O documento descreve as péssimas condições de vida no Rio de Janeiro no início do século XX, com doenças endêmicas e superlotação. O prefeito Pereira Passos liderou um grande projeto de reforma urbana para modernizar a cidade, demolindo bairros inteiros e deslocando milhares de pessoas para periferias. Além de obras de saneamento e transporte, Pereira Passos também buscou "civilizar" os costumes da população carioca.
A Reforma Urbana de Pereira Passos e o Bota-Abaixo no Rio de Janeiro
1. INFERNO TROPICAL
"A cidade é um monstro onde as epidemias se albergam dançando sabats magníficos, aldeia
melancólica de prédios velhos e acaçapados, a descascar pelos rebocos, vielas sólidas cheirando mal..."
Luis Edmundo
O RIO DE JANEIRO, NO INÍCIO EM 1900, O RIO CONTAVA COM
DO SÉCULO XX, era uma cidade sitiada. A precariedade dos 691.565 HABITANTES. As condições de vida vinham
serviços públicos e as péssimas condições de vida, moradia e trabalho se degradando desde o final do século XIX. O rápido crescimento
mergulharam a capital numa situação de calamidade sanitária. Navios populacional, devido ao afluxo de ex-escravos, de trabalhadores
oriundos do exterior passavam ao largo do porto carioca, condição expulsos pela crise do café do Vale do Paraíba e imigrantes fugindo
assegurada previamente pelas companhias de navegação; a imigração das lavouras, agravou os problemas sociais e econômicos.
estava ameaçada e o crédito do país abalado. A maioria dos funcionários públicos ganhava entre 60 e
As doenças infecciosas grassavam: peste, varíola, tuberculose, malária. 300 mil réis; os empregados domésticos – 25% da população –
Causava especial preocupação a febre amarela, que angariara para o 30 mil réis por mês, quando recebiam salário. Para obter uma
Rio a reputação de túmulo dos estrangeiros. Enquanto a elite refugiava-se renda de 50 mil réis, um operário precisava trabalhar de
em Petrópolis no verão, levas inteiras de imigrantes caíam vitimados pela 12 a 16 horas por dia, inclusive aos sábados e,
doença. Tal era sua virulência que provocou o adiamento para junho do pelo menos, dois domingos por mês.
carnaval de 1892. De 1897 a 1906, 4 mil estrangeiros morreram do mal Quem era pobre residia nas áreas centrais da cidade,
amarílico. Ficou famoso o caso do caça-torpedeiros italiano Lombardia, nos cortiços, estalagens ou casas de cômodo. Uma
que chegara à capital brasileira em outubro de 1895. Conta Rui Barbosa: dependência numa casa de cômodos custava entre
"Dois meses mais tarde, em janeiro, adoece de febre amarela 20 e 25 mil réis. Pagava-se por mês 40 mil réis para
um de seus tripulantes, daí a dias outro, no seguinte mais três, morar num cortiço e 100 mil réis por um quarto melhor
posteriormente 15... A 16 de março os doentes são 240 e, destes, com pensão. Aos miseráveis, restavam as favelas.
134 mortes... De uma guarnição de 240 pessoas, mal se salvam 106".
Rio de Janeiro antes da grande reforma urbana do início do século XX.
Foto de Marc Ferrez. Acervo Casa de Oswaldo Cruz (RJ).
Detalhes de fotografia de Augusto
Malta retratando grupo posando
em frente à entrada de uma vila,
1906. Acervo Arquivo Geral
da Cidade do Rio de Janeiro.
2. UMA CIDADE EM CONFLITO
EM CONDIÇÕES DE VIDA “O meu programa de governo vai ser muito
TÃO PRECÁRIAS, a população, simples. Vou limitar-me quase exclusivamente
com freqüência, explodia em quebra-quebras. Em junho a duas coisas: o saneamento e o melhoramento
de 1901, o povo protestava contra o aumento das tarifas do Porto do Rio de Janeiro.”
de bonde e a péssima qualidade dos serviços, depredando Rodrigues Alves
vários veículos, num conflito que resultou em mortos e
feridos. O ano seguinte foi marcado por violento levante RODRIGUES ALVES ASSUMIU
contra o aumento da carne e novos ataques contra os bondes. O GOVERNO, EM 1902, recebido com extrema
Ao mesmo tempo, os operários começavam a se organizar e frieza pela população carioca. Representava a consolidação da
ensaiavam suas primeiras greves, buscando a redução da jornada política dos governadores, da hegemonia paulista e dos privilégios aos
de trabalho e melhores salários. Em 1900, cocheiros insurgiram-se cafeicultores. Encontrava as finanças recuperadas, graças a uma política de
por três dias contra um novo saneamento que elevou às alturas os impostos, o desemprego, a carestia,
regulamento. Em 1901, tecelões provocando um clima de tensão social. Estavam em crise setores vitais
da Fábrica Industrial paralisaram para a economia da cidade: a indústria, o comércio e os serviços públicos.
suas atividades. Em 1903, cerca de Para sanear e modernizar a cidade, visando garantir o livre fluxo Ao centro, Rodrigues Alves.
25 mil operários de várias categorias dos investimentos estrangeiros, nomeou como prefeito Francisco Antigo Convento
da Ajuda, atual
entraram em greve e as Pereira Passos, dando-lhe carta branca, através de lei que reorganizava Cinelândia, 1905.
Foto de Augusto Malta.
manifestações de 1º de Maio o Distrito Federal. A nova legislação adiava por seis meses as eleições Acervo Arquivo Geral
da Cidade do Rio
levaram para as ruas da cidade para a Câmara Municipal e proibia as autoridades judiciárias de de Janeiro.
aproximadamente 10 mil pessoas. Cena de fábrica no início do século XX. Acervo particular. revogarem ou suspenderem os atos do novo prefeito.
3. O BOTA-ABAIXO
FACILITAR A LIVRE CIRCULAÇÃO “...enfeixando nas mãos de um só homem essa autoridade,
DE MERCADORIAS, substituir as "ignóbeis vielas" por ela poderá ser senhor absoluto desta capital, um ditador
ruas amplas e arborizadas, encurtar as distâncias – esses eram os insuportável, poderá criar para todos os seus habitantes
objetivos de Pereira Passos, estabelecidos no plano de melhoramentos uma situação intolerável de opressão e vexames.”
da Prefeitura. E ainda: “...promover melhores condições estéticas e Rui Barbosa
higiênicas para as construções urbanas, proporcionar aos grandes
coletores das canalizações subterrâneas mais facilidade de colocação PARA A MODERNIZAÇÃO DO RIO
e visita, substituir os infectos rios da parte baixa dos arrabaldes DE JANEIRO, Pereira Passos inspirou-se na reforma urbana
por galerias estanques, sanear, embelezar, melhorar enfim de Paris, realizada por Georges Haussmann, que acompanhara
a nossa maltratada capital." de perto enquanto adido à legação brasileira na capital francesa.
Era o Bota-Abaixo! Passos derrubou casas, arrasou morros, Nomeado por Napoleão III, Haussmann iniciou seu projeto numa
canalizou rios, abriu praças e rasgou a cidade com suas amplas conjuntura política de reação. Recém-restauradas, as monarquias ainda
avenidas: a Beira-Mar, unindo o centro aos bairros de Botafogo tinham viva a memória das revoluções liberais de 1848, que
e do Catete, a Salvador de Sá, a Mem de Sá, a nova convulsionaram a Europa.
Avenida do Cais (mais tarde, Rodrigues Alves), a do Mangue A reforma buscava, dentre seus objetivos, neutralizar o proletariado
(Francisco Bicalho). O alargamento das ruas deu origem revolucionário de Paris, impedindo novos motins populares.
a artérias que ligavam a orla marítima do centro Assim, rasgou, no centro da cidade, um conjunto de largas avenidas,
(atual Praça XV) aos largos do Estácio destruindo os quarteirões populares e as ruas tortuosas que,
e do Matadouro (Praça da Bandeira). desde a Revolução Francesa, vinham sendo o palco das famosas
barricadas do povo parisiense.
Foto de Pereira Passos. Além de atender a razões de ordem sanitária e permitir
Acima, planta dos melhoramentos projetados a livre circulação necessária para a grande indústria, largas avenidas
pelo prefeito Pereira Passos, 1902/1906.
Acervo Casa de Oswaldo Cruz. e praças abertas ao grande público, canalizações de água e esgotos
Abaixo, obras de alargamento da Rua Larga e mercados públicos transformaram Paris num modelo de metrópole
de São Joaquim, atual Marechal Floriano.
Foto de Augusto Malta. Acervo Arquivo industrial moderna imitada em todo o mundo.
Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
4. A “CIVILIZAÇÃO” DOS MORADORES
A ESPINHA DORSAL DE SEU PROJETO NÃO BASTAVA REMODELAR A CIDADE,
ERA A NOVA AVENIDA CENTRAL, mais tarde era preciso civilizar seus habitantes. Utilizando seus amplos
denominada Rio Branco. Seu traçado rompia o coração da Cidade Velha poderes, Pereira Passos interferiu diretamente no cotidiano da
e obrigou o arrasamento de parte dos Morros do Castelo e São Bento. população, alterando e disciplinando seus costumes.
Logo, tornou-se o centro da vida elegante, alterando a fisionomia e os Sua primeira medida foi proibir a venda de miúdos em tabuleiros
costumes da cidade. Para seus edifícios imponentes, deslocaram-se o e a ordenha de vacas em vias públicas, obrigando a vacinação destes
comércio sofisticado, os cafés, as confeitarias e os restaurantes chiques animais com tuberculina e definindo normas para fiscalização dos
e a sede de grandes jornais, empresas e clubes. estábulos. Procurou extinguir a mendicância, internando, à força
Mas a construção de uma capital moderna fizera vítimas. E quantas em asilos, os incapazes para o trabalho e encaminhando os outros,
vítimas! Em 1905, as obras de Pereira Passos tinham provocado a inclusive menores, à polícia.
demolição de cerca de 700 habitações coletivas, deixando desabrigadas Baniu a venda de bilhetes de loteria, estabeleceu licenças para
pelo menos 14 mil pessoas. A população pobre fora empurrada para ambulantes. Ordenou a captura e morte de cães vadios e instituiu Inauguração do eixo
da Avenida Central.
a periferia da cidade ou para os bairros distantes e mais degradados. imposto para quem tivesse esses animais dentro de casa. Kosmos, setembro de 1904.
Acervo Fundação Casa
Morros e mangues começaram a se encher de casebres feitos Proibiu a criação de porcos no quintal, a manutenção de hortas de Rui Barbosa.
com tábuas de caixas de bacalhau. de comércio em zona urbana e a passagem pela cidade de “Peixeiro”, de Armando
Pacheco, e “Dançarina
cargueiros: tropas de animais, atrelados uns aos outros, de Macumba”, de autor
desconhecido. Imagens
“A cidade colonial, imunda, retrógrada, emperrada nas transportando produtos hortigranjeiros. de personagens do Rio de
Janeiro, compiladas do livro
suas velhas tradições, estava soluçando no soluçar daqueles E as proibições se sucediam: os fogos de artifício, O Rio de Janeiro do Meu Tempo,
de Luiz Edmundo.
apodrecidos materiais que desabavam. Mas o hino claro as pipas e os balões, o candomblé e outros cultos de
das picaretas abafava esse protesto impotente.” origem africana, o entrudo, as serenatas e a boemia.
Olavo Bilac