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VIRTUAL
Juvenal era uma daquelas pessoas de vida absolutamente rotineira. Infância normal.
Jogava bola, mas não muito. Búrica, não muito. Bom aluno, não. Natação, namorar,
muito bonito – não muito.
Era o homem mediano, que desejava contentar-se sempre com pouco. No Natal sempre
ganhava cuecas e meias.
Cuecas e meias sempre caem bem como presente para um homem modesto e sem
pretensões e para quem não sabe o que dar de presente para um homem sem pretensões
e modesto, cuecas e meias são a saída honrosa.
Sonhava com um bonito relógio, camisetona estampada, um disco da Madonna que
fosse. Mas pensando melhor não ficaria bem para ele. Cuecas e meias são mais íntimas.
Despersonalizadas. Combinam com seriedade, despropósito.
No fundo de seu ser não havia tanta seriedade assim. Só não conseguia se livrar desse
estigma. Cara de sério, jeito de sério, princípios externados como sérios.
As vezes ficava imaginando-se em grandes aventuras, lutando contra tudo e contra
todos. Conquistar belas mulheres que de tão apaixonadas se jogariam aos seus pés, sem
as meias, claro.
Diva era “a” esposa. Dedicadíssima – “também, que trabalho ele dá? Tudo tá bom!”
Juvenal sentia-se bem por tirar das costas das pessoas algum peso que pudesse suscitar.
Afinal, “a vida já é tão difícil”, costumava dizer.
Tinha um bom salário. Não muito. Mas dava, dava... Os filhos jamais reclamaram dele.
Bravo? Não m... Podia cair o mundo e lá ficava ele sorrindo com aquele sorrisinho que
não ata nem desata da boca.
Até que o inusitado um dia acontece. Juvenal se viu numa situação que jamais
imaginara; ou melhor, sempre sonhara. Mas para um homem de cuecas e meias? Que
possibilidades? Que irracionalidade poderia sustentar que aquele homem um dia estaria
metido em tal aventura? Logo onde? No coração da África!
Deixou tudo de lado. Mulher, filhos, despojou-se daquela passividade que já era natural,
genética mesmo. Agora ou nunca!
Excitava-o tanto a idéia da aventura pelo coração da África, que se imaginou somente
de tanga, correndo pela selva descalço, sem as meias que o perseguiu a vida inteira. E,
fundamentalmente, sem as malditas cuecas.
Uma aventura de 3.000 quilômetros pelos lugares mais perigosos. Elefantes, leões, rios
infestados de crocodilos sanguinários, planícies infindáveis, florestas intransponíveis.
Um calor que faz exalar da terra o cheiro da desesperança.
Desistir a cada passo, cada movimento.
Para Juvenal era o calor da libertação, o grito ecoando pela selva:
OhóóóÓhóóóóóOhóóó.
Os filhos o temeriam. Não seria um sorrisinho que da boca desataria. Mas um grunhido,
uma expressão animal de força e respeito.
Diva teria seu macho. Aquele cheiro selvagem, adrenalina de quem vai abocanhar a
presa: “me ataca, garanhão”.
No Natal ganharia de presente, facas, mochila, caixas de balas calibre 7.65 e um imenso
espelho para colocar no teto do quarto bem acima da cama. Ato contínuo, realidade e
contemplação. Cada posição, cada gesto, admiração.
O filho adormecera no sofá. Ficara cansado de esperar o pai tentar passar pela primeira
das vinte fases do vídeo-game “Aventuras na Selva”.
O que o filho não sabia é que Juvenal já tinha ido muito mais longe. Jogava vídeo-game
mas pensava no que tinha lido nas revistas sobre a “realidade virtual”. Quem sabe
poderia ter um joguinho desses em casa: “vídeos-game são bons mas a gente não pode
sentir emoção”.
Como passa o tempo. O tempo, a vida. Já era madrugada. Juvenal pega o filho nos
braços como faz todos os dias e leva-o para o quarto. De cueca e meias encaminha-se
para sua cama como todos os dias. Diva dorme profundamente. Muito, muito...
Juvenal deita-se e olha para o teto já meio mofado e com algumas rachaduras: “Talvez
fique melhor com um espelho”.
Raimundo Fúzio

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  • 1. VIRTUAL Juvenal era uma daquelas pessoas de vida absolutamente rotineira. Infância normal. Jogava bola, mas não muito. Búrica, não muito. Bom aluno, não. Natação, namorar, muito bonito – não muito. Era o homem mediano, que desejava contentar-se sempre com pouco. No Natal sempre ganhava cuecas e meias. Cuecas e meias sempre caem bem como presente para um homem modesto e sem pretensões e para quem não sabe o que dar de presente para um homem sem pretensões e modesto, cuecas e meias são a saída honrosa. Sonhava com um bonito relógio, camisetona estampada, um disco da Madonna que fosse. Mas pensando melhor não ficaria bem para ele. Cuecas e meias são mais íntimas. Despersonalizadas. Combinam com seriedade, despropósito. No fundo de seu ser não havia tanta seriedade assim. Só não conseguia se livrar desse estigma. Cara de sério, jeito de sério, princípios externados como sérios. As vezes ficava imaginando-se em grandes aventuras, lutando contra tudo e contra todos. Conquistar belas mulheres que de tão apaixonadas se jogariam aos seus pés, sem as meias, claro. Diva era “a” esposa. Dedicadíssima – “também, que trabalho ele dá? Tudo tá bom!” Juvenal sentia-se bem por tirar das costas das pessoas algum peso que pudesse suscitar. Afinal, “a vida já é tão difícil”, costumava dizer. Tinha um bom salário. Não muito. Mas dava, dava... Os filhos jamais reclamaram dele. Bravo? Não m... Podia cair o mundo e lá ficava ele sorrindo com aquele sorrisinho que não ata nem desata da boca. Até que o inusitado um dia acontece. Juvenal se viu numa situação que jamais imaginara; ou melhor, sempre sonhara. Mas para um homem de cuecas e meias? Que possibilidades? Que irracionalidade poderia sustentar que aquele homem um dia estaria metido em tal aventura? Logo onde? No coração da África! Deixou tudo de lado. Mulher, filhos, despojou-se daquela passividade que já era natural, genética mesmo. Agora ou nunca! Excitava-o tanto a idéia da aventura pelo coração da África, que se imaginou somente de tanga, correndo pela selva descalço, sem as meias que o perseguiu a vida inteira. E, fundamentalmente, sem as malditas cuecas. Uma aventura de 3.000 quilômetros pelos lugares mais perigosos. Elefantes, leões, rios infestados de crocodilos sanguinários, planícies infindáveis, florestas intransponíveis. Um calor que faz exalar da terra o cheiro da desesperança. Desistir a cada passo, cada movimento. Para Juvenal era o calor da libertação, o grito ecoando pela selva: OhóóóÓhóóóóóOhóóó. Os filhos o temeriam. Não seria um sorrisinho que da boca desataria. Mas um grunhido, uma expressão animal de força e respeito. Diva teria seu macho. Aquele cheiro selvagem, adrenalina de quem vai abocanhar a presa: “me ataca, garanhão”. No Natal ganharia de presente, facas, mochila, caixas de balas calibre 7.65 e um imenso espelho para colocar no teto do quarto bem acima da cama. Ato contínuo, realidade e contemplação. Cada posição, cada gesto, admiração. O filho adormecera no sofá. Ficara cansado de esperar o pai tentar passar pela primeira das vinte fases do vídeo-game “Aventuras na Selva”. O que o filho não sabia é que Juvenal já tinha ido muito mais longe. Jogava vídeo-game mas pensava no que tinha lido nas revistas sobre a “realidade virtual”. Quem sabe
  • 2. poderia ter um joguinho desses em casa: “vídeos-game são bons mas a gente não pode sentir emoção”. Como passa o tempo. O tempo, a vida. Já era madrugada. Juvenal pega o filho nos braços como faz todos os dias e leva-o para o quarto. De cueca e meias encaminha-se para sua cama como todos os dias. Diva dorme profundamente. Muito, muito... Juvenal deita-se e olha para o teto já meio mofado e com algumas rachaduras: “Talvez fique melhor com um espelho”. Raimundo Fúzio