3. EZEQUIEL
Introdução e Comentário
por
John B. Taylor, M.A.
Arquidiácono de West Ham, Essex
SOQIEDADE RELIGIOSA EDIÇÕES VIDA NOVA
e
ASSOCIAÇÃO RELIGIOSA EDITORA MUNDO CRISTÃO
Rua Antonio Carlos Tacconi, 75 e 79 —Cid. Dutra —04810 São Paulo-SP
4. Título do Original em inglês:
Ezekiel, An Introduction and Commentary
Copyright <
&1969, por John B. Taylor
Publicado pela primeira vez pela Inter-Varsity Press, Inglaterra
Tradução: Gordon Chown
Revisão: Júlio Paulo T. Zabatiero
Primeira Edição: 1984 —5.000 exemplares
Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos re
servados pela
SOCIEDADE RELIGIOSA EDIÇÕES VIDA NOVA
e
ASSOCIAÇÃO RELIGIOSA EDITORA MUNDO CRISTÃO
Rua Antonio Carlos Tacconi, 75 e 79 —Cid. Dutra —04810 São Paulo-SP
5. PREFÁCIO GERAL
O alvo desta série de comentários é equipar o estudante da Bíblia
com um comentário conveniente e atualizado sobre cada Livro, ressaltan
do-se em primeiro lugar a exegese. As questões críticas de maior importân
cia se discutem nas introduções e notas adicionais, mas detalhes técnicos
desnecessários foram evitados. '
Nesta série, os autores individuais são, naturalmente, livres para fa
zer suas próprias contribuições distintivas, e para expressar seu próprio
ponto de vista sobre todas as questões controvertidas. Dentro dos limites
necessários do espaço, freqüentemente chamam a atençío a interpretações
que eles pessoalmente nffo sustentam, mas que representam as conclusões
declaradas de colegas crentes sinceros. Ao fazer tudo isto, o autor deste
comentário demonstrou que é possível fazer um livro da Bíblia —em mui
tos casos pouco lido e estudado, com exceção dalgumas poucas passagens
bem-conhecidas — destacar-se de modo novo no seu contexto histórico
e profético, sem deixar de ter significado, relevância e aplicação para o
leitor sério em nossos dias.
No Antigo Testamento, especialmente, nenhuma tradução é sufi
ciente, por si mesma, para refletir o texto original. Os autores destes co
mentários, portanto, citam livremente várias versões, ou oferecem sua
própria tradução, na tentativa de tomar significantes em nossos dias as
passagens ou palavras mais difíceis. Quando há necessidade, palavras do
Texto Massorético hebraico (e aramaico) que subjazem estes estudos
são transliteradas. Desta maneira, o leitor que talvez nío tenha familia
ridade com as línguas semíticas, será ajudado a identificar a palavra sob
discussão, podendo, assim, acompanhar o argumento. A cada passo nes
tes comentários, pressupõe-se que o leitor tenha à mão uma boa versão
da Bíblia em português, ou até mais.
Há sinais de um interesse renovado no significado e na mensagem
do Antigo Testamento, e espera-se que esta série venha a promover o es
tudo sistemático da revelação de Deus, da Sua vontade e dos Seus cami
nhos conforme se vêem nestes registros. É a oração do editor e da edito
ra, como também dos autores, que estes volumes ajudem muitas pessoas
a compreenderem a Palavra de Deus e a corresponderem a ela hoje.
D. J. Wiseman
7. ÚMDICE
PREFÁCIO GERAL............................................................................... 5
PREFÁCIO DA EDIÇÃO EM PORTUGUÊS....................................... 8
PREFÁCIO DO AUTOR....................................................................... 9
ABREVIATURAS PRINCIPAIS........................................................... 10
INTRODUÇÃO...................................................................................... 13
O Livro de Ezequiel ; ................................................................... 13
Ezequiel, o Homem....................................................................... 20
Fundo Histórico............................................................................ 28
A Mensagem de Ezequiel.............................................................. 38
O T ex to ......................................................................................... 44
ANÁLISE................................................................................................ 47
COMENTÁRIO......................................................................................... 50
8. PREFÁCIO DA EDIÇÃO EM PORTUGUÊS
Todo estudioso da Bíblia sente a falta de bons e profundos comentá
rios em português. A quase totalidade das obras que existem entre nós pe
ca pela superficialidade, tentando tratar o texto bíblico em poucas linhas.
A Série Cultura Bíblica vem remediar esta lamentável situação sem que
peque, de outro lado, por usar de linguagem técnica e de demasiada aten
ção a detalhes.
Os Comentários que fazem parte desta coleção Cultura Bíblica são
ao mesmo tempo compreensíveis e singelos. De leitura agradável, seu con
teúdo é de fácil assimilação. As referências a outros comentaristas e as
hotas de rodapé sao reduzidas ao mínimo. Mas nem por isso são superfi
ciais. Reúnem o melhor da perícia evangélica (ortodoxa) atual. O texto é
denso de observações esclarecedoras.
Trata-se de obra cuja característica principal é a de ser mais exegé
tica que homilética. Mesmo assim, as observações nío são de teor acadê
mico. E muito menos são debates infindáveis sobre minúcias do texto.
São de grande utilidade na compreensão exata do texto e proporcionam
assim o preparo do caminho para a pregação. Cada Comentário consta de
duas partes: uma introdução que situa o livro bíblico no espaço e no tem
po e um estudo profundo do texto a partir dos grandes temas do próprio
livro. A primeira trata as questões críticas quanto ao livro e ao texto. Exa
mina-se as questões de destinatários, data e lugar de composição, autoria,
bem como ocasião e propósito. A segunda analisa o texto do livro seção
por seção. Atenção especial é dada às palavras-chave e a partir delas pro
cura compreender e interpretar o próprio texto. Há bastante “carne” pa
ra mastigar nestes comentários.
Esta série sobre o V.T. deverá constar de 24 livros de perto de 200
páginas cada. Os editores, Edições Vida Nova e Mundo Cristão, têm
programado a publicação de, pelo menos, dois livros por ano. Com pre
ços moderados para cada exemplar, o leitor, ao completar a coleção,
terá um excelente e profundo comentário sobre todo o V.T. Pretende
mos, assim, ajudar os leitores de língua portuguesa a compreender o que o
texto vétero-testamentário de fato diz e o que significa. Se conseguirmos
alcançar este propósito seremos gratos a Deus e ficaremos contentes
porque este trabalho nfo terá sido em vão.
Richard J. Sturz
9. PREFÁCIO DO AUTOR
Os comentários podem ser divididos em duas classes. Alguns têm a
intenção de ajudar os leitores da Bíblia a compreender melhor as partes
que léem. Os outros tém a intenção de ajudar as mesmas pessoas a atacar
as partes que, doutra forma, negligenciariam. O presente comentário tem
a intenção de se classificar nesta segunda categoria. Para aqueles que luta
ram confiantemente com os problemas das visões de Ezequiel, e que po
dem passar horas felizes deslindando o cumprimento das suas profecias,
estas páginas têm pouco para oferecer. Mas aqueles que não fizeram mais
do que folhear tentativamente seus quarenta e oito capítulos serão enco
rajados, espero eu, a aventurar-se mais. Visando o benefício deles, procu
rei evitar tecnicalidades indevidas e, mesmo quando achei necessário re
ferir-me ao hebraico original, procurei tomar meus comentários claros e
de fácil leitura, de modo que o próprio leigo total nunca se sentirá per
plexo. Meu sucesso será julgado, portanto, não pelo número de pessoas
que lêem este livro, mas, sim, pelo número delas que leiam também Eze
quiel.
Estou muito grato ao Professor D. J. Wiseman pelo seu encoraja
mento pessoal bem como por várias sugestões e melhorias que fez; ao
Rev. Arthur Cundall por ter feito um exame cuidadoso do manuscrito
e indicado inexatidões que eu talvez nunca tivesse percebido; e ao Sr.
Alan Millard pela sua ajuda no preparo da tabela cronológica na Intro
dução. Devo, também, meus agradecimentos à Sra. Valerie Everitt e à
Sra. Joy Hills por sua ajuda inestimável em datilografar o manuscrito.
Acima de tudo, gostaria de expressar minha gratidão à minha esposa e
aos meus filhos, que, com boa vontade, fizeram sacrifícios a fim de que
este livro pudesse ser escrito, e que me encorajaram mais do que posso
dizer.
Domingo de Páscoa, 1969
John B. Taylor
9
10. ABREVIATURAS PRINCIPAIS
Ac.
ANEP
ANET
ARA
ARC
ARI
AV
BA
BASOR
Bertholet
BJRL
BZAW
Cooke
Comill
Davidson
de Vaux
DOTT
EB
Eissfeldt
Ellison
ET
E W
Acadiano
The Ancient Near East in Pictures de J. B. Pritchard, 1954.
Ancient Near Eastern Texts relating to the Old Testament2
de J. B. Pritchard, 1955.
Almeida Revista e Atualizada
Almeida Revista e Corrigida
Archaelogy and the Religion o f Israel3 de W. F. Albright,
1953.
Versão Inglesa Autorizada da Bíblia (“Rei Tiago”)
BiblicalArchaelogist
Bulletin o f the American Schools o f OrientalResearch
Hesekiel2 de A. Bertholet (Handbuch zum Alten Testa
ment), 1936
Bulletin o f the John Rylands Library
Beihefte zur Zeitschrift für die alttestamentliche Wissens
chaft
A Critical and Exegetical Commentary on the Book o f
Ezekiel de G. A. Cooke (International Critical Commen
tary), 1936.
Das Buch des Propheten Ezechiel de C. Comill, 1886
The Book o f the Prophet Ezekiel de A. B. Davidson (Cam
bridge Bible for Schools and Colleges), 1892.
Ancient Israel: Its Life and Institutions de Roland de Vaux,
Tr. ing. 1961.
Documents from Old Testament Times editado por D. Win-
ton Thomas, 1958.
Encyclopaedia Biblica editada por T. K. Cheyne e J. S.
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The Old Testament, an Introduction de Otto Eissfeldt,
Trad. ing. 1965.
Ezekiel, The Man and his Message, de H. L. Ellison, 1956.
Expository Times.
Versões em Inglês (empregado quando AV, RV e RSV con-
10
1
11. cordam entre si)
Fohrer Ezechiel, de G. Fohrer (Handbuch zum alten Testament),
1955
GK Hebrew Grammar1 de W. Genesius, E. Kautsch e A. E.
Cowley, 1910.
HDB Hasting’
sDictionary o f the Bible
Hengstenberg Commentary on Ezekiel, de E. W. Hengstenberg, Trad. ing.
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Hemtrich Ezechielprobleme, de V. Hemtrich, 1932.
Hitzig DerProphet Ezechiel, de F. Hitzig, 1847
Howie Ezekiel, Daniel, de C. G. Howie {Layman’
sBible Commen
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HUCA Hebrew Union CollegeAnnual.
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Kraetzschmar Das Buch Ezechiel, de R. Kraetzschmar {Handkommentar
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LXX A septuaginta (versão grega pré-cristã do Antigo Testamen
to).
May Ver IB.
mg. margem.
Moffatt A New Translation o f the Bible, de James Moffatt, 1935.
MS manuscrito.
NDB O Novo Dicionário da Bíblia, editado por J. D. Douglas,
11
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OTMS The Old Testament and Modem Study, editado por H. H.
Rowley, 1951.
PEFQ Palestine Exploration Fund Quarterly Statement.
Peake Peake’
s Commentary on the Bible, editado por Matthew
Black e H. H. Rowley, 1962. Seção sobre Ezequiel de J.
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RV English Revised Version, 1885.
Skinner The Book o f Ezekiel, de John Skinner (The Expositor’
s
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Stalker Ezekiel, de D. M. G. Stalker (Torch Bible Commentaries),
1968.
Sir. Versão Siriaca.
TB Talmude da Babilônia.
TM Texto Massorético.
Toy Ezekiel, de C. H. Toy (Polychrome Bible), 1899.
VT Vetus Testamentum.
ZA W Zeitschriftfür die alttestamentliche Wissenchaft.
Zimmerli Ezechiel, de W. Zimmerli (Biblischer Kommentar: Altes
Testament), a partir de 1955.
12
13. INTRODUÇÃO
I. O LIVRO DE EZEQUIEL
Para a maior parte dos leitores da Bíblia, Ezequiel é quase um livro
selado. O conhecimento que têm dele vai pouco além da sua visão miste
riosa do carro-trono de Deus, com suas rodas dentro de rodas, e a visão
do vale de ossos secos. Fora disto, o livro dele é tão proibitivo no seu ta
manho quanto o próprio profeta na complexidade da sua personalidade.
Na sua estrutura, porém, senão no seu pensamento e na sua lingua
gem, o livro de Ezequiel tem uma simplicidade básica, e seu arcabouço
bem-organizado faz com que seja de fácil análise. Depois da visão inicial,
em que Ezequiel vê a majestade de Deus nas planícies da Babilônia, e rece
be sua chamada para ser profeta à casa de Israel (1-3), segue-se uma longa
série de mensagens, algumas das quais simbolicamente encenadas, mas a
maioria em forma oral, prevendo e justificando a intenção de Deus de cas
tigar a cidade santa de Jerusalém e seus habitantes com destruição e morte
(4-24). Depois, à altura da metade do livro, quando a queda de Jerusalém
é representada como tendo ocorrido (embora a notícia ainda não tivesse
chegado até os exilados), a atenção do leitor é desviada para as nações em
derredor de Israel, e o julgamento divino contra elas é pronunciado numa
série de oráculos (25-32). Nesta altura, o leitor já está preparado para a
surpresa estarrecedora da notícia da destruição de Jerusalém, e 32:21
registra a declaração do fugitivo: “Caiu a cidade!” Já, porém, está raiando
uma nova era, e uma nova mensagem está nos lábios de Ezequiel. Com uma
comissão renovada e uma promessa de que Deus está para restaurar Seu
povo à sua própria terra, sob uma liderança piedosa mediante um tipo de
ressurreição nacional (33-37), Ezequiel passa então a descrever, em termos
13
14. INTRODUÇÃO
apocalípticos, o triunfo final do povo de Deus sobre as hordas invasoras
provenientes do norte (38, 39). O livro termina, conforme começou, com
uma visão intrincada, não, desta vez, do carro-trono do Senhor avançando
por sobre os ermos vazios da Babilônia, mas, sim, da nova Jerusalém com
o átrio e santuário interior do seu templo, onde Deus habitaria entre Seu
povo para sempre (4048).
Não é surpreendente, portanto, que a maioria dos comentaristas
mais antigos considerasse Ezequiel livre da fragmentação literária impos
ta, pelos críticos, às profecias de Isaías, Jeremias e a alguns dos doze pro
fetas menores. A introdução de A. B. Davidson ao seu comentário sobre
Ezequiel (1892) começou com um veredito freqüentemente citado: “O
livro de Ezequiel é mais simples e mais perspícuo na sua disposição do que
qualquer outro dos grandes livros proféticos. Foi, provavelmente, regis
trado por escrito na parte posterior da vida do profeta, e, diferentemente
das profecias de Isaías, que foram pronunciadas esparsamente,foi publica
do na suaforma completa de uma só vez.
Vinte anos mais tarde, G. B. Gray ainda pôde tirar a conclusão de
que “nenhum outro livro do Antigo Testamento é distinguido por mar
cas tio decisivas de unidade de autoria e integridade quanto este.”2 Já
na época em que McFadyen escreveu sua Introduction to the Old Tes
tament (edição de 1932), porém, teve de empregar linguagem mais cau
telosa: “Temos em Ezequiel a rara satisfação de estudar uma profecia
cuidadosamente elaborada cuja autenticidade tem sido, até recentemente,
praticamente indisputada.”3 A frase “até recentemente” refere-se à obra
de estudiosos tais como Kraetzschmar, Hõlscher, C. C. Torrey e James
Smith. Antes, porém, de considerarmos os pontos de vista destes, faça
mos um resumo breve dos argumentos sobre os quais tem sido baseado
o conceito tradicional da unidade de Ezequiel.
Há seis razões principais para atribuir o livro a um único autor,
o profeta Ezequiel.
1. O livro tem uma estrutura equilibrada, conforme já observamos,
e este arranjo lógico estende-se do capítulo 1 até o capítulo 48. Não há
interrupções na continuidade da profecià, a não ser onde (como no caso
dos oráculos contra as nações, 25-32), isto é feito para produzir um efeito
deliberado. A única parte que poderia ser facilmente separada do restante,
1. Davidson, pág. ix (grifos meus).
2. G. B. Gray.^4 CriticaiIntroduction to the Old Testament, (1913), pág. 198.
3. McFadyen, pág. 187.
14
15. EZEQUIEL
a visão do novo templo (4048), parece formar um equilíbrio nítido com
a visão de abertura dos capítulos 1-3, e é melhor considerá-la uma conclu
são apropriada para a totalidade, embora seja manifestamente de data
algo posterior (cf. 40:1).
2. A mensagem do livro tem uma consistência interna que se encai
xa com o equilíbrio estrutural. O ponto central é a queda de Jerusalém
e a destruição do Templo. Esta é anunciada em 24:21ss. e é relatada em
33:21. Desde o capítulo 1 até 24, a mensagem de Ezequiel é de destrui
ção e denúncia: é um atalaia colocado para advertir o povo de que esta
é a conseqüência inevitável dos pecados da nação. Mas desde o capítulo
33 até 48, embora ainda se considere um atalaia com uma mensagem de re
tribuição e responsabilidade individuais, seu tom é de encorajamento e de
restauração. Antes de 587 a.C., seu tema era que a deportação de 597 a.C.,
da qual ele mesmo foi uma das vítimas, certamente não era o fim do castigo
de Deus aplicado ao Seu povo: coisa pior estava para vir, e os exilados
deviam estar prontos para enfrentá-la. Depois de vir esta coisa, e o pior
ter acontecido, Deus agiria para reedificar e restaurar Seu povo Israel,
uma vez disciplinado.
3. O livro revela notável unidade de estilo e de linguagem. Isto se
deve, em grande medida, à fraseologia repeticiosa usada no decorrer do li
vro. May4 dá uma lista de nada menos que 47 frases tipicamente ezequie-
lianas, que aparecem periodicamente nas suas páginas, e muitas destas
são peculiares a este profeta. Isto, naturalmente, nada comprova acerca
da autoria propriamente dita, porque um redator poderia facilmente ter
colhido frases típicas de Ezequiel, encaixando-as na matéria adicional
que incorporava, mas é forte evidência em prol da unidade e da coerência
do livro na sua etapa final, e sugere que o redator da obra acabada, se não
foi o próprio Ezequiel, identificava-se estreitamente com o ponto de vis
ta e as crenças de Ezequiel.
4. O livro tem uma clara seqüência cronológica, com datas apare
cendo em 1:1, 2; 8:1; 20:1; 24: 1; 26:1; 29:1; 30:20; 31:1; 32:1,
17; 33:21; 40: 1. Nenhum outro profeta maior tem esta progressão ló
gica de datas, e somente Ageu e Zacarias, entre os profetas menores, ofe
recem um padrão comparável.5
5. Diferentemente de Isaías, Jeremias, Oséias, Amós e Zacarias, to
4. IB, págs. 50-51.
5. A cronologia de Ezequiel é estudada mais detalhadamente na seção III da
Introdução, abaixo, pág. 36.
15
16. INTRODUÇÃO
dos os quais combinam matéria na primeira e na terceira pessoa do singu
lar, aspecto este que é usualmente considerado um sinal seguro de compi
lação editorial, Ezequiel é escrito de forma auto-biográfica do começo ao
fim. A única exceção é a introdução dupla (1:2, 3), que dá uma impres
são muito forte de ser a explicação, feita por um redator, do versículo
de abertura que certamente precisava dalgum tipo de interpretação para
seus leitores (ver o Comentário, pág. 51). Mas esta é a única ocorrência
deste tipo.
6. O retrato do caráter e da personalidade de Ezequiel parece con
sistente por todo o livro; há a mesma sinceridade, a mesma excentricida
de, o mesmo apego sacerdotal ao simbolismo, a mesma preocupação fas
tidiosa com detalhes, o mesmo senso da majestade e da transcendência
de Deus.
A despeito destas evidências, nunca faltou um pequeno número de
críticos céticos acerca da unidade de Ezequiel. A declaração de Josefo,6
de que Ezequiel nos deixou dois livros, não deve ser forçada a carregar
uma parcela grande demais da culpa disto. Há um século, Ewald distin
guiu dois elementos em Ezequiel, sendo que o primeiro representava orá
culos proféticos falados, e o último era a produção literária de um profe
ta escritor. Não achava, no entanto, que esta divisão exigisse que a unida
de do livro fosse abandonada. Alguns anos mais tarde, Kraetzschmar ar
gumentou fortemente contra a unidade literária pelo motivo de ter conse
guido detectar numerosas inconsistências no texto, repetições e versões
paralelas, que o levaram a postular duas recensões do livro, uma na pri
meira pessoa e uma na terceira pessoa. A fraqueza da conclusão de Rrae-
tzschmar era que as únicas passagens na terceira pessoa eram 1: 3 e 24:24
(onde Javé diz: “Assim vos servirá Ezequiel de sinal”), e não é surpreen
dente que recebeu pouco apoio para sua teoria. Estudiosos tais como Her-
rmann,7 que viram a validade das evidências de Kraetzschmar mas que re
jeitaram sua conclusão, preferiram a estimativa mais conservadora de Eze
quiel como sendo uma unidade compilada pela própria mão do profeta,
mas com acréscimos editoriais posteriores.
No mesmo ano em que Herrmann produziu seu comentário sobre
6. Antigüidades, x.5.1: “. . . Ezequiel também, que foi a primeira pessoa que
escreveu, e deixou por escrito dois livros, a respeito destes eventos” (tradução de W.
Whiston).
7. Ezechielstudien (Beiträge zur Wissenschaft vom Alten Testament, 1908) e
Ezechiel (Kommentar zum Alten Testament, 1924), ambos de J. Herrmann.
16
17. EZEQUIEL
Ezequiel, no entanto, Gustav Hölscher publicou um estudo8 que inverteu
seus próprios pontos de vista conservadores de dez anos antes,9 e sujeitou
o livro de Ezequiel àquilo que Rowley descreveu como sendo “o desmem
bramento mais dramático que já sofreu.”10 Tomou como ponto de parti
da a crença de que Ezequiel era um poeta e, portanto, é improvável que ele
tivesse escrito muitas das passagens de prosa no livro. Além disto, cortou
as passagens poéticas que não seguiam a métrica que ele considerava ca
racterística de Ezequiel. Saíram, também, as passagens em que havia sim
bolismo misturado com fatos concretos, porque argumentava que um ver
dadeiro poeta não faria tal coisa. Ainda mais arbitrário foi seu ponto de
vista de que a doutrina da responsabilidade individual devia ser pós-exí-
lica, de modo que estas passagens, também, tiveram de ser relegadas a
redatores. O resultado desta análise drástica foi que Ezequiel, o profeta,
ficou com apenas 170 versículos de um total de 1.273 contidos no livro
que recebeu seu nome. Embora as conclusões de Hölscher fossem revolu
cionárias, sua metodologia não era original (Duhm tratara o livro de Je
remias de modo bem semelhante em 190311) e não demorou muito para
um estudioso norte-americano, W. A. Irvin, chegar a conclusões semelhan
tes através de um raciocínio diferente.12 Irwin começou com um estudo
detalhado de Ezequiel 15, e deduziu disto que havia uma discrepância en
tre o oráculo propriamente dito e sua interpretação, que não passava de
puro mal-entendimento. A interpretação, portanto, não poderia ser a obra
de Ezequiel. Aplicando este princípio ao restante do livro, deixou Eze
quiel com cerca de 250 versículos genuínos, ou seja: apenas uma quinta
parte do livro.
Por mais radicais que estas avaliações possam ser, parecem conser
vadoras em comparação com o -ponto de vista de C. C. Torrey,13 que
excluiu totalmente o profeta Ezequiel. Para ele, Ezequkl era um per
sonagem fictício, inventado originalmente c. de 230 a.C., por um autor
8. G. Hölscher, Hesekiel, der Dichter und das Buch (1924).
9. G. Hölscher, Die Profeten (1914), págs. 298ss.
10. O ensaio de H. H. Rowley, “The Book of Ezekiel in Modem Study”, BJRL,
XXXVI, 1953-54, págs. 146-150 (agora mais fácil de adquirir no seu livro: Men o f
God: Studies in Old Testament History and Prophecy, 1963), do qual esta citação é
tirada, é um panorama admirável da literatura extensiva sobre Ezequiel que pode
apenas ser ligeiramente mencionada nesta Introdução.
11. B. Duhm, Das Buch Jeremia übersetzt (1903).
12. W. A. Irwin, The Problem o fEzekiel (1943).
13. C. C. Toney, Pseudo-Ezekiel and the OriginalProphecy (1930).
17
18. INTRODUÇÃO
que estava tentando escrever um pseudepígrafo alegadamente escrito por
um dos profetas que pregava em Jerusalém durante o reinado de Manas-
sés (c. de 696-642 a.C.; cf. 2 Rs 21:1-17). Seu raciocínio era que 1-24
tratavam primariamente de Jerusalém e que provavelmente tivessem sua
origem ali (veremos este problema voltar a ocorrer mais tarde), e que as
idolatrias descritas em Jerusalém (8:1-18) nSo poderiam ter ocorrido de
pois das reformas de Josias que ocorreram em 621 ft.C. A forma atual do
livro, com seu contexto babilónico, era a obra de Um redator posterior,
anti-samaritano, que o reformulou e que acrescentou os capítulos 4048
como a planta de um novo templo que excederia o esplendor daquele
que a seita samaritana construiu no Monte Gerizim. James Smith14 tam
bém atribuiu o ministério de Ezequiel ao reinado de Manassés, mas consi
derou-o um personagem histórico cujo ministério foi exercido parcial
mente na Palestina e parcialmente entre os exilados do reino do norte, o
de Israel (cf. as muitas referências de Ezequiel a “toda a casa de Israel”).
Pode até mesmo ter sido o sacerdote referido em 2 Reis 17: 28. Como
Torrey, Smith postulou um redator posterior que transformou o livro
e lhe deu seu contexto babilónico.
Hemtrich15 fez uso da obra destes dois homens para dar a Ezequiel
um ambiente palestiniano para a totalidade do seu ministério profético.
NSo os seguiu em fazer este ministério remontar até ao reino de Manas
sés, mas concentrou-o nos anos 593-586 a.C. Um discípulo de Ezequiel,
posteriormente, revestiu sua obra em roupagens babilónicas e acrescen
tou os capítulos 1 e 4048, bem como outra matéria editorial. A obra
de Hemtrich foi importante e influenciou vários escritores,16 o princi
pal entre eles sendo o alemão Alfred Bertholet, cujo segundo comentá
rio sobre Ezequiel17 incorporou a declaração clássica do ponto de vis
ta de que Ezequiel exerceu um ministério duplo. A partir de 593 a.C.,
a data da sua chamada, Ezequiel profetizou em Jerusalém até a sua
queda; foi, entao, levado para o cativeiro e continuou seu ministério
na Babilônia. Fischer18 modificou o ponto de vista de Bertholet no
14. J. S. Smith, The Book o f the Prophet Ezekiel: aNew Introduction (1931).
15. V. Hemtrich, Ezechielprobleme (BZA W, 1932).
16. Cf. Oesterly e Robinson, An Introduction to the Books o f the Old Testa
ment (1934), pág. 325; J. Battersby Harford, Studies in the Book o fEzekiel (1935),
17. A. Bertholet, Hesekiel C
Handbuch zum Alten Testament, 1936). Seu co
mentário anterior foi publicado em 1897 como Das Buch Hesekiel (Kurzer Hand-
Commentar zum Alten Testament).
18. O. R. Fischer, The Unity o f the Book o fEzekiel (1939) (nSo publicado).
18
19. EZEQUIEL
seguinte: acreditava que Ezequiel recebeu sua chamada inicial na Babi
lônia, não em Jerusalém, que envolveria um deslocamento grande demais
do texto, mas que sua chamada era para ir à casa de Israel, o que fez ao
empreender a viagem para Jerusalém descrita em 8: 3. Entre outros que
adotam o conceito de um ministério duplo na Palestina e na Babilônia,
há Pfeiffer,19 Wheeler Robinson,20 Auvray,21 eMay.22
Contra este ponto de vista, G. A. Cooke23 insistiu na interpreta
ção mais tradicional, fornecida pelo texto bíblico, de uma localidade
exclusivamente babilónica para o ministério de Ezequiel, explicando
em bases psicológicas os problemas da consciência aguda que Ezequiel
tinha dos eventos em Jerusalém e, mais especialmente, do estranho rela
to da morte de Pelatias (11:13). Durante muito tempo, a voz de Cooke
ficou solitária, mas a monografia de Howíe, publicada em 1950,24 voltou
com todo o entusiasmo para as conclusões tão geralmente aceitas no
começo do século. Não se tratava de mero conservadorismo por amor
a si mesmo, mas, sim, do resultado de um exame cuidadoso das teorias
anteriores, que o levou à conclusão de que havia menos dificuldades em
aceitar o ponto de vista tradicional do que em postular alterações edito
riais extensivas do texto. Howie foi seguido em linhas gerais por vários
comentaristas do pós-guerra, tais como George Fohrer,25 Walter Zimmer-
li,26 Eichrodt,27 Muilenburg28 e Stalker,29 bem como por escritores
tais como Orlinsky,30 Rowley31 e Eissfeldt.32
19. Robert H. Pfeiffer, Introduction to the Old Testament (1941).
20. H. Wheeler Robinson, Two Hebrew Prophets (1948), págs. 75,81ss.
21. P. Auvray, Ezéchiel (Témoins de Dieu, 1947).
22. IB, pág. 52.
23. Cooke, págs. xxiii-xxiv.
24. C. G. Howie, The Date and Composition o f Ezekiel (JBL Monograph Se
ries IV, 1950).
25. G. Fohrer, Ezechiel (Handbuch zum Alten Testament, 1955).
26. W. Zimmerli, Ezechiel (Biblischer Kommentar, 1955 em diante).
27. W. Eichrodt, Der Prophet Hesekiel (Das Alte Testament Deutsch, 1959
e 1966).
28. Peake, págs. 568-9
29. D. M. G. Stalker, Ezekiel (Torch Bible Commentaries, 1968).
30. Em BASOR, CXXII, 1951, págs. 34-36.
31. Rowley, Men o f God (1963), págs. 209-210.
32. Eissfeldt, pág. 372, comenta: “No que diz respeito ao período e à locali
dade do profeta, devemos ficar satisfeitos com a observação de que não há argumen
tos realmente decisivos contra a fidedignidade da tradição que acha expressão em
muitas passagens do livro.”
19
20. INTRODUÇÃO
Muilenburg expressou suas conclusões nos seguintes termos: “Que o
livro tem passado por uma história literária longa e complicada, dificilmen
te pode ser questionado, e fica aparente que representa uma compilação de
tradições de grande diversidade. Mesmo assim, o peso da evidência parece
cair a favor de um ponto de vista não muito diferente daquele que era sus
tentado por estudiosos de gerações anteriores. A considerável falta de con
cordância entre os resultados conseguidos pelos estudiosos recentes não
inspira confiança na sua validez. Embora a presença de expansões e de su
plementos possa muito bem ser admitida, mesmo neste caso a dificuldade
é que as passsagens são tão semelhantes quanto ao estilo e ao conteúdo,
que não se pode ter certeza absoluta do seu caráter secundário . .. Nossa
conclusão, portanto, é que o livro como um todo provém dele.”33 Este é
o ponto de vista adotado no presente comentário. As tentativas no sentido
de isolar a própria obra de Ezequiel daquela do seu redator foram evitadas
por serem uma ocupação por demais incerta.34 A homogeneidade do livro
inteiro é tal que nos inclinamos ao ponto de vista de que o profeta poderia,
muito provavelmente, ter sido seu próprio redator.
Muitos leitores, no entanto, consideram esta questão como pouco
conseqüente, e vêem ao livro de Ezequiel ansiosos para compreender a
mensagem do livro, e para ouvir a palavra do Senhor falando à sua própria
geração, assim como falava aosjudeus do século VI a.C.
II. EZEQUIEL, O HOMEM
Ezequiel era o filho de Buzi; era um sacerdote, e provavelmente fi
lho de um sacerdote.35 Foi levado para o cativeiro em 597 a.C., quando
os exércitos de Nabucodonosor, rei da Babilônia, tomaram Jerusalém de
pois de um breve cerco. Com o jovem rei Joaquim e “todos os príncipes,
todos os homens valentes, todos os artífices e ferreiros” (2 Rs 24:14),
foi removido do Templo, que haveria de ser sua vida, e estabelecido nas
planícies poeirentas da Babilônia. No quinto ano do seu exílio, i.é, 593
33. Peake, pág. 569.
34. Cf. S. Mowinckel,Prophecy and Tradition (1946), págs. 84-5.
35. O fato de que esta informação é achada em 1: 2,3, a passagem na tercei
ra pessoa do singular que pode muito bem ter sido uma interpolação editorial, nüo in
valida, de modo algum, a veracidade destas declarações. Se não tivéssemos sido infor
mados que Ezequiel era um sacerdote, quase certamente teríamos adivinhado que ele
o era.
20
21. EZEQUIEL
a.C., veio a ele a chamada de Deus para exercer um ministério profético
dirigido à casa de Israel. Se temos razão para pensar que o “trigésimo
ano” referido em 1:1 era o seu trigésimo ano de idade, segue-se que Eze-
quiel era um homem jovem, com vinte e tantos anos, quando começou o
exílio, e isto deixaria espaço para o período considerável de tempo duran
te o qual se estendeu seu ministério. A data mais avançada que é atribuí
da a um dos seus oráculos é o vigésimo-sétimo ano do exílio (29:17), e is
to o levaria até à idade de 52 anos. Nada se sabe da sua vida à parte daqui
lo que é contido no livro que leva seu nome, nem existe tradição alguma
que nos diga onde ou como morreu. Sabemos que era casado, e que sua
esposa morreu na ocasião da queda de Jerusalém (24: 18). Era um homem
de influência, sendo consultado pelos anciãos entre os exilados (8:1;
20:1); e embora isto talvez se deva ao seu ministério profético e à reputa
ção que rapidamente adquiriu, é igualmente provável que seja atribuível
à sua posição social herdada do seu pai, Buzi.
À parte da sua visita visionária a Jerusalém (8:3-11:24), o único lo
cal com o qual Ezequiel tem conexões é, ou sua casa, ou a planície (ou
“o vale”; 3:22-23; 37:1), perto do rio Quebar num lugar chamado Tel
Abibe. O rio Quebar tem sido tentativamente identificado com o naru
kabarí, ou “grande rio,” referido em dois textos cuneiformes de Nipur.
Era o nome dado a um canal de irrigação que trazia as águas do Eufrates
numa volta para o sudeste, da Babilônia via Nipur, e de volta para o rio
principal perto de Uruque (a Ereque bíblica). Seu nome moderno é Shatt
en-Nil. Não se conhece nada acerca da geografia de Tel Abibe, a não ser
que talvez represente Ac. til abübi (“cômoro de dilúvio”?). A primeira
palavra é uma descrição comum dada a um cômoro que cobria os restos
de uma sucessão de cidades enterradas (cf. Tel el-Amama, Tel es-Sultan,
etc.), e uma comparação com Esdras 2: 59 (onde alguns dos exilados que
voltavam eram provenientes de lugares tais como Tel-Melá e Tel-Harsa) su
gere que os cativos judeus tinham recebido permissão para edificar suas co
munidades de exílio em velhos sítios arruinados deste tipo, que até hoje
estão espalhados pelas planícies da Babilônia. Quanto à casa de Ezequiel,
podemos deduzir que era feita de tijolos de barro, típicos da localidade,
e isto sugere um modo de vida razoavelmente estabelecido para os exila
dos.36
O profeta parece ter tido razoável liberdade de movimentos para
36. O tijolo mencionado em 4:1 era deste tipo, e a açío de escavar a parede
em 12:5 sugere este tipo de construção.
21
22. INTRODUÇÃO
entrar e sair à vontade, e a evidência da chegada do fugitivo (33:21) e
da correspondência de Jeremias com os exilados (Jr 29) indica que a exis
tência deles não era a de um campo de concentração. Deve ter havido res
trições, mas a organização comunitária (i.é, a existência de anciãos, 8: 1;
20: 1), a agricultura, o culto e a instrução, o casamento e os vínculos de
comunicação com Jerusalém eram todas permitidas. É quase certo que
puderam visitar algumas das grandes cidades do país, das quais a princi
pal era Babilônia com seus jardins suspensos mundialmente famosos, suas
vastas fortificações e a magnífica Porta de Istar. Ezequiel deve ter visto
os zigurates, ou templos-torres, com seus degraus, que relembravam a tor
re de Babel, e talvez tivesse consciência da sua semelhança formal com o
grande altar com degraus no Templo de Salomão, que incorporou, com
modificações muito leves, no seu próprio templo do futuro (43: 13-17;
Fig. IV). Deve ter ficado consciente das estranhas criaturas compostas, se
melhantes a esfinges, que eram retratadas em todo lugar, ou como divin
dades, ou como guardiãs dos deuses, enão éimpossível que a vista destas
tenha encorajado a sua imaginação, para pensar em termos semelhantes,
quando descrevia as suas visões, embora nunca deva ser esquecido que
seu treinamento sacerdotal do Templo de Jerusalém o teria levado a co
nhecer os querubins retratados ali. Sua impressão mais marcante, no en
tanto, deve ter sido a da combinação da idolatria excessiva e do esplen
dor mundano. A multiplicidade dos templos, a prosperidade incrível da
cidade, a colméia de realizações e de cultura, tudo isto teria feito qual
quer cativo hebreu sentir quão pequena era sua pátria e quão grandes
eram os deuses de Nabucodonosor, que a tudo conquistavam. Mas uma
vez que Ezequiel tinha tido sua visão da merkabah, do carro-trono de Ja-
vé, confirmando para ele que o Deus de Jerusalém estava vivo e triunfante
mesmo nesta terra pagã e politeísta da Babilônia, não é surpreendente des
cobrir que seu tema recorrente é a majestade do Senhor e que sua mensa
gem reiterada é que a casa de Israel, os exilados, as nações do mundo, até
mesmo as forças das trevas, todos “saberão que eu sou o Senhor.” A jul
gar pela freqüência do uso desta expressão (mais de cinqüenta vezes ao
todo), este alvo era a paixão consumidora de Ezequiel.
Tudo isto pressupõe que o ministério de Ezequiel foi realizado na
Babilônia. Contra este ponto de vista, os defensores de um ministério par
cial ou total na Palestina, argumentam que seu conhecimento íntimo das
idolatrias que estavam sendo praticadas no Templo (8:1-18), sua aparen
te confrontação com Pelatias (11:1-13) e sua consciência telepática de
eventos tais como o começo do sítio de Jerusalém (24:2) e sua queda ul-
22
23. EZEQUIEL
terior (33:22), indicam que esteve pessoalmente em Jerusalém parte do
tempo, ou até mesmo o tempo todo. Além disto, argumentariam que sua
comissão era para a casa de Israel, que muitas das suas mensagens diziam
respeito a Jerusalém (4: 1-5: 17) e que eram dirigidas ao povo de Jerusa
lém e de Judá(6:1-7:13; 16:3ss; 21: l-17;etc.), e que é difícil contemplar
(nas palavras de Cooke), “um profeta na Babilônia lançando suas denúncias
contra os habitantes de Jerusalém através de 1.100 km de deserto.37 Nin
guém, no entanto, ainda insistiu que os oráculos de Ezequiel dirigidos às
nações estrangeiras deveriam ter sido entregues no território dos amonitas
ou no Tiro ou no Egito, e não há necessidade de supor que seus oráculos
dirigidos a Jerusalém devam, portanto, ter sido entregues na cidade santa
e não à frente dos exilados. Conforme Ellison38 indica com razão: “Eze-
quiel estava realmente profetizando acerca de Jerusalém mas não para Je
rusalém.” Embora vários anos tivessem passado desde a ocasião da sua de
portação, os exilados ainda viviam para Jerusalém e para o lar. Era o cen
tro dos seus interesses e das suas esperanças; cada pedacinho de notícias
que chegasse até a Babilônia era tratado como um grão de ouro em pó.
À parte da duração da sua permanência no exílio, os eventos em Jerusa
lém eram o único fator supremamente relevante no pensamento deles.
Seria deveras estranho se Ejsequiel não lhe desse o destaque que merecia
no seu ministério aos exilados.
Isto ainda não resolve o problema da visita de Ezequiel a Jerusa
lém, de modo semelhante a um êxtase. Aqui, porém, estamos enfrentan
do o problema da facilidade de comunicação entre a Babilônia e Jeru
salém. É altamente improvável que Ezequiel tivesse tido licença para
voltar do exílio para Jerusalém, e a sugestão de Bentzen39 de que a
permissão talvez tivesse sido concedida, a fim de que Ezequiel pudes
se ser usado como joguete da propaganda babilónica, pouca coisa tem
para recomendá-la. Se for exigido um ambiente palestiniano para qual
quer parte do ministério de Ezequiel, seria preferível argumentar que
tal ministério deveria ter seguido uma chamada original na Palestina, e
não na Babilônia. Mas postular uma chamada original na Palestina envol
ve muitos deslocamentos e rearranjos do texto conforme o temos nos
capítulos 1-3. Um estudo dos esforços feitos pelos comentaristas para se-
37. Cooke, pág. xxiii.
38. Ellison, pág. 20.
39. Aage Bentze, Introduction to the Old Testament (1948), Vol. II, pág.
128. [Editado em português pela ASTE.]
23
24. INTRODUÇÃO
parar dois fios literários distintos nos capítulos 1-3, sendo que um perten
ceria a uma chamada original na Palestina, e o outro seria um novo comis
sionamento na Babilônia, bastará para convencer a maioria dos leitores de
que a engenhosidade e as emendas necessárias para a tarefa condenam
a teoria como sendo altamente implausível. E Orlinsky pergunta, de mo
do pertinente: “0 que Ezequiel (ou um redator) poderia ter esperado ga
nhar com a mudança da localidade da chamada inicial de Judá (se foi lá)
para a Babilônia?”40 A pergunta de Orlinsky não recebeu uma resposta sa
tisfatória, mas os expositores de um ministério duplo argumentam, do ou
tro lado, que a teoria deles oferece uma explicação melhor dos problemas
associados com os poderes aparentemente telepáticos de Ezequiel.
Ao presente escritor parece, no entanto, que aqueles que adotam
este ponto de vista estão se esforçando demasiadamente para reduzir
Ezequiel a um nível de completa normalidade. A anormalidade dalgum
•tipo era um aspecto essencial do ministério carismático do profeta vétero-
testamentário. Ele tinha uma consciência incomparável de Deus, seja
a partir de uma experiência sobrenatural, visionária, que se constituía na
sua chamada, seja a partir da consciência interior de ter uma mensagem de
Deus implantada na sua mente. Era um homem para o qual o milagroso
não tinha surpresas, especialmente quando este tinha conexão com o cum
primento de palavras que falara sob constrangimento divino. Se os pode
res extra-sensórios de Ezequiel tivessem operado com freqüência demasia
da, ou tivessem sido ligados à vontade, poderíamos sentir alguma suspei
ta; dão, porém, a impressão de terem sido raros, memoráveis, e vincula
dos exclusivamente com eventos de importância crucial. Ao mesmo tem
po, devemos precaver-nos contra uma avaliação exagerada destes pode
res, porque boa parte dos conhecimentos que Ezequiel revela ter do esta
do das coisas em Jerusalém pode muito bem ter chegado a ele através
dos canais normais de informações, mormente visto que ele teria sido um
dos primeiros a receber notícias confidenciais acerca das questões do
Templo.41 As “coincidências” verdadeiras parecem ser a morte de Pela-
tias (11:13) e o começo do cerco de Jerusalém (24:2).
0 caso de Pelatias está encaixado no contexto da visão de Ezequiel,
em que se sentiu transportado para Jerusalém. Ainda na visão, vê vinte
e cinco anciãos à entrada da porta oriental do Templo, e consegue identi
ficar dois deles, Jaazanias, filho de Azur, e Pelatias, filho de Benaia. É
40. BASOR, CXII, 1951, pág. 35.
41. Note o uso da frase “veio a mim” em 33:21.
24
25. EZEQUIEL
razoável supor que ambos eram bem conhecidos, conhecidos pelo nome
por Ezequiel e pelos anciãos entre os exilados, em cuja presença diz-se que
Ezequiel teve esta visão, e aos quais o profeta subseqüentemente descre
veu tudo (11:25). Enquanto Ezequiel profetizava, Pelatias caiu morto.
O texto não estipula que foi por causa das palavras de Ezequiel que ele
morreu (como no caso de Ananias e Safira em At 5:5, 10), mas a coinci
dência foi suficiente para deixar Ezequiel chocado e amedrontado (11:
13b). A relevância deste evento é dupla. Primeiramente, é significante
que Ezequiel tinha a capacidade de ter consciência de uma ocorrência no
tável, que se realizava a uma distância de centenas de quilômetros, no
mesmo momento em que ele estava num tipo de êxtase em Tel-Abibe. Em
segundo lugar, quando a notícia deste evento chegasse aos anciãos no
exílio, seria uma confirmação poderosa dos poderes sobrenaturais de
Ezequiel e autenticaria a ele e à sua mensagem aos olhos deles. A impor
tância deste incidente não é, portanto, demonstrar que Ezequiel tinha
o poder de fulminar um homem com uma única palavra a uma distância
de 1.100 kms, conforme alguns interpretariam. Essa era a última coisa
que Ezequiel desejava ou pretendia que acontecesse. Pelo contrário,
ilustra sua consciência de um evento de importância que ocorria a uma
grande distância e é, portanto, um paralelo exato com os outros exem
plos deste mesmo poder em conexão com a cronologia do cerco e da
queda de Jerusalém. Desejar negar a um profeta de Deus exibições oca
sionais de tal poder, demonstra uma falta de compreensão do poder
do Espírito de Deus num homem, e negar este poder a Ezequiel, entre
todas as pessoas, é procurar fazer dele uma pessoa diferente do que era.
Segundo o nosso modo de julgar, é igualmente errado procurar
categorizar Ezequiel, especialmente a esta distância no tempo, em ter
mos psicológicos modernos. Seu comportamento incomum e seus atos
simbólicos altamente imaginativos têm sido explicados de várias manei
ras. Stalker comenta: “Ezequiel tem sido chamado um cataléptico, um
neurótico, uma vítima do histerismo, um psicopata, e até mesmo um
esquizofrênico paranóico específico, além de ter sido creditado com po
deres de clarividência e de levitação.”42 Transferir seu ministério para
Jerusalém talvez remova o estigma dalgumffi destas acusações, mas não
soluciona o problema de modo satisfatório, porque, conforme temos vis
to, levanta jnais problemas do que soluciona. Boa parte do comporta
mento “anormal” de Ezequiel é questão de interpretação. Logo de iní-
42. Stalker, pág. 23.
25
26. INTRODUÇÃO
cio, conforme já observamos, um certo grau de “anormalidade” era nor
mal para um profeta; era arrebatado em êxtase, e freqüentemente reforça
va seus oráculos com atos dramáticos (cf. Zedequias, filho de Quenaaná,
1 Rs 22:11; e Jeremias, Jr 13:1-14; 19:10-13). Ezequiel também era um
sacerdote por treinamento e criação, e, portanto, o simbolismo em grande
escala era uma segunda natureza para ele, especialmente um simbolismo
que combinava palavras e ações. Independentemente daquilo que pensa
mos acerca do aspecto estranho dalgumas das suas ações, acerca da sua tris
teza silenciosa na ocasião da morte da sua esposa, da sua mudez, dos seus
longos períodos deitado num só lado, impressiona-nos como sendq uma
personalidade supremamente controlada, preso por um zelo apaixonado por
Deus, e não sujeito a alguma doença mental. “Ele é melhor compreendi
do,” escreve Howie, “como sendo uma alma humana sensível presa nas
correntezas conflitantes da história, impulsionado por um zelo ardente
por Deus, dolorosamente consciente da tragédia em que seu povo estava
envolvido.”43 Sua sensibilidade pode ser julgada pela breve descrição dos
seus sentimentos pela sua esposa (24:15-18), pela sua petição sincera
no sentido de Deus poupar Seu povo e não destruí-lo completamente
(9:8; 11:13), e pela ternura da sua descrição de Deus como o Pastor das
Suas ovelhas (34:11-16). Isto contrabalança a severidade de muitas das
suas profecias de julgamento, e a fria lógica da sua insistência de que Deus
agirá “não por amor de vós . .. mas pelo meu santo nome” (36:22).
Para Ezequiel, tudo tinha um significado. As ações que praticava,
as palavras que usava, todas visavam uma finalidade. Sua mudez é típica
de sua personalidade. Não poderia ter sido uma mudez literal, senão, te
ríamos de deslocartodos os oráculos que foram atribuídos a ele antes de
33:22. Certamente o redator da obra acabada não quis que interpretás
semos desta maneira a sua mudez. A única alternativa é que era uma “mu
dez ritual,” a proibição imposta, e aceita de bom grado, de qualquer fala
a não ser que se tratasse de um pronunciamento dado pelo Senhor. Com
preendia assim, pode-se entender quanta consideração adicional seria atri
buída às suas ações simbólicas e aos oráculos que as acompanhassem. Suas
visões eram exemplos clássicos deste sentido simbólico. A visão inaugural
do carro-trono continha significado em cada linha; boa parte dela não é
compreendida por nós hoje, mas mesmo assim, o esboço geral ainda pode
ser discernido. Procurava descrever o indescritível e dizer na linguagem da
experiência espiritual algo acerca do Deus que representava. A visão do no-
43. Howie, pág. 15.
26
27. EZEQUIEL
vo templo, do outro lado, empregava o simbolismo sacerdotal para dizer
o que este Deus requeria dos Seus adoradores. É vinculada com conceitos
de santidade, e com a exigência de ordem e perfeição, de reverência e
simetria.
Como escritor, Ezequiel é freqüentemente enfadonho e repetitivo.44
Certo número limitado de frases e temas ocorrem freqüentemente, e isto
pode ser desanimador para os leitores modernos que não têm familiarida
de com as antigas convenções literárias. Ocasionalmente, emprega poesia,
mas na maior parte escreve prosa; não uma prosa pitoresca e descritiva,
mas, sim, uma prosa sombria e profética, com cadência, mas sem métrica
discemível. Quando recita uma poesia, é freqüentemente uma elegia ou
lamentação (Hb qinâ veja a nota sobre 19:1), uma poesia escrita no rit
mo pesaroso de 3:2. Às vezes, colhe um fragmento de um cântico, tal co
mo o cântico da èspada (21:9, 10) ou o cântico da panela (24:3-5), e os
interpreta da sua própria maneira. Revela ter uma imaginação vívida na
sua lamentação sobre os reis de Israel (19:1-14), e na sua descrição do
naufrágio do navio Tiro (27:3-9, 25-36), bem como na visão do vale dos
ossos secos (37:1-10), mas noutras ocasiões demonstra uma notável falta
de imaginação. A única coisa que não lhe falta é uma paixão intensa
para com Deus, para com sua mensagem, e para com seus ouvintes. Tu
do era subordinado ao seu senso quase esmagador de obrigação e respon
sabilidade. Era um atalaia, e se deixasse de advertir seu povo, o sangue
deste recairia sobre ele. Com esta finalidade em mira, estava disposto a
auscultar a disposição de espírito que prevalecia entre os exilados e a res
ponder às objeções deles. Retomava provérbios populares (11:3; 12:22,
27; 18:2) e demonstrava que não tinham validade alguma. Respondia ao
atordoamento inexpressado que estava no coração dos homens (18:19,
25; 20:32). Em síntese, combinava de maneira sem igual o senso que o sa
cerdote tem da santidade de Deus, o senso que o profeta tem da mensa
gem com que foi confiado, e o senso que o pastor tem da sua responsabili
dade para com seu povo.
44. Exemplos de frases freqüentemente usadas por Ezequiel numa variedade
de formas são: “saberão que eu sou o SENHOR” (66 vezes); “vindicarei a santidade
do meu grande nome” (8 vezes); “eu (o SENHOR) falei (e eu o farei)” (49 vezes);
“assim como eu vivo, diz o SENHOR” (15 vezes); “os espalharei entre as nações, e
os derramarei pelas terras” (9 vezes); “vos congregarei das terras . . . (10 vezes); “der
ramarei minha ira (satifarei minha furia) sobre vós” (16 vezes); “veio a mim a palavra
do SENHOR” (49 vezes); “pelo . . . por isso . . ( 3 7 vezes).
27
28. INTRODUÇÃO
ffl. O FUNDO HISTÓRICO
O primeiro período da vida de Ezequiel testemunhou o fim do do
mínio do Império Assírio, um breve período interino da influência egíp
cia nos negócios de Judá, e depois, o crescente controle dos reis da Babi
lônia sobre a política do Oriente Próximo. Os reis de Judá em cujo reinado
Ezequiel viveu foram:
Josias 640-609 a.C.
Jeoacaz 609 a.C.
Jeoaquim 609-597 a.C.
Joaquim 597 a.C.
Zedequias 597-587 a.C.
O programa extensivo que Josias realizou, de consertos no Templo
e de reformas religiosas, é bem conhecido a todo leitor do Antigo Testa
mento (2 Rs 22:1-23: 30; 2 Cr 34: 35). Seu reinado foi uma marca divisó
ria no desenvolvimento espiritual de Judá. Embora suas reformas fossem
baseadas na descoberta do livro da lei durante as obras de reconstrução
no Templo (quase certamente se tratava de Deuteronômio, completo ou
em parte), sua liberdade para levá-las a efeito devia-se parcialmente às con
siderações políticas. No Oriente Próximo antigo, a vassalagem freqüente
mente envolvia a parte inferior numa obrigação de aceitar a adoração aos
deuses do suserano, bem como o pagamento de tributos ou outros impos
tos. Destarte, o culto às divindades astrais ou o levantamento de ídolos
pelos reis anteriores de Judá freqüentemente eram sinais de submissão à
autoridade assíria. A reforma religiosa, portanto, não era simplesmente
um ato interno, nascido do despertamento espiritual, mas também pode
ria ser interpretada como um movimento de rebelião contra o domínio
de um aliado poderoso. Foi o fato da influência da Assíria enfraquecer-
se que deixou Josias levar a efeito as reformas que, tanto seus próprios
desejos, quanto a descoberta do rolo tão longamente negligenciado, o
encorajavam a realizar.
O colapso da Assíria pode ser datado pela queda de Nínive em
612 a.C., e a supremacia da Babilônia foi garantida sete anos mais tarde,
quando Nabucodonosor derrotou de modo esmagador o exército do Egi
to em Carquemis, no Eufrates, em 605 a.C. Entre estas datas ocorreu a
morte misteriosa do malfadado Josias às mãos do Faraó Neco II do Egi
to. Muitas traduções bíblicas (2 Rs 22:29) sugerem que Neco iria lutar
28
29. EZEQUIEL
contra a Assíria, e é um mistério por que Josias desejaria se opor a ele a
favor da Assíria. Sabemos, porém, pela Crônica Babilónica,45 que o Egi
to estava indo socorrer a Assíria contra a ameaça babilónica [a palavra
hebraica traduzida “para” pode ser intepretada “contra” ou “a favor
de”, daí a tradução bíblica depender doutras informações. N.Tr.]. Ago
ra, o problema muda: por que Josias tomou uma posição aparentemen
te pró-Babilônia? É improvável que já estivesse em aliança com a Babilô
nia, de modo que somente podemos supor que ele sentisse que uma vitó
ria egípcia faria mais danos a Judá, em última análise, do que uma vitó
ria babilónica. De qualquer modo, sua ação suicida lhe custou a vida, e
Jeoacaz, seu filho (também chamado Salum), ficou sendo rei no seu
lugar. A campanha de Neco contra a Babilônia foi mal-sucedida e, por
tanto, numa tentativa de estabelecer seu domínio sobre a Síria e a Pales
tina, mandou deportar Jeoacaz para o Egito depois de um reinado de
apenas três meses,46 e colocou no seu lugar seu irmão, Eliaquim. Ao mes
mo tempo, demonstrou sua autoridade e a condição de vassalo de Elia
quim ao dar-lhe o nome oficial, como rei, de Jeoaquim, e ao impor
um fardo pesado de tributo sobre a terra (2 Rs 23:31-35).
Jeoaquim foi um governante totalmente irresponsável no que dizia
respeito às necessidades do seu povo, e mereceu o total desprezo de Jere
mias, especialmente por seus planos grandiosos para reformas no palácio
e pela imposição de trabalhos forçados para levá-las a efeito (ver Jr 22:13
19). As reformas religiosas de Josias tomaram-se sem efeito, sem dúvida
parcialmente por causa da morte trágica daquele bom rei, que, decerto,
parecia a muitas pessoas uma contradição da fé que defendia, e todos os ti
pos de práticas idólatras entraram paulatinamente na vida de Jerusalém.
Os cultos pagãos referidos por Ezequiel em 8:1-18 não passaram da con
tinuação de um movimento que começou com a ascensão de Jeoaquim.
No quarto ano de Jeoaquim, o exército de Neco, que tinha mantido vigi
lância cautelosa nas fronteiras do norte da Síria, perto de Carquemis,
foi completamente esmagado, primeiramente em Carquemis (605 a.C.) e
depois, outra vez, enquanto estava em plena retirada, em Hamate. Pouco
depois, Jeoaquim veio a ser tributário de Nacubodonosor (2 Rs 24:1),
45. A Crônica Babilónica é um relato fidedigno, factual, dos anais do Im
pério Babilónico desde 626 até 539 a.C. As partes atualmente existentes abrangem
os anos 626-622, 610-594, 556, 555-539 a.C., e freqüentemente lançam luz sobre a
cronologia do Antigo Testamento. Algumas seções relevantes se acham em DOTT,
págs. 75-83.
46. Para uma elegia sobre Jeoacaz, ver Jr 22:10-12 ;Ez 19:24.
29
30. INTRODUÇÃO
mas diante do primeiro sinal de fraqueza da parte dos babilônios (uma
batalha indecisiva entre Neco e Nabucodonosor em 601 a.C. levou este
último a voltar para casa a fim de reorganizar seu exército), o rei judeu
rebelou-se. Foi-lhe permitido apenas um período temporário de folga.
Enquanto Nabucodonosor estava muito ocupado tratando de outros pro
blemas, enviou contingentes menores das suas forças,juntamente com ban
dos incursores dos seus vassalos sírios, amonitas e moabitas (2 Rs 24:2;
Jr 35:11), para pilhar Judá. Depois, em dezembro de 598 a.C., avançou
com todo o seu exército contra Jerusalém. Ao mesmo tempo, Jeoaquim
morreu, possivelmente assassinado,47 e seu filho de dezoito anos, Joaquim
(também chamado Conias ou Jeconias, Jr 22:24, 28; 1 Cr 3:16), teve de
escolher entre a resistência ou a capitulação. A ajuda esperada da parte do
Egito deixou de concretizar-se (2 Rs 24: 7) e, depois de um sítio de três
meses, o jovem rei entregou-se no segundo dia de Adar de 597 a.C., i.é,
16 de março. Juntamente com a rainha-mãe e os palacianos, e todos prin
cipais cidadãos da terra (os príncipes, todos os homens valentes, todos
os artífices e ferreiros, são mencionados especificamente; 2 Rs 24:14),
foi levado para o cativeiro na Babilônia onde, segundo parece, viveu o
decurso normal da vida. Há somente uma outra referência a ele, em 2 Rs
25: 27-30, que completou o relato da monarquia ao acrescentar que no
trigésimo sétimo ano do seu exílio, no ano da ascensão de Evil-Merodaque,
rei da Babilônia (i.é, Amel-Marduque, 562-560 a.C.), foi liberto do cárcere,
ou da prisão domiciliar, mais provavelmente, e ficou sendo um pensionista
vitalício à mesa do rei.
Um notável raio de luz foi lançado sobre o cativeiro de Joaquim
pela descoberta, feita por R. Koldewey, de grande número de tábuas cu-
neiformes armazenadas nas adegas subterrâneas palacianas da Babilônia,
não muito longe da Porta de Istar. Pareciam ser registros de rações de azei
te e cevada distribuídas aos prisioneiros pelo administrador principal. Em
bora fossem descobertas no começo do século e trazidas para o Museu
Kaiser Friedrich em Berlim, foi somente em meados da década de 1930
que um assiriólogo, E. F. Weidner, começou a lê-las e traduzi-las. No de
curso do seu trabalho, achou o nome Ya’
u-kinu, Joaquim, e a identifica
ção foi confirmada pela descrição “rei da terra de Yahudu.” A tábua de
47. Jeoaquim morreu antes dos exércitos babilónicos chegarem a Jerusalém,
e a declaração em 2 Cr 36: 6 pode indicar que foi seqüestrado por um partido pró-
Babilônia.
48. Para uma tradução e avaliação, ver DOTT, págs. 84-86.
30
31. EZEQUIEL
rações transmite poucas informações por si só,48 mas a relevância acha-se
na descrição de Joaquim como um rei. Aparentemente, ainda era conside
rado pela administração babilónica como o legítimo titular do trono, e
Zedequias era considerado apenas como um regente temporário. Se as
sim for (e uma das tábuas que mencionam o nome de Joaquim pode ser
datada em 592 a.C.,49 i.é, no tempo de Zedequias), dá motivos adicionais
para a expectativa confiante dos exilados de que a volta dele para Judá, e
a repatriação deles, era iminente.50 Ajuda-nos, também, a compreender
porque Ezequiel, embora não participasse do otimismo dos exilados, re
jeitava a realeza de Zedequias, evitava escrupulosamente a atribuição a ele
do título de rei (rnélek), e datava todos os seus oráculos segundo o exílio
do “Rei Joaquim” (assim descrito em 1:12).
Lá em Judá, Zedequias, irmão de Joaquim, que fora nomeado rei-tí-
tere em Jerusalém, era um fraco, e totalmente incapaz de enfrentar as cor
rentezas políticas cruzadas do seu tempo. Embora tivesse sido nomeado
pelos babilônios, e devesse lealdade a Nabucodonosor, havia influências
poderosas pró-egípcias que o encorajavam a rebelar-se. Um dos seus conse
lheiros era Jeremias, cuja defesa de umá política de submissão à Babilônia
granjeou-lhe muito ódio entre o povo. Zedequias procurava protegê-lo, mas
a descrição dos seus esforços, feita em Jeremias 37 e 38, indica que o
poder real ficava com o partido pró-guerra, e que o poder do rei era severa
mente limitado. Uma crise política ocorreu cedo no seu reinado quando
houve, aparentemente, um movimento da parte dos vizinhos de Judá (Moa-
be, Edom, Amom, Tiro e Sidom estavam envolvidos)51 para unir-se em re
belião contra Nabucodonosor, mas Jeremias opôs-se fortemente a isto,
e parece que veio a dar em nada.52 Finalmente, no entanto, o entusiasmo
público pela revolta foi atiçado pelos exaltados políticos, e com o apoio
do faraó do Egito, Psamético II (593-588 a.C.), Zedequias, um pouco con
tra sua vontade, deu o salto mortal.53
49. W. F. Albright, “King Joiachin in Exile”, BA, V, 1942, págs. 49-55.
50. Esta expectativa também era acalentada em Jerusalém, e era alimentada
pelas palavras de profetas tais como Hananias (Jr 28:14).
51. Jr 27:2ss.
52. A rebelião pode muito bem ter sido fomentada por notícias da revolta
na Babilônia em 595-4 a.C., em que muitas das tropas de Nabucodonosor tiveram de
ser executadas antes dela finalmente poder ser esmagada. Se assim for o caso, a visita
de Zedequias à Babilônia em 594-3 a.C. (Jr 51:59) pode ter tido a finalidade de ali
viar suspeitas e de afirmar sua lealdade pessoal ao rei.
53. O único outro país que apoiou a revolta foi Tiro, e é digno de nota que
31
32. INTRODUÇÃO
A retaliação foi rápida. Já emjaneiro de 588 a.C. o exército da Babi
lônia estava às portas de Jerusalém, e dentro em breve, somente Laquis e
Azeká, de toda as cidades fortificadas de Judá, ainda estavam resistindo.
Numa coleção de cartas, escritas para o comandante da guarnição em La
quis, e também escritas da parte deste, e descobertas ali em 1935, a queda
de Azeká é descrita vlvidamente.54 No verão de 588, a aproximação de um
exército egípcio provocou um levantamento temporário do cerco de Jeru
salém, mas logo foi afugentado e o cerco recomeçou.“ Em julho de 587
os muros foram rompidos numa parte, e Zedequias aproveitou a oportuni
dade para escapar, mas foi apanhado perto de Jericó e levado prisioneiro
para Riblá, o quartel-general de Nabucodonosor para esta campanha. Seu
castigo foi ter de ver seus filhos trucidados, e depois ter os olhos vazados,
para, então, ser levado acorrentado à Babilônia, onde morreu. Um mês
mais tarde, Jerusalém foi reduzida a chamas, com o acompanhamento de
mais execuções de líderes civis e militares, e de mais uma deportação pa
ra a Babilônia.
0 pouco que sobrou de Judá foi incorporado numa província babi
lónica, e um membro do gabinete de Zedequias, Gedalias, foi nomeado
governador. Posto que o pai deste, Aicão, certa vez salvara a vida de Je
remias (Jr 26:4), não é impossível que Gedalias, também, fosse ami
go de Jeremias e o tenha apoiado na sua política de aplacar a Babilônia. Is
to explicaria sua nomeação para seu novo cargo, mas era considerado por
muitas pessoas como um colaborador do inimigo e, dentro de pouco tem
po (pode ter sido poucos meses ou poucos anos) foi assassinado em Mispa
por um grupo de homens liderados por Ismael, um membro da família
real. Este foi o sinal para um êxodo geral de Judá, provavelmente por cau
sa do temor da represália; e, muito contra a sua vontade, Jeremias foi leva-
as condenações mais fortes de Ezequiel foram dirigidas contra o Egito e Tiro (Ez
26-32). A satisfação maligna com a queda de Jerusalém, que Ezequiel atribuía a
Amom, a Moabe, a Edom e à Filístia (Ez 25), talvez seja um indício de que estes
países ou se retiraram da aliança rebelde, ou até mesmo tomaram ativamente parti
do com Nabucodonosor quando perceberam a direção que os eventos estavam to
mando.
54. Estas cartas oferecem registros contemporâneos fascinantes dos even
tos em Judá neste período, e devem ser lidas em DOTT, págs 212-217. Na sua pre-
leçío “Tyndale”, The Prophet in the Lachish Ostraca (1946), o Professor D. Win-
ton Thomas discute as evidências em prol de identificar com Jeremias o profeta
referido nas cartas.
55. Ver a advertência de Jeremias quanto a isto, em 37:5-10.
32
33. EZEQUIEL
do junto com estes imigrantes políticos para o Egito, onde terminou seus
dias (Jr 4044).
Antes de procurar encaixar a cronologia de Ezequiel neste pano
rama histórico, vale a pena fazer a pergunta: por que Jeremias e Eze
quiel não fazem referência explícita um ao outro? Embora fossem se
parados por uma grande distância, os dois eram homens de destaque na
mesma esfera da religião profética, tratavam de temas semelhantes, e fre
qüentemente seus ensinos coincidiam ou se encaixavam de modo bem
notável. Alguns sugeriram que os dois homens se opunham um ao outro,
que Jeremias classificava Ezequiel com os profetas no exílio, tais como
Acabe, filho de Colaías, e Zedequias, filho de Maaséias, aos quais con
denou severamente em 29:15, 20-23, e que a crítica de Ezequiel aos lí
deres em Jerusalém ocultava uma alusão a Jeremias. Mas há falta total
de evidência em prol disto. Não é necessário que a falta de dois profetas
contemporâneos mencionarem um ao outro pelo nome cause surpresa:
Amós e Oséias, Isaías e Miquéias, Ageu e Zacarias, são outros exemplos
de silêncio sem qualquer animosidade subentendida. Ao presente escri
tor parece que estes dois profetas do exílio revelam seu conhecimento
um do outro com numerosas alusões ao ensino do outro, ou, pelo me
nos, aos mesmos temas que ocupam a atenção do outro. Os dois, aparen
temente, estavam tomando uma posição solitária em prol da verdade:
um deles em Jerusalém, e o outro na Babilônia: os dois insistiam que o fu
turo de Israel achava-se com os exilados e não com aqueles que foram
deixados para trás em Jerusalém; os dois rejeitavam o fatalismo daqueles
que citavam o provérbio acerca dos pais que comeram uvas verdes e os
dentes dos filhos que foram embotados; os dois censuravam os pastores
de Israel que deixavam de cuidar do rebanho; os dois enfatizavam o prin
cípio da retribuição individual e a necessidade do arrependimento indivi
dual; os dois previam um exílio prolongado, seguido pela restauração sob
uma liderança piedosa; os dois falavam em termos de uma nova aliança
que seria apropriada intema e pessoalmente; e os dois falavam contra os
falsos profetas que profetizavam a paz quando não havia paz.
Estes paralelos e semelhanças entre Jeremias e Ezequiel não respon
dem à pergunta que foi originalmente feita, mas sugerem, isto sim, que os
dois homens quase certamente tinham consciência da existência um do ou
tro, e provavelmente tinham simpatia um com o outro. Se, naturalmente,
um ambiente palestiniano para o ministério de Ezequiel fosse postulado, o
problema da sua falta de menção um do outro, enquanto viviam e prega
vam como vizinhos próximos entre si, seria consideravelmente agravado,
33
34. INTRODUÇÃO
mas já rejeitamos tal possibilidade, por outros motivos. Finalmente, de
vemos lembrar-nos de que, embora conheçamos pelo nome somente es
tas duas grandes personalidades proféticas do exílio, juntamente com os
nomes de umas poucas figuras obscuras tais como Urias (Jr 26:20-23) e
Hananias (Jr 28:1-17), deve ter havido dezenas de homens em Israel
que diziam ser profetas, e nem sempre teria sido fácil para os verdadeiros
serem distinguidos dos falsos. Entre tais profetas havia, sem dúvida, uns
poucos do calibre de Urias, mas muitos outros devem ter sido do tipo de
Hananias, contra quem foram dirigidos capítulos tais como Jeremias 23 e
Ezequiel 13. Devemos, portanto, acautelar-nos contra tirar conclusões in
devidas a partir de evidências mínimas, e devemos ter cuidado, ademais,
em evitar a fabricação de grandes problemas a partir de casos sobre os
quais a Bíblia não parece ter comentário algum a fazer.
A cronologia de Ezequiel
Ezequiel é sem igual entre os profetas do Antigo Testamento pela sua se
qüência ordeira de datas para muitos dos seus oráculos. Estas datas podem
ser alistadas no seguinte quadro.
Referência Evento descrito DatadeEze- Data pelo calen-
q u ief6 ddrio JulianoS7
Dia mês ano Dia mês ano
1: A chamada de Ezequiel 5 4 30 31 jul 593
1: 2 A chamada de Ezequiel 5 (4) 5 >
> ”
8: 1 A visão da idolatria em Jerusalém 5 6 6 17 set 592
20 1 A delegação dos anciãos 10 5 7 9 ago 591
24 1 Começa o cerco 10 10 9 15 jan 588
26 1 Oráculo contra Tiro 1 (11) 11 12 fev 586
29 1 Oráculo contra o Egito 12 10 10 7 jan 587
29 17 Do Tiro para o Egito 1 1 27 26 abr 571
30 20 0 braço quebrado do Faraó 7 1 11 29 abr 587
31 1 Oráculo contra o Faraó 1 3 11 21 jun 587
32 1 Lamentação sobre o Faraó 1 12 12 3 mar 585
32 17 0 Faraó no Seol 15 (12) 12 17 mar 585
33 21 “A cidade caiu” 5 10 12 8 jan 585
(ou melhor)
(5 10 U ) 19 jan 586
40:1 Visão da nova Jerusalém 10 1* 25 28 abr 573
* lit. “no começo do ano”
56. As datas entre parênteses são aquelas que foram supostas no comentá
rio onde o TM não é explícito, ou onde ocorrem variantes.
57. Estas datas baseiam-se nas tabelas dadas em R. A. Parker e W. H. Du-
34
35. EZEQUIEL
Pode-se ver, com base neste gráfico que, se descontarmos a coleção
de oráculos contra as nações (25-32), que incorpora nada menos do que
sete das quatorze datas, as demais datas estio numa ordem exata e lógica.
Isto é verdade, quer sigamos o TM da notícia da queda de Jerusalém
(33:21), quer emendemos “o ano duodécimo” para “o ano undécimo,”
conforme parece preferível (seguindo Albrigth, Howie). Das datas nos ca
pítulos 25-32, duas não fazem menção ao mês (26:1; 32:17), mas o orá
culo que segue 26:1 pressupõe que Jerusalém caiu e, portanto, deve ser
datado depois da data citada em 33:21, e a sugestão no sentido de pre
encher o undécimo mês não parece irrazoável. Isto faz com que o orácu
lo contra Tiro venha menos do que um mês depois da notícia da queda
de Jerusalém ter chegado em Tel Abibe. Os oráculos contra o Egito es
tão em seqüência cronológica, com a exceção de 29:17 que é manifesta
mente uma explicação posterior encaixada deliberadamente naquela altu
ra da seqüência, e de 32:17, embora se o mês omitido for entendido co
mo sendo o duodécimo, este, também, encaixa-se no padrão ordeiro.
O problema que ainda fica é a interpretação do trigésimo ano em
1:1. Muitos estudiosos apelaram a emendas textuais, sendo que a mais co
nhecida é a de Hemtrich,58 que o emendou para o terceiro ano, e ele foi
seguido mais recentemente por C. F. Whitley.59 A sugestão de Bertholet de
que deva ser emendado para o décimo terceiro ano, em que foi seguido
por Auvray e Steinmann,60 tem relacionamento com sua reformulação do
ministério de Ezequiel, de modo que a visão marcasse a inauguração do
segundo período (babilónico), mas foi fortemente refutada tanto por Foh-
rer como por Zimmerli. Aqueles que procuraram compreender o texto
conforme consta têm sugerido: (i) que era o trigésimo ano após a reforma
de Josias, i.é, c. de 591 a.C.; (ii) que era o trigésimo ano da idade de Eze-
quiel, idéia esta que remonta a Orígenes; (iii) que era o trigésimo ano do
exílio de Joaquim, e que a referência não dizia respeito à visão inaugural
bberstein, Babylonian Chronology, 626 a.C. - 75 d.C. (1956), pág. 26. Não devem
ser usadas por demais dogmaticamente, porque tomam por certas questões acerca
das quais há mais de uma interpretação. Por exemplo, nffo podemos ter certeza se
Ezequiel seguiu um calendário que ia de um outono até ao outono seguinte, ou da
primavera até à primavera seguinte. As datas citadas supra supõem que se trata de
um calendário primaveril.
58. Hemtrich, pág. 63.
59. C. F. Whitley, “The ‘thirtieth’ year in Ezekiel 1:1,” VT, IX, 1959,
págs. 326-330.
60. J. Steinmann, Le prophète Ezéchiel et les débuts de Vexil (1953).
35
36. INTRODUÇÃO
de Ezequiel, mas, sim, à data da redação ou compilação final do livro
inteiro (assim Berry,61 Browne,62 Albright,63 e Howie).
A primeira destas sugestões pode ser descontada porque não há evi
dência em prol de qualquer datação semelhante de um evento, por mais
importante que seja, sem referência específica ser feita a ele. A menção
do reinado do rei Joaquim em 1:2 indica que se o trigésimo ano após a
reforma de Josias estava em mira, o redator não percebeu o sentido, e se
ele não conseguiu entendê-lo ficamos duvidando se qualquer leitor contem
porâneo teria sido mais bem sucedido.64
Os argumentos em prol da teoria do “ano da compilação” são atraen
tes e se encaixam bem com o padrão posterior de datas, viz. o vigésimo
quinto ano para a visão de 4048, e o vigésimo sétimo ano para a predição
do avanço de Nabucodonosor contra o Egito após seu fracasso em Tiro.
Não havendo qualquer ponto de referência no texto, parece altamente
razoável inferir o mesmo ponto de referência que é aplicado a todas as
demais datas no livro. Os argumentos em prol desta interpretação são bem
colocados na monografia de Howie.6S Do outro lado, exigem uma leve
recomposição dos w. 1-3 de Ezequiel 1, e rejeitam o esforço do redator
para fazer uma harmonização na sua referência ao quinto ano de Joaquim
em 1:2. Se Howie tiver razão, o redator não poderia ter sido o próprio
Ezequiel (conforme ele supõe), porque a confusão das datas nos w. 1 e
2 teria sido demasiadamente aparente para uma compilador inteligente
permitir. Conforme foi transmitido para nós, 1:2 não pode ser outra coi
sa senão uma glosa explanatória sobre a dats desvinculada em 1:1 e,
além disto, o problema de 1:1 deve ter sido tio completamente reconhe
cido pelo redator que nem sequer lhe ocorreu que se referisse à compila
ção dos oráculos de Ezequiel no trigésimo ano do exílio de Joaquim. Para o
redator, de qualquer maneira (e não podemos chegar mais perto das
61. JBL, LI, 1932, pág. 55.
62. L. E. Browne, Ezekiel and Alexander (1952), pág. 10; mas interpre
ta o livro inteiro como um comentário dos fins do século IV a.C., sobre as campanhas
de Alexandre, e o trigésimo ano é datado a partir da sucessão de Artaxerxes III.
63. JBL, LI, 1932, pág. 96.
64. A mesma objeção também deve ser aplicada a variantes desta teoria,
e.g. que era o trigésimo ano da vida de Joaquim (Snaith, ET, LIX, 194748, págs.
315-6); ou do reinado de Manasse's (C. C. Torrey, Pseudo-Ezekiel and the Origi
nal Prophecy (1930), págs. 634); ou de um período do jubileu (S. Fisch, Ezekiel,
Soncino Bible, 1950, pág. 1).
65. C. G. Howie, The Date and Composition o f Ezekiel (JBL Monograph
Series IV, 1950).
36
37. EZEQUIEL
fontes do que ele), o trigésimo e o quinto ano do exílio eram o mesmo
ano.
Ficamos, portanto, com as seguintes possibilidades: ou que estas
cifras representam dois sistemas alternativos de datas,66 idéia esta que
atraiu pouco, ou nenhum, apoio dos especialistas atuais na cronologia
vétero-testamentária, ou que o trigésimo ano era o trigésimo ano de Eze-
quiel. Muita coisa há que se possa dizer em prol desta última idéia. Pri
meiramente, é prima facie mais provável que, quando uma reminiscência
pessoal está sendo registrada na primeira pessoa do singular, qualquer
referência a um ano específico, a não ser que haja explicação em contrário,
significaria o ano da idade do escritor. Em segundo lugar, há a evidência
de Gênesis 8:13 no sentido de que esta era uma forma aceitável de expres
são hebraica.67 Em terceiro lugar, há boa razão para se supor que
o trigésimo ano da vida de um homem era a idade em que podia assumir
todos os deveres do sacerdócio. Este argumento baseia-se no fato de ser
esta a situação dos levitas, conforme Números 4:3 e 1 Crônicas 23:3,
embora houvesse etapas de treinamento preliminar para a obra, a partir
do vigésimo68 e do vigésimo quinto ano.69 A evidência do judaísmo pos
terior mantém um silêncio estranho quanto ao assunto da idade da inicia
ção no sacerdócio, mas trinta anos volta a ocorrer como a idade de plena
maturidáde, e não dexia de ter significado o fato de que trinta anos era
a idade de nosso Senhor na ocasião do Seu batismo e do começo do Seu
ministério.70 Se assim for, o significado do seu trigésimo ano, na introdu
ção autobiográfica de Ezequiel, não passaria desapercebido aos seus leito
res, e algo do aspecto patético das suas esperanças frustradas de servir no
Templo apareceria. Pode, portanto, ser suposto que foi como compensa
ção pela sua perda de privilégio, por causa do exílio, que o Senhor cha
mou Ezequiel para o ministério de profeta e atalaia no quinto ano do rei
Joaquim.
66. Assim Cooke, págs. 3-4, seguindo Begrich.
67. “No primeiro dia do primeiro mês, do ano seiscentos e um, as águas se se
caram de sobre a terra.” A referência é à vida de Noé, conforme 7:6 e 7: 11 tomam
claro. Devo esta referência a S. G. Taylor, Tyndale Bulletin, 17,1966, págs. 119-120.
68. 1 Cr 23:24.
69. Nm 8:24.
70. Lc 3:23.
37
38. INTRODUÇÃO
0 impacto total de um livro é freqüentemente muito maior do que
a mensagem pretendida pelo autor, e, da mesma forma, a mensagem que
o livro de Ezequiel contribui à revelação de Deus nas Escrituras Sagradas
é muito maior do que as meras palavras de Ezequiel dirigidas a seus com
panheiros de exílio. Se não tivéssemos de lidar com nada mais do que isso,
poderíamos resumir o ensino de Ezequiel em duas frases: Deus destruirá
e, depois de 587 a.C., Deus restaurará e reconstruirá. Mas para relacionar
isto com as necessidades dos homens e das nações hoje, conforme é a tare
fa da exposição bíblica, devemos olhar abaixo da süperfície, nos princí
pios subjacentes da natureza de Deus e dos Seus tratos com os homens,
que o profeta reconheceu e aplicou, à sua maneira, às situações dos seus
próprios tempos. O profeta vétero-testamentário, pois, era essencialmen
te um intérprete, aplicando o que sabia da natureza e das leis de Deus às
condições sociais, políticas e religiosas dos seus dias. A tarefa dele, por
tanto, era arriscada. Tinha de pesar os fatos e tirar as conclusões certas.
Tinha de falar com destemor, sabendo que muito provavelmente sofre
ria oposição ou seria mal entendido. Tinha de falar alto, e de modo memo
rável, porque seus problemas de comunicação eram muito maiores do que
os nossos hoje. Acima de tudo, tendo poucos precedentes como base, e
nenhuma Bíblia atrás da qual pudesse esconder-se, tinha de ter dupla cer
teza de que as palavras que falava não eram dele, mas, sim, dAquele que o
enviara. E tinha de fazer tudo isto no meio-ambiente das palavras doutros
homens que professavam ser profetas, mas cujos oráculos eram uma ladai
nha sem a autoridade derivada de terem experimentado a palavra de Deus
dentro de si mesmos.
Uma boa parte da linguagem de Ezequiel é repeticiosa. Isto às vezes
toma a leitura enfadonha, mas ajuda a ressaltar seus temas recorrentes.
Cinco destes foram escolhidos para serem comentados aqui. Como as es
trelas que perfazem uma consteláção, são os pontos fixos em derredor dos
quais o padrão da sua mensagem pode ser construído.
a. A Transcendência de Deus
Toda profecia começa com o caráter do Deus que a inspira. No caso
de Ezequiel, que foi criado nos círculos sacerdotais em Jerusalém, é
inevitável que o aspecto de Deus que ele sentia mais profundamente era
Sua santidade. Esta não era uma qualidade moral, embora pudesse mostrar-
IV. A MENSAGEM DE EZEQUIEL
38
39. EZEQUIEL
se em ações morais, e fazia assim mesmo (cf. Is 5 :16b). Era uma palavra
que expressava relacionamento. O significado da raiz de qõdes (“santida
de”) é “estar separado” , e assim, ser desligado doutros relacionamentos e
usos comuns para cumprir uma função peculiar, uma que pertence a Deus,
o Santo. O Deus de Israel não possuía, simplesmente, esta qualidade; Ele
era esta qualidade. Tudo quanto tinha ligação com Ele derivava dEle a
santidade. Podia, portanto, haver um lugar santo onde Ele era adorado,
pessoas santas que agiam como Seus ministros, vestes santas que usavam e
equipamentos santos que empregavam. Seu nome também era santo, Seu
povo Israel era santo (até quando estava vivendo na injustiça), e o lugar
onde fez Sua habitação era Seu santo monte.
A visão do Senhor montado no Seu carro-trono (1-3) tipificava este
senso de transcendência e de majestade. Era indizivelmente esplêndido,
misteriosamente intrincado, sobre-humano e sobrenatural, infinitamente
móvel mas nunca preso à terra, onividente e onisciente. É assim que Deus
Se revelou a Ezequiel, não por proposições acerca do Seu caráter mas, sim,
no encontro pessoal. Os rabinos que insistiam que ninguém abaixo da ida
de de trinta anos deveria ler esta parte do livro de Ezequiel, estavam cons
cientes de que aqui estavam em terra santa. Ezequiel tinha a mesma cons
ciência. Como Simão Pedro ao ser confrontado pela capacidade sobre
natural de Jesus (Lc 5:8), somente podia cair com o rosto em terra como
morto. Este foi o contexto da sua comissão para profetizar, e a partir de
então, levou consigo, no decorrer da totalidade do seu ministério, um sen
so de reverência e de santo temor. É a marca distintiva do profeta verda
deiro em cada geração. O falso profeta pode tagarelar levianamente acer
ca de Deus, porque nunca se encontrou com Ele. O homem de Deus sai da
Sua presença indelevelmente marcado com a glória do seu Senhor.
Ezequiel deve ter sabido que o Deus de Israel era o Deus do mundo
inteiro, como seu Criador e Sustentador. Suas tradições sacerdotais ensi
naram-no, decerto, que Ele era o Deus de todas as nações, e o Juiz de
las. Mas, mesmo assim, deve ter sido um grande consolo para ele, e para
os exilados, saber que este Deus, cuja habitação ficava no monte Sião po
dia aparecer-lhes ao lado do rio Quebar, em meio de todo o paganismo
e idolatria sórdidos da vida babilónica. Se qualquer israelita sentisse que
estava separado do seu Deus, bem como do seu Templo (cf. SI 137:4), es
ta teofania na Babilônia poderia ser entendida como sinal de que Deus
ainda Se importava com o Seu povo, mesmo no castigo do exílio.
39
40. INTRODUÇÃO
b. A pecaminosidade de Israel
Ezequiel foi confrontado com reações conflitantes às desgraças re
centes da nação. Alguns achavam que o castigo devido pela sua desobe
diência já fora esgotado pelos eventos de 597 a.C., e que nada restava a
fazer senão esperar a repatriação. Outros adotavam a linha fatalista e se
consideravam os herdeiros infelizes dos pecados dos seus antepassados
pelos quais um Deus injusto agora os castigava. A maioria sentia certa me
dida de segurança nisto: como eram o povo do próprio Javé, Ele nunca
poderia castigá-los por demais drasticamente sem desprestigiar-Se aos olhos
dos pagãos. Uns poucos achavam que Javé já tinha ficado humilhado, e
fora demonstrado incapaz diante dos deuses da Babilônia. O modo do
profeta tratar destes pontos de vista, conforme é demonstrado no comen
tário sobre os capítulos 12-24, revela que é competente e disposto a en
contrar-se com seus ouvintes no terreno deles e a respoder às objeções
que levantam. Na maior parte, no entanto, seu alvo é convencer o povo
da sua total indignidade de qualquer consideração da parte de Deus, a fim
de levá-lo pelo caminho da vergonha até chegarem ao verdadeiro arrepen
dimento.
Faz isto de duas maneiras: a geral e a específica. No primeiro caso,
emprega a alegoria para descrever historicamente a história da persistente
infidelidade de Israel à aliança graciosa de Deus. Três passagens tratam dis
to: 16:1-63; 20:1-31 e 23:149. Cada uma delas esquematiza o passado
de um modo levemente diferente. A parábola da enjeitada (16:1-63) co
meça com Israel, ou talvez Jerusalém, como uma enjeitada desatraente (“a
revolver-te no teu sangue”), mas quando ficou moça e chegou à idade dos
amores, o Senhor entrou em aliança com ela, purificou-a e embelezou-a, e
deu a ela generosamente riquezas e honrarias de rainha. Como paga por is
to, Israel, confiando na sua beleza, prostituiu-se com estrangeiros e despre
zou seu Benfeitor divino. O capítulo 20 vê a história de Israel como um
ciclo de atos desobedientes, cada um dos quais foi seguido por uma deci
são graciosa da parte de Deus nó sentido de não castigar mas, sim, de re
ter a Sua mão. É notável aqui a frase repetida: “O que fiz, porém, foi por
amor do meu nome, para que não fosse profanado diante das nações, no
meio das quais eles estavam” (20:9, 14, 22). A ação de Deus em revelar-
Se a Israel, em fazer uma aliança com ele, e até mesmo em discipliná-lo,
foi inicialmente para seu benefício (“a fim de que soubessem que eu sou
o “SENHOR,” etc.; 20:12, 20, 26), mas em última análise Seus tratos
com Israel olhavam além dos próprios interesses daquela nação para a
preocupação no sentido de o nome de Deus ser conhecido e respeitado
40
41. EZEQUIEL
pelo mundo inteiro. Esta era uma doutrina que colocava o orgulho de
Israel na sua eleição firmemente no seu lugar adequado. Finalmente,
a alegoria das duas irmãs (23: 149) desconsidera até mesmo a possibili
dade da inocência original de Israel. Oolá e Oolibá prostituíram-se no Egi
to na sua mocidade. Dificilmente poderiam ser descritas como mulhe
res caídas, porque nunca estiveram noutro lugar senão no esgoto. Sua
única característica era um apetite insaciável pela fornicação, e o casti
go delas seria completo —de modo correspondente.
A intenção destes panoramas históricos era envergonhar e horro
rizar. Se os estudiosos têm razão em supor que um aspecto regular do
culto israelita era uma recitação litúrgjca das tradições sagradas do pas
sado, as “obras maravilhosas” (niplã’
ôt) do Saltério, então Ezequiel po
deria quase ser acusado de parodiá-las com as distorções monstruosas
que fazia. Mas quanto mais de perto eram examinadas, tanto mais evi
dente apareceria que não eram, na realidade, tão distorcidas como algu
mas pessoas talvez pensassem. A versão que nosso Senhor deu da história
judaica não era mais distorcida, e Seus ouvintes reconheciam que era des-
confortavelmente leal aos fatos (Lc 20:9-19).
Mais especificamente, Ezequiel cita no capítulo 8 os delitos que, se
gundo ele sabia, estavam sendo praticados no Templo. Tratava-se, natu
ralmente, de desvios religiosos, e incluíam a idolatria descarada, a ado
ração aos animais, a adoração à natureza, e a adoração ao sol. Embora
alguns aspectos da sua descrição sugiram que estes possam ter sido epi
sódios mais típicos do que concretos, não deixaram de ilustrar o grau de
sincretismo que estava afetando a adoração a Deus em Jerusalém. Cons
tituíam-se, também, em justificativa abundante para a decisão de Deus no
sentido de castigar o povo de Jerusalém com uma matança que relembraria
a praga na ocasião da Páscoa (9: 5-6) e de chover destruição sobre a cidade
como nos dias de Sodoma e Gomorra (10:2). Tanto aqui quanto nos três
panoramas do passado, os pecados de Israel têm sido principalmente pe
cados religiosos. O povo tem sido idólatra, fez alianças e se prostituiu com
potências estrangeiras (e isto envolvia a subserviência religiosa também,
conforme vimos), de modo que não cumpriu suas responsabilidades se
gundo a aliança, não observou as ordenanças e os juízos que o Senhor lhe
deu no Sinai (5:6-7). Numa palavra, profanara o nome santo de Deus
(20:9; 37:20-23); e, porque para Ezequiel Deus era a santidade, este era
o pecado mais horrendo. Em comparação com isto, os pecados sociais que
Amós atacara dois séculos antes quase nem são mencionados.
41
42. INTRODUÇÃO
c. O fato do julgamento
Esta não era nenhuma doutrina nova para um profeta vétero-testa-
mentário. Mensagens de julgamento tinham sido a produção regular dos
profetas já havia muitos anos. Mas este próprio fato tomou mais difí
cil a tarefa de Ezequiel. Havia muita diferença entre ameaças de julga
mento e uma mensagem de que o julgamento era iminente. Foi por isso
que Ezequiel sentia tão agudamente sua responsabilidade de agir como
atalaia nacional para Israel, a fim de adverti-lo quanto à desgraça que es
tava para desabar sobre ele. A mensagem de Deus para Israel era que
o Deus que falava também agiria: “Eu, o SENHOR, o disse, e o farei”
(17:24; 22:14; 24:14; 36:36; 37:14). Deus pronunciara a palavra do
julgamento, e os homens já não podiam desconsiderá-la, dando de om
bros, com a desculpa de que, embora os profetas tivessem ameaçado, na
da acontecera até então (12:22), ou que tudo se referia ao futuro distan
te (12:27). A palavra de Deus agora era: “A palavra que falei se cumpri
rá” (12:28).
d. A responsabilidade individual
Von Rad71 indicou que a posição de Ezequiel como atalaia era “qua
se contraditória, visto que é Javé que não somente ameaça a Israel como
também, ao mesmo tempo, deseja adverti-lo a fim de que seja salvo.” A
possibilidade da salvação de um remanescente é freqüentemente ofereci
da, mesmo nas predições da destruição (e.g. 5:3,10; 6:8;9:4), e a inten
ção de Ezequiel ao agir como atalaia é que o perverso se arrependa e sal
ve a sua vida (3:18). Isto é declarado de modo mais explícito em 18:1-29
onde, num contexto de tentação ao fatalismo (18:2-3) Ezequiel faz ques
tão de dizer que cada homem é tratado como um indivíduo por Deus.
Aquilo que lhe acontece não depende puramente da hereditariedade (os
pecados do seu pai), nem ainda do meio-ambiente (os pecados da nação),
mas, sim, é condicionado pela escolha pessoal. A escolha que importa
é a dedicação a Deus. Destarte, o perverso pode voltar-se da sua perversi
dade para Deus, comprovando sua dedicação mediante a obediência aos
mandamentos, e sua perversidade não será contada contra ele. Inversa
mente, o justo deve ser advertido de que não pode confiar na sua justiça
como desculpa para brincar com o mal; se assim fizer, demonstrará que sua
71. G. von Rad, Old Testament Theology, vol. II (Trad, ing., 1965), pág. 230.
[Editada em português pela ASTE.]
42
43. EZEQUIEL
verdadeira dedicação não é a Deus, e sua justiça não será creditada à sua
conta. Esta não é uma declaração da justificação pelas obras; está dizendo
que a vida do homem é uma questão do seu coração. Deus não tira uma
média geral da vida de um homem; é a direção da sua dedicação que conta.
E o fato básico da análise feita por Ezequiel da questão inteira é que Deus
não tem prazer na morte do perverso (18:23, 32); quer que ele se con
verta e viva.72
Este é um individualismo radical que faz mais do que contrabalan
çar o senso da responsabilidade e da culpa corporativa que tipificava boa
parte do pensamento popular pré-exilico. Aparece outra vez em 14:12-20,
onde se ensina a lição de que ninguém pode esconder-se por detrás da jus
tiça dos outros, nem sequer de homens tais como Noé, Daniel, e Jó, na
destruição que está para cair sobre Jerusalém. A salvação será numa base
puramente individual. (Compare o sinal de isenção que foi colocado à tes
ta daqueles que gemem por causa de todas as abominações que se come
tiam na cidade: 9:4).73 Não se segue daí que Ezequiel foi, virtualmente,
o inventor da religião individual, o protestante entre os profetas, e que tu
do antes dele era coletivista. Não somente Jeremias, como também muitos
dos salmos individuais e as experiências pessoais de patriarcas e reis dão
testemunho da realidade da piedade individual e de uma consciência pes
soal de Deus. Foi o gênio de Ezequiel declarar a aplicação do princípio da
responsabilidade individual diante do juízo coletivo que estava para sobre
vir a Jerusalém. A destruição estava chegando, mas os homens podiam
arrepender-se e ser salvos. Ezequiel, o atalaia, também era Ezequiel, o
evangelista.
e. A promessa da restauração
Embora o arrependimento seja para o indivíduo, a salvação deve ser
desfrutada por ele como membro de uma comunidade restaurada. O novo
Israel será milagrosamente vivificado pela operação do Espírito de Deus,
o Único que pode fazer viver os ossos secos (37:5). Será uma comunidade
sem as velhas divisões de Israel e de Judápara separá-la (37:17). Desfruta
rá das bênçãos de uma aliança eterna, e a divisa da aliança: “eles serão o
72. Uma exposição excelente desta passagem acha-se em von Rad, op. cit.,
vol. I, págs. 3934.
73. O relacionamento entre esta passagem e a intercessão de Abraão em prol
de Sodoma é discutido de modo breve no comentário, in loc.
43
44. meu povo, e eu serei o seu Deus,” será escrita na sua constituição (11:20;
14:11; 36:28; 37:23, 27). À testa da comunidade haverá “o meu servo
Davi,” o Rei Messias (37:24-5). Nenhuma tentativa é feita para identificar
esta pessoa, e rebuscamos o livro de Ezequiel em vão para qualquer elabo
ração deste tema específico. Esta pessoa, no entanto, terá o direito de ser
chamada o rei Qnelek) de Israel, além de ser seu príncipe (nàst’), termo es
te que na era messiânica futura terá perdido suas implicações pejorativas
(cf. 37:25; 45:7, etc.). Remará de modo justo e consciencioso, e cuidará
dos fracos e dos aleijados entre o rebanho (34: 23). A terra prosperará e
florescerá, e de dentro do santuário na nova Jerusalém fluirá o simbólico
rio da vida para regar os lugares desertos da terra (47:1-12). Tudo isto, no
entanto, é apenas o aspecto externo da restauração que Deus promete ao
Seu remanescente justo. Internamente, Ele faz a oferta de um novo co
ração e de um novo espírito para o israelitada individual, de modo que
possa ser purificado da imundícia dos seus pecados e da impureza do exí
lio, e possa ser motivado interiormente para viver de acordo com os man
damentos de Deus (36:24-28). Nestas palavras Ezequiel dá uma defini
ção adicional à profecia de Jeremias sobre a nova aliança (Jr 31: 31-34),
acerca da qual parece ter sido informado com bastantes pormenores, e em
especial, explica como esta esperança pode ser efetuada mediante um
transplante espiritual, mediante o dom de Deus, que é um coração de car
ne em troca do coração de pedra do homem. A mensagem é clara: a maior
pedra de tropeço do homem está nele mesmo, e nada pode resolver este
problema a não ser a ação graciosa de Deus na renovação e na regeneração
espiritual.74
V. O TEXTO
O texto hebraico de Ezequiel sofreu mais do que a maioria dos li
vros do Antigo Testamento no processo da transmissão, e as notas de ro
dapé da RSV dão testemunho às muitas ocasiões em que os tradutores
tinham de apelar às Versões ou à conjectura a fim de descobrir o senti
do de uma frase especialmente obscura. Isto não é surpreendente, porque
Ezequiel fez uso de várias palavras raras e termos arquitetônicos que n3o
INTRODUÇÃO
74. Para ura estudo completo e penetrante da mensagem de Ezequiel, que in
felizmente foi publicado depois desta Introdução ter sido escrita, ver W. Zimmerli,
“The Message of the Prophet Ezekiel,” Interpretation, XXIII, 1969, págs. 131-157.
44
45. EZEQUIEL
se poderia esperar que copistas posteriores conhecessem. Não é sábio,
no entanto, corrigir por demais facilmente o texto hebraico, que talvez
seja difícil, com base num texto muito mais inteligível da LXX, porque
nunca podemos ter certeza se o tradutor da LXXnão estavatentando melho
rar seu original sem bases adequadas para fazê-lo. A LXX permanece sen
do, naturalmente, uma ajuda inestimável para todos quantos procuram
descobrir o melhor texto hebraico. Ela representa uma tradução feita pa
ra o grego, provavelmente perto do fim do século III, a.C., e dá testemu
nho, portanto, de uma etapa muito anterior na transmissão do texto hebrai
co do que o MSS dos quais nossas Versões são traduzidas. Mas antes de
seus textos serem aceitos como sendo superiores àqueles do texto hebrai
co posterior, o estudioso deve ter certeza dos seguintes aspectos: (i) deve
ter certeza de que o texto da LXX é correto e não sofreu deturpação, ele
mesmo, no decurso da transmissão; (ii) deve julgar com exatidão qual
era o texto hebraico que subjazia a tradução na LXX; (iii) para fazer isso,
precisa conhecer as capacidades do tradutor da LXX, e.g. se conhecia bem
o hebraico, ou apenas toleravelmente, se o traduzia ao pé da letra ou idio
maticamente, se não tinha hesitação em incorporar uma tendência teológi
ca toda sua, e assim por diante.75
No caso da LXX de Ezequiel, parece provável que a tradução foi fei
ta por duas ou até três pessoas, embora houvesse um redator geral que
produziu um efeito unificador sobre o livro inteiro.76 Estas pessoas
fizeram seu trabalho de modo competente, mas em certo número de oca
siões parafrasearam ao invés de traduzirem; omitiam aquilo que conside
ravam frases repeticiosas ou encaixavam comentários explanatórios sem
autoridade alguma senão a deles próprios; e há ocorrências em que altera
ram a tradução para fazê-la concordar com o próprio ponto de vista de
les. Destarte, a necessidade de grande cuidado em interpretar a LXX é
sublinhada. No presente comentário, a política tem sido de cautela, e a
emenda na base da LXX tem sido seguida somente no caso em que o he
braico tem parecido ser, ou ininteligível, ou obviamente deturpado. As
demais Versões, a Siríaca, a Latina Antiga e a Vulgata, têm valor apenas
limitado para corrigir o Texto Massorético, porque todas dependem pe
75. Isto, necessariamente, toma por solucionada a questão dos assim-chama-
dos estudos proto-septuagintais, viz., a questão da possibilidade de se descobrir um
texto original da LXX, ou de se certo número de recensões paralelas sempre existi
ram lado a lado. Para um resumo da posição, ver OTMS, págs. 250-252.
76. Ver H. St. J. Thackeray, The Septuagint and Jewish Worship (Schweich
45
46. INTRODUÇÃO
sadamente da LXX.
A LXX de Ezequiel é bem representada nos códices principais,
mas, em anos recentes, interesse especial tem sido focalizado nos papi
ros Scheide, que contêm um testemunho do início do século III d.C.
ao texto grego de Ezequiel 19:12-39: 29.77 Um resultado interessan
te destes estudos tem sido a sugestão de que a forma incomum do nome
divino no livro de Ezequiel, “o SENHOR Deus” (’
adõnãy yahweh), foi
produzida pela expansão de um yahweh original por escribas contrários à
pronúncia do nome santo à sua pronúncia. A pronúncia mais tarde a pa
dronizar-se sem a necessidade de qualquer inserção no texto, mas per
maneceu no texto hebraico transmitido de Ezequiel.
Lectures, 1921); Nigel Turner, “The Greek Translators of Ezekiel,” JTS, VII, 1956,
págs. 12-24.
77. Para uma bibliografia destes estudos, ver IB, pág. 68, nota 77.
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