais de trinta anos, tem contribuído para a formação de di- versas gerações de professores agrícolas, tanto para as Escolas Agrotécnicas, como para diversas agências de desenvolvimento no Brasil. Recentemente vem sendo discutido um novo projeto político-pedagógico, onde se incluem preocupações na linha de uma formação referenciada socialmente e de um olhar para a agricultura a partir da perspectiva de sustentabilidade.
  • 11. 10 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. Dentro desta ótica, o curso vem desenvolvendo opções de en- sino, pesquisa e extensão a partir da teorização e de uma prá- tica social em comunidades rurais e urbanas. Para isso, tem contado com os seguintes apoios: Caixa Econômica Federal, através do PRODEC, que celebrou convênio para desenvol- vimento de trabalhos de organização comunitária e geração de renda, em conjuntos habitacionais de baixa renda; Instituto de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, através do PRO- NERA, para trabalhos nas áreas de assentamento de reforma agrária em Pernambuco; Prefeituras; Governo do Estado de Pernambuco; Associação Brasileira das Organizações Não- Governamentais (ABONG); Instituto de Planejamento de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico e Científico (IPAD); SUDENE; DENACOOP do Ministério da Agricultura. Mais recentemente, vem recebendo apoio do Ministério de Desenvolvimento Agrá- rio, por intermédio do Departamento de Assistência Técnica e Extensão Rural da Secretaria de Agricultura Familiar, com os Cursos de Formação de Agentes de Ater na região Nordeste e o Seminário: “O estado da arte do ensino em Extensão Rural”, entre outros. Devem ser destacados, porém, duas parcerias, sempre pre- sentes: O Centro de Desenvolvimento Agroecológico Sabiá e as Escolas Agrotécnicas Federais. O primeiro parceiro no trabalho por uma agricultura sustentável, o que implica um vigoroso re- pensar sobre o ensino das ciências agrárias que desenvolve- mos na UFRPE e o segundo viabiliza as oportunidades de práti- cas, pelos alunos da Licenciatura, de conteúdo e metodologias discutidas no curso.
  • 12. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 11 Os recursos naturais constituem a base dos sistemas produ- tivos agropecuários e florestais, especialmente em regiões de práticas agrícolas com baixo nível de utilização de insumos ex- ternos. Neste sentido, a degradação desses recursos constitui um dos problemas prioritários da região semi-árida brasileira, pois dessa matriz produtiva depende a maior parcela da so- ciedade local, a agricultura familiar. A produção de alimentos e outros bens tem como finalidade não só o auto-sustento como também a geração de renda, elementos indispensáveis para o bem-estar e para a reprodução do modo de vida da agricultura familiar na região. Diversos atores locais de desenvolvimento têm buscado alter- nativas para reverter os processos históricos de degradação ambiental, exclusão social e pobreza, promovendo experiên- cias de desenvolvimento local com enfoque agroecológico. Utilizando-se de uma abordagem territorial, o Projeto Dom Hel- der Camara (PDHC), nos últimos quatro anos, tem identificado Apresentação
  • 13. 12 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. algumas destas experiências, e a partir delas, tem estabele- cido relações de parceria com as famílias agricultoras, ONGs de assessoria técnica, movimentos sociais e sindicatos de trabalhadores rurais, fortalecendo ações de desenvolvimento humano integral. Trata-se de abordagens e práticas sociais e tecnológicas que, aos poucos, ganham densidade geográfica e adquirem coerência conceitual e metodológica em torno da Agroecologia. Tais avanços permitem atribuir a essas mobili- zações um caráter de construção coletiva da sustentabilidade sócio-cultural, econômica e ambiental. O Projeto Manejo Sustentável de Terras no Sertão (Projeto Ser- tão), desenvolvido no âmbito do PDHC e coerente com a sua missão de atuar de forma complementar a ele, tem como obje- to central o desenvolvimento de agroecossistemas sustentáveis que gerem benefícios locais e globais. Para tanto, vale-se da mobilização territorial dos sujeitos e agentes do desenvolvimen- to em torno de um projeto compartilhado e da utilização de me- todologias participativas para geração de conhecimento, tendo como orientação os princípios da Agroecologia. Algumas das experiências acima referidas se destacam pelo seu valor estratégico, especialmente aquelas relacionadas ao principal fator limitante do ambiente físico do semi-árido, a água. Exemplos dessas experiências incluem a barragem sub- terrânea, as barragens sucessivas, a cisterna de placas e suas variações, os avanços no campo da tecnologia apropriada de irrigação e manejo da água destinada à produção de hortaliças, tubérculos, frutas e outros alimentos. As experiências relacionadas à criação de animais, porém, ain-
  • 14. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 13 da carecem de um maior amadurecimento e melhor explicitação dos conhecimentos existentes, dado que em poucas décadas tem ocorrido uma transição rápida dos sistemas extensivos tra- dicionais de criação para sistemas com menor disponibilidade de áreas livres para o pastoreio e, conseqüentemente, menor oferta de alimentos. Assim, constitui-se um grande desafio o desenvolvimento de condições objetivas para que as famílias agricultoras possam equacionar o processo da degradação de terras causado principalmente pelo sobre-pastoreio. A questão, então, é como intensificar os sistemas de criação de animais, de modo que sejam ecologicamente equilibrados e com resultados econômicos que continuem propiciando o desenvolvimento da cultura agroecossistêmica da agricultura familiar. O presente livro traz uma contribuição para o enfrentamento desse desafio. Partindo de uma análise focada na compreen- são dos sistemas tradicionais de criação de aves no semi-árido brasileiro, apresenta um enfoque agroecológico que permite um entendimento aprofundado da lógica camponesa. Apresenta ainda análises da situação atual e perspectivas dos sistemas tradicionais frente aos problemas locais e influências sofridas pelo processo de globalização da agricultura brasileira. Por fim, traça uma abordagem teórico-metodológica baseada na Agro- ecologia que vai além dos sistemas tradicionais de aves, isto é, constitui uma abordagem útil para aqueles interessados em atuar em qualquer sistema de criação animal agroecológica jun- to à agricultura familiar. Consideramos oportuno destacar que, ao apoiar a publicação deste livro, estamos cumprindo com a missão de sistematiza- ção e socialização de conhecimentos relevantes para a inser-
  • 15. 14 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. ção da dimensão do desenvolvimento humano sustentável nas ações da assessoria técnica e dos órgãos oficiais de crédito e fomento agrícola, que atuam no apoio à agricultura familiar no semi-árido brasileiro. Boa leitura a todos e todas. Espedito Rufino de Araújo Diretor Projeto Dom Helder Camara / Projeto Sertão Guillermo Gamarra Rojas Coordenador Projeto Sertão
  • 16. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 15 O presente texto é um Trabalho de fim de mestrado do Progra- ma Inter-Universitário Oficial de Pós-graduação em Agroecolo- gia desenvolvido pelo Instituto de Sociologia e Estudos Campo- neses (ISEC) nas Universidades de Córdoba e Internacional de Andaluzia. Como Diretor Acadêmico deste programa, fico muito grato em escrever estas linhas para mostrar a configuração teó- rica que tem gerado o conjunto de pesquisadores participantes desde 1991; especificando como, neste processo de pesquisa e docência, cumpriram um papel fundamental investigações como a realizada por Felipe Tenório Jalfim, que aqui apresen- tamos. A evolução dos trabalhos empíricos que se foram realizando no referido marco acadêmico do ISEC começou movendo-se teoricamente dentro de uma crítica às Ciências Agropecu- árias e Florestais, ante a incapacidade destas para resolver os problemas sociais e meio-ambientais que iam surgindo com o processo de cientificação dos recursos naturais que foram originando as tecnologias que, ditadas pelo mercado, Prefácio PelaUniversidadedeCórdoba/ISEC
  • 17. 16 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. iam sendo geradas. Diante disso, como um grupo de inves- tigadores, começamos a adotar a Perspectiva dos Estudos Camponeses; que se encontrava no marco interdisciplinar das Ciências Sociais e que, mediante metodologias partici- pativas fomos evoluindo para a transdisciplinaridade. Tal mu- dança consistiu, não só em introduzir aqueles elementos das Ciências Naturais necessários para compreender a natureza da agricultura industrializada e seu impacto sobre a natureza e a sociedade, mas também, e, sobretudo, em aceitar o co- nhecimento local camponês e/ou indígena como um elemen- to essencial para encarar os estragos que nas sociedades rurais e camponesas estavam gerando o Neoliberalismo e a Globalização. Junto à dimensão agropecuária e florestal, era necessário in- troduzir a ecológica, não só formada do pensamento científico, mas também construída a partir do local em forma participati- va e, mediante processos de reflexão, perceber a importância do político. Assim, a busca de soluções às formas de degra- dação, causadas por este tipo de manejo agroindustrial dos recursos naturais, levou-nos a desvelar a dualidade da ciência (como epistemologia e como estrutura de poder), e trabalhan- do com o povo até configurar nosso enfoque da Agroecología como pensamento pluriepistemológico que articula os conte- údos históricos das lutas libertadoras dos movimentos sociais camponeses e indígenas e os saberes locais sobre o manejo dos recursos naturais com os da ciência, como algo impres- cindível para obter a sustentabilidade, em sua dimensão social
  • 18. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 17 e política. Como assinalam dois dos primeiros graduados1 de nosso programa de doutorado, hoje professores do mesmo, Francisco Roberto Caporal e José Antonio Costabeber, (2002. “Análise Multidimensional da Sustentabilidade. Uma proposta metodológica a partir da Agroecologia”. Em: Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável. Porto Alegre/ RS. V. 3, nº 3; 70-85: 79): “a dimensão política da sustentabilidade tem a ver com os processos participativos e democráticos que se de- senvolvem no contexto da produção agrícola e do desenvolvi- mento rural, assim como com as redes de organização social e de representação dos diversos segmentos da população rural. Nesse contexto, o desenvolvimento rural sustentável deve ser concebido a partir das concepções culturais e políticas próprias dos grupos sociais considerando suas relações de diálogo e de integração com a sociedade maior através de sua represen- tação em espaços comunitários ou em conselhos políticos e profissionais em uma lógica que considere aquelas dimensões de primeiro nível como integradoras das formas de exploração e manejo sustentável dos agroecossistemas”. Entretanto, a na- tureza do sistema de dominação política em que se encontrem as experiências produtivas que se articula com a sociedade civil 1 Suas teses de doutorado se encontram entre as dez realizadas nas duas primeiras promovidas pelo ISEC, cinco das quais foram realizadas por pesquisadores brasileiros, estando localizadas no Sul do Brasil: quatro no Rio Grande do Sul e uma em Santa Catarina. Ademais foram desenvolvidas, em sua quase totalidade, para se implementar de forma coordenada com as organizações de pesquisa e extensão agrária daqueles estados. Apresentamos a seguir seus títulos, precedidos pelo nome dos autores; as cifras entre parêntesis correspondem às datas de leitura das mesmas no Programa de Doutorado: Joao Carlos Canuto, Agricultura ecológica en Brasil (18/02/ 98); José Antonio Costabeber, Acción social colectiva y procesos de transición agroecológica en Rio Grande do Sul, Brasil (15/10/98); Francisco Roberto Caporal, La extensión agraria del sector público ante los desafíos del desarrollo sostenible (13/11/98); Eros Marión Musoi Integración entre investigación y Extensión agraria en un contexto de descentralización del estado y sustentabilización de políticas de desarrollo: el caso de Santa Catarina, Brasil. (6/05/98); Joao Costa Gomes, Pluralismo metodológico en la producción y circulación del conocimiento agrario. Fundamentación epistemológica y aproximación empírica a casos del sur de Brasil. (20/10 99)
  • 19. 18 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. para gerar estas redes de solidariedade tem muito a ver com o curso seguido pelas estratégias agroecológicas em sua busca de incidir nas políticas agrárias. Em geral pode dizer-se que, na situação mundial atual, as dinâ- micas de ação agroecológica necessitam romper os marcos de legalidade para desenvolver seus objetivos; quer dizer que as re- des produtivas geradas cheguem a culminar em formas de ação social coletiva pretendendo adquirir a natureza de movimentos sociais. Entretanto, como aponta outro dos professores de nosso programa, Enrique Leff (2002, “Agroecología e saber ambiental”, em: Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável. Porto Alegre/RS. V. 3, nº 1; 36-51: 47), estes “movimentos sociais as- sociados ao desenvolvimento do novo paradigma agroecológi- co e a práticas produtivas no meio rural não são senão parte de um movimento mais amplo e complexo orientado na defesa das transformações do Estado e da ordem econômica dominante. O movimento para um desenvolvimento sustentável é parte de no- vas lutas pela democracia direta e participativa e pela autonomia dos povos indígenas e camponeses, abrindo perspectivas para uma nova ordem econômica e política mundial”. Tanto na América Latina como na Andaluzia, desde meados dos anos oitenta, pesquisadores que mais tarde se agrupa- riam em torno do Programa da Agroecologia do ISEC (e ainda sem estabelecer qualquer coordenação com os nossos traba- lhos), fomos desenvolvendo análogos processos de acompa- nhamento às formas de ação social coletiva que iam gerando experiências produtivas alternativas ao modo de uso industrial dos recursos naturais. As ações camponesas e/ou indígenas em ambos os lados do oceano tinham análoga natureza de luta
  • 20. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 19 pela terra pretendendo, além disso, introduzir de forma inci- piente propostas produtivas com claros elementos agroecoló- gicos. Nosso trabalho, desde finais dos anos oitenta do século passado, foi evoluindo desde a observação participante como método inicial, até formas de interação onde nossa produção intelectual tomasse caminhos guiados pela dinâmica dos mo- vimentos camponeses e/ou indígenas que acompanhávamos, ao colaborar com eles na análise das políticas agropecuárias e florestais que lhes submetiam a situações de clara marginalida- de e exploração socioeconômica. O contato que estabelece uma cooperação definitiva entre os, em certo sentido dispersos, pesquisadores latino-americanos e o ISEC, produziu-se como conseqüência de uma estratégia articulada pelo Consórcio Latino-americano de Agroecologia e Desenvolvimento (CLADES) para institucionalizar a Agroecologia na América Latina. Tal estratégia se iniciou com a organização, em Santiago do Chile, em setembro de 1991, de uma reunião CLADES-FAO sobre os currículos universitários em Agroeco- logia e Desenvolvimento Rural Sustentável para introduzir nas universidades os ensinos deste novo enfoque2 , o que não pôde realizar-se apesar da frenética atividade que exibiu aquele grupo inicial. Não obstante, foi possível incorporá-lo a nosso programa de Doutorado da Universidade do Córdoba. A consolidação de- 2 Aquela reunião deu lugar a uma série de atividades nesta direção; como foi o Curso que (organizado por Guillermo Hang sobre Agroecología y Desarrollo Sostenible) administramos Miguel Angel Altieri (sobre os aspectos agronômicos) e eu (sobre os aspectos sociológicos) na Faculdade de Ciências Agrárias e Florestais da Universidade de La Plata; de onde uma semana mais tarde teve lugar a X Conferência da Associación Latinoamericana de Educación Superior (ALEAS) na cidade de Buenos Aires de 23 a 28 de maio de 1993. ALEAS é uma associação formada por todos os reitores das Faculdades de Ciências Agropecuárias e Florestais da América Latina (em alguns casos se incluem a Veterinária, rompendo o tradicional corporativismo acadêmico prevalecente) e conseqüentemente o cenário ideal para apresentar a introdução do novo enfoque em seus currículos.
  • 21. 20 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. finitiva do grupo latino-americano de professores do ISEC teve lugar em inícios de 1995, quando se desenvolveu um Ciclo de Seminários Internacionais de Agroecología e Desenvolvimento Sustentável na Universidade Internacional da Andaluzia (UIA), que precederam a criação do Mestrado para a América Latina, que desde então ali se tem realizado. Foi assim como se gerou a experiência educativa e de pes- quisa (os oito primeiros mestrados, prévios ao atual Programa Oficial de Pós-graduação de Doutorado mais mestrado, tinham uma natureza do “Master by Research”3 , com a possibilidade de trabalho de campo durante dois anos, antes de apresentar a Tese), realizada para fortalecer as dinâmicas produtivas que se estavam levando a cabo, tanto nos diversos países latino- americanos de onde procediam os alunos – que em sua grande maioria traziam uma larga experiência das ONGs e/ou Univer- sidades onde desenvolviam suas atividades –, como na An- daluzia, mediante os acompanhamentos que desenvolvíamos através do ISEC. Estes últimos constituíram o marco da nova universidade andaluza (UIA) como campo de ação, para mos- trar os resultados de nossa interação / pesquisa com as expe- riências agroecológicas produtivas com que trabalhávamos e que serviam como como agroecossistemas de gestão familiar onde se desenvolviam os “trabalhos práticos de campo” dos distintos cursos administrados. Foi em certa medida a experiência adquirida como conse- qüência das pesquisas realizadas por parte dos alunos no ISEC (para obter os referidos graus de “Doutor” e “Mestre por In- 3 Ao adotar-se a modalidade britânica durante o funcionamento como título universitário próprio da UIA.
  • 22. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 21 vestigação”) o que fortaleceu a interação com os movimentos sociais latino-americanos que realizavam uma agricultura de base ecológica; permitindo-nos, ao mesmo tempo, uma con- trastação com o trabalho que realizávamos na Andaluzia. Este intercâmbio contribuiu, sem dúvida, para um forte componente no desenvolvimento de bases teóricas e metodológicas com as que fundamentamos nossa proposta agroecológica. É importante ressaltar aqui a participação dos alunos latino- americanos, em geral, e os brasileiros, em especial, do Pro- grama de Doutorado do ISEC na dinâmica de articulação de dissidências ao Neoliberalismo e a Globalização econômica desde os diferentes movimentos sociais, nos que, em não pou- cos casos, apareciam experiências produtivas que a agroecolo- gia, que estávamos construindo, podia fortalecer. Isso fez com que nos envolvêssemos naquela dinâmica, que teve diferentes manifestações em distintos países do mundo, fortalecendo me- diante a participação do ISEC os espaços de debate que iam surgindo. Neste sentido, teve grande interesse nossa participa- ção na dinâmica contra a pretendida bondade do “livre comér- cio mundial” impulsionada pela articulação transnacional dos estados no contexto da campanha “50 Anos Bastam” contra o meio século de existência das instituições financeiras globais (FMI e BIRD); que culminou no Foro Alternativo “As Outras Vo- zes do Planeta” que se desenvolveu em Madrid, no outono de 1994. Foi neste contexto, de interação com os movimentos so- ciais rurais latino-americanos, que surgiu nossa interação com o Movimento Zapatista; com o qual, por outro lado, as orga- nizações camponesas andaluzas com as que trabalhávamos
  • 23. 22 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. também mantinham contatos praticamente desde seus inícios4 . Assim, foram na Andaluzia – através da interação ISEC com os movimentos camponeses – onde apareceram os primeiros co- mitês de apoio ao EZLN5 , primeiro, e ao MST6 , depois, que logo se estenderiam pelo resto da Europa e demais continentes. Em sua dinâmica de resistência e luta informacional, o EZLN convocou o II Encontro Intergaláctico contra o Neoliberalismo e pela Humanidade na Espanha, mediante uma celebração iti- nerante por várias comunidades que, organizadas pela articu- lação peninsular de movimentos sociais, eram impulsionadas pelos comitês zapatistas locais. O ato de “encerramento” teve lugar no Indiano, sítio cuja propriedade foi obtida após longos anos de luta com ocupações e prisões de “camponeses sem terra,” com quem trabalhava o ISEC, convertendo-se em uma das experiências produtivas agroecológicas nas que se desen- volviam as práticas do Mestrado e Doutorado, junto a outras cooperativas agroecológicas dentro das quais se desenvolve- ram as pesquisas, em cuja reflexão e prática sócio-política e produtiva surgiu um modelo da agroecologia andaluza. Mas se a contribuição brasileira foi importante na fase inicial de 4 Cf. Eduardo Sevilla Guzmán (2006: Perspectivas agroecológicas desde el pensamiento social agrario (Córdoba: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Córdoba / Instituto de sociología y Estudios Campesinos; 285: cap. 1) e Sevilla Guzmán e Joan Martinez Alier, (2006 “New rural social movements and Agroecology” (con Joan Martínez Alier) editado por P. Cloke, Terry Marsden and P.Mooney, Handbook of Rural Studies (London: SAGE Publications: 472-483) de onde damos conta desta histórica relação entre movimentos camponeses de ambos os continentes. 5 Nele teve um papel central Jorge Morett Sánchez, professor de Antropologia da Universidade de Chapingo e uma das primeiras Teses de doutorado do Programa de Doutorado do ISEC (Las empresas multinacionales en la agricultura española, lida em julho de 1997). 6 O estabelecimento do primeiro Comitê de Apoio ao MST se produziu graças a coragem dos alunos brasileiros do Doutorado do ISEC, especialmente Roberto Vicentín e Francisco R. Caporal.
  • 24. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 23 configuração do Mestrado (a partir dos alunos do Doutorado), por sua contribuição à interação com os movimentos sociais, esta foi ainda maior quando estes começaram a intervir nas po- líticas públicas brasileiras, primeiro no Governo do Rio Grande do Sul (durante sua época de “Estado da Participação Popu- lar”), tentando introduzir a Agroecologia na Extensão Agrária; depois, no Governo Federal quando do início do governo Lula; e finalmente, nos últimos anos, ao INTA argentino fortemente influenciado pelo apoio brasileiro à agricultura familiar. Isso de- terminou que a maior parte dos professores e um bom número de estudantes do Programa de Doutorado e Mestrado7 colabo- rassem ativamente em tais processos. O fato de que o presente texto seja publicado é especialmente significativo como amostra da importância da contribuição bra- sileira ao nosso Programa de Pós-graduação; mais ainda, se se levar em conta que a pesquisa de Felipe Tenorio Jalfim está ain- 7 Alguns dos professores e alunos participantes da implementação das referidas políticas públicas são as seguintes: Miguel Angel Altieri (University of California. Berkeley); Mirem Etxezarreta (Universidad Autónoma de Barcelona); Roberto García Trujillo (Universidad de Córdoba); Steve Gliessman (University of California, Santa Cruz); Manuel González de Molina (Universidad de Granada. Investigador del ISEC); Enrique Leff Zimmerman (Coordinador de la Red de Formación Ambiental del Programa de las Naciones Unidas para el Medio Ambiente PNUMA); Joan Martínez Alier (Universidad Autónoma de Barcelona); Jan Douwe van der Ploeg (Agricultural University of Wageningen); Peter Rosset (University of California, Berkeley); María Salas (Universiteit Nijmegen); Alfred Siemens (University of British Columbia); Hermann J. Tillman (Universidad de Hohenheim); Victor Manuel Toledo (Centro de Ecología de la U.N.A.M.-México); Graham Woodgate (Wye College, University of London); Stephan Rist (Universidad de Berna) e Tomás Rodríguez Villasante (Universidad Complutense de Madrid); Antonio Lattuca e Graciela Ottmann (CEPAR, Rosario); Carlos Alemany, José Luis Zubizarreta (INTA, Argentina); Susana Aparicio e Roberto Benencia (UBA, Argentina). Entre os participantes brasileiros vinculados ao ISEC, como formados ou com pesquisas em curso, o número é muito maior; entre estes estão: João Carlos Canuto, João Costa Gomes, Marcos Flavio Silva Borba e Joel Enrique Cardoso (EMBRAPA), Francisco Roberto Caporal, José Antonio Costabeber (EMATER), Eros Marión Musoi (EPAGRI); Canrobert Casta Neto (CPDA, Universidade do Rio de Janeiro) e o importante núcleo da Universidade Federal Rural de Pernambuco, integrado por Jorge Roberto Tavares de Lima, Marcos B. Figueiredo, Tirso Ramón Rivas e Josenildo de Sousa e Silva, entre outros.
  • 25. 24 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. da em sua fase de gestação. Com efeito, o trabalho possui uma finura teórica que revela claramente a larga experiência acumu- lada pelo autor em sua convivência com a agricultura familiar do semi-árido brasileiro. Sua análise do setor avícola industrial desvela com contundência as deficiências meio-ambientais que possui este, ao mostrar a insustentabilidade ecológica e social que arrasta a trajetória da modernização e globalização da avi- cultura brasileira. Por outro lado, a aplicação do marco teórico da Agroecologia à criação de galinhas de capoeira/caipira cons- titui uma novidade de grande interesse; ao saber selecionar os elementos - chave que levem à posterior elaboração de uma consistente proposta. Tal novidade se transforma em algo mais relevante ainda ao introduzir uma perspectiva de gênero e incor- porar como objetivo o empoderamento da mulher, através da criação de galinhas. Finalmente, sua aproximação à análise da criação tradicional de galinhas no semi-árido mostra a importân- cia que esta tem para a agricultura familiar, ao mesmo tempo em que constitui já em si uma válida sistematização para introduzir um posterior fortalecimento agroecológico de tal manejo. Eduardo Sevilla Guzmán Diretor do ISEC / Universidade de Córdoba, Espanha.
  • 26. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 25 O Livro intitulado “Agroecologia e Agricultura Familiar em Tem- pos de Globalização – O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro”, de autoria de Feli- pe Tenório Jalfim, objeto de sua dissertação defendida junto à Universidade de Córdoba, Espanha, pela temática que aborda, apresenta uma forte intersecção com o Curso de Licenciatura em Ciências Agrícolas. O livro não somente evoca a importância da valorização do conhecimento tradicional como conhecimen- to válido e necessário para o desenvolvimento de agriculturas sustentáveis, com ênfase o papel da mulher, mas também (re) coloca no centro da discussão a incompatibilidade do paradig- ma dominante com os fundamentos da Agroecologia, conce- bida enquanto paradigma emergente. Neste ínterim o trabalho questiona os desdobramentos da aplicação do conhecimento técnico-científico no campo, que se materializou de forma he- gemônica e excludente com o advento do modelo agroindus- trial. O fato dos riscos da gripe aviária ameaçarem a autonomia da produção da galinha de capoeira, atividade secular típica da Prefácio PelaUniversidadeFederalRuraldePernambuco/ CursodeLicenciaturaemCiênciasAgrícolas(LA)
  • 27. 26 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. agricultura familiar, parece ser bastante revelador nesse senti- do, mas sobretudo revela a urgência e a necessidade de se re- pensar as bases que orientam e estruturam o arcabouço cien- tífico e tecnológico do modelo industrial de agricultura, que tem se colocado pretensamente como caminho único (“universal”) da agricultura, em detrimento de outros modelos sabidamente mais sustentáveis. Não é por acaso que essa reflexão faz eco dentro dos muros da universidade, em especial no curso de Licenciatura em Ciências Agrícolas (LA), que tem se pautado não só por desenvolver uma metodologia diferenciada do ponto de vista pedagógico com a adoção de eixos integradores e interdisciplinares no processo de construção do conhecimento, mas também como protago- nista de uma articulação com os agricultores camponeses e movimentos sociais do campo através de mecanismos de troca de conhecimento entre professores, estudantes e as famílias camponesas. Exemplo disso são os vários e ricos eventos de formação social e técnica realizados pelo Curso de LA no âmbi- to do ensino, como os Estágios de Vivência, Semanas do Meio Ambiente, Prêmio Mata Atlântica, Seminários sobre Agroecolo- gia e mais recentemente sobre o “Ensino de Extensão Rural no Brasil”, entre tantas outras atividades que estão contribuindo para uma formação profissional socialmente referenciada na re- alidade nordestina e brasileira. Jorge Luiz Schirmer de Mattos Coordenação de LA/UFRPE
  • 28. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 27
  • 29. 28 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
  • 30. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 29 Por que escrever um livro sobre a criação de galinhas de capo- eira no Brasil? Qual a importância de apresentar um trabalho sobre algo tão inexpressivo, quando existem tantas coisas mais interessantes e relevantes para serem estudadas e divulgadas dentro da Agroecologia? Por que estudar esse tipo de criação de galinha já que atualmente o Brasil é o principal exportador de frango do mundo? O que tem a ver a modernização e a globalização da agricultura brasileira com as galinhas do quintal de uma simples agricultora familiar? Não seria mais racional e barato para as agricultoras familiares comprar frango e ovos produzidos pelas granjas industriais que produzir em seus quin- tais? Que importância tem essa atividade para a agricultura fa- miliar brasileira? 1. Introdução
  • 31. 30 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. Tais perguntas, entre tantas outras sobre o tema, as pessoas me fazem há três anos, quando comecei a compartilhar minha decisão de que a criação de galinhas de capoeira seria meu tema de estudo no âmbito de um mestrado em Agroecologia. As perguntas vinham de todas as direções, inclusive de pes- soas alheias às ciências agrárias. Mas, são precisamente as pessoas desta área as que mais questionam a relevância de meu tema de estudo. Entretanto, tais perguntas aumentaram meu interesse e con- vicção sobre a importância do tema. Ainda que, em realida- de, tenho estado interessado neste tema já faz quase 20 anos, quando fui viver na zona rural da região semi-árida e iniciei uma larga convivência cotidiana com os agricultores e agricultoras familiares, onde tive a oportunidade de contribuir em processos de intercâmbio de conhecimentos como forma de ampliação da capacidade de resistência dos agroecossistemas tradicio- nais frente aos efeitos da seca1 . Entre os intercâmbios de conhecimentos que pude vivenciar, a criação de galinhas de capoeira me chamou a atenção pelo grande conhecimento das mulheres no manejo de suas gali- nhas e outras aves, como também por seu interesse em buscar alternativas para melhorar suas estratégias de produção e co- mercialização. Já naquele tempo fizemos vários experimentos participativos e inclusive um diagnóstico sobre a criação de ga- linhas de capoeira e outras aves. 1 Esta inserção fazia parte de um movimento mais amplo, o qual buscava uma mudança no enfoque das políticas públicas para esta região; se tratava de mudar o enfoque de combate à seca para o enfoque de convivência com a seca. Esta visão e estratégia de ação eram promovidas por uma articulação entre o movimento sindical dos trabalhadores rurais, as ONGs, as Igrejas e o Projeto Tecnologias Alternativas (PTA).
  • 32. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 31 Depois desse período, já trabalhando no âmbito governamental2 , fazendo a gestão de fundos de projetos de fomento ao desenvol- vimento produtivo e social em comunidades de agricultura fami- liar e assentamentos da reforma agrária no semi-árido brasileiro, me reencontrei com as galinhas, ou melhor, com as agricultoras familiares e seu interesse pela criação de galinhas de capoeira. Na tarefa cotidiana de analisar e aprovar os projetos me dei con- ta de aspectos interessantes e, ao mesmo tempo, preocupan- tes no que tange o âmbito de produção de galinhas de capoei- ra. Primeiro, percebi uma crescente demanda das agricultoras familiares por projetos que respondessem a seus desejos de contribuir para o aumento da renda e da segurança alimentar de suas famílias. Segundo, notei que a maior parte dos proje- tos elaborados com o apoio dos/das assessores/as técnicos/ as apresentavam fragilidades metodológicas e técnicas no tema específico da criação de galinha: consideravam de maneira insu- ficiente os conhecimentos das mulheres no tema e/ou tendiam à formulação de sistemas “alternativos” e ecológicos em uma linha que se aproximava daquela de substituição de insumos, e em alguns casos, até tentavam reproduzir a lógica industrial de criação de frangos e/ou de galinhas de postura através de uma adequação desta às condições da agricultura familiar. Por outro lado, nossas respostas aos assessores técnicos eram igualmente genéricas, sem sugerir um caminho a uma criação 2 Projeto Dom Helder Camara (www.projetodomhelder.gov.br), que é resultado de um acordo de empréstimo entre O Fundo Internacional para o Desenvolvimento da Agricultura (FIDA) e o Ministério do Desenvolvimento Agrário do Brasil (MDA). Este projeto tem por objetivo apoiar ações de desenvolvimento humano sustentável com foco na agricultura familiar em comunidades rurais e áreas de reforma agrária no semi- árido do Brasil. É executado em cooperação com os movimentos sindicais e sociais e mais de 50 ONGs, que assessoram diretamente cerca de 12.000 famílias.
  • 33. 32 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. sustentável de galinhas de capoeira. Mais ainda, diante da es- cassez de informação sobre o tema, tampouco conseguíamos ajudá-los indicando-lhes onde buscar as referências teóricas e metodológicas para a construção de propostas verdadeira- mente sustentáveis. Toda esta situação somada ao recente risco da chegada da gri- pe aviária no Brasil, e o fato de que as indústrias transnacionais do frango em geral estão usando a mídia global e os próprios Estados para colocar a culpa do surgimento e dispersão deste vírus na criação da galinha de capoeira e nas aves silvestres, não só consolidou meu interesse e inquietude pelo tema, como também o fez urgente e insubstituível. Entre outros motivos, por- que ele mesmo é bem mais complexo do que parece a primeira vista e, sobretudo, porque existem poucas e dispersas informa- ções sistematizadas sobre o mesmo desde uma perspectiva que considere a agricultura familiar3 e/ou a Agroecologia. O presente trabalho é, portanto, uma primeira aproximação ao tema, realizada com base na confrontação da informação bi- bliográfica e demais tipos de literatura disponível com minha ex- periência adquirida em vários anos de convivência com famílias de agricultoras familiares na região semi-árida do Brasil. O trabalho está organizado em cinco partes centrais: esta primeira propõe o problema de estudo numa dimensão mais ampla e seus 3 É importante ressaltar que neste trabalho se assume o conceito de agricultura familiar considerando que a agricultura camponesa tradicional no Brasil é a principal parte dentro desta. Portanto, em vários momentos deste trabalho se utilizam os termos agricultura familiar e camponesa e suas derivações com o mesmo sentido. O aspecto- chave utilizado para o conceito de agricultura familiar está centrado naqueles que manejam a terra, tendo-a ou não sob sua posse, através do emprego predominante no tempo e espaço da mão-de-obra familiar, buscando alcançar a produção agrícola e pecuária necessária à sua sobrevivência presente e futura.
  • 34. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 33 objetivos; na segunda parte, se faz uma análise do setor avícola industrial e seus riscos ambientais, socioeconômicos e efeitos sobre a criação de galinhas de capoeira praticada pela agricul- tura familiar; a terceira apresenta a Agroecologia como resposta, através de uma construção teórico-metodológica que fortaleça a criação de galinha de capoeira como alternativa ao modelo aví- cola industrial e a quarta faz uma primeira aproximação à criação de aves no semi-árido brasileiro. Finalizando, apresenta-se uma breve conclusão, onde se propõe elementos para aprofundar o tema em estudos futuros, a partir de uma perspectiva agroecoló- gica com um enfoque participativo e que leve à ação. 1.1.OProblemaesuaRelevânciaparaaAgriculturaFamiliar Apesar da grande importância da criação de galinhas de capo- eira nos agroecossistemas tradicionais pelo papel que desem- penham na soberania alimentar, geração de renda e no empo- deramento das mulheres no meio rural brasileiro, historicamente as políticas públicas têm esquecido esta atividade. Essafaltadeatençãoaosetordaagriculturafamiliarporpartedas políticas públicas não é casual, mas que constitui uma das en- grenagens do proces- so de modernização e internacionalização da agricultura brasileira, que exclui esse tipo de organização da produ- ção agrícola.
  • 35. 34 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. Neste sentido, o complexo avícola industrial representa aquele setor que mais incorporou o modelo neoliberal via absorção do processo de internacionalização da agricultura brasileira, tanto em investimentos financeiros de empresas transnacionais como na importação (transferência) de tecnologia dos países ricos. Portanto, em poucas décadas o modelo industrial se tornou he- gemônico na produção de frango e ovos no Brasil. Tal modelo foi desenvolvido dentro dos paradigmas da “revolução verde” e do processo de globalização dos sistemas alimentares, tendo como característica principal a concentração desta atividade produtiva em mãos de poucas empresas nacionais e transnacio- nais, em detrimento da participação dos agricultores familiares na mesma. É uma atividade baseada na concentração e neces- sidade de investimento de capital financeiro e na dependência do uso intensivo de insumos externos aos agroecossistemas e de pacotes tecnológicos importados. Um exemplo disto são as linhas comerciais de frangos e galinhas de postura no Brasil que são quase todas importadas. Com efeito, as linhas híbridas de frango utilizadas no mundo pertencem a umas poucas com- panhias transnacionais, as quais selecionaram estas raças para a produção em ambientes controlados e com elevado uso de ração, insumos e fármacos (Pont Andrés, 2005). Com o apoio regular de políticas públicas de fomento, com que as iniciativas da revolução verde historicamente contaram durante vários governos, e pela intensiva associação às cor- porações agroalimentares transnacionais, a avicultura industrial brasileira se desenvolveu rapidamente, chegando hoje a ocupar o primeiro lugar na exportação de frango no mundo, tanto em volume de produção como de renda, na frente dos Estados
  • 36. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 35 Unidos. Também ocupa o sétimo lugar quanto ao volume de ovos produzidos mundialmente. Da mesma maneira, a avicul- tura industrial já invadiu todo o mercado nos grandes centros urbanos do Brasil e está se expandindo de maneira rápida e agressiva para os mercados locais do meio rural. Tal condição da avicultura industrial brasileira, expressada por sua contribuição no superávit comercial e pelo aumento nacional no consumo per carpita de ovo e frango, faz do complexo industrial avícola um dos ramos mais fortes do agronegócio brasileiro. Isso lhe permite atuar com uma força econômica e política, influen- ciando fortemente as políticas públicas para o setor agrário e im- pondo normas sanitárias cada vez mais restritivas à continuidade da participação do agricultor familiar na produção de frangos e ovos, seja para seu autoconsumo, comercialização ou ambos. Em outras palavras, progressivamente as empresas transnacio- nais limitam a soberania alimentar nos países em desenvolvimen- to através de uma defesa de seus interesses corporativos em detrimento de políticas que estimulem uma produção de alimen- tos baseada no fortalecimento da agricultura familiar e no manejo sustentável de seus agroecossistemas (Sevilla Guzmán, 2006a). A transnacionalização da avicultura nacional, uma vez que es- timula fortemente a expansão das empresas do agronegócio de soja e milho, que estão baseadas em pacotes tecnológicos que incorporam desde grandes monoculturas mecanizadas aos cultivos transgênicos, representa uma das expressões recentes mais perversas do processo de modernização do campo bra- sileiro. Os impactos negativos da modernização do meio rural sobre os recursos naturais e as comunidades de agricultura fa-
  • 37. 36 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. miliar são semelhantes em todo o mundo, sobretudo nos países em desenvolvimento (Toledo, 2006/2007a). Em geral, o modelo de produção “moderna”, orientada ao mercado, viabiliza-se a partir de custos ecológicos elevados, de uma especialização espacial, produtiva e humana. Seus impactos mais fortes estão relacionados ao esgotamento dos recursos naturais e à ten- dência de substituir as comunidades de agricultura familiar por formas “modernas” de produção (Toledo, 2006/2007a). Ainda que na região Nordeste do Brasil, onde se localiza a maior parte do semi-árido do país, o setor avícola industrial não tenha uma capacidade produtiva e de avanço sobre os mercados comparável às regiões Sul, Sudeste e Centro Oeste, a agricul- tura familiar desta região também perde cada vez mais espaço para o setor industrial no mercado de frango e ovos. Esta perda de mercado do produto da agricultura familiar não é somente a favor das indústrias localizadas na própria região Nordeste, que vêm se expandindo amplamente nas últimas décadas, mas é também a favor das maiores corporações do frango com sede no Sul e Sudeste do país, que conseguem exportar frango congelado e uma enorme gama de seus deri- vados para toda a região Nordeste. O maior impacto que incide sobre a agricultura familiar está relacionado à perda progressiva dos mercados locais das pe- quenas e médias cidades do meio rural, onde historicamente a agricultura familiar encontra um bom espaço para a venda de frango e ovos. Isso significa um déficit importante na en- trada de renda para as famílias de agricultores familiares, que seguramente resultam em mudanças e debilidades ainda pou-
  • 38. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 37 co conhecidas nas estratégias de diversificação da produção, construídas durante centenas de anos pelas famílias no manejo dos agroecossistemas desta região. Ademais dos processos até agora mencionados, a criação de galinha de capoeira desenvolvida pela agricultura familiar ten- de, geralmente, a ser considerada como uma atividade mar- ginal, com pouca ou nenhuma importância socioeconômica nos agroecossistemas. Este fato tem ocorrido de forma geral, simplesmente por ser uma atividade de responsabilidade das mulheres agricultoras, em um contexto de uma sociedade rural marcada pelo patriarcado e machismo. Tal sociedade historica- mente faz invisível o papel que têm as mulheres no desenvolvi- mento da agricultura. Portanto, parece que tal fato tem contri- buído também para o afastamento dos meios acadêmicos, da investigação aplicada e da extensão rural. Ou seja, o fato de ser uma atividade considerada marginal, invisível do ponto de vista socioeconômico, não agrega reconhecimento e status acadê- mico, técnico e científico a quem se envolva com este tema. Por outro lado, na região semi-árida4 do Brasil (figura 1), apesar do contexto adverso ocasionado pelos motivos acima men- 4 Vale salientar que dados do INCRA/FAO (Guanziroli, 2000) demonstram que a região Nordeste possui 2.055.157 estabelecimentos familiares, quer dizer, 49,6% do total de estabelecimentos familiares do Brasil. Como o semi-árido brasileiro representa 59,25% da área total do Nordeste do Brasil (CNRBC, 2004) e nas demais regiões do Nordeste predominam os latifúndios e fazendas pecuárias, pode-se concluir que a maior parte dos estabelecimentos familiares do Nordeste se concentra na região semi-árida. Esta região é caracterizada por uma precipitação média abaixo de 800 mm ao ano, com médias anuais inferiores a 400 mm, com chuvas que se distribuem de forma irregular no tempo e espaço, com ocorrências de grandes períodos de secas. A evapotranspiração potencial é elevada, cerca de 3.000mm anuais. É uma área heterogênea de paisagens e povos diversos, com áreas densamente povoadas e grandes vazios demográficos (Gamarra-Rojas, 2006). A Caatinga é a vegetação predominante no semi-árido e se caracteriza por ser uma vegetação que varia de savanas arbustivas a bosques secos, passando por afloramentos rochosos dominados por cactos e bromélias, até bosques perenes de altitude (Velloso, Sampaio & Pareyn, 2002).
  • 39. 38 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. cionados, percebe-se que as mulheres agricultoras continuam buscando inúmeras maneiras de resistir ao avanço do modelo hegemônico de criação de aves, como também de todas as outras dificuldades para a própria reprodução social da agricul- tura familiar, inerentes ao contexto da globalização. Ademais, nesta região, a criação de galinha de capoeira representa para muitas mulheres uma oportunidade, entre outras, em sua luta por uma maior autonomia econômica e reconhecimento so- cial. Neste sentido, já existem avanços em experiências que têm ampliado a ocupação de espaços nos mercados locais de fran- gos e ovos através da comercialização em feiras agroecológi- cas. São processos em que se destacam formas organizadas e coletivas de produção e comercialização, realizados por gru- pos organizados de mulheres agricultoras. Estes grupos bus- cam novas formas de organização social que contribuam para o processo de empoderamento das mulheres e para a criação de alternativas de venda de seus produtos através de mecanis- mos que confiram uma maior visibilidade e valorização de seus produtos frente aos produtos industriais. Mas, a forma predo- minante de comercialização da produção de ovos e frangos da Figura 1: Localização da Região Semi-árida de Brasil Región Semiárida de Brasil Fonte: Fernández de Lima (2007)
  • 40. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 39 agricultura familiar é a forma tradicional, ou seja, através da ven- da individualizada e direta ao consumidor nas feiras livres. Estes processos de acesso a mercado têm, neste momento, um duplo papel para a agricultura familiar: • Manter vivos os costumes da população urbana das pequenas cidades do semi-árido brasileiro em seguir dando preferência ao sabor da carne e ovos das galinhas de capoeira em detrimento daqueles indus- triais. Com isso se evita a perda deste fator importante de vantagem competitiva da avicultura tradicional frente à avicultura industrial. • Vinculado com este papel de manutenção dos hábitos ali- mentares locais, que estão relacionados com o sabor, a consistência e a coloração dos frangos e ovos provenien- tes da criação de galinha de capoeira, a comercialização em espaços orgânicos e agroecológicos ajuda também a estimular o interesse do consumidor urbano por um tipo de alimento mais saudável e ligado ao fortalecimento dos sistemas agroalimentares locais, que reforçam a econo- mia e agricultura local (Menezes, 2005). Internamente aos agroecossistemas, a criação de aves tem um papel fundamental no auto-abastecimento alimentar e na cultura agroecosistêmica de produção da agricultura familiar, baseada na diversificação produtiva, que é integrada por uma série de plantas e animais, e sustentada na utilização dos insumos locais, em maior parte disponíveis em sua própria terra.
  • 41. 40 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. O enfoque deste trabalho, portanto, está livre da miopia científica, política e cidadã provocada pela grande geração de renda para o país aportada pelo rápido crescimento do modelo hegemônico de produção industrial de ovos e frango. A preocupação aqui é primei- ro buscar uma compreensão, ainda que básica, sobre os traços centrais dos limites e riscos socioeconômicos e ambientais que leva consigo tal modelo para a sustentabilidade da agricultura brasileira e segundo, e mais importante neste trabalho, é contribuir para o fortalecimento de uma alternativa ao modelo vigente que não tenha influências socioeconômicas e ambientais negativas e ao mesmo tempo favoreça a inclusão social, econômica e cultural da agricul- tura familiar nas diferentes regiões do país, principalmente naquelas alienadas historicamente das políticas e processos de desenvolvi- mento humano, como é o caso da região semi-árida do Brasil. 1.2.Objetivos O objetivo geral deste trabalho é elaborar uma reflexão teórico- metodológica sobre a criação de galinha de capoeira no semi- árido brasileiro, considerando o contexto da modernização e globalização da agricultura brasileira. Este objetivo geral é baseado nos seguintes objetivos específi- cos e hipóteses: A) Caraterizar a avicultura industrial no Brasil e suas limi- tações ecológicas e socioeconômicas; Este objetivo parte da hipótese de que a modernização e globalização da avicultura brasileira vêm construindo um
  • 42. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 41 modelo de sistema agroalimentar insustentável e que entre suas influências, afeta diretamente o atual e futuro desempenho da criação de galinhas de capoeira e seu papel na segurança alimentar e na geração de renda da agricultura familiar. B) Buscar e organizar elementos para uma proposta teórico- metodológica desde uma perspectiva agroecológica para o estudo da criação de galinhas de capoeira no semi- árido brasileiro. C) Fazer uma primeira aproximação sobre os benefícios ecológicos, econômicos e socioculturais reportados para os sistemas tradicionais de criação de aves no semi-árido brasileiro. Para os objetivos B e C, a hipótese é que, interagindo com as conseqüências do avanço da avicultura industrial, a criação de galinha de capoeira tem um papel nos agroecossistemas tra- dicionais que é pouco conhecido, valorizado e apoiado pelos diversos setores que se relacionam com a agricultura familiar do semi-árido. Por tanto, é fundamental a construção de uma base teórico-metodológica desde uma perspectiva agroecoló- gica que contribua para o avanço e fortalecimento desta ati- vidade como um sistema agroalimentar sustentável para esta região.
  • 43. 42 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro.
  • 44. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 43 Com o objetivo de entender o contexto em que se insere a agricultura familiar e sua atividade de criação de galinhas de capoeira dentro da modernização e globalização da agricultura brasileira, o presente texto analisa os traços centrais do pro- cesso histórico de formação do complexo agroindustrial avícola brasileiro, suas características atuais e seus principais limites desde uma perspectiva agroecológica. 2.1. A Avicultura no Contexto da Modernização e Interna- cionalizaçãodaAgriculturaBrasileira Desde o período da colonização do Brasil a agricultura brasileira tem se desenvolvido a partir de elementos que misturam uma 2. Industrialização Agroalimentar da Avicultura no Brasil
  • 45. 44 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. associação entre degradação do meio-ambiente e crescimento das desigualdades sociais no campo. Isso está relacionado a um modelo predatório de agricultura que sempre esteve su- bordinado às lógicas econômicas externas, orientadas para a transferência de riqueza, independente dos impactos negativos nos setores ambientais e sociais gerados ao largo dos anos (Almeida, Petersen & Cordeiro, 2001). Este processo histórico de incorporação da economia brasilei- ra à economia mundial, através da agricultura, teve seu início no século XVI. Em grande medida, a formação do modelo pre- datório da agricultura brasileira começou no período colonial, atravessou as décadas de monarquia independente e tem sua herança presente nos dias de hoje, sem mudanças significati- vas em sua lógica de funcionamento (Pádua, 2002). O cultivo da cana-de-açúcar nas regiões úmidas de solos fér- teis, baseado na monocultura para a exportação, no latifúndio e no trabalho escravo e depois no trabalho assalariado em con- dições miseráveis, caracteriza bem o modelo hegemônico de agricultura que se estabeleceu no Brasil. Paralelamente a esse processo de formação da agricultura bra- sileira, ocorreu a ocupação do campo por famílias que tinham um duplo propósito, por um lado, abastecer seu autoconsu- mo e, por outro, atender à demanda de produção de alimentos para abastecimento das populações locais. O desenvolvimento deste tipo de agricultura nas diferentes regiões do Brasil, e que sempre ocuparam as terras consideradas inadequadas para os cultivos comerciais e de exportação, formaram ao longo dos séculos o campesinato brasileiro.
  • 46. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 45 Este tipo de agricultura, com um propósito de reprodução so- cial e abastecimento local de alimentos, tem sido baseado no emprego de mão-de-obra familiar, numa forte dependência do conhecimento dos recursos naturais locais (Gamarra-Rojas et al., 2002) e, por conseguinte, uso mínimo de insumos externos à propriedade, que sob condições de suficiente disponibilidade de área e continuidade da transmissão da cultura, em diversas regiões do país, permite o manejo da terra e demais recursos naturais de forma sustentável a largo prazo. O uso do termo camponês no Brasil foi historicamente evitado pelas oligarquias dominantes do setor agrário. Em geral, os ter- mos empregados para esta categoria social representavam um sentido de desdenho e atraso. A partir da ditadura militar, que teve início na década de sessenta, o governo militar estimulou o uso dos termos pequeno produtor e pequeno agricultor, com a intenção de apagar por definitivo o termo camponês, o qual de alguma forma lembrava e o associava às “Ligas Campone- sas”, que foi o primeiro movimento social do campo de dimensão política nacional na luta pela terra no Brasil (Lima & Figueiredo, 2006). A partir dos anos 90 ganha terreno o uso do termo Agri- cultura Familiar (agricultor/a familiar), tanto por investigadores de múltiplas áreas como pelas representações dos trabalhadores/ as rurais. Esta categoria de natureza um tanto genérica incorpora os camponeses e vários outros tipos de populações tradicionais do campo, e em certo grau os trabalhadores/as assalariados do campo, com o propósito de legitimação política e acesso des- tes às políticas públicas. Este período corresponde à criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e do Programa Na- cional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF).
  • 47. 46 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. As mudanças mais profundas no modelo de agricultura brasilei- ra, e, por conseguinte na organização física, técnica e socioeco- nômica do espaço rural brasileiro como um todo, ocorreram a partir da segunda metade do século XX, especialmente a partir dos anos 70, com o processo conhecido por modernização con- servadora. Moderna, pelo uso intensivo de tecnologia e capital contemporâneos, e conservadora, por manter ou aprofundar o status quo nos sistemas agrários. A modernização conservadora da agricultura brasileira foi parte de um processo mais amplo de internacionalização do padrão industrial de agricultura euro-americana à agricultura dos paí- ses subdesenvolvidos da Ásia, África e América Latina, sob o paradigma de desenvolvimento da agricultura conhecido como “revolução verde”. Resumindo, este paradigma trouxe em seu marco conceitual a universalização de pacotes tecnológicos que permitiam maximizar a produtividade agrícola independen- te das condições ecológicas, além de não tomar em conta os aspectos sociais e culturais de cada país e suas regiões. Assim a modernização conservadora da agricultura brasileira teve como característica central a transformação da agricultura tradicional em “moderna” através da incorporação dos paco- tes tecnológicos, de mudanças produtivas e de relação com os mercados, mas sem promover mudanças na estrutura agrária vigente (Canuto, 1998). De acordo com este mesmo autor (Ca- nuto, 1998. p.31), “A modernização agrícola significou uma re- estruturação não somente da economia, mas também de um conjunto de valores sociais e culturais.” Ou seja, a modernização estimulou e ampliou uma visão de agricultura baseada na ma- ximização dos resultados econômicos no curto prazo em detri-
  • 48. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 47 mento dos equilíbrios dos processos naturais, sobretudo entre os agricultores patronais1 ; estabelecendo valores de competiti- vidade e do uso industrial dos recursos naturais, sem nenhuma preocupação sobre os aspectos sociais e ecológicos relaciona- dos com a agricultura. O patrocínio do Estado brasileiro foi decisivo para a industriali- zação de sua agricultura. Assim, o Estado por um lado aban- donou à sua própria sorte os agricultores familiares, sobretudo os mais pobres, e as regiões menos favorecidas em termos de solos, clima e propriedades da terra - como o caso dos agricul- tores familiares e da região semi-árida. Por outro, estimulou e apoiou a modernização dos agricultores patronais, assim como as regiões com condições ambientais e socioeconômicas mais favoráveis à industrialização – como o Sudeste e Sul do Brasil. Este apoio ocorreu desde a readequação da estrutura para a produção, transporte e comercialização em escala industrial até o sistema de crédito, ensino e assistência técnica, com a mis- são de garantir a consolidação do novo modelo agrícola (Araú- jo, 2002). Neste contexto, e praticamente na mesma ordem cronológica acima citada, surge o complexo industrial avícola brasileiro. Seus primeiros passos foram ao final da década de 50. Em 1963 já estavam instaladas no Brasil nove empresas norte-americanas especializadas em genética de aves para a produção industrial, mas o crescimento acelerado do complexo avícola ocorreu na 1 No Brasil se usa o conceito de agricultura patronal para caracterizar o modelo de agricultura cujo processo de produção agrícola e/ou pecuária é levado a cabo com separação da gestão e trabalho, emprega predominantemente o trabalho assalariado e tem sua ênfase na produção especializada, baseada na dependência de insumos externos e é totalmente destinada ao mercado.
  • 49. 48 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. década de 70 (Sorj, Pompermayer & Coradini, 1982). “Em 1973, já existiam dezoito empresas produtoras de matrizes no Brasil, nove das quais eram empresas estrangeiras operando direta- mente no país e uma empresa trabalhando com linha própria, a Granja Guanabara” (Sorj, Pompermayer & Coradini, 1982. p.14). Entre todos os setores agropecuários do Brasil, o setor avícola foi o que teve resultados mais exitosos em termos da incorpora- ção da lógica de funcionamento do processo de modernização e internacionalização da agricultura. Dito de outra maneira, foi o setor com maior capacidade de importar tecnologia e desenvol- ver um sistema agroalimentar muito lucrativo para vários ramos do setor industrial e comercial. Alcançou a máxima artificializa- ção na produção de um ser biológico, as galinhas, em escala e processo de produção similar aos processos industriais de qual- quer matéria prima inanimada. Uma produção em escala industrial somada a um trabalho de melhoramento genético possibilitou respostas rápidas nos níveis de produtividade da avicultura de postura e de carne, ampliando o interesse de investimentos privados e públicos neste setor. Fi- gueiredo (2005) aponta que em poucas décadas a evolução do consumo per capita de carne de frango no Brasil cresceu de 14 kg/habitante/ano para 34 kg/habitante/ano. Ademais, ocupou uma posição que o destaca como um dos maiores países ex- portadores de frango do mundo. Assim, em menos de duas décadas ocorreram mudanças profundas na avicultura nacional, tornando marginal a forma tradicional de abastecimento de carne e ovos aos mercados, sobretudo os urbanos. Consolidou-se como um complexo
  • 50. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 49 agroindustrial altamente tecnificado e de uso intensivo de capi- tal. Tal complexo se formou sob uma forte dependência direta do avanço de uma ampla cadeia mercantil, na sua maior par- te ligada a empresas multinacionais ou associações do capital destas com de grandes empresas nacionais, nos campos da indústria de produtos químicos, rações, máquinas e equipa- mentos, genética de aves e pacotes tecnológicos importados, principalmente dos Estados Unidos, Europa, Japão e Israel. A modernização do setor avícola se concentrou inicialmente no eixo Sul e Sudeste do Brasil, onde emergiam os grandes cen- tros urbano-industriais, por um lado, e onde as condições cli- máticas e de solos foram favoráveis para a produção de grãos de milho e soja dentro dos padrões “modernos”. Estas regiões, sobretudo a região Sul, contavam com a presen- ça de pequenos agricultores com condições socioeconômicas favoráveis a aceitar uma relação comercial com as indústrias avícolas sob condições de subordinação financeira e tecnoló- gica, introduzida através do modelo de integração contratual agricultor-indústria (Sorj, Pompermayer, Coradini, 1982). Neste novo sistema o agricultor utiliza sua terra, normalmen- te faz uso de um empréstimo bancário para a construção do aviário, e fica como responsável para a engorda dos frangos - a parte mais difícil, com mais riscos e menos rentabilidade financeira na cadeia produtiva. Os insumos (pintinhos, fárma- cos, ração, etc.) e serviços (assistência técnica e transporte) são abastecidos pelas indústrias integradoras. Assim, na inte- gração, o agricultor, chamado de “integrado”, aparece na base da cadeia produtiva através de uma subordinação contratual
  • 51. 50 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. aos interesses produtivos, financeiros e padrões tecnológicos das indústrias de abate/processamento e distribuição. O modelo de integração promoveu um movimento de concentra- ção na produção de frangos por unidade de produção agrícola, pois, dada sua escala industrial, obviamente apenas uma parcela pequena de agricultores familiares teve a possibilidade de aten- der aos interesses e requisitos das indústrias integradoras. O modelo de integração contratual aplicado pela indústria avícola brasileira2 somente foi bem aceito por agricultores do tipo familiar na região Sul do Brasil. Isso, principalmente, foi devido às carac- terísticas de elevado custo de investimento inicial e dependência de uma produção intensiva de grãos, uma indústria e pacote tec- nológico com pouca aplicabilidade para os agricultores familiares de outras regiões, sobretudo no Norte e Nordeste do país. Na realidade, diante do novo modelo de produção avícola alta- mente especializado em tecnologia e de investimento intensivo de capital, a integração apareceu como a única oportunida- de que teve uma pequena parcela da agricultura familiar para encaixar-se na “moderna” cadeia avícola. Este fato pode ser comprovado ao comparar a avicultura de corte com a de pos- tura. Como a avicultura de postura não desenvolveu o modelo de integração - porque a produção de ovos tem um mercado apenas como produto natural, sem oferecer oportunidades de agregar valor através do processamento industrial - os agricul- tores familiares ficaram afastados desta cadeia produtiva, que foi dominada por grandes empresas avícolas. Um bom exemplo 2 A integração contratual já era adotada pelo setor avícola em países desenvolvidos antes de chegar ao Brasil.
  • 52. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 51 para entender tal fato é o caso do Estado do Paraná, que em 2003 estava como 6º produtor brasileiro de ovos, com quatro milhões de galinhas alojadas em apenas 120 granjas de postura (Governo do Paraná, 2003). Com efeito, o modelo da integração contratual desenvolvido no complexo industrial avícola brasileiro é apenas uma particularida- de de uma lógica mais ampla da internacionalização dos siste- mas agroalimentares. Por tanto, sua lógica e princípios não são uma invenção da indústria avícola brasileira, senão um elemento central da estratégia neoliberal de integração vertical das explo- rações agrárias com os setores não agrários (indústria, empresas e comércio), sobre a qual Sevilla Guzmán (2006a, p.161) faz uma reflexão sociológica esclarecedora: [...] a integração vertical, que tem lugar no seio do sistema agroali- mentar, como o processo de estabelecimento de centros de deci- são e coordenação (geralmente fora do setor agrário) a que se vê submetida à produção agrária como conseqüência da imposição de condições com respeito aos inputs utilizados, as técnicas de pro- dução empregadas e a quantidade e qualidade dos processos de trabalho desenvolvidos nas explorações agrárias (Sevilla Guzmán, 2006ª. p.161). 2.2.AAviculturanoContextodaConsolidaçãodosSistemas AgroalimentaresGlobalizados Durante a última década do século XX e nos primeiros anos do século XXI ocorreram mudanças relevantes no setor da indústria avícola nacional, especialmente no setor de carne de frango. As principais indústrias avícolas brasileiras se consolidaram como modernas corporações globais, com uma cultura transnacio-
  • 53. 52 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. nal. Quer dizer, se ajustam à estratégia das grandes corpora- ções agroalimentares globais, sobretudo ao jogo do avanço de dominação quase monopolizada dos mercados nacionais e internacionais. Assim, se começa um mecanismo de fusões e aquisições entre indústrias nacionais com internacionais e tam- bém onde as indústrias mais fortes deslocam as mais fracas ou as absorvem como próprias. A competição entre as maiores indústrias avícolas do frango para ampliar sua expansão nos mercados nacional e internacio- nal está promovendo novas mudanças neste setor. A principal característica destas mudanças está no fato de que a expansão de mercados não significa oportunidades para ampliar a pe- quena participação do agricultor familiar na produção do frango senão uma tendência de incorporação progressiva do médio e grande empresário rural da região Centro Oeste do país, onde se encontra a expansão da produção de soja e milho, baseada em grandes áreas de monocultura. Com isto, se busca agora um modelo ainda mais atrativo para as empresas em termos de redução do custo final do frango para a indústria integradora. Para isso, o objeto do ajuste segue as tendências dos sistemas agroalimentares globalizados, de reduzir seus custos de produção através da máxima automação e artifi- cialização dos processos envolvidos na produção dos alimentos. Com efeito, as principais indústrias avícolas do frango iniciaram novos investimentos em mega-projetos de produção e proces- samento do frango numa lógica de redução dos custos implica- dos em todo o processo de produção, processamento e distri- buição do frango e seus derivados. Os elementos centrais desta
  • 54. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 53 nova estratégia são: maior integração geográfica e financeira com os agricultores patronais proprietários de monoculturas de soja e milho, reduzindo custos com logística e transações, o que ademais possibilita às grandes indústrias utilizar a capaci- dade dos agricultores patronais de buscar empréstimos através dos canais públicos de crédito para investimento na estrutu- ra produtiva e o capital de giro necessário à fase de engorda do frango; maior lucro com o aumento da escala de produção industrial, através do emprego de novas técnicas sofisticadas para aumentar a densidade de aves, a climatização e tamanho dos aviários e, ao final, alcançar um uso mais intensivo da au- tomação com o objetivo de alcançar a máxima substituição da mão-de-obra familiar e assalariada (Fernandes Filho, 2004). Por sua vez, o setor avícola de ovos, apesar de suas diferenças em termos de integração indústria de processamento com agri- cultor, segue uma lógica similar ao complexo avícola do frango. Assim, aumenta a concentração de aves por unidade produtiva em escalas cada vez maiores em mãos de poucas empresas avícolas, com maior capacidade logística de compra de ração e distribuição da produção e uso sofisticado dos avanços nos pacotes tecnológicos, especialmente das tecnologias de auto- mação. Com o processo de globalização dos sistemas alimentares da avicultura nacional, o grande poder econômico e político do setor avícola nacional3 se potencializa, por um lado, devido à 3 O complexo avícola industrial brasileiro está organizado já faz tempo em dois tipos de organizações corporativas para a defesa conjunta de seus interesses: uma que congrega todos os segmentos do sistema agroalimentar do Frango e Ovos (com organizações nos níveis estadual e federal) e outra que congrega o setor de exportadores de frango.
  • 55. 54 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. força de novas empresas transnacionais e, por outro, por sua exigência de maior apoio por parte do governo federal em razão de sua contribuição para o saldo positivo da balança comercial do Brasil e elevação do consumo per capita interno de carne de frango e ovos. Este fato refletiu diretamente em sua capaci- dade de influenciar as políticas públicas para a agricultura, es- pecialmente na quantidade e disponibilidade de investimentos financeiros para desenvolver o setor avícola. Assim, no início do século XXI o complexo industrial avícola se torna uma for- ça econômica e política sem precedentes na historia brasileira, sendo cada vez mais “soberano” frente aos governos estaduais e ao governo nacional e conseguindo formular e implementar políticas de acordo com seus interesses de expansão e resulta- dos econômicos, independente do mandato dos governos de servir aos interesses do povo. 2.2.1.AsLimitaçõesRelacionadasaoModeloAvícolaBrasileiro A análise teórica das limitações do modelo avícola brasilei- ro que se segue está centrada em dois aspectos: primeiro, no manejo do componente principal do processo industrial avícola, a galinha, pois o sistema avícola se baseia técnica e cientificamente na máxima obtenção de resposta produtiva por unidade animal, a galinha de postura ou frango, em re- lação aos insumos e técnicas de manejo que são aplicadas; segundo, em relação à lógica mais ampla em que se baseia o sistema agroalimentar avícola transnacional e seus impac- tos socioeconômicos e ambientais.
  • 56. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 55 AslimitaçõesInternasàsPlantasIndustriais A artificialização rápida e profunda do processo de produ- ção avícola industrial tem realizado mudanças fundamentais nos hábitos das galinhas, que são submetidas a um estresse extremo devido aos crescentes níveis de confinamento e ou- tras práticas de manejo, buscando a máxima produção em um menor tempo possível (Trujillo, 1996). Ademais das con- dições físicas e ambientais em que são criadas, as galinhas de postura e frangos das criações industriais são linhas hí- bridas com alto grau de seleção e homogeneização genética obtidas como forma de expressar uma máxima produção de carne ou de ovos. Com o avanço da Etologia já se sabe que o estresse provoca sofrimento e dor nos animais, e entre outros efeitos fisiológi- cos os levam a uma redução de sua capacidade imunológica contra as doenças infecciosas (Trujillo, 1996). Para Sousa (2005, p. 01) “O sofrimento também resulta de privação física ou psicológica dos animais confinados, tais como ausência de espaço, isolamento social, impossibilidade de mover-se, monotonia e outros”.
  • 57. 56 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. Nos sistemas avícolas industrializados, a falta de respeito às necessidades de comportamento das aves se agrava for- temente, quando está aliada a um alto nível de homogenei- zação genética, resultado de anos de seleção genética de linhas especializadas para a máxima capacidade produtiva, obviamente com perdas genéticas para as características de resistência às doenças. Com efeito, é crescente a fragilidade das aves criadas de acordo com os sistemas industrializa- dos ante o surgimento de doenças, o que faz freqüente o uso progressivo de fármacos, tanto em caráter preventivo – o uso dos antibióticos promotores de crescimento, APCs – quanto em caráter curativo, ambos buscam garantir os ní- veis esperados de desempenho das aves. Apesar de que ainda pouco se conhece a respeito dos efei- tos sobre a saúde humana dos resíduos provenientes da ampla gama de fármacos usados na avicultura industrial, já se sabe que o uso contínuo dos APCs significa um risco tan- to para a saúde dos animais como para os humanos. Dado
  • 58. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 57 que os APCs são a base dos mesmos antibióticos usados em tratamento humano, seu uso contínuo permite a gera- ção de bactérias com genes de resistência aos antibióticos, que teoricamente podem ser transferidas a outras bactérias dos animais e, mesmo diante de controvérsias entre cientis- tas, as bactérias do trato digestivo humano (Fiorentin, 2005). Para melhor entender o significado dos riscos de tal fato, é importante observar o que expressa este autor: Em 1999, a Comunidade Européia baniu o uso de tilosina, virgiana- micina, espiramicina e bacitracina de zinco como APCs. Esta atitu- de foi parte de um plano para a proibição total do uso de APCs em 2006. Em nível mundial, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou, no ano de 2000, que classes de antibióticos usados em humanos como terapia não devam ser usados como APCs, permeando uma fronteira entre a postura européia, de precaução, e a norte-americana, de liberação, enquanto não se obtenha uma conclusão definitiva. O problema, entretanto, é que há 30 anos uma nova classe de antibióticos não é descoberta e aquelas clas- ses existentes têm representantes sendo usados tanto em animais como em humanos (Fiorentin, 2005. p.02). Portanto, a tripla combinação entre condições de estresse, elevada densidade populacional e homogeneização genética a que estão submetidas as aves leva a um risco permanente de insegurança biológica nos sistemas avícolas industrializados, de tal forma que a pro- dução nestas condições é alheia a um esquema que tenha uma base de sustentabilidade ecoló- gica e deixa de ser um modelo de sistema de produção de alimentos Fonte: http://www.goveg.com/photos_chicken03.asp
  • 59. 58 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. que contribui para a soberania alimentar de um país. Tampou- co pode ser um modelo de produção considerado eticamen- te defensável, pois não é aceitável que as aves sejam vistas como “máquinas vivas” de fazer ovos e carne, ou como uma simples matéria prima sem vida. Neste sentido, com o surgimento da gripe aviária em vários países asiáticos e europeus cresce a dúvida na sociedade sobre quem são as verdadeiras vítimas do vírus (H5N1) da gripe aviária: a indústria avícola? As aves silvestres? Ou as criações de galinhas de capoeira? Até o momento, apesar de que a gripe aviária tem aparecido de forma concentrada nas plantas altamente tecnificadas das indústrias avícolas dos países afetados, estranhamente a culpa vem recaindo sobre as aves de capoeira e sobre as aves sil- vestres, pois são o setor mais vulnerável de ser utilizado pelos grandes meios de comunicação para justificar dita doença, par- tindo de informações um tanto precipitadas por parte dos meios científicos e governos envolvidos diretamente com a crise. Não obstante, as últimas investigações e evidências demons- traram que as aves de capoeira e as aves silvestres, em vez de culpadas são as verdadeiras vítimas da gripe aviária. Esta afirmação se baseia na hipótese de que o vírus H5N1 da gri- pe aviária é resultado de um processo de mutação genética. Isto ocorreu a partir de uma transmissão de uma cepa menos patogênica do vírus - que sempre conviveu naturalmente en- tre as populações de aves silvestres - para aves criadas em regime industrial, onde o vírus encontrou condições ideais para evoluir rapidamente para formas muito patogênicas e
  • 60. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 59 altamente contagiantes. Com tanta mobilização de produtos da indústria avícola, dentro e fora dos países, foi fácil para a nova cepa deste vírus encontrar o caminho de volta às aves silvestres, que ainda não tem defesa contra esta nova cepa, mas também para as criações de galinhas de capoeira, so- bretudo nos países em que os agricultores familiares fazem uso de ração e pintinhos de um dia comprados diretamente à indústria avícola (GRAIN, 2006). A FAO e a Organização Mundial para a Saúde Animal expres- saram recentemente que existem evidências de uma possível adaptação do H5N1 às galinhas de capoeira, mutando para cepas menos patogênicas, e também de que a permanência do vírus em pequenas explorações de aves de capoeira de- pende de reabastecimento (GRAIN, 2006). A explicação para
  • 61. 60 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. isso pode ser a maior variedade genética, baixa densidade e condições mais naturais da criação de aves de capoeira, que permitem o desenvolvimento de uma imunidade natural nas aves em liberdade. Neste sentido, em Laos, onde 90% do abastecimento do frango é produzido pela criação de capo- eira, a gripe aviária quase não afetou este sistema de criação, estando os poucos casos registrados muito concentrados nos aviários industriais, enquanto, nos grandes centros in- dustriais de frango da Ásia, a gripe afetou fortemente as gran- des plantas, e os casos mais graves da gripe aviária nas cria- ções de galinhas de capoeira ocorreram exatamente perto dos grandes centros industriais de frangos (GRAIN, 2006). O complexo avícola brasileiro, ante a possibilidade da entrada do vírus da gripe aviária, considera em sua estratégia de bios- segurança a elaboração de uma legislação específica para a criação de galinha de capoeira e avicultura familiar, cuja in- tenção é colocar limites na forma como se faz a criação de galinhas e outras aves em sistemas tradicionais, assim como em sua possibilidade de acesso aos mercados (UBA-ABEF, 2005). Esta intenção, vinculada a um conceito de “modernida- de” do campo, significa um risco à cultura agroecossistêmica da agricultura familiar, à conservação da biodiversidade das variedades locais de galinhas e à soberania alimentar do país. No caso da entrada do vírus, é muito previsível que no Brasil se repita o mesmo que vem ocorrendo na maioria dos países em que o vírus já se disseminou. Quer dizer, a força econô- mica e política das corporações transnacionais e nacionais atribuirão a presença da doença à criação de galinhas de capoeira e as aves silvestres, para forçar os Estados a pro-
  • 62. Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. 61 moverem uma série de ações que justifiquem erradicar ou impor limites que tornem a criação de galinhas de capoeira inviável. Assim como nos outros países em que o vírus H5N1 já é uma realidade, se impõe medidas que não implicam na mudança do atual modelo de máxima artificialização do sistema de criação de aves, o que representaria um erro técnico-sanitá- rio para um efetivo combate à gripe aviária. Ademais, seria um risco desde o ponto de vista socioeconômico e ecológi- co. Socioeconômico, porque a criação de galinha de capo- eira representa uma fonte de geração de renda e alimentos de alta qualidade para a maior parte da agricultura familiar do Brasil e ecológico porque medidas inibidoras poderiam significar uma drástica redução da variedade genética das variedades locais de galinhas do Brasil, com conseqüências diretas na redução da biodiversidade. AsLimitaçõesExternasàsPlantasIndustriais A insustentabilidade do complexo avícola brasileiro não se restringe apenas aos limites sócio-ecológicos até agora aqui mencionados recorrentes do grau de artificialização e cruel- dade a que são submetidas as galinhas, com o objetivo de alcançar um alto nível de produtividade. A primeira limitação que ultrapassa as fronteiras das plantas industriais relacionasse à sua enorme dependência do abas- tecimento de soja para manter os altos níveis de proteína na dieta de uma grande concentração de aves por unidade de
  • 63. 62 Agroecología e Agricultura Familiar em Tempos de Globalização: O Caso dos Sistemas Tradicionais de Criação de Aves no Semi-árido Brasileiro. produção e região. Este fato estimula a criação de elos do sistema agroalimentar avícola que possam atuar em esca- las e ritmos produtivos capazes de atender à demanda do complexo industrial avícola por soja em termos de tempo, quantidade e preços, de tal maneira que permita à indústria ganhar escala em suas operações. Neste sentido, a indústria avícola mundial é atualmente um dos principais responsáveis pela abertura de novas fronteiras agrícolas visualizando a ex- pansão do cultivo de soja, geralmente através de grandes propriedades agrícolas, de caráter empresarial, e com ado- ção de pacotes tecnológicos de cultivo baseados na mono- cultura, mecanização pesada e uso excessivo de fertilizantes químicos e agrotóxicos. O caso brasileiro é muito representativo neste sentido. Com a impossibilidade de crescimento da produção de soja e mi- lho na região Sul, via aumento de produtividade e incorpora- ção de novas áreas de cultivo, o complexo industrial avícola e seu setor de fabricação de ração, passaram a ocupar as áreas do bioma cerrado4 , no oeste do estado da Bahia e sul do estado do Piauí (ambos localizados no Nordeste do Bra- sil) e ainda com mais força na região Centro Oeste do Brasil. Como se verifica na tabela 1, entre os anos 1976/1977 e 2004/2005 a área plantada de soja na região Centro Oeste cresceu de 378 mil para quase 11 milhões de ha. Em apenas 28 anos essa região passou por um crescimento do cultivo de soja da ordem de 2.772 %, com um crescimento médio anual de 12,74%, sendo hoje a região que mais contribuiu 4 O Cerrado brasileiro ocupa cerca de dois milhões de km2 e é considerado uma das savanas mais ricas do mundo em termos de diversidade vegetal e animal (Capobianco, 2002)