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MEDIA ART INTER.ACES E
,
INTERATIVIDADE*
por Lucas Bambozzi
O que se entende hoje por arte digital, ram a vida do indivíduo no final do século Calder, o Anemic cinema de Duchamp) são
obras eletrônicas, web-art, net-art, 19. Movimentos como o Art noveau e o Arts experimentos que estabelecem relações com
communication art, ou qualquer outra arte and crafts movement na Inglaterra; escolas experiências sensoriais desenvolvidas mais
tecnológica, é resultado, sem dúvida, de um como a Bauhaus de Walter Gropius e o The recentemente. Esse passeio pelas vertentes
longo processo. Este final de século talvez Chicago Institute of Technology, fundado cinéticas na arte endossa, assim, uma relação
seja especialmente sugestivo para entender- por László Moholy-Nagy em 1937, tiveram direta do fazer artístico com as ferramentas
mos melhor a forma como a arte é/vem sen- importância decisiva no nascimento de uma que o viabilizam. É legítimo, portanto, falar
do afetada pela era industrial, eletrônica e arte mais assumidamente tecnológica2. De em arte digital, arte nas redes telemáticas –
agora digital, e não exatamente como a arte maneira ainda mais marcante, o .uturismo, ou de uma arte que começa a travar questões
se torna tecnológica, eletrônica ou digital1. o Dadaísmo e o Construtivismo não só in- com a biotecnologia, com o transgênico, com
É comum dizer que a tecnologia não fluenciaram como determinaram rumos para a física quântica – este é, inclusive, o mo-
é em si nenhum suporte artístico, mas isso que constitui nos dias de hoje uma arte mento quando o corpo emerge como lugar
uma solução técnica e/ou
viabilizadora. O que impor-
ta é o uso que se faz dela. É
essencial entender a arte re-
sultante da tecnologia como
um princípio de apropria-
ção de mídias, uma subversão dos meios eletrônica ou digital. Em todas essas mani- de transformações, de trangressão de limi-
básicos de comunicação para propósitos festações, houve alguma intenção de retratar tes. Procuramos agora maximizar a interação
artísticos. Esse seria o traço mais marcante e representar a realidade de um novo ambi- com o ambiente, tanto o visível como o in-
das obras sob o conceito da media art. ente social em formação – a euforia em tor- visível, através de algo que passa a ser chama-
Essa forma de “fazer arte” a partir de no da máquina, da mecanicidade, do do de “cibercepção”3.
novas tecnologias tem origem em apoios cinético. Todos esses sistemas – valendo-se ou
não tão recentes e envolvem a intersecção O movimento concretista brasileiro e não da comunicação – estão impregnados
de conceitos bastante conhecidos. a própria poesia concreta são frutos disso. do desejo, mesmo que não manifesto, de uma
O Nu descendo a escada, de Duchamp, foi apropriação/subversão dos meios que os ge-
Antecedentes
definido não como pintura mas como uma raram. Voltando à instabilidade das mídias
As relações entre as inovações técnicas organização de elementos cinéticos. O de armazenamento de imagem, vale lembrar
e os procedimentos artísticos existem desde construtivismo russo resultou, a partir de que o vídeo, por exemplo, surgiu de uma
a Antigüidade. Mas é mais conveniente falar Malevitch, num movimento que repercutiu necessidade técnica de se acabar com os im-
sobre uma influência direta da tecnologia de maneira devastadora e vigorosa com o previstos da TV ao vivo. O videotape não é,
na arte a partir da revolução industrial, mais cinema de Eisenstein e Dziga Vertov. Outras em princípio, um apoio artístico, mas uma
particularmente quando seus efeitos invadi- obras cinéticas desse período (os mobiles de solução técnica.
1
BAMBOZZI, Lucas. In: Catálogo arte suporte computador. Casa das Rosas, 1997.
2
POPPER, .rank. Art of the Electronic Age. Thames and Hudson-Abrams, 1993.
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Nos anos 60, o grupo .luxus afir- Panorâmica realista Mesmo sistemas não-tecnológicos (ou que
mou a imaterialidade da imagem e da ação pelo menos não utilizam “alta tecnologia”)
como arte, passível de se constituir, assim, No entanto, salvo algumas experiênci- ampliam esse conceito de interatividade para
de sistemas não-físicos. O movimento, de as localizadas, os meios eletrônicos parecem o de “inter-relação”, que às vezes dispensa
rico legado, contaminou a arte definitiva- ainda bater à porta de entrada no círculo- sofisticações e envolve apenas conexões e as-
mente. Lembremo-nos das performances de circuito da chamada grande arte, que, grosso sociações de ordem mental – assim, obras
Joseph Beuys com Paik, dos filmes radi- modo, apóia-se em valores e conceitos que que proporcionam grandes imersões estão,
cais de Jonas Mekas, da música-conceito datam de antes da Revolução Industrial e no fundo, interagindo com as formas de
de John Cage, das obras plásticas de Wolf foram desenvolvidos numa sociedade basea- percepção do espectador.
Vostel, formando um conjunto inequívo- da na imagem estática. Os circuitos ainda Instalações interativas por exemplo, são
co de apropriações. são excessivamente estanques e pouco dis- obras que causam estranhamento, são “traba-
Enfim, as mídias que se proclamam postos a brilhar juntos sob o mesmo sol da lhos-limite” que se estendem por terrenos di-
arte seriam conseqüência imediata do es- arte. Por aqui, por exemplo, o termo media versos, envolvendo comunicação, ciência, en-
pírito desses tempos, quando os sinais ele- art sequer foi traduzido. O resultado é que o tretenimento, educação. Não são objetos físi-
trônicos do vídeo, determinadas perfor- uso desses meios é compreendido pelos cos, no sentido em que o são a pintura ou a
mances envolvendo aparatos tecnológicos, curadores, jornalistas, galeristas e público em escultura. São impuros por natureza,
a TV e outros eletrodomésticos foram elei- geral como “arte-menor”. E convenhamos: miscigenados, contaminam-se entre si. .ica
tos como suportes para arte ou transfor- essas traquitanas não são de fato amplamen- mais difícil de se atribuir valores qualitativos.
mados em objeto escultural e relacional. te aceitas como arte e a timidez dos circui- São meios, suportes e técnica ao mesmo tem-
No âmbito das intenções artísticas, torna- tos existentes comprova isso. po. Desenvolvida “promiscuamente” entre
se coerente falar mesmo de subversão, tal Por outro lado nenhum setor produ- diferentes áreas, a arte dos novos meios digi-
como já aconteceu com várias sistemas tivo foi tão desenvolvido nos últimos 20 anos tais se afirma como obra de transgressão. Ela
básicos e banais de comunicação, como a quanto aquele associado à tecnologia das não têm apenas um modo de existir (fisica-
fotocopiadora, o mimeógrafo, o computa- imagens. .ala-se em uma revolução em tor- mente falando), mas vários4 – tais ingredien-
dor, o fax, o carimbo, o vídeo-texto, a slow no dos meios de comunicação sem prece- tes podem mudar os parâmetros que regulam
scan TV, o telefone, e agora a antena, o dentes desde a Revolução Industrial. A a absorção e os circuitos de existência de um
satélite, a internet, a intranet, o modem, o tecnologia das informações causou mudan- trabalho de arte.
cabo e mais uma vez o computador, ainda ças irreversíveis na sociedade, alterando no- Estamos habituados à interatividade
a “bola da vez” para experimentos com fi- ções de tempo, distância, poder, trabalho e comum aos computadores, videogames,
nalidades artísticas. No Brasil, existiram prática social. O que dizer da arte eletrôni- internet, sistemas de realidade virtual e CD-
momentos brilhantes de apropriação des- ca, com o auxílio do computador e suas ROMs. Curiosamente, o estágio atual de de-
ses meios e suportes (ambos se misturam), interfaces? Para que possibilidades de expres- senvolvimento desses sistemas remete a um
por artistas como Waldemar Cordeiro, são essas interfaces nos convidam? panorama muito semelhante ao existente no
Cildo Meirelles, Moisés Baumstein, final do século passado, quando o aperfeiçoa-
Interatividades
Hudinilson Jr., Rafael .rança, Mario mento dos sistemas fotográficos que resulta-
Ramiro, Gabriel Borba, Artur Matruck, Não é de hoje que obras interativas ou ram na invenção do cinema, eram usados para
Diana Domingues, Eduardo Kac, Regina participativas vêm forçando uma fins estritamente de diversão, em feiras e par-
Silveira, Regina Vater, Julio Plaza, J.R. reconsideração na esfera da arte – Lygia Clark ques de diversão. É seu uso expressivo que pode
Aguilar, Rubens Gerchman, Ana Bella e Helio Oiticica são apenas alguns dos que conferir aos inúmeros gadgets que povoam
Geiger e outros. anteciparam conceitos parecidos entre nós. nossa vida uma existência mais “nobre”.
3
ASCOTT, Roy. “Cultivando o hipercórtex”. In: A arte no século XXI. Marília: Unesp, 1997.
4
DUGUET, Anne Marie. “Does interactivity lead to new definitions of art?”. Media art perspectives, ZKM Cantz Verlag, 1995.
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Em alguns casos há que se ter o cui- ção e conhecimento, conceitos em fluxo e expressividade. Pois na medida em que os
dado de distinguir melhor a interatividade movimento permanente. artistas se recusam a enxergar as novas
da imersão ou participação. Obras que pos- potencialidades artísticas no âmbito da
Responsabilidades entre a representa-
suem duas ou mais possibilidades de con- tecnologia e se utilizam das mídias apatica-
ção e a apresentação
clusão (final triste ou alegre, por exemplo), mente, seguindo as regras ditadas nos manu-
estão mais próximas de um conceito de Anne Marie Duguet, pensadora fran- ais de softwares sem maiores subversões, aca-
participação (às vezes coletiva) do que de cesa, analisa esses trabalhos tecnológicos bam por fazer tanto ou menos pela
interatividade. Vale questionar se a passivi- aproximando-os da estrutura de uma parti- expressividade do meio quanto os progra-
dade proporcionada pela sala escura do ci- tura musical, ou de um desenho madores de sistemas ou uma multidão de
nema não seja de fato o grande trunfo do arquitetônico. Esses trabalhos podem exis- adolescentes game-maníacos. Por outro lado,
cinema de mercado – e de massas. tir dependendo de quem os executa, por é interessante que a própria definição de “ar-
De qualquer forma, a miscigenação exemplo. E há infinitas formas “corretas” tista” se dilua e os limites entre high e low
entre sistemas pode produzir oscilações en- de se executar essa obra. Enquanto as carac- art se misturem mais uma vez, agora em es-
tre signos de maneira aparentemente inesgo- terísticas inerentes (o conceito, o motivo) cala planetária.
tável. Nas redes, o público e o privado se não mudam, pode-se dizer que as várias Para fazer frente a tal responsabilida-
misturam em níveis profundos. A vigilância execuções são únicas, não reproduzíveis. Há de – não apenas de artistas ou teóricos –,
coletiva se torna mais sutil, eficiente e mor- uma temporalidade específica nesses traba- devemos aprimorar também nosso senso crí-
daz. Surgem novos paradoxos. As perspecti- lhos, a temporalidade da duração da expe- tico diante das inovações que nos são despe-
vas imagináveis para instalações interativas riência. Pertencem a uma arte da apresenta- jadas em nome de um “mundo melhor”, mas
introduzem experiências multissensoriais ção, não exatamente da representação (mes- que inevitavelmente carregam interesses co-
inéditas para o campo das artes. São situa- mo quando incorporam a representação nas merciais e mercadológicos. E são justamente
ções em que todos os sentidos podem ser imagens e nos conceitos). os mecanismos interativos que desarmam
mobilizados. O predomínio do olho na or- Enquanto não se reestabelece um tem- com mais facilidade nossa atitude crítica,
ganização do mundo visível, para dar ape- po em que artistas não estejam subjugados pois utilizam recursos lúdicos e interfaces
nas um exemplo, pode vir a ser radicalmen- a curadores, estes que se virem para detec- culturais com as quais facilmente nos iden-
te questionado. Outras formas de contato tar onde há ou não qualidade. Sempre ha- tificamos. Tais reflexões reforçam a convic-
poderão ser experimentadas. verá resistências quanto a formatos onde a ção de que é necessário sim produzir pesqui-
A arte interativa pode ir além da trans- aferição de qualidade não acontece de modo sa e obras que possam despertar o interesse
formação do espectador em participante ati- preciso. Como se distingue o mal do bem por um aprendizado visual, que possam cla-
vo (tão ativo quanto maior for o grau de quando as opções não são opostas ou rear os mecanismos de percepção e anular a
imersão proporcionado). Nessa nova situa- conflitantes, mas complementares? estagnação cognitiva.
ção, a interface não deve ser apenas uma Num momento em que há uma di- Eliminando fronteiras, relativizando
idéia suplementar – ela é o verdadeiro nú- versidade de ofertas sem precedentes de pro- regras, rompendo sacralizações, dando vazão
cleo da obra, a chave para toda a disposi- dutos culturais, visuais, interativos e lúdicos, ao instantâneo e valorizando identidades,
ção formal confrontada com seu conteú- configura-se um momento em que com certeza estaremos trilhando caminhos
do5. É certo que esses sistemas vêm causan- direcionar a atenção torna-se uma grande não tão obscuros ou mistificadores. Nada
do uma redefinição radical na esfera da arte. responsabilidade. Esta talvez seja a grande disso no entanto pode evitar que estejamos
Mais do que um provedor de conteúdos, o função do artista nos dias de hoje. Apontar de fato no limiar de um maravilhoso, profí-
artista se vê atualmente diante da responsa- situações nas quais os conflitos ainda pos- cuo e irreversível caos.
bilidade de articular sistemas de informa- sam ser revertidos em nome de alguma
* Versão editada de texto escrito em 1998 e publicado originalmente na revista Gerais-U.MG, em dezembro de 2000.
5
MANOVICH, Lev. A theory of cultural interfaces. Nettime, 1998.
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