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Introdução
Em nossa dissertação, de conclusão da Pós-Graduação em História do Século XX, iremos tecer
algumas considerações sobre esse século, a partir da atuação e do pensamento de João Paulo II.


Para conhecermos melhor a biografia desse Papa, como pano de fundo necessário para a análise
de alguns de seus documentos, comparamos duas de suas mais conhecidas biografias: Sua
Santidade João Paulo II e a História Oculta de Nosso Tempo de Carl Bernestein e Marco Politi
e João Paulo II, Biografia de Bernard Lecomte.


Pensávamos que ambas estivessem, de certo modo, em polos opostos: de um lado a “denúncia” e
do outro a simpatia pelo Papa embora ambas contenham sempre alguma admiração pela figura
de João Paulo II. Poderíamos assim, tirar “uma média” entre essas abordagens se é que se pode
colocar tão grandiosos trabalhos em amarras tão limitadas.


Sabe-se que é muito difícil fazer uma biografia pelo muito que exige quer de capacidade de
análise, isenção, interesse, técnica etc, e por isso estamos longe de pretender criticar obras e
autores tão cheios de virtudes, pelo menos se comparados com os modestíssimos dons desta que
agora ousa comentá-los.


Por isto reduzimos estes comentários aos nossos “circunscritos interesses” de contextualizar a
leitura dos documentos de João Paulo II para a redação da dissertação de fim de curso em
história do século XX. Como contribuiria cada uma delas para o nosso conhecimento da vida
desse Papa? Qual biografia nos conta melhor as circunstâncias históricas que envolvem a
atuação de João Paulo II?


Na verdade, não tínhamos a intenção de formular estas perguntas quando iniciamos essas
leituras. Mas o choque entre elas acabaram por gerar o formato comparativo desta resenha e,
ainda, a direção a ser tomada na dissertação acima referida.


Explicamos isto para que fique claro, ao leitor, que nós nada sabíamos do tema nem tinhamos
preconcebida qualquer idéia sobre esses autores antes de iniciar a leitura das biografias sobre
.
João Paulo II, .Sua Santidade João Paulo II e a História Oculta de Nosso Tempo de Carl
              .
Bernestein e Marco Politi e João Paulo II, Biografia de Bernard Lecomte.
               .
Lemos primeiro a biografia de Bernestein e tal é a empolgação que promove que animamo-nos
ao segundo “tijolão” de Lecomte achando que iríamos viver outra aventura tão empolgante como
a leitura da biografia escrita por Bernestein. Não foi exatamente isso o que aconteceu; a leitura da
biografia de Lecomte foi muito melhor e indicou sérias suspeitas sobre o trabalho de Bernestein.



Bernestein
A construção em formato de “denúncia” em Bernestein, necessariamente, subordina a escolha
dos fatos a serem biografados e mesmo a relevância deles à essa construção, afinal não se causa
um determinado sensacionalismo sem construí-lo propriamente. O que não “funciona” não entra
e, o que poderia funcionar mas não aconteceu, cogita-se, especula-se, para ajudar a criar
sensacionalismo. Um exemplo disto é o capítulo em que Bernestein pretende averiguar
“mulheres” na vida de João Paulo II: mesmo concluindo que não havia nada a dizer ( diz isto
explicitamente), suas especulações tem um efeito de “enfeitar” de sensacionalismo a trama.


Aos poucos, assim, Bernestein, que se apresenta no livro como ateu mas com respeito pela figura
do Papa, parece na verdade querer construir duas histórias: uma em que narra explicitamente
fatos baseados em documentos e uma outra em que lança um certo “quê” de descrédito em
relação não sei bem se à fé, ou à igreja ou a tudo relacionado com o credo e a ação de João Paulo
II. Explicitamente Bernestein considera o papa até admirável e não lhe têm ressalvas explícitas
mas isto no final das contas só o ajuda na construção de sua “tese” por que, por estes abonos ao
Papa, suas críticas subliminares passam mais rapidamente para o subconsciente do leitor que as
tomam por tão certas como os fatos apresentados devidamente documentados. No estilo e na
construção da narrativa está o que nos é imposto subliminarmente por Bernestein e, cujas
motivações para fazê-lo, não aparecem claramente.


Já ouvi dizer que algumas pessoas em especial os ateus, tem necessidade de fabricar, para si
mesmos e para outros, inimigos a fim de justificar sua existência e, de que isso é devido ao seu
vazio interior. Não sei se isso é verdade mas Bernestein parece mesmo querer fabricar
“inimigos” que possam ser caros a um certo tipo de leitor. Mas talvez isto seja mais para faturar



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com a venda do seu livro, ao satisfazer, de especulações maldosas, leitores ávidos de “verdades”
empacotadas em clichês.


A narrativa é assim construída para dar a entender que o papa, junto com os americanos, urdiram
contra o comunismo numa ação com sabor de intriga palaciana tipo mocinhos versus bandidos.
São muitos os recursos para isto: Usar expressões como “império do mal” em um determinado
contexto é visivelmente sarcasmo e assim, apesar de estar escrevendo sobre um fato real, sobre
um depoimento de Reagan vai-se construindo subliminarmente a idéia de conluio de malvados
extremistas contra forças inocentes que não poderiam lutar contra o poderio dessa maquinação.


A escolha assim das citações, dos documentos e da ordem de os apresentar contribui para a
legitimação da sua “história oculta do nosso tempo” na medida em que essa construção se baseia
em clichês simplificados que já possam estar na mente de certo tipo de leitor. É como começar
um baile com a música do grupo que mais toca na rádio ou um concerto pelo trecho mais
conhecido da “Cavalleria Rusticana” ou com as valsas de Vivaldi: promove-se assim uma
identificação entre o público e a música que facilita a adesão às músicas menos conhecidas que
se apresentarão em seguida. Da mesma maneira a identificação fácil de clichês por parte de certo
tipo de leitor é ferramenta segura para avivar o interesse e assegurar melhores vendas.


Também esta obra se assemelha a uma construção feita como nessas “polêmicas” de mídia em
que só existem dois lados, ( porque é o máximo que se pode paginar em veículos de massa). O
argumento de Bernestein se apresenta como idôneo por ter consultado “os dois lados” o que
asseguraria ao leitor uma história “imparcial” como dizem os manuais de redação dos jornais.


Mas na verdade e, como nessas matérias com as quais a mídia cria “consenso” sobre temas
polêmicos, não asseguram mais que boas vendas ao agradar consumidores cuja satisfação de ver
confirmadas suas certezas prévias são o bastante para sua adesão à história apresentada.


No nosso fraco modo de entender, o tratamento jornalístico não é sinônimo de isenção. Não raro
é até desculpa para impor-se acima dos questionamentos como se a sua consulta, a ambos os
lados, assegurasse, à abordagem jornalística, estar acima do “bem e do mal”. Mas, assim como
na mídia o trabalho de edição tem uma função importante na construção do convencimento da
linha adotada pelo veículo, sem      revelar claramente a quem serve essa linha editorial, na
narrativa direcionada para o sensacionalismo ocorre também a          condução ideológica pelas
opções de construção da trama.
.
               .
Em marketing .
             sabemos que é bom mexer com quem já traz consigo muito público só por ser
              .
quem é e, desconfio de que seja por isso que Bernestein preferiria fazer uma “história oculta” em
torno do Papa e não em volta de nós, por exemplo: revelar o “oculto” certamente causa mais
sensação do que falar sobre o que é corrente e, se não fosse sobre uma celebridade tão popular
também não provocaria tanto interesse e por tudo isso acreditamos que sua obra ficou “viciada”.


Não nos esqueçamos que Bernestein é o jornalista que ficou famoso com o caso Watergate que
provocou a renúncia do presidente americano. É inevitável que o empenho de Bernestein, em
criar a sua “história oculta do nosso tempo”, nos sugira que, depois do caso Watergatte,
estivesse esperando repetir o mesmo feito e, quem sabe, desta vez, “derrubaria” um papa. Por
isto a escolha de uma narrativa em que lança suspeitas que qualificassem a ação de João Paulo II
no mínimo, ao gosto de pelos menos outros ateus.


Curioso é que toda esta crítica a Bernestein só nos ocorreu depois de lermos a segunda
biografia, a de Lecomte. Até então estavamos pensando que havia descoberto “a trama” do
século XX: a da contribuição do Papa para a derrocada do comunismo de alguma maneira ligada
às ações de espionagem da Cia, a agência norte-americana que levou fotografias, tiradas de
satélite, dos exércitos russos na fronteira da Polônia, para o Papa ver e, pelas quais, os Eua
previam uma eminente invasão da Polônia pela Rússia, conforme nos informa Bernestein.


Sobre a ação de João Paulo II para a queda do comunismo, assunto priorizado por Bernestein,
não parece próprio sugerir que os contatos entre o Papa e os americanos apresentados como um
conchavo “de direita” foram a causa da reação polonesa aos comunistas que acabou levando ao
fim do regime comunista na Polônia tendo isto contribuído para a ruína do sistema planificado
em toda a Rússia. Ou de que os americanos é que fizeram o Papa “ajudar” Lech Walesa contra o
comunismo”, ou que o Papa por ter restrições à teologia da libertação tinha alguma vinculação
com a ação da Cia contra governos de esquerda.


E isto porque a resistência polonesa ao comunismo, tanto da parte do Papa como do povo
polonês começa no próprio ano da invasão russa (1939), ( Karol Wojtyla é eleito papa em 1978).


E, na verdade, a história da Polônia com a situação de constante invasão pelas potências vizinhas
ao longo de toda a sua história, bem como a unidade desse país feita em grande medida com base


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no cristianismo, tornam a questão do enfrentamento ao domínio soviético pelos poloneses uma
questão bem mais ampla do que a visão de “interesses comuns” entre um                determinado
presidente americano e o papa, ou deste com a Cia. 1


A ênfase nessa aproximação parece motivada por razões ideológicas em Bernestein. Queremos
dizer que a resistência polonesa, do qual o papa seria um personagem, já acontecia, é parte da
história Polonesa e não dependeu, para que acontecesse, de conchavos e maquinações com os
americanos “de direita” exagerando-se a interferência americana nesse episódio para criar o
clima de “urdição palaciana”.


Não é que o papa não tenha resistido aos comunistas. Mas Karol Wojtyla lutava contra a
ocupação comunista desde antes de ser papa, é o que se vai aprender melhor em Lecomte de
forma muito detalhada, com histórias de celebrar missa às escondidas, em bairros comunistas
onde era proibido construir igrejas, com nomes, datas, etc. O papa não passa a fazer isto depois
de uma “intervenção” americana. Se este papa foi grande em algum sentido que mereça uma
biografia não o foi pelo seu relacionanamento com Estados Unidos. A conversa entre chefes de
estado ocorreu sempre nas relações internacionais de todos os tempos, mas aqui temos a
impressão de que se trata de uma quase perseguição às visões de esquerda.


A iminente invasão da Polônia pelo exército russo, estacionado na fronteira desta com a Polônia
com que o livro de Bernestein começa sua trama, sem dúvida interessavam ao Papa polonês, aos
Estados Unidos e a quem mais acompanhasse o andamento das questões internacionais vividas
durante a Guerra Fria. Daí a apresentar esses fatos, com sentido de “maquinação” do papa com
os americanos “da história oculta do nosso tempo” parece subordinar-se mais a interesses
ideológicos ou comerciais do autor, já que a luta de João Paulo II contra o comunismo não
começou pela ação americana, mas é anterior, como se vê melhor em Lecomte.


Assim, nos pareceu claro que é proposital reduzir tudo a uma “teoria de complô” com vistas a
promover interesse sensacionalista que vende. É fato que o sabor de intriga palaciana “contra o
império do mal” torna o texto de Bernestein muito mais interessante de ser lido do que o de
Lecomte, pelo jeito de thriller policial com que envolve o leitor. Mas Lecomte dá mais fatos, mais
informação e mais interpretações que o livro de Bernestein. Além de não impor ou conduzir
numa única direção como faz Bernestein.



1
    Ver anexo “Mini História da Polônia.”
.
                .
Bernestein utiliza uma perspectiva aparentemente, imparcial, baseada em estilo jornalístico, mas
             .
como tudo acaba subordinando à sua “tese”, seu trabalho parece priorizar o sensacionalismo.
Fica claro que, .não obstante ele não encontre nada que desabone o Papa, tipo uma corrupção ou
escândalo que faria sucesso num tablóide, empenha-se capítulo a capítulo, em sugerir um clima
de “urdição palaciana” pela qual lança suas restrições, de forma subliminar e cria no leitor uma
suspeita ou uma desqualificação intencional e não explícita à atuação de João Paulo II.


O principal problema de uma visão previamente conduzida, para não dizer ideologicamente
conduzida, é que se pode perder a capacidade de ver, de enxergar coisas novas e a partir daí
construir uma idéia totalmente original, quem sabe.


Por exemplo, o discreto parágrafo sobre os Bispos franceses no livro de Lecomte é um exemplo
extremamente esclarecedor da posição da França no cenário da época, para dar um exemplo, de
como outros assuntos não tratados no livro de Bernestein podem contribuir para uma biografia
mais rica desse período histórico.


Outro aspecto que também pode ilustrar a diferença entre as duas biografias – elas são muitas e
talvez valesse a pena compará-las mais detidamente, pode ser a falta de tantos temas e mesmo de
abordagens tratados no livro de Lecomte e que não estão no de Bernestein.


Como, e principalmente, a posição filosófica do papa de sua defesa da dignidade humana, com
todas as suas implicações na sua ação política e ideológica. Ele cita a acolhida dos pobres e o
fato do papa representar para essas pessoas um consolo. É tópico em Bernestein porque esse
sucesso entre os pobres é uma espécie de legitimação do sucesso de João Paulo II o que vai
contra as suas teses de querer uní-lo aos opressores e ou àqueles que dizem coisas que não são
importantes porque são arcaicas ou não críveis conforme melhor juízo de que se é proprietário.
Mas para entrar na história oculta foi porque era um assunto tão recorrente nas viagens do papa
que não puderam deixar de ser apontadas, ainda que sumariamente. O que mostra como se
constrói também o “consenso” proposto neste livro.


Não se trata de exigir que esses autores devam dizer a mesma coisa já que, como dissemos, são
propostas diferentes – embora ambas pretendam um          caráter biográfico e portanto nos seja
possível exigir sobre a qualidade da construção da biografia em questão. E, neste sentido, a idéia
que perpassou todo o pensamento do filósofo, professor, pastor e líder mundial da defesa da


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dignidade humana é muito importante para não estar claramente expresso na obra de Bernestein.
Vejamos este trecho:


                             “ A presença de Wojtyla na fábrica foi conseqüencia do encarceramento
                             dos seus professores universitários. O tranqüilo curso acadêmico foi
                             interrompido e substituído por um duro tirocínio em meio a um povo
                             oprimido. O vínculo com o seminário maior do cardeal Sapieha já
                             representava, enquanto tal, um ato de resistência. Assim, questões como a
                             da liberdade, da dignidade e dos direitos do homem e da responsabilidade
                             política da fé não penetraram no pensamento (...) (de João Paulo II ) como
                             simples problema teórico.”2


Alguém estudando qualquer outra celebridade, Churchill, por exemplo, não lhe ocorreria
primeiramente conhecer seu pensamento, como Churchill mesmo entendia as coisas? Para
colocar com palavras de quem conhecia mais o papa vejamos este trecho:


                             ““ O caminho da Igreja é o homem.” O significado autêntico desta
                             afirmação, que pode ser encontrada na encíclica Redentor do Homem, (...)
                             pode ser realmente entendida se recordarmos que, para o papa, ( João
                             Paulo II), o “homem” em sentido pleno é Jesus Cristo. A sua paixão pelo
                             homem ( de João Paulo II) não tem nada a ver com um antropocentrismo
                             auto-suficiente (...). O antropocentrismo do papa ( João Paulo II ) é, por
                             conseguinte, em seu núcleo mais profundo teocentrismo.” 3

Quem é ateu desconsidera quaisquer idéias de natureza teológica: mas pode fazê-lo e dizer que
compreendeu realmente sobre o padre, ou religioso de quem falava?


Na nossa dissertação, de conclusão da pós-graduação, talvez consigamos ilustrar a importância
que esse tema da dignidade humana poderia ter para a compreensão de alguns aspectos da
história do século XX a julgar o percurso e a popularidade alcançada por João Paulo II. Lá
veremos, ( se der tudo certo) que é devido exatamente à defesa da pessoa humana em época de
forte materialismo, relativismo e laicismo que caracterizam a história desse século, o que explica
a popularidade alcançada por João Paulo II e que tanto comentários renderam, na imprensa,
sobre as razões de sua unanimidade, por ocasião do seu falecimento.




2
    Ratzinger, Joseph, “João Paulo II, Vinte anos na História”.
3
    Ratzinger, Joseph, “João Paulo II, Vinte anos na História”.
.
               .
Lecomte        .
              .
As contribuições de Lecomte são mais úteis para a construção da vida e da obra de João Paulo II
bem como do cenário do século XX a ele correlato porque não induzem a uma conclusão
determinada de forma ideologizada. Lecomte atêm-se mais aos fatos e menos a “denúncia de
tempo oculto” ou a relações a serem “reveladas” preferindo dizer claramente os problemas e as
falhas da Igreja de João Paulo II. Na verdade escreve sobre vários fracassos e dificuldades do
Papa João Paulo II sem rodeios.


O livro João Paulo II, Biografia de Bernard Lecomte parece feito por um admirador contido que
não quer se comprometer por essa admiração eximindo-se muitas vezes de concluir maiores
apreciações ao final de cada capítulo. Coloca mas deixa sua posição em aberto para concluirmos
nós mesmos entre as possibilidades apontadas. Na verdade informa, mas se fica com a sensação
de “e aí que mais que aconteceu”? Por exemplo, Lecomte mostra que o Papa apresentava uma
coerência de atuação contra o regime nazista e comunista desde a sua origem e formação na
Polônia que irá se refletir no seu pontificado não sendo em nenhum momento diferente em
Roma do que foi em Wadovice, diferente do que foi em atos do que foi em seu pensamento
filosófico. Mas não conclui ou induz que é um “herói” de qualquer espécie. Pelo contrário, as
tarefas muitas vezes ou não foram concluídas como o papa gostaria ou levaram muitos anos até
melhorarem, 10 anos no caso dos bispos franceses, por exemplo.


Lecomte umas duas vezes parece querer “celebrar” o que faz o Papa, o que pode ser visto como
passível de nos colocarmos também com “o pé atrás”. Afinal, o que é bom não precisa ser
celebrado, basta que se diga o que aconteceu.. Mesmo assim, se no livro de Lecomte há um risco
pontual de “celebração” pode-se evitar cair nessa armadilha por dois motivos: ela é explícita,
pontual e rápida. Em sua narrativa predominam a descrição do ocorrido com as implicações
possíveis mas ficando em aberto mais de uma conclusões afim. A fartura de dados e de
“infortúnios” ou “insucessos” dos esforços do Papa, também narrados no livro de Lecomte
contribuem para evitar o tom celebrativo da vida e obra de João Paulo II. Ainda assim é sempre
bom desconfiar.


No livro de Lecomte o leitor terá que construir toda a atuação do Papa considerando diversos
aspectos de sua vida o e das circunstâncias históricas em que João Paulo II esteve inserido e terá



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que formar sua opinião, o que é bem mais livre e, no nosso modo de entender, muito melhor para
formarmos livremente nossas opiniões.


A descrição do atentado sofrido pelo Papa na praça de São Pedro é também um claro exemplo de
como a construção em Bernestein é feita para narrar a luta contra o “império do mal” e, em
Lecomte, apesar de se oferecerem as mesmas informações sobre a conexão búlgara, não há uma
condução tão sensacionalista e artificiosa até porque a história já seria por si só surpreendente.


Ainda outro exemplo da diferença entre essas grandes obras – sim porque todas tem virtudes,
nem que seja a capacidade de cooptar partidários - é a abordagem mais clara dos problemas da
Igreja tratados objetivamente. Em Lecomte no capítulo “ De Galileu à Internet, na parte
“Cientistas no Vaticano”, é abordado todo o tratamento dado por João Paulo II à questão de
Galileu, Copérnico, da visão polonesa sobre este assunto, da rivalidade igreja x ciência dizendo
claramente o problema da Igreja precisar se desfazer de ‘uma imagem arcaica e obscurantista
que contribuia para desacreditá-la junto à novas gerações.” (P.622). Lembramos este ponto só
para mostrar que é possível falar de problemas reais de forma clara e objetiva sem conduções
que podem levar mais a “pré-conceitos” do que a esclarecimentos sobre os problemas ligados a
João Paulo II e seu tempo. Por isto esta biorgrafia nos parece irá ajudar mais a tratar os
documentos da época. Lembramos que foi este o móvel desta despretenciosa análise
comparativa.


E já chega. Quem quiser saber mais sobre o papa João Paulo II deve ler a biografia de Lecomte.
Sem dúvida. Ou quem sabe melhor seus documentos. A vida o papa tem realmente passagens
surpreendentes, mesmo sem conluios sensacionalisticamente adornados.




Para onde apontou a comparação
A diferença entre a abordagem de uma “cena” narrada em ambos os livros, qual seja a do
recebimento por parte de João Paulo II de sua comitiva polonesa logo após a eleição Papal,
apontaram a direção de nossa dissertação de fim de curso.


Na cena em questão, em Bernestein, tem-se a impressão de se tratar de uma cúria burocrática
enfrentada por um papa rebelde que prefere atender os seus amigos poloneses do que cumprir o
protocolo da cúria romana. ( olha aí o saborzinho de fofoquinha de tablóide sensacionalista...).
.
                   .
              .
No livro de Lecomte a mesma cena diz outra coisa: o papa, tendo vindo da Polônia há apenas
               .
alguns dias atrás, com o Primaz da Polônia, para o conclave, encontra-se com ele logo após a
eleição e, se “até ontem” ele, o Papa João Paulo II, devia reverência ao seu Primaz, da Polônia,
mesmo tendo ficado “mais importante” agora que se tornara papa, não só não permite a
deferência do Primaz em toda sua extensão, como o acolhe em vez de a quem a cúria romana
pretende.


Ou seja, como bom polonês continua reverenciando o seu Primaz. Nos parece que esta segunda
interpretação é mais plausível. Em bom português diríamos que o Papa “não ficou metido” após
a eleição. Será que isto é exaltação papal ou prova de que o cristianismo levado à sério, como é
                                                                                                           4
natural em quem vem do Baluarte da Cristandade (antemurale christianitatis)                                    leva a certos
entendimentos que em última instância são importantes para compreender aspectos do século
XX?


Essa incapacidade de ver a doutrina cristã em si mesma como elemento da ação política de João
Paulo II, preferindo-se trocá-la por “suspeitas” de toda sorte, que divide o mundo em esquerda e
direita e já pouco explica, levaram-nos a perceber que a questão da dignidade da pessoa
humana, que foi a principal ferramenta de João Paulo II para enfrentar os totalitarismos sejam de
mercado ou de estado, não seria, talvez, propriamente considerada.


Talvez o que vamos dizer agora soe como uma grande bobagem mas não poderíamos estabelecer
considerar ao menos em nossa dissertação de fim de curso, as seguintes questões?


Não teria sido melhor, ao invés de colocar o Papa João Paulo II como simplesmente aliado dos
Estados Unidos contra o Comunismo, vê-lo como uma das forças que naturalmente se oporiam
aos totalitarismos do século XX pela própria proposição da doutrina cristã posta em marcha por
João Paulo II com os seus apelos à dignidade da pessoa humana?


Não se pode deduzir, da disputa entre dois materialismos, o comunista e o materialismo
capitalista que esse não foi o debate que sobreviveu para o novo milênio, mas sim, nestes
tempos de globalização a disputa entre a primazia da pessoa humana ao materialismo?

4
 Até em documentos da Sé apostólica a Polônia é tida como o Baluarte da Cristandade, antemurale christianitatis. Fonte: Diálogo
com João Paulo II, André Frossard.



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A subordinação da pessoa ao materialismo neoliberal internacionalizado, ou submetida às
determinações do Estado planificado ou ainda do partido (caso do nazismo) não constituem o
que importa ser questionado? Foi isto que o papa João Paulo II propôs com suas teses sobre a
dignidade humana.


Não foi esse esquecimento da pessoa que formou esses totalitarismos e que se recrudescem na
globalização de hoje? Enquanto houve uma “disputa” entre dois sistemas materialistas em que
ambos de alguma maneira descartavam as posições da Igreja, quer porque ópio do povo, quer
porque arcaica em relação à ciência não ocorreu um recrudescimento da concepão materialista
que hoje perpassa toda a cultura moderna recrudescendo a “inumanidade” das relações restritas
ao que se pode “comprar” no mercado?


Vejamos melhor, a que nos referimos, usando palavras de João Paulo II:


                    "Una ayuda importante e incluso decisiva la ha dado la iglesia con su
                    compromiso en favor de la defensa y promoción de los derechos del hombre.
                    En ambientes intensamente ideologizados, donde posturas partidistas
                    ofuscaban la conciencia de la común dignidad humana, la Iglesia ha
                    afirmado con sencillez y energía que todo hombre -sean cuales sean sus
                    convicciones personales- lleva dentro de sí la imagen de Dios y, por tanto,
                    merece respeto. En esta afirmación se ha identificado con frecuencia la
                    gran mayoría del pueblo, lo cual ha llevado a buscar formas de lucha y
                    soluciones políticas más respetuosas con la dignidad de la persona
                    humana." JOÃO PAULO II , Enc. Centesimus annus.


O capitalismo neoliberal espera que o mercado nivele as diferenças de distribuição. O marxismo
faz uma redução da história ao seu substrato econômico onde o materialismo histórico fazendo a
superação da filosofia do pensamento por uma filosofia da práxis vê o homem apenas como uma
peça, uma engrenagem que faz funcionar a máquina que é a sociedade.


Por este último entendimento o Papa seria, na verdade,        um “romântico’ no sentido do
romantismo ilustrado e ateu de Feuerbach superado pela praxis marxista ou, agora, superado pela
eficiência científica da cultura capitalista que dispensa essas conclamações humanistas de João
Paulo II por serem arcaizantes, obscurantistas.


Enquanto isso no processo de globalização, agora em curso, os problemas da fome e da miséria
continuarão a ser vistos principalmente em termos econômicos sem se pleitear com firmeza,
.
              .
como fez o Papa João Paulo II na sua época, a subordinação da economia e dos descobrimentos
                .
científicos e tecnológicos às necessidades do homem. Descartando-se esse ideário cristão que
esteve na base .dos melhores anseios da civilização ocidental acreditamos que a exclusão será
maior e mais dura porque as melhorias materias alcançadas pela ciência e pelo capitalismo serão
somente para os que as podem pagar. Assim, há sempre o risco da dignidade humana continuar,
neste terceiro milênio, a ser ameaçada principalmente se quem a defende tão sistematicamente é
desqualificado no jogo de valores que regerão as relações internacionais no materialismo
globalizado.


Mas não há novidade em nada disto. Há dois mil anos, Cristo já dizia “O sábado é para o homem
e não o homem para o sábado.”




                                                                                     12

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Análise comparativa de biografias sobre João Paulo II

  • 1. Introdução Em nossa dissertação, de conclusão da Pós-Graduação em História do Século XX, iremos tecer algumas considerações sobre esse século, a partir da atuação e do pensamento de João Paulo II. Para conhecermos melhor a biografia desse Papa, como pano de fundo necessário para a análise de alguns de seus documentos, comparamos duas de suas mais conhecidas biografias: Sua Santidade João Paulo II e a História Oculta de Nosso Tempo de Carl Bernestein e Marco Politi e João Paulo II, Biografia de Bernard Lecomte. Pensávamos que ambas estivessem, de certo modo, em polos opostos: de um lado a “denúncia” e do outro a simpatia pelo Papa embora ambas contenham sempre alguma admiração pela figura de João Paulo II. Poderíamos assim, tirar “uma média” entre essas abordagens se é que se pode colocar tão grandiosos trabalhos em amarras tão limitadas. Sabe-se que é muito difícil fazer uma biografia pelo muito que exige quer de capacidade de análise, isenção, interesse, técnica etc, e por isso estamos longe de pretender criticar obras e autores tão cheios de virtudes, pelo menos se comparados com os modestíssimos dons desta que agora ousa comentá-los. Por isto reduzimos estes comentários aos nossos “circunscritos interesses” de contextualizar a leitura dos documentos de João Paulo II para a redação da dissertação de fim de curso em história do século XX. Como contribuiria cada uma delas para o nosso conhecimento da vida desse Papa? Qual biografia nos conta melhor as circunstâncias históricas que envolvem a atuação de João Paulo II? Na verdade, não tínhamos a intenção de formular estas perguntas quando iniciamos essas leituras. Mas o choque entre elas acabaram por gerar o formato comparativo desta resenha e, ainda, a direção a ser tomada na dissertação acima referida. Explicamos isto para que fique claro, ao leitor, que nós nada sabíamos do tema nem tinhamos preconcebida qualquer idéia sobre esses autores antes de iniciar a leitura das biografias sobre
  • 2. . João Paulo II, .Sua Santidade João Paulo II e a História Oculta de Nosso Tempo de Carl . Bernestein e Marco Politi e João Paulo II, Biografia de Bernard Lecomte. . Lemos primeiro a biografia de Bernestein e tal é a empolgação que promove que animamo-nos ao segundo “tijolão” de Lecomte achando que iríamos viver outra aventura tão empolgante como a leitura da biografia escrita por Bernestein. Não foi exatamente isso o que aconteceu; a leitura da biografia de Lecomte foi muito melhor e indicou sérias suspeitas sobre o trabalho de Bernestein. Bernestein A construção em formato de “denúncia” em Bernestein, necessariamente, subordina a escolha dos fatos a serem biografados e mesmo a relevância deles à essa construção, afinal não se causa um determinado sensacionalismo sem construí-lo propriamente. O que não “funciona” não entra e, o que poderia funcionar mas não aconteceu, cogita-se, especula-se, para ajudar a criar sensacionalismo. Um exemplo disto é o capítulo em que Bernestein pretende averiguar “mulheres” na vida de João Paulo II: mesmo concluindo que não havia nada a dizer ( diz isto explicitamente), suas especulações tem um efeito de “enfeitar” de sensacionalismo a trama. Aos poucos, assim, Bernestein, que se apresenta no livro como ateu mas com respeito pela figura do Papa, parece na verdade querer construir duas histórias: uma em que narra explicitamente fatos baseados em documentos e uma outra em que lança um certo “quê” de descrédito em relação não sei bem se à fé, ou à igreja ou a tudo relacionado com o credo e a ação de João Paulo II. Explicitamente Bernestein considera o papa até admirável e não lhe têm ressalvas explícitas mas isto no final das contas só o ajuda na construção de sua “tese” por que, por estes abonos ao Papa, suas críticas subliminares passam mais rapidamente para o subconsciente do leitor que as tomam por tão certas como os fatos apresentados devidamente documentados. No estilo e na construção da narrativa está o que nos é imposto subliminarmente por Bernestein e, cujas motivações para fazê-lo, não aparecem claramente. Já ouvi dizer que algumas pessoas em especial os ateus, tem necessidade de fabricar, para si mesmos e para outros, inimigos a fim de justificar sua existência e, de que isso é devido ao seu vazio interior. Não sei se isso é verdade mas Bernestein parece mesmo querer fabricar “inimigos” que possam ser caros a um certo tipo de leitor. Mas talvez isto seja mais para faturar 2
  • 3. com a venda do seu livro, ao satisfazer, de especulações maldosas, leitores ávidos de “verdades” empacotadas em clichês. A narrativa é assim construída para dar a entender que o papa, junto com os americanos, urdiram contra o comunismo numa ação com sabor de intriga palaciana tipo mocinhos versus bandidos. São muitos os recursos para isto: Usar expressões como “império do mal” em um determinado contexto é visivelmente sarcasmo e assim, apesar de estar escrevendo sobre um fato real, sobre um depoimento de Reagan vai-se construindo subliminarmente a idéia de conluio de malvados extremistas contra forças inocentes que não poderiam lutar contra o poderio dessa maquinação. A escolha assim das citações, dos documentos e da ordem de os apresentar contribui para a legitimação da sua “história oculta do nosso tempo” na medida em que essa construção se baseia em clichês simplificados que já possam estar na mente de certo tipo de leitor. É como começar um baile com a música do grupo que mais toca na rádio ou um concerto pelo trecho mais conhecido da “Cavalleria Rusticana” ou com as valsas de Vivaldi: promove-se assim uma identificação entre o público e a música que facilita a adesão às músicas menos conhecidas que se apresentarão em seguida. Da mesma maneira a identificação fácil de clichês por parte de certo tipo de leitor é ferramenta segura para avivar o interesse e assegurar melhores vendas. Também esta obra se assemelha a uma construção feita como nessas “polêmicas” de mídia em que só existem dois lados, ( porque é o máximo que se pode paginar em veículos de massa). O argumento de Bernestein se apresenta como idôneo por ter consultado “os dois lados” o que asseguraria ao leitor uma história “imparcial” como dizem os manuais de redação dos jornais. Mas na verdade e, como nessas matérias com as quais a mídia cria “consenso” sobre temas polêmicos, não asseguram mais que boas vendas ao agradar consumidores cuja satisfação de ver confirmadas suas certezas prévias são o bastante para sua adesão à história apresentada. No nosso fraco modo de entender, o tratamento jornalístico não é sinônimo de isenção. Não raro é até desculpa para impor-se acima dos questionamentos como se a sua consulta, a ambos os lados, assegurasse, à abordagem jornalística, estar acima do “bem e do mal”. Mas, assim como na mídia o trabalho de edição tem uma função importante na construção do convencimento da linha adotada pelo veículo, sem revelar claramente a quem serve essa linha editorial, na narrativa direcionada para o sensacionalismo ocorre também a condução ideológica pelas opções de construção da trama.
  • 4. . . Em marketing . sabemos que é bom mexer com quem já traz consigo muito público só por ser . quem é e, desconfio de que seja por isso que Bernestein preferiria fazer uma “história oculta” em torno do Papa e não em volta de nós, por exemplo: revelar o “oculto” certamente causa mais sensação do que falar sobre o que é corrente e, se não fosse sobre uma celebridade tão popular também não provocaria tanto interesse e por tudo isso acreditamos que sua obra ficou “viciada”. Não nos esqueçamos que Bernestein é o jornalista que ficou famoso com o caso Watergate que provocou a renúncia do presidente americano. É inevitável que o empenho de Bernestein, em criar a sua “história oculta do nosso tempo”, nos sugira que, depois do caso Watergatte, estivesse esperando repetir o mesmo feito e, quem sabe, desta vez, “derrubaria” um papa. Por isto a escolha de uma narrativa em que lança suspeitas que qualificassem a ação de João Paulo II no mínimo, ao gosto de pelos menos outros ateus. Curioso é que toda esta crítica a Bernestein só nos ocorreu depois de lermos a segunda biografia, a de Lecomte. Até então estavamos pensando que havia descoberto “a trama” do século XX: a da contribuição do Papa para a derrocada do comunismo de alguma maneira ligada às ações de espionagem da Cia, a agência norte-americana que levou fotografias, tiradas de satélite, dos exércitos russos na fronteira da Polônia, para o Papa ver e, pelas quais, os Eua previam uma eminente invasão da Polônia pela Rússia, conforme nos informa Bernestein. Sobre a ação de João Paulo II para a queda do comunismo, assunto priorizado por Bernestein, não parece próprio sugerir que os contatos entre o Papa e os americanos apresentados como um conchavo “de direita” foram a causa da reação polonesa aos comunistas que acabou levando ao fim do regime comunista na Polônia tendo isto contribuído para a ruína do sistema planificado em toda a Rússia. Ou de que os americanos é que fizeram o Papa “ajudar” Lech Walesa contra o comunismo”, ou que o Papa por ter restrições à teologia da libertação tinha alguma vinculação com a ação da Cia contra governos de esquerda. E isto porque a resistência polonesa ao comunismo, tanto da parte do Papa como do povo polonês começa no próprio ano da invasão russa (1939), ( Karol Wojtyla é eleito papa em 1978). E, na verdade, a história da Polônia com a situação de constante invasão pelas potências vizinhas ao longo de toda a sua história, bem como a unidade desse país feita em grande medida com base 4
  • 5. no cristianismo, tornam a questão do enfrentamento ao domínio soviético pelos poloneses uma questão bem mais ampla do que a visão de “interesses comuns” entre um determinado presidente americano e o papa, ou deste com a Cia. 1 A ênfase nessa aproximação parece motivada por razões ideológicas em Bernestein. Queremos dizer que a resistência polonesa, do qual o papa seria um personagem, já acontecia, é parte da história Polonesa e não dependeu, para que acontecesse, de conchavos e maquinações com os americanos “de direita” exagerando-se a interferência americana nesse episódio para criar o clima de “urdição palaciana”. Não é que o papa não tenha resistido aos comunistas. Mas Karol Wojtyla lutava contra a ocupação comunista desde antes de ser papa, é o que se vai aprender melhor em Lecomte de forma muito detalhada, com histórias de celebrar missa às escondidas, em bairros comunistas onde era proibido construir igrejas, com nomes, datas, etc. O papa não passa a fazer isto depois de uma “intervenção” americana. Se este papa foi grande em algum sentido que mereça uma biografia não o foi pelo seu relacionanamento com Estados Unidos. A conversa entre chefes de estado ocorreu sempre nas relações internacionais de todos os tempos, mas aqui temos a impressão de que se trata de uma quase perseguição às visões de esquerda. A iminente invasão da Polônia pelo exército russo, estacionado na fronteira desta com a Polônia com que o livro de Bernestein começa sua trama, sem dúvida interessavam ao Papa polonês, aos Estados Unidos e a quem mais acompanhasse o andamento das questões internacionais vividas durante a Guerra Fria. Daí a apresentar esses fatos, com sentido de “maquinação” do papa com os americanos “da história oculta do nosso tempo” parece subordinar-se mais a interesses ideológicos ou comerciais do autor, já que a luta de João Paulo II contra o comunismo não começou pela ação americana, mas é anterior, como se vê melhor em Lecomte. Assim, nos pareceu claro que é proposital reduzir tudo a uma “teoria de complô” com vistas a promover interesse sensacionalista que vende. É fato que o sabor de intriga palaciana “contra o império do mal” torna o texto de Bernestein muito mais interessante de ser lido do que o de Lecomte, pelo jeito de thriller policial com que envolve o leitor. Mas Lecomte dá mais fatos, mais informação e mais interpretações que o livro de Bernestein. Além de não impor ou conduzir numa única direção como faz Bernestein. 1 Ver anexo “Mini História da Polônia.”
  • 6. . . Bernestein utiliza uma perspectiva aparentemente, imparcial, baseada em estilo jornalístico, mas . como tudo acaba subordinando à sua “tese”, seu trabalho parece priorizar o sensacionalismo. Fica claro que, .não obstante ele não encontre nada que desabone o Papa, tipo uma corrupção ou escândalo que faria sucesso num tablóide, empenha-se capítulo a capítulo, em sugerir um clima de “urdição palaciana” pela qual lança suas restrições, de forma subliminar e cria no leitor uma suspeita ou uma desqualificação intencional e não explícita à atuação de João Paulo II. O principal problema de uma visão previamente conduzida, para não dizer ideologicamente conduzida, é que se pode perder a capacidade de ver, de enxergar coisas novas e a partir daí construir uma idéia totalmente original, quem sabe. Por exemplo, o discreto parágrafo sobre os Bispos franceses no livro de Lecomte é um exemplo extremamente esclarecedor da posição da França no cenário da época, para dar um exemplo, de como outros assuntos não tratados no livro de Bernestein podem contribuir para uma biografia mais rica desse período histórico. Outro aspecto que também pode ilustrar a diferença entre as duas biografias – elas são muitas e talvez valesse a pena compará-las mais detidamente, pode ser a falta de tantos temas e mesmo de abordagens tratados no livro de Lecomte e que não estão no de Bernestein. Como, e principalmente, a posição filosófica do papa de sua defesa da dignidade humana, com todas as suas implicações na sua ação política e ideológica. Ele cita a acolhida dos pobres e o fato do papa representar para essas pessoas um consolo. É tópico em Bernestein porque esse sucesso entre os pobres é uma espécie de legitimação do sucesso de João Paulo II o que vai contra as suas teses de querer uní-lo aos opressores e ou àqueles que dizem coisas que não são importantes porque são arcaicas ou não críveis conforme melhor juízo de que se é proprietário. Mas para entrar na história oculta foi porque era um assunto tão recorrente nas viagens do papa que não puderam deixar de ser apontadas, ainda que sumariamente. O que mostra como se constrói também o “consenso” proposto neste livro. Não se trata de exigir que esses autores devam dizer a mesma coisa já que, como dissemos, são propostas diferentes – embora ambas pretendam um caráter biográfico e portanto nos seja possível exigir sobre a qualidade da construção da biografia em questão. E, neste sentido, a idéia que perpassou todo o pensamento do filósofo, professor, pastor e líder mundial da defesa da 6
  • 7. dignidade humana é muito importante para não estar claramente expresso na obra de Bernestein. Vejamos este trecho: “ A presença de Wojtyla na fábrica foi conseqüencia do encarceramento dos seus professores universitários. O tranqüilo curso acadêmico foi interrompido e substituído por um duro tirocínio em meio a um povo oprimido. O vínculo com o seminário maior do cardeal Sapieha já representava, enquanto tal, um ato de resistência. Assim, questões como a da liberdade, da dignidade e dos direitos do homem e da responsabilidade política da fé não penetraram no pensamento (...) (de João Paulo II ) como simples problema teórico.”2 Alguém estudando qualquer outra celebridade, Churchill, por exemplo, não lhe ocorreria primeiramente conhecer seu pensamento, como Churchill mesmo entendia as coisas? Para colocar com palavras de quem conhecia mais o papa vejamos este trecho: ““ O caminho da Igreja é o homem.” O significado autêntico desta afirmação, que pode ser encontrada na encíclica Redentor do Homem, (...) pode ser realmente entendida se recordarmos que, para o papa, ( João Paulo II), o “homem” em sentido pleno é Jesus Cristo. A sua paixão pelo homem ( de João Paulo II) não tem nada a ver com um antropocentrismo auto-suficiente (...). O antropocentrismo do papa ( João Paulo II ) é, por conseguinte, em seu núcleo mais profundo teocentrismo.” 3 Quem é ateu desconsidera quaisquer idéias de natureza teológica: mas pode fazê-lo e dizer que compreendeu realmente sobre o padre, ou religioso de quem falava? Na nossa dissertação, de conclusão da pós-graduação, talvez consigamos ilustrar a importância que esse tema da dignidade humana poderia ter para a compreensão de alguns aspectos da história do século XX a julgar o percurso e a popularidade alcançada por João Paulo II. Lá veremos, ( se der tudo certo) que é devido exatamente à defesa da pessoa humana em época de forte materialismo, relativismo e laicismo que caracterizam a história desse século, o que explica a popularidade alcançada por João Paulo II e que tanto comentários renderam, na imprensa, sobre as razões de sua unanimidade, por ocasião do seu falecimento. 2 Ratzinger, Joseph, “João Paulo II, Vinte anos na História”. 3 Ratzinger, Joseph, “João Paulo II, Vinte anos na História”.
  • 8. . . Lecomte . . As contribuições de Lecomte são mais úteis para a construção da vida e da obra de João Paulo II bem como do cenário do século XX a ele correlato porque não induzem a uma conclusão determinada de forma ideologizada. Lecomte atêm-se mais aos fatos e menos a “denúncia de tempo oculto” ou a relações a serem “reveladas” preferindo dizer claramente os problemas e as falhas da Igreja de João Paulo II. Na verdade escreve sobre vários fracassos e dificuldades do Papa João Paulo II sem rodeios. O livro João Paulo II, Biografia de Bernard Lecomte parece feito por um admirador contido que não quer se comprometer por essa admiração eximindo-se muitas vezes de concluir maiores apreciações ao final de cada capítulo. Coloca mas deixa sua posição em aberto para concluirmos nós mesmos entre as possibilidades apontadas. Na verdade informa, mas se fica com a sensação de “e aí que mais que aconteceu”? Por exemplo, Lecomte mostra que o Papa apresentava uma coerência de atuação contra o regime nazista e comunista desde a sua origem e formação na Polônia que irá se refletir no seu pontificado não sendo em nenhum momento diferente em Roma do que foi em Wadovice, diferente do que foi em atos do que foi em seu pensamento filosófico. Mas não conclui ou induz que é um “herói” de qualquer espécie. Pelo contrário, as tarefas muitas vezes ou não foram concluídas como o papa gostaria ou levaram muitos anos até melhorarem, 10 anos no caso dos bispos franceses, por exemplo. Lecomte umas duas vezes parece querer “celebrar” o que faz o Papa, o que pode ser visto como passível de nos colocarmos também com “o pé atrás”. Afinal, o que é bom não precisa ser celebrado, basta que se diga o que aconteceu.. Mesmo assim, se no livro de Lecomte há um risco pontual de “celebração” pode-se evitar cair nessa armadilha por dois motivos: ela é explícita, pontual e rápida. Em sua narrativa predominam a descrição do ocorrido com as implicações possíveis mas ficando em aberto mais de uma conclusões afim. A fartura de dados e de “infortúnios” ou “insucessos” dos esforços do Papa, também narrados no livro de Lecomte contribuem para evitar o tom celebrativo da vida e obra de João Paulo II. Ainda assim é sempre bom desconfiar. No livro de Lecomte o leitor terá que construir toda a atuação do Papa considerando diversos aspectos de sua vida o e das circunstâncias históricas em que João Paulo II esteve inserido e terá 8
  • 9. que formar sua opinião, o que é bem mais livre e, no nosso modo de entender, muito melhor para formarmos livremente nossas opiniões. A descrição do atentado sofrido pelo Papa na praça de São Pedro é também um claro exemplo de como a construção em Bernestein é feita para narrar a luta contra o “império do mal” e, em Lecomte, apesar de se oferecerem as mesmas informações sobre a conexão búlgara, não há uma condução tão sensacionalista e artificiosa até porque a história já seria por si só surpreendente. Ainda outro exemplo da diferença entre essas grandes obras – sim porque todas tem virtudes, nem que seja a capacidade de cooptar partidários - é a abordagem mais clara dos problemas da Igreja tratados objetivamente. Em Lecomte no capítulo “ De Galileu à Internet, na parte “Cientistas no Vaticano”, é abordado todo o tratamento dado por João Paulo II à questão de Galileu, Copérnico, da visão polonesa sobre este assunto, da rivalidade igreja x ciência dizendo claramente o problema da Igreja precisar se desfazer de ‘uma imagem arcaica e obscurantista que contribuia para desacreditá-la junto à novas gerações.” (P.622). Lembramos este ponto só para mostrar que é possível falar de problemas reais de forma clara e objetiva sem conduções que podem levar mais a “pré-conceitos” do que a esclarecimentos sobre os problemas ligados a João Paulo II e seu tempo. Por isto esta biorgrafia nos parece irá ajudar mais a tratar os documentos da época. Lembramos que foi este o móvel desta despretenciosa análise comparativa. E já chega. Quem quiser saber mais sobre o papa João Paulo II deve ler a biografia de Lecomte. Sem dúvida. Ou quem sabe melhor seus documentos. A vida o papa tem realmente passagens surpreendentes, mesmo sem conluios sensacionalisticamente adornados. Para onde apontou a comparação A diferença entre a abordagem de uma “cena” narrada em ambos os livros, qual seja a do recebimento por parte de João Paulo II de sua comitiva polonesa logo após a eleição Papal, apontaram a direção de nossa dissertação de fim de curso. Na cena em questão, em Bernestein, tem-se a impressão de se tratar de uma cúria burocrática enfrentada por um papa rebelde que prefere atender os seus amigos poloneses do que cumprir o protocolo da cúria romana. ( olha aí o saborzinho de fofoquinha de tablóide sensacionalista...).
  • 10. . . . No livro de Lecomte a mesma cena diz outra coisa: o papa, tendo vindo da Polônia há apenas . alguns dias atrás, com o Primaz da Polônia, para o conclave, encontra-se com ele logo após a eleição e, se “até ontem” ele, o Papa João Paulo II, devia reverência ao seu Primaz, da Polônia, mesmo tendo ficado “mais importante” agora que se tornara papa, não só não permite a deferência do Primaz em toda sua extensão, como o acolhe em vez de a quem a cúria romana pretende. Ou seja, como bom polonês continua reverenciando o seu Primaz. Nos parece que esta segunda interpretação é mais plausível. Em bom português diríamos que o Papa “não ficou metido” após a eleição. Será que isto é exaltação papal ou prova de que o cristianismo levado à sério, como é 4 natural em quem vem do Baluarte da Cristandade (antemurale christianitatis) leva a certos entendimentos que em última instância são importantes para compreender aspectos do século XX? Essa incapacidade de ver a doutrina cristã em si mesma como elemento da ação política de João Paulo II, preferindo-se trocá-la por “suspeitas” de toda sorte, que divide o mundo em esquerda e direita e já pouco explica, levaram-nos a perceber que a questão da dignidade da pessoa humana, que foi a principal ferramenta de João Paulo II para enfrentar os totalitarismos sejam de mercado ou de estado, não seria, talvez, propriamente considerada. Talvez o que vamos dizer agora soe como uma grande bobagem mas não poderíamos estabelecer considerar ao menos em nossa dissertação de fim de curso, as seguintes questões? Não teria sido melhor, ao invés de colocar o Papa João Paulo II como simplesmente aliado dos Estados Unidos contra o Comunismo, vê-lo como uma das forças que naturalmente se oporiam aos totalitarismos do século XX pela própria proposição da doutrina cristã posta em marcha por João Paulo II com os seus apelos à dignidade da pessoa humana? Não se pode deduzir, da disputa entre dois materialismos, o comunista e o materialismo capitalista que esse não foi o debate que sobreviveu para o novo milênio, mas sim, nestes tempos de globalização a disputa entre a primazia da pessoa humana ao materialismo? 4 Até em documentos da Sé apostólica a Polônia é tida como o Baluarte da Cristandade, antemurale christianitatis. Fonte: Diálogo com João Paulo II, André Frossard. 10
  • 11. A subordinação da pessoa ao materialismo neoliberal internacionalizado, ou submetida às determinações do Estado planificado ou ainda do partido (caso do nazismo) não constituem o que importa ser questionado? Foi isto que o papa João Paulo II propôs com suas teses sobre a dignidade humana. Não foi esse esquecimento da pessoa que formou esses totalitarismos e que se recrudescem na globalização de hoje? Enquanto houve uma “disputa” entre dois sistemas materialistas em que ambos de alguma maneira descartavam as posições da Igreja, quer porque ópio do povo, quer porque arcaica em relação à ciência não ocorreu um recrudescimento da concepão materialista que hoje perpassa toda a cultura moderna recrudescendo a “inumanidade” das relações restritas ao que se pode “comprar” no mercado? Vejamos melhor, a que nos referimos, usando palavras de João Paulo II: "Una ayuda importante e incluso decisiva la ha dado la iglesia con su compromiso en favor de la defensa y promoción de los derechos del hombre. En ambientes intensamente ideologizados, donde posturas partidistas ofuscaban la conciencia de la común dignidad humana, la Iglesia ha afirmado con sencillez y energía que todo hombre -sean cuales sean sus convicciones personales- lleva dentro de sí la imagen de Dios y, por tanto, merece respeto. En esta afirmación se ha identificado con frecuencia la gran mayoría del pueblo, lo cual ha llevado a buscar formas de lucha y soluciones políticas más respetuosas con la dignidad de la persona humana." JOÃO PAULO II , Enc. Centesimus annus. O capitalismo neoliberal espera que o mercado nivele as diferenças de distribuição. O marxismo faz uma redução da história ao seu substrato econômico onde o materialismo histórico fazendo a superação da filosofia do pensamento por uma filosofia da práxis vê o homem apenas como uma peça, uma engrenagem que faz funcionar a máquina que é a sociedade. Por este último entendimento o Papa seria, na verdade, um “romântico’ no sentido do romantismo ilustrado e ateu de Feuerbach superado pela praxis marxista ou, agora, superado pela eficiência científica da cultura capitalista que dispensa essas conclamações humanistas de João Paulo II por serem arcaizantes, obscurantistas. Enquanto isso no processo de globalização, agora em curso, os problemas da fome e da miséria continuarão a ser vistos principalmente em termos econômicos sem se pleitear com firmeza,
  • 12. . . como fez o Papa João Paulo II na sua época, a subordinação da economia e dos descobrimentos . científicos e tecnológicos às necessidades do homem. Descartando-se esse ideário cristão que esteve na base .dos melhores anseios da civilização ocidental acreditamos que a exclusão será maior e mais dura porque as melhorias materias alcançadas pela ciência e pelo capitalismo serão somente para os que as podem pagar. Assim, há sempre o risco da dignidade humana continuar, neste terceiro milênio, a ser ameaçada principalmente se quem a defende tão sistematicamente é desqualificado no jogo de valores que regerão as relações internacionais no materialismo globalizado. Mas não há novidade em nada disto. Há dois mil anos, Cristo já dizia “O sábado é para o homem e não o homem para o sábado.” 12