1. O processo saúde-
doença: conceituação
básica em saúde coletiva
Introdução
Quando se fala em doença, identifica-se, de imediato, o seu oposto: a saúde – desejo
incontestável de todas as pessoas. A doença aparece como o lado sombrio da vida, aquele que
poderá levar à morte. À resposta dinâmica que as sociedades manifestam, de forma
diferenciada, essa forma de adoecer e morrer, levando em consideração a dimensão não apenas dos
sofrimentos físicos, mas também psíquicos, morais e éticos, denominamos Processo Saúde-
Doença, ou seja, a síntese da totalidade das determinações que operam sobre a qualidade de vida,
e está articulado aos processos econômicos, políticos, sociais, de relacionamento familiar e de
responsabilidade humana.
O processo saúde-doença vem apresentando diferentes significados conforme a época. O
conceito que se tem de saúde depende do entendimento que há do organismo vivo e de suas
relações com o meio ambiente. Como essa compreensão muda de uma cultura para outra e de um
momento histórico para outro, as noções de saúde e de doença também se modificam. Desse modo,
a conceituação do processo saúde-doença é considerada intelectiva do homem em cada contexto
histórico e pelas condições concretas de existência em cada sociedade.
Sociedade pode ser definida como sendo o complexo integrado por homens diferenciados
ocupando determinado espaço geopolítico. Os homens interagem entre si a partir da inserção no
trabalho, no qual eles se relacionam, e também com a natureza, na produção da vida material.Esse
trabalho está estruturado pela base econômico-social.
Toda essa estruturação está assentada no modo de produção, síntese concreta, histórica e dinâmica
das relações sociais e das forças produtivas. Tal modo de produção conforma e é conformado pela
superestrutura jurídico-político-ideológica. Essa sociedade encontra-se em permanente
transformação, criando-se e recriando-se pela ação humana em um processo de criação, no qual o
homem é também transformado.
A sociedade brasileira assenta-se num modo de produção capitalista periférico, existindo,
portanto, em seu interior, agrupamentos humanos que se inscrevem em diferentes classes sociais
conflitantes. Diferentes classes sociais têm distintas condições de vida e, portanto, diferentes
condições de saúdedoença,ou seja, diferentes condições de adoecer
e morrer.
O conceito de saúde foi definido pela Organização Mundial de Saúde – OMS – em 1948,como
sendo "um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não a mera ausência da
doença". Doença (do latim dolencia = padecimento) é o estado resultante da consciência da perda
da homeostasia de um organismo vivo, total ou parcial. Desse modo, a saúde deve ser entendida,
2. em sentido mais amplo, como componente da qualidade de vida e, assim, não é um "bem de troca",
mas um "bem comum", um bem e um direito social, no sentido de que a cada um e a todos possam
ter assegurados o exercício e a prática desse direito à saúde, a partir da aplicação e utilização de
toda a riqueza disponível, conhecimentos e tecnologia que a sociedade desenvolveu e vem
desenvolvendo nesse campo, adequados às suas necessidades, envolvendo promoção e proteção da
saúde, prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação de doenças. Ou seja, considerar esse bem
e esse direito como componente e exercício da cidadania,compreensão esta que é um referencial e
um valor básico a ser assimilado pelo poder público, para o balizamento e a orientação de sua
conduta, decisões, estratégias e ações.
A noção de que a saúde é um processo continuado e interdependente de preservação da vida,
criou uma nova dimensão social. A saúde passou a ser também um processo de cidadania.
Assim, todos cidadãos têm direitos, mas são igualmente responsáveis pela sua manutenção. A
saúde, dentro desse enfoque, ocorre e é conseqüência de ações realizadas em toda a sociedade. Isso
não exime o Estado, o médico e outros profissionais de saúde de suas responsabilidades, mas
agrega uma variável fundamental de respeito ao indivíduo, doente ousadio, através do compromisso
social solidário na consecução do objeto maior de garantir condições dignas de vida a cada ser
humano. Esse modo de entender a saúde abrange aspectos individuais e coletivos, envolvendo
questões ambientais e sociais.
As concepções na história
Os povos antigos explicavam a doença dentro de uma visão mágica do mundo.
Os demônios e espíritos malignos, motivados por um castigo, vitimavam o doente, podendo levá-lo à
morte. A cura do doente caberia ao feiticeiro ou xamã, o único com poderes
de convocar os espíritos capazes de erradicar o mal. Essas concepções estavam mais presentes
entre os assírios, caldeus e hebreus, detentores de uma visão religiosa do mundo e capazes de
atribuir o caráter religioso ao surgimento e à cura das doenças, advinda
das plantas e dos recursos naturais.
Para os hindus e chineses, a doença era causada pelo desequilíbrio entre os elementos do
organismo humano, ocasionado pelas influências do ambiente físico – astros, clima, etc. Os chineses
alegavam que as doenças eram determinadas por causas externas, as quais,supostamente,
provocariam o desequilíbrio entre os princípios Yin e Yang. Argumentavam que para o
restabelecimento da saúde, que se daria através do reequilíbrio da energia interna, a pessoa deveria
ser sujeita às terapêuticas da acupuntura e do-in.
Nesse entendimento, o homem atua ativamente no processo de doença e cura, e o caráter
mágico/religioso, predominante na idéia anterior, perde influência.
Na Grécia, as concepções recepcionaram as idéias dos hindus e chineses através
de explicações que davam à saúde o significado de harmonia entre os quatro elementos
que compõem o corpo humano – água, terra, ar e fogo.
Hipócrates, o criador da Medicina moderna, que negou a concepção de doença causada por
demônios ou forças sobrenaturais, já apontava em seu livro Dos Ares, das Águas e dos Lugares (480
a.C), enfatizando ser a base da arte médica a compreensão
da interação entre mente, corpo e ambiente. Ele considerava que os fatores culturais – como modos
de vida – e os fatores psicológicos ou "componentes da natureza humana" – como humores e
paixões –somavam-se aos fatores ambientais na influência sobre o bem-estar
dos indivíduos. No entanto, a história das ciências médicas não foi sempre linear, ou constante, mas
conflituosa e antagônica, e os aspectos da medicina hipocrática foram negligenciados com o
3. predomínio da ciência cartesiana. Porém, nas últimas décadas,
a relação entre fatores sócio-ambientais e o organismo biológico vem sendo bastante pesquisada, e
há a necessidade da compreensão de que a pobreza, condições de trabalho, moradia, alimentação,
costumes e práticas de saúde, etc, são fatores intervenientes no estado de bem-estar.
Na Idade Média - conhecida como a Era das Trevas - sob influência do cristianismo, a
doença volta a ser explicada como purificação, uma forma de atingir a graça divina, que incluía a
cura, quando merecida. A Peste Negra assolava o continente europeu e, acusados de haver
provocado a doença, numerosos judeus foram jogados à fogueira. Surgiram os hospitais ou asilos no
intuito de segregar as pessoas portadoras de doenças infecciosas.
A Renascença (século XVIII), considerada um período de transição, convive com a
dicotomia entre as práticas esotéricas e a ciência. A percepção hipocrática de organicidade
continua relegada em favor dos elementos externos que penetram no organismo. Surge a teoria do
contágio e, mais uma vez, prevalece a compreensão das alterações anatômicas decorrentes da
doença, centrando as atenções nos sinais e sintomas, consolidando as práticas de saúde na
abordagem particular e do indivíduo.
No final do século XVIII, após a Revolução Francesa, com o aumento da população urbana nos
países europeus e a ascensão do sistema fabril, surge a explicação social na causalidade das
doenças, relacionando-as com as condições de vida e trabalho das populações. Desse cenário,
emergiu a idéia de Medicina Social, e o termo data de 1848. Dentre os defensores dessa
abordagem, temos Rudolph Virchow, considerado o "pai" da Patologia moderna, que se dedicou aos
estudos da Patologia porque a medicina social mostrou-se inócua com as descobertas do
microorganismo por Robert Koch e Louis Pasteur, na metade do século XIX .
Com as descobertas da Bacteriologia, volta prevalecer a idéia das partículas externas
provocando o aparecimento da doença. As concepções sociais dão lugar ao agente etiológico. Assim,
essa relação orgânica, como proposto por Hipócrates, na Antiguidade clássica, entre o biológico e o
social no processo saúdedoença,ficou completamente esquecida.
Dessa forma, o objeto do sistema de saúde deve ser entendido como as condições de
saúde das populações e seus determinantes, ou seja, o seu processo de saúde/doença, tendo em
vista produzir, progressivamente, melhores estados e níveis de saúde dos indivíduos e das
coletividades, atuando articulado e integralmente nas prevenções primária, secundária e terciária,
com redução dos riscos de doença, seqüelas e óbito.
Agora que você já estudou esta aula, resolva os exercícios e verifique seu conhecimento. Caso fique alguma dúvida, leve a questão ao
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Referências
EGRY, EY . "Bases teóricas para aproximação do fenômeno" IN: Saúde coletiva: construindo um
novo método em Enfermagem. São Paulo: Ìcone Editora, 1996.
LAURELLL, A. C. . "A saúde-doença como processo social" IN: NUNES, E. D. (org.).Medicina social:
aspectos históricos e teóricos. São Paulo: Global Ed., 1983, pp. 133158.
4. ROSEN, G. . "A evolução da medicina social" IN: NUNES, E.D. (org.) Medicina social: aspectos
históricos e teóricos. São Paulo: Global ed., 1983, pp. 2582.