Este capítulo explora o processo revolucionário ao longo dos últimos séculos, desde as profundidades da Revolução até o advento do gramscismo no Brasil. Discute-se como o humanismo e a renascença minaram os fundamentos da sociedade medieval, além das três grandes revoluções - Protestante, Francesa e Comunista - e como elas contribuíram para a busca por uma igualdade cada vez mais niveladora. Por fim, analisa-se como as esquerdas brasileiras se apropriaram das ideias de Gramsci.
Revolução Cultural No Direito: Gramsci e o Direito Alternativo - Mauro Alves Correa
1. MAURO ALVES CORRÊA
REVOLUÇÃO CULTURAL NO DIREITO:
GRAMSCI E O DIREITO ALTERNATIVO
Monografia apresentada à Banca
examinadora da Universidade Católica de
Brasília como exigência parcial para obtenção
do grau de bacharelado em Direito.
Orientador: Prof. M. Sc. Marcos Bemquerer.
BRASÍLIA
2004
2. MAURO ALVES CORRÊA
REVOLUÇÃO CULTURAL NO DIREITO:
GRAMSCI E O DIREITO ALTERNATIVO
Monografia apresentada à Banca
examinadora da Universidade Católica de
Brasília como exigência parcial para
obtenção do grau de bacharelado em Direito
sob a orientação do Professor M. Sc. Marcos
Bemquerer.
Aprovada, com louvor, pelos membros da banca examinadora em 19 de novembro de
2004, com menção 10,0 (dez).
Presidente
Prof. M. Sc. Marcos Bemquerer
Universidade Católica de Brasília
Integrante Integrante
Prof.ª Dr.ª Arinda Fernandes Prof. Dr. José Eduardo Sabo
Universidade Católica de Brasília Universidade Católica de Brasília
3. Dedico a presente obra à Virgem do Bom Sucesso,
de Quito, Equador....
4. Agradeço ao Procurador-Chefe do Estado de
Goiás em Brasília, Dr. Ronald Bicca, pelo apoio
nesta reta final;
ao Professor Dr. Luiz Fernando Witacker
Kitajima e Ricardo Dip pela revisão do texto;
e, pela orientação dispensada, ao Professor M.Sc.
Marcos Bemquerer e Mário Jorge Panno.
5. O erro capital na questão presente é crer que as
duas classes são inimigas natas uma da outra.
Como se a natureza tivesse armado ricos e pobres
para se combaterem mutuamente num duelo
obstinado (Leão XIII ).
6. RESUMO
CORRÊA, Mauro Alves. Revolução cultural no direito: Gramsci e o direito
alternativo. 2004. 91 f. Trabalho de conclusão de curso (graduação). Faculdade de
Direito, Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2004.
Ao longo de dos últimos séculos, a sociedade ocidental foi corroída em seus
princípios, por uma congérie de doutrinas. Um processo deletério do qual, hoje, se nos
antolham conseqüências iniludíveis, tais como a dissolução moral e social, a luta de
classes, e a instrumentalização das instituições tradicionais por interesses políticos e
ideológicos. Antonio Gramsci concebeu novos métodos de ação revolucionária.
Propugnava uma ofensiva psicológica de larga escala, destinada a reformar as
mentalidades e eliminar o patrimônio cultural existente, para substituí-lo no imaginário
popular, por um senso comum socialista. Assim, acreditava estar preparando
remotamente o terreno para a tomada do poder. Essa estratégia fora acolhida pelas
esquerdas esperançosas de imprimirem um novo impulso ao avanço de suas aspirações
de domínio. O direito alternativo insere-se nessa girândola, incumbido de aplicar à
seara do direito as estratégias gramscianas e dessa forma converter a esfera jurídica em
um possante instrumento de revolução cultural, mais um meio de colaboração para
tomada do poder.
Palavras-chave: direito, direito alternativo, uso alternativo do direito, sociedade civil,
hegemonia, senso comum, tomada do poder, revolução, revolução cultural, processo
revolucionário, Gramsci.
7. ABSTRACT
CORRÊA, Mauro Alves. Revolução cultural no direito: Gramsci e o direito
alternativo. 2004. 91 f. Trabalho de conclusão de curso (graduação). Faculdade de
Direito, Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2004.
Through the last centuries, the western society was corroded on its principles by a
series of doctrines. It is a destructive process that shows unmistakable consequences,
such as moral and social dissolution, the struggle among social classes and the
explotation of traditional institutions by political and ideological interests. Antonio
Gramsci conceived new methods of revoluctionary action. He proposed a large scale
psychological offensive, in order to reform mentalities and eliminate the existant
cultural heritage, and replace them in the popular thinking by a socialist common
sense. Thus he believed that he was preparing remotely the terrain for a political
power overtaking. This strategy was hosted by a left hopeful in imprint new impulse
on their advance for the power domination. The alternative law inserts itself in this
spinning wheel, with the incumbence of applying in the law field the Gramscian
strategies and convert the law spheres in a powerful tool for cultural revolution and
another way to seize the power.
Key words: law, alternative law, alternative usage of the law, civil society, hegemony,
common sense, power overtaking, revolution, cultural revolution, revolutionary
process, Gramsci.
8. SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................................. 10
CAPÍTULO 1 – DO PROCESSO REVOLUCIONÁRIO ..................................................................12
1.1 Das profundidades da Revolução ............................................................................................ 14
1.2 Do Humanismo e da Renascença........................................................................................... 15
1.3 Das Três Revoluções: Protestante, Francesa e Comunista. ............................................ 18
1.4 Do fenecimento e das mudanças de rumo do processo revolucionário....................... 26
1.5 O gramscismo e as esquerdas no Brasil ................................................................................ 27
CAPITULO 2 – DA REVOLUÇÃO CULTURAL GRAMSCIANA ...................................................31
2.1 Linhas gerais sobre a vida de Antonio Gramsci.................................................................. 31
2.2 Da diferenciação entre sociedades ocidentais e orientais ................................................ 33
2.3 Sociedade civil: arena da revolução cultural ........................................................................ 35
2.4 Da hegemonia................................................................................................................................ 37
2.5 Da distinção entre direção e domínio .................................................................................... 39
2.6 Da reforma do senso comum ..................................................................................................... 41
2.7 Dos intelectuais orgânicos .........................................................................................................45
2.8 Liberdade e democracia em Gramsci .................................................................................... 47
2.8.1 Do conceito de liberdade ..................................................................................................... 48
2.8.2 Da democracia radical, do socialismo democrático e do
intermezzo democratico..................................................................................................................49
2.9 Gramsci e Maquiavel .................................................................................................................. 51
2.10 Considerações gerais.................................................................................................................52
9. CAPÍTULO 3 – DA DESAGREGAÇÃO DA CONCEPÇÃO INTEGRAL DO DIREITO .............. 53
3.1 A concepção do direito na Idade Média................................................................................ 54
3.2 A hipertrofia da vontade em Scot e Ockam.......................................................................... 56
3.3 Um novo personagem: o legista .............................................................................................. 57
3.4 A degenerescência representada por Maquiavel ................................................................ 57
3.5 O despotismo jurídico de Hobbes .......................................................................................... 58
3.6 Influências da Revolução Protestante.................................................................................... 59
3.7 Grotius: o direito como fonte de si mesmo .......................................................................... 60
3.8 A Escola moderna do Direito Natural ................................................................................... 60
3.9 O contratualismo de Rousseau ................................................................................................ 61
3.10 O individualismo jurídico de Kant........................................................................................ 62
3.11 A desjurisdização do direito .................................................................................................... 63
CAPÍTULO 4 – DA REVOLUÇÃO CULTURAL NO DIREITO ................................................... 66
4.1 Um movimento de essência ideológica ................................................................................. 66
4.2 A razão do rótulo direito alternativo...................................................................................... 68
4.3 O direito: importante intrumento a serviço da revolução ................................................ 70
4.4 A linguagem alternativista e as categorias gramscianas................................................... 72
4.5 Sociedade civil: movimentos sociais e direito alternativo................................................ 72
4.6 Reforma do senso comum: alterar a noção do justo............................................................ 76
CONCLUSÃO ................................................................................................................................... 82
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................... 85
10. INTRODUÇÃO
O número dos adeptos conscientes e declarados do
gramscismo é pequeno, mas isto não impede que ele
seja dominante. O gramscismo não é um partido
político, que necessite de militantes inscritos e
eleitores fiéis. É um conjunto de atitudes mentais,
que pode estar presente em quem jamais ouviu
falar de Antonio Gramsci, e que coloca o
individuo numa posição tal perante o mundo que
ele passa a colaborar com a estratégia gramsciana
mesmo sem ter disto a menor consciência (Olavo
de Carvalho).
O jornalista e filósofo Olavo de Carvalho e o professor Carlos Nelson
Coutinho têm se notabilizado nos meios intelectuais como profundos conhecedores da
estratégia revolucionária de Antonio Gramsci. Mesmo embora divergentes em seus
pontos de vista, ambos concordam com o fato de que as teorias engendradas pelo
ideólogo sardo vêm sendo aplicadas de forma bem sucedida no Brasil.
Não obstante, há uma parcela considerável da população instruída que sequer
faça idéia do tipo de assunto tratado por Gramsci. Nos meios jurídicos, o quadro não
é muito diferente, mas conta com a ressalva de um grupo que tem estudado a fundo a
estratégia gramsciana: os adeptos do direito alternativo.
Ao longo da década de 90 o Movimento do direito alternativo foi alvo de
acalorados debates, polêmicas e discussões. Objeto de simpatia e rejeição. Ainda hoje
11. 11
está cercado de inúmeras controvérsias, a respeito de sua essência, seus objetivos,
métodos. Adiciona-se agora a este mistifório mais um elemento: a aproximação de
Gramsci. Qual a justificativa dessa convergência?
No centro da teoria estratégica revolucionária proposta por Gramsci está a
idéia de realizar uma operação psicológica de grande envergadura. Que ao mesmo
tempo em que é sutil, também é dominadora, porque não deverá desprezar nenhuma
oportunidade, nenhuma aliança, nenhum canal de ação. Um recuo do debate aberto e
explícito, para a zona profunda da influência, em que as idéias são rebuçadas para
evitar possíveis reações. Gramsci afirma a necessidade de se amestrar o povo para o
socialismo antes mesmo da tomada do poder, por meio de uma revolução que seja
capaz suprimir o arcabouço cultural de uma sociedade e inserir em seu lugar um modo
de pensar, sentir e agir, que, além de não se opor, possa colaborar com o
estabelecimento do Estado socialista que se deseja implantar.
Por que os integrantes do direito alternativo se têm interessado tão vivamente
por essas idéias? Quereriam aplicá-las ao direito? Para descobri-lo, é que nos lançamos
à presente pesquisa. Gramsci dissera muito pouco a respeito do direito. Mas este fato
não afasta a possibilidade de existência de um movimento jurídico de índole
gramsciana. A razão é simples: ele era enfático em apresentar sua tática como total, ou
seja, todos os meios possíveis devem ser utilizados.
Cremos na necessidade de um perfeito embasamento histórico e filosófico
para situar no tempo e no espaço o advento da estratégia gramsciana. Por esse motivo
foi redigido o primeiro capítulo, o qual constituirá praticamente uma segunda
introdução. Só então, analisar-se-á um pouco mais detidamente o fundo da estratégia
de Antonio Gramsci – objeto do segundo capítulo; as influências doutrinárias de que o
direito foi objeto, nos últimos séculos – terceiro capítulo. Finalmente, no quarto
capítulo, é que se poderá investigar a possível tentativa de inserção do gramscismo no
direito, pelos partidários do direito alternativo.
Realizando esta modesta empresa, acreditamos estar contribuindo para que se
melhor conheça as idéias que circulam nos bastidores e movem os personagens deste
nosso cenário jurídico.
12. Capítulo 1
DO PROCESSO REVOLUCIONÁRIO
As muitas crises que abalam o mundo hodierno –
do Estado, da família, da economia, da cultura,
etc. – não constituem senão múltiplos aspectos de
uma só crise fundamental. Que tem como campo de
ação o próprio homem (Plinio Corrêa de
Oliveira).
SUMÁRIO: 1.1 Das profundidades da Revolução. 1.2 Do Humanismo e
da Renascença. 1.3 Das três revoluções: Protestante, Francesa e
Comunista. 1.4 Do fenecimento e das mudanças de rumo do processo
revolucionário. 1.5 O gramscismo e as esquerdas no Brasil.
Vistos superficialmente, os acontecimentos dos nossos dias parecem um
emaranhado caótico e inextrincável, e de fato o são sob muitos aspectos. Algum
observador desatento pode ser levado a considerar que se trata de conturbações isoladas
e desconexas, de um conjunto de crises que se desenvolvem paralela e autonomamente
em cada país, ligadas entre si por algumas analogias mais ou menos relevantes.
Entretanto, podem-se discernir resultantes, profundamente coerentes e
vigorosas, da conjunção de tantas forças desvairadas, desde que estas sejam analisadas
a partir da perspectiva ampla de um processo histórico. Por essa razão, configura um
equívoco tratar da revolução cultural e de seus efeitos no mundo jurídico, como um
fato isolado, perdido e desprovido de causas remotas.
13. 13
Um traço essencial une o objeto da presente pesquisa a vários dos
acontecimentos históricos de grande relevância nos últimos séculos: a busca por uma
igualdade cada vez mais niveladora.
Essa tônica igualitária é que tem movido os grandes golpes que a civilização
ocidental sofreu nos últimos cinco séculos. Marcha igualitária de efeitos tão
avassaladores que, por exemplo, Aléxis de Tocqueville (1991), em várias de suas obras,
faz referência a esse processo igualitário, o qual ele considera inevitável.
Plinio Corrêa de Oliveira, professor catedrático de História Moderna e
Contemporânea da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em sua obra
Revolução e Contra-Revolução, descreve, com admirável capacidade de síntese, os
grandes acontecimentos históricos a partir do fim da Idade Média, evidencia o seu
nexo de continuidade e diagnostica as origens do conjunto de crises hodierno, o qual
ele denomina “Revolução”. Afirma na introdução de seu livro:
A sua causa profunda é uma explosão de orgulho e sensualidade que
inspirou – não seria certo dizer um sistema – mas toda uma cadeia
de sistemas ideológicos. Da larga aceitação dada a estes no mundo
inteiro, decorreram as três grandes revoluções da História do
Ocidente: a Pseudo-Reforma, a Revolução Francesa e o
Comunismo.
O orgulho leva ao ódio a toda superioridade, e, pois, à afirmação de
que a desigualdade é em si mesma, em todos os planos, inclusive e
principalmente nos planos metafísico e religioso, um mal. É o
aspecto igualitário da Revolução.
A sensualidade, de si, tende a derrubar todas as barreiras. Ela não
aceita freios e leva à revolta contra toda autoridade e toda lei, seja
divina ou humana, eclesiástica ou civil. É o aspecto liberal da
Revolução.
Ambos os aspectos, que têm em última análise um caráter
metafísico, parecem contraditórios em muitas ocasiões, mas se
conciliam na utopia marxista de um paraíso anárquico em que uma
humanidade, altamente evoluída e “emancipada” de qualquer
religião, vivesse em ordem profunda sem autoridade política, e em
uma liberdade total da qual entretanto não decorresse qualquer
desigualdade (CORRÊA DE OLIVEIRA, 1998, p.13-14).
14. 14
1.1 DAS PROFUNDIDADES DA REVOLUÇÃO
Esse processo é feito de etapas. Mas não deve ser visto como uma seqüência
toda fortuita de causas e efeitos, que se foram sucedendo de modo inesperado. Ele
não se compõe apenas de episódios sucessivos, atingindo o campo religioso, político,
social e econômico. Em sua marcha, o processo revolucionário apresenta
profundidades diversas, afetando as tendências, as idéias, e as instituições: Explica o
Prof. Corrêa de Oliveira (1998, p.39):
Podemos distinguir na Revolução três profundidades, que
cronologicamente até certo ponto se interpenetram. A primeira, isto
é, a mais profunda, consiste em uma crise nas tendências. Essas
tendências desordenadas, que por sua própria natureza lutam por
realizar-se, já não se conformando com toda uma ordem de coisas
que lhes é contrária, começam por modificar as mentalidades, os
modos de ser, as expressões artísticas e os costumes, sem desde logo
tocar de modo direto – habitualmente, pelo menos – nas idéias.
Essa noção, de como a revolução nas tendências opera, será muito útil para
que se possa compreender especificamente a estratégia gramsciana. Com efeito,
Gramsci dedicou-se a disciplinar um método de ação que atuasse especialmente nessa
esfera. Bem consolidada a revolução tendencial, ter-se-ia pavimentado o caminho para
as etapas subseqüentes. Corrêa de Oliveira (Ibid.) explica como as realizações passarão
das tendências às idéias e aos fatos:
Dessas camadas profundas, a crise passa para o terreno ideológico.
Com efeito – como Paul Bourget pôs em evidência em sua célebre
obra le Démon du midi – “cumpre viver como se pensa, sob pena de
mais cedo ou mais tarde, acabar por pensar como se viveu”. Assim,
inspiradas pelo desregramento das tendências profundas, doutrinas
novas eclodem. Elas procuram por vezes, de início, um modus vivendi
com as antigas, e se exprimem de maneira a manter com estas um
simulacro de harmonia que habitualmente não tarda em se romper
em luta declarada.
Essa transformação das idéias estende-se, por sua vez, ao terreno
dos fatos, onde passa a operar, por meios cruentos ou incruentos, a
transformação das instituições, das leis e dos costumes, tanto na
esfera religiosa, quanto na sociedade temporal.
15. 15
Essas três profundidades muitas vezes não se diferenciam nitidamente uma
das outras. Por isso, o autor afirma que em geral elas se interpenetram no tempo. Não
podendo, portanto, ser consideradas como uma escala cronológica do processo. Por
outro lado, a Revolução não é incoercível, ou seja, avançando em uma primeira etapa,
ela não alcançará a última necessariamente. Mas, inexistindo disposição de detê-la, por
parte de quem quer que seja, o processo tenderá a exasperar suas próprias causas:
Essas tendências desordenadas se desenvolvem como os pruridos e
os vícios, isto é, à medida mesmo que se satisfazem, crescem em
intensidade. As tendências produzem crises morais, doutrinas
errôneas, e depois revoluções. Umas e outras, por sua vez,
exacerbam as tendências. Estas últimas levam em seguida, e por um
movimento análogo, a novas crises, novos erros, novas revoluções.
É o que explica que nos encontremos hoje em tal paroxismo da
impiedade e da imoralidade, bem como em tal abismo de desordens
e discórdias. [...]
É que as paixões desordenadas, indo num crescendo análogo ao que
produz a aceleração na lei da gravidade, e alimentando-se de suas
próprias obras, acarretam conseqüências que, por sua vez, se
desenvolvem segundo intensidade proporcional. E na mesma
progressão os erros geram erros, e as revoluções abrem caminho
umas para as outras (CORRÊA DE OLIVEIRA, 1998, p.44-45).
1.2 DO HUMANISMO E DA RENASCENÇA
O termo de início do processo revolucionário é a decadência da Cristandade
medieval. É no século XIV que já se começa a observar, na Europa cristã, uma
transformação de mentalidades que ao longo do século XV cresce cada vez mais em
nitidez. Daniel-Rops, pseudônimo do escritor Henry-Petiot, da Academia Francesa de
Letras, em sua obra A Igreja do Renascimento e da Reforma, aponta os sinais de
modificação progressiva da essência medieval:
As crises de autoridade e de unidade que a Cristandade conheceu
durante os anos de transição do século XIV para o século XV não
podem escapar a esta regra: é evidente que uma crise de espírito as
explica e as comanda, e é essa mesma crise que dá aos seus dramas a
16. 16
sua verdadeira explicação.
Esta crise anunciava-se já desde há várias décadas. Mesmo no
mundo cristão tão vigoroso e tão sólido do século XIII podiam já
observar-se sinais precursores do declínio. E, a partir de 1350, tais
sinais vão multiplicar-se. A crise afetará simultaneamente, no
homem, a consciência, a inteligência e a sensibilidade. Aquela força
de gravidade que tantas vezes, no decorrer dos séculos, puxou os
batizados para baixo, de novo se exerce agora e arrasta as suas
naturais conseqüências. Mas o pior é que já não há um Gregório VII,
nem um São Bernardo, nem um São Domingos, nem um São
Francisco de Assis para lançarem mão da alma oprimida e a
forçarem a elevar-se de novo para o ideal. [...]
Estranha época é essa em que se realiza esta marcha para o abismo.
[...] Em todos os domínios, tudo se modifica e tudo se desmembra;
os sistemas opõem-se aos sistemas, os dogmatismos novos aos
dogmatismos antigos, e o rigor das fórmulas dificilmente esconde a
incerteza e a angústia. Tudo se torna, cada vez mais, presa duma
dolorosa fermentação. É no plano posterior destes obscuros dramas
dos espíritos e das almas que é preciso ver desenrolar-se as grandes
cenas que a história reteve. (DANIEL-ROPS, 1962, p.131).
Com efeito, não poucos historiadores vislumbram nessa época o prelúdio de
todo o paulatino processo de transformações que viria posteriormente. O
Renascimento gerou uma série de disposições íntimas, que proporcionou uma
transição muito mais tendencial que ideológica. “Este novo estado de alma continha
um desejo possante, se bem que mais ou menos inconfessado, de uma ordem de
coisas fundamentalmente diversa da que chegara a seu apogeu nos séculos XII e XIII”
(CORRÊA DE OLIVEIRA, 1998, p.27).
Em todos os campos da vida operou-se uma profunda transformação, na qual
se manifestaram os mais rudes contrastes, de modo que o político e o social, a
literatura e a arte, e os próprios assuntos eclesiásticos achavam-se em estado de
fermentação que pressagiava a aurora de um novo período (PASTOR, 1905, v.5, p.49).
Não há dimensão da existência humana que se veja desafetada desse clima.
Nos trajes, nas maneiras, na linguagem, na literatura e na arte o anelo crescente por
uma vida cheia de deleites da fantasia e dos sentidos vai produzindo progressivas
manifestações de sensualidade e moleza. A procura e o culto da riqueza, o
nacionalismo, o amor ao luxo e à carne se estendem por todas as classes sociais
17. 17
(FAURE, 1969, p.9-10, 107). Tudo o que se observa é um contínuo deperecimento da
seriedade e da austeridade dos antigos tempos.
A cavalaria, uma das mais altas expressões da austeridade cristã, se torna
amorosa e sentimental. A figura feminina, a dama, é agora a sua motivação numa
época pacificada em que a maior preocupação está nas exibições em torneios. O ideal
cavalheiresco, que era servir a Deus, à Igreja, e àqueles a quem a desgraça perseguir, se
não foi totalmente esquecido, já não está muito na moda. A “defesa da justiça e do
direito”, trecho da oração rezada no dia da investidura de armas, tornara-se letra morta
(CLINCHAMPS, 1965, p.88-91).
Como não poderia deixar de ser, a intelectualidade não permanecera imune a
essa mentalidade nova:
Tal clima, penetrando nas esferas intelectuais, produziu claras
manifestações de orgulho, como o gosto pelas disputas aparatosas e
vazias, pelas argúcias inconsistentes, pelas exibições fátuas de erudição,
e lisonjeou velhas tendências filosóficas, das quais triunfara a
Escolástica, e que já agora, relaxado o antigo zelo pela integridade da
Fé, renasciam em aspectos novos (CORRÊA DE OLIVEIRA, 1998, p.27).
“Procurando muitas vezes não colidir de frente com a velha tradição medieval,
o Humanismo e a Renascença tendera a relegar a Igreja, o sobrenatural, os valores
morais da Religião, a um segundo plano” (Ibid.). A admiração exarcebada pela
Antigüidade, que não raro beirava o ridículo, era apenas uma expressão do divórcio
entre a ordem medieval e as mentalidades e idéias agora imperantes. O escritor francês
Lucas-Dubreton (s.d., p.192-194) a esse respeito chegou a afirmar:
O que é verdade, é que, entre os humanistas e a Igreja, existe, se não
oposição aberta, pelo menos aversão tácita. Os florentinos,
defensores da Antigüidade, imaginam ter renovado a face do mundo,
arrancado a filosofia às divagações dos escolásticos, mas na
realidade, apenas andam à roda noutro círculo; enfiam palavras,
multiplicam as apóstrofes, as citações, incham os períodos, só se
preocupam com a forma e não contam com o fundo para nada; tudo
é bom desde que cheire a grego ou latim. Tornaram-se escravos dos
antigos, sujeitaram tão bem a liberdade da sua inteligência, que não
somente não querem afirmar nada que seja contrário aos pontos de
vista dos antigos, como ainda não ousam avançar seja o que for que
não tenha sido dito por eles.
18. 18
A longa cadeia de pequenos degraus que compunham a trama harmoniosa do
tecido social começa a ser suprimida. A pluralidade de sistemas, a rica variedade das
relações políticas e sociais fundadas em altos valores filosóficos e religiosos, como o
senso hierárquico, as noções de hora e fidelidade, o respeito mútuo – tudo isso foi
dando lugar ao recrudescimento do poder real. Os legistas ressuscitam o direito
romano e difundem o ideal do príncipe legislador:
O absolutismo dos legistas, que se engalanavam com um
conhecimento vaidoso do Direito Romano, encontrou em Príncipes
ambiciosos um eco favorável. E pari passu foi-se extinguindo nos
grandes e nos pequenos a fibra de outrora para conter o poder real
nos legítimos limites vigentes nos dias de São Luís de França e de
São Fernando de Castela.(CORRÊA DE OLIVEIRA, 1998, p.27)
O historiador alemão Wilhelm Oncken (1929, v.21, p.343), explica que essas
transformações se deram de maneira quase imperceptível. Não quer dizer com isso
que as mudanças fossem pequenas. O homem renascentista já não podia compreender
os modos de viver e de sentir da civilização medieval.
Essa crise, mesmo em seu início, já demonstra forças suficientes para gerar os
desencadeamentos que se lhes seguiram. O tipo humano, inspirado nos moralistas
pagãos, que aqueles movimentos introduziram como ideal na Europa, bem como a
cultura e a civilização coerentes com este tipo humano, já eram os legítimos
precursores do homem ganancioso, sensual, laico e pragmático de nossos dias, da
cultura e da civilização materialistas em que cada vez mais vamos imergindo (CORRÊA
DE OLIVEIRA, 1998, p.28).
1.3 DAS TRÊS REVOLUÇÕES: PROTESTANTE, FRANCESA E COMUNISTA.
O quadro histórico já não estava longe de um rompimento formal e declarado
com a tradição cristã. O movimento humanista, ao transpor os Alpes e espalhar-se
pela Alemanha, encontrou aí condições especiais que lhe deram um rumo diverso do
19. 19
verificado em outros lugares. Ali fermentavam desde muito tempo elementos de
revolta religiosa. Isso fez com que a ruptura do Humanismo e do Renascimento com a
tradição medieval, nos povos germânicos, derivasse em rompimento com a Igreja e o
Papado (ONCKEN, 1929, v.19, p.111).
Enquanto grassavam o paganismo e a amoralidade, estava ausente uma dessas
grandes personalidades capazes de interromper o colapso e retomar os rumos
originais. O resultado imediato foi a eclosão da Revolução Protestante.
Os esforços por uma Renascença cristã não lograram esmagar em
seu germe os fatores de que resultou o triunfo paulatino do
neopaganismo.
Em algumas partes da Europa, este se desenvolveu sem levar à
apostasia formal. Importantes resistências se lhe opuseram. E
mesmo quando ele se instalava nas almas, não lhes ousava pedir – de
início pelo menos – uma formal ruptura com a Fé.
Mas em outros países ele investiu às escâncaras contra a Igreja. O
orgulho e a sensualidade, em cuja satisfação está o prazer da vida
pagã, suscitaram o protestantismo.
O orgulho deu origem ao espírito de dúvida, ao livre exame, à
interpretação naturalista da Escritura. Produziu ele a insurreição
contra a autoridade eclesiástica, expressa em todas as seitas pela
negação do caráter monárquico da Igreja Universal, isto é, pela
revolta contra o Papado. Algumas, mais radicais, negaram também o
que se poderia chamar a alta aristocracia da Igreja, ou seja, os
Bispos, seus Príncipes. Outras ainda negaram o próprio sacerdócio
hierárquico, reduzindo-o a mera delegação do povo, único detentor
verdadeiro do poder sacerdotal.
No plano moral, o triunfo da sensualidade no protestantismo se
afirmou pela supressão do celibato eclesiástico e pela introdução do
divórcio (CORRÊA DE OLIVEIRA, 1998, p.27-28).
A Revolta luterana, longe de ser meramente moral e religiosa, fez sentir seus
efeitos nos mais diversos campos. “No protestantismo nasceram algumas seitas, indo
mais longe, adotaram princípios que, se não se chamarem comunistas em todo o
sentido hodierno do termo, são pelo menos pré-comunistas” (Ibid., p.30).
O insuspeito historiador protestante Franz Funk-Brentano (1943, p.175) relata
a revolta luterana na Turíngia: liderado pelo Frade Thomaz Münzer, um bando de
mais de 300.000 homens armados começaram a tomar os bens dos conventos. A
20. 20
pilhagem se estendeu depois às propriedades leigas. 295 castelos e mosteiros foram
saqueados sob a ordem de se degolar todos os que se opusessem à partilha forçada.
“Que o alfanje, tinto de sangue, não tenha tempo de esfriar. Batei na bigorna: pink!
Ponk! Matai tudo!” (FUNK-BRENTANO, 1943, p.176 et seq.) – era um dos brados da
revolta. Mais tarde Lutero, “esse reformador, que continuamente tem o evangelho nos
lábios, não fala senão em degolar, torturar, incendiar, matar esses mesmos que sua
obra precipitou na rebelião. Vozes autorizadas atiravam-lhe rudemente em face que ele
era o causador da rebelião” (Ibid.). O mesmo Funk-Brentano (Ibid.) narra o desfecho
das perturbações:
Os historiadores calcularam aproximadamente em 100.000 o número
de infelizes, que foram condenados à morte. Os fidalgotes
vencedores achavam engraçado, pelo testemunho de um deles,
divertir-se em jogar bola com cabeças de suas vítimas.
Lutero escrevia: “porque razão, pergunta-se, esmagar os camponeses
com tal violência? – Que sejam todos mortos! Deus reconhecerá os
inocentes, se os há entre eles” (Carta a Amsdorf, 30 de maio de
1525). “também em circunstâncias semelhantes não é o próprio
Deus que, por nossas mãos, enforca, tortura, fulmina e decapita?”
A ação profunda do Humanismo e da Renascença entre os católicos não
cessou de se dilatar numa crescente cadeia de conseqüências, em toda a França.
Favorecida pelo enfraquecimento da piedade dos fiéis – ocasionado
pelo jansenismo e pelos outros fermentos que o protestantismo do
século XVI desgraçadamente deixara no Reino Cristianíssimo – tal
ação teve por efeito no século XVIII uma dissolução quase geral dos
costumes, um modo frívolo e brilhante de considerar as coisas, um
endeusamento da vida terrena, que preparou o campo para a vitória
gradual da irreligião. Dúvidas em relação à Igreja, negação da
divindade de Cristo, deísmo, ateísmo incipiente foram as etapas
dessa apostasia.
Profundamente afim com o protestantismo, herdeira dele e do
neopaganismo renascentista, a Revolução Francesa realizou uma
obra de todo em todo simétrica à Pseudo-Reforma. A Igreja
Constitucional que ela, antes de naufragar no deísmo e no ateísmo,
tentou fundar, era uma adaptação da Igreja da França ao espírito do
protestantismo. E a obra política da Revolução Francesa não foi
senão a transposição, para o âmbito do Estado, da “reforma” que as
seitas protestantes mais radicais adotaram em matéria de organização
eclesiástica:
21. 21
Revolta contra o Rei, simétrica à revolta contra o Papa;
Revolta da plebe contra os nobres, simétrica à revolta da “plebe”
eclesiástica, isto é, dos fiéis, contra a “aristocracia” da Igreja, isto é,
o Clero;
Afirmação da soberania popular, simétrica ao governo de certas
seitas, em medida maior ou menor, pelos fiéis (CORRÊA DE
OLIVEIRA ,1998, p.29).
Igualdade, Liberdade, Fraternidade. “Sob influência destas idéias, os Estados-
gerais se abriram em 5 de maio de 1789. Não fizeram mais do que decretar uma
revolução que já estava completa. Desde este momento, começa uma história
aflitiva”[...] (CANTÚ, 1964, v.27, p.520).
Nem Ceres nem Marte, nem a economia nem a guerra, explicam o
frenesi da guilhotina sob o Terror. Na Frase imortal do amigo de
Danton, o jornalista Camille Desmoullin: os deuses tinham sede. [...]
Com toda a sua retórica democrática, o fastígio do Terror se
desenrola em pleno refluxo do povão, na hora cinzenta das
“pequenas oligarquias do ativismo”. Quanto mais se vociferava em
termos de “vontade geral”, mais o clube se substituía ao querer
popular. [...]
A racionalização do Terror, nas mãos de Robespierre ou Saint-Just,
tinha duas faces principais, a puritana e a messiânica. “A virtude sem
a qual o terror é funesto, o terror sem o qual a virtude é inerme”
(Robespierre). A premissa puritana do Terror jacobino era nada
menos que a regeneração da humanidade pela virtude violenta. A
hipertrofia do discurso da vontade: os obstáculos eram interpretados
como uma conspiração do vício, nunca como algo radicado na
natureza das coisas (MERQUIOR, 1989, p.21).
A pergunta de Robespierre “voulez-vous une Révolution sans revolution? ” nada
tinha de retórica. “Convertido em projeto sacralizado pela História, o processo
revolucionário prometia desde o início glorificar ou, no mínimo, justificar a violência
‘purificadora’. O expurgo e o massacre tornaram-se figuras revolucionárias
inexoráveis, para não dizer imprescindíveis” [grifo do autor] (Ibid.).
A Revolução Francesa, nos últimos esgares da sua fase mais cruenta
– depois de ter quebrado as imagens e os altares, fechado as Igrejas,
perseguido os ministros de Deus, destronado e executado o Rei e a
Rainha, declarado abolida a nobreza, sujeitado à pena capital
incontáveis membros desta, e atingido a sua meta de implantar um
22. 22
mundo novo em “tudo, já e para sempre” – estava a ponto de
realizar o que muito caracteristicamente, escrevera um dos seus mais
destacados precursores, Diderot: “As suas mãos, tecendo as
entranhas do padre, fariam delas uma corda para [enforcar] o último
dos reis” (CORRÊA DE OLIVEIRA, 1993, p.229).
Um dos ardis mais bem sucedidos da Revolução Francesa consistiu
precisamente em lançar na confusão muitos espíritos simples e desprevenidos,
rotulando com palavras honestas e até louváveis uma congérie monstruosa de erros
doutrinários e de acontecimentos criminosos.
Dessa forma, muitos desses espíritos “eram levados a admitir que as doutrinas
da Revolução Francesa eram boas na sua raiz, se bem que, na maior parte, os fatos
revolucionários hajam sido duramente reprováveis” (Ibid., p.228). Outros, entendiam
“que as doutrinas geradoras de tais fatos não podiam ser menos reprováveis do que
estes, deduzindo daí que a trilogia inculcada como síntese dessas doutrinas perversas
era, ela também, digna da mesma repulsa”. Corrêa de Oliveira (Ibid., p.228-229)
continua sua explanação:
O modo de considerar a Revolução distinguindo diversos matizes
pressupõe, implícita ou explicitamente, que esta distinção só seja
válida na apreciação do fenômeno revolucionário desde que se tome
em conta que na mente até dos mais dulçorosos analistas deste, ao
mesmo tempo em que havia reais desígnios de moderação, havia
contraditoriamente indulgências inexplicáveis e por vezes até nítidas
simpatias para com os crimes e os criminosos da Revolução.
Esta presença simultânea de pendores de moderação e de
conivências revolucionárias na mentalidade do “moderados” e ao
longo das diversas etapas da Revolução levou um dos mais fogosos
apologistas do fenômeno revolucionário – Clemenceau – a esquivar
as acusações de contraditória que daí lhe advinham afirmando
sumariamente que “la Revolution est um bloc”, no qual fissuras e
contradições não passariam de aparências.
Ou seja, a Revolução – fruto de uma miscelânea de propensões,
doutrinas e programas – não pode ser louvada nem censurada se for
identificada tão-só com um dos seus matizes ou etapas, em vez de
considerá-la sob este aspecto de miscelânea que salta aos olhos.
Em 1845, é o próprio Marx que encontra um predecessor em Babeuf, nas
clássicas linhas da obra intitulada Sagrada Família:
23. 23
O movimento revolucionário que teve início em 1789 no Círculo
Social, em que figuraram como representantes principais, em meio à
sua evolução, Leclerc e Roux, e terminou sucumbindo logo com a
conspiração de Babeuf, fizera florescer a ideologia comunista que
Buonarroti, o amigo de Babeuf, reintroduziu na França depois da
revolução de 1830. Tal idéia, desenvolvida em todas as suas
conseqüências, constituiu o princípio do mundo moderno (apud
FURET , 1989, p.191).
Assim, “da Revolução Francesa nasceu o movimento comunista de Babeuf. E
mais tarde, do espírito cada vez mais vivaz da Revolução, irromperam as escolas do
comunismo utópico do século XIX e o comunismo dito científico de Marx” (CORRÊA
DE OLIVEIRA, 1998, p.30):
Com a entrada em cena de Karl Marx, auxiliado por Engels, as
correntes revolucionárias encontraram nas teorias de ambos uma
sistematização filosófica e um método de análise para iniciar um
processo que levasse a utopia à prática. Foi o chamado socialismo
científico ou comunismo. Daí nasceu o movimento internacional
para realizar a revolução socialista. De seu seio saíram os líderes do
partido bolchevique russo que, com Lenine à cabeça, fizeram a
revolução que transformaria a Rússia, a partir de 1917, na Meca do
socialismo mundial. Em 1919 este movimento marxista teve sua
primeira grande divisão. Aglutinara-se na Internacional Comunista,
fundada pouco antes por Lenine, aqueles que aderiram à tese de
tomada do poder pela violência, proposta pelo líder russo. Quem
considerava impossível tomar o poder no Ocidente e derrubar a
ordem capitalista vigente com a rapidez e a violência da revolução
bolchevique, passaram a chamar-se simplesmente socialistas. Estava
definida assim a Internacional Socialista, distinta da Internacional
Comunista dirigida por Lenine. Anos mais tarde, o dirigente
soviético Trotsky daria origem a uma terceira facção dentro do
marxismo: foi a corrente anarco-bolchevique, que acusava Stálin de
caminhar muito lentamente para a meta comunista, isto é, a utopia
revolucionária. Meta que também é o objetivo das correntes
anarquistas propriamente ditas, ou libertárias. Deste modo,
socialistas, comunistas e anarquistas, compartindo uma origem
doutrinária comum, mas se diferenciando nos métodos de ação,
mantiveram-se unidos na aspiração de uma mesma meta final,
radicalmente igualitária e libertária [grifo do autor] (SEDTFP –
COVADONGA , 1988, p.143).
A Revolução vitoriosa na Rússia em 1917, ultrapassou todas as suas
predecessoras em perversidade. De lá ela se irradiou para um sem-número de nações
24. 24
em todos os cantos do planeta, alcançando uma cifra extraordinária de 100 milhões de
vítimas nos países em que se instalou. Número, aliás, minimizado, uma vez que tem
por base unicamente os registros oficiais de Moscou. O pesquisador Luis Dufaur
(2000, p.27), ao comentar o lançamento no Brasil do Livro Negro do Comunismo tece a
seguinte observação:
A erudição é esmagadora, e a realidade retratada, estarrecedora.
Segundo os cálculos, o comunismo é responsável por cerca de 100
milhões de mortos. Só na China somam 63 milhões, e na Rússia 20
milhões. E isso apesar de os autores minimizarem as cifras.
Exemplos: a Comissão sobre Repressão do governo russo concluiu
que os bolchevistas mataram pelo menos 43 milhões de pessoas
entre 1917 e 1953. Na Coréia do Norte, segundo a agência católica
Zenit, o comunismo matou de fome 3,5 milhões, sete vezes mais do
que os autores informam.
Courtois (apud DUFAUR, 2000, p.28), coordenador da equipe de antigos
militantes socialistas, responsáveis pelo levantamento histórico do Livro Negro do
Comunismo, explica que a emulação com a Revolução de 1789 é que moveu os
revolucionários vermelhos. Robespierre abriu o caminho, Lenine e Stálin lançaram-se
nele, os Khmers Vermelhos do Camboja bateram recordes genocidas. Para todos eles,
a utopia igualitária e libertária tudo justificava. Exterminar milhões não importava, em
sua opinião, porque assim nasceria um mundo novo, fraternal, para um homem novo
liberto da canga da hierarquia e da lei.
No Camboja, por exemplo, “os guerrilheiros vermelhos exterminaram mais de
um quarto da população nacional. Logo após a conquista da capital, Phnom Penh,
metade dos habitantes do país foi impelida para as estradas” (Ibid., p.30). Ninguém era
poupado:
Doentes, anciãos, feridos, ex-funcionários, militares, comerciantes,
intelectuais, jornalistas eram chacinados no local. 41,9% dos
habitantes da capital foram eliminados nessa ocasião. Para poupar
bala ou por sadismo, matava-se com instrumentos contundentes
(Ibid.).
Lindenberg (1999, p.54), explica que o fundamento essencial do movimento
socialista é a crença de que o conceito de igualdade em si mesmo é metafisicamente
25. 25
superior ao conceito de desigualdade. O autor mostra ainda que, “entre liberdade e
igualdade há uma contradição ‘in terminis ’ ”, porque subjacente ao conceito de
liberdade “está a manifestação de todas as diversidades inerentes à natureza humana
[...]. Na medida em que tal conceito de igualdade é coercivo, sugere-nos
implicitamente uma ação destinada a anular, à partida, todas as desigualdades entre
os homens.” (LINDENBERG, 1999, p.54). E assim, vêm à memória, a série de atos
perpetrados sob os totalitarismos tendentes a eliminar essas desigualdades. O próprio
Lindenberg (Ibid., p.55) comenta:
Consideramos oportuno relembrar por exemplo as imagens trágicas
da ocupação do Cambodja pelos comunistas de Pol Pot, ou os
excessos cometidos durante a Revolução Cultural Chinesa. São
exemplos impressionantes do radicalismo marxista que revelam a
face horrenda, mas no fundo verdadeira, da ideologia socialista,
caracterizada pela aversão a tudo quanto é elevado, nobre, desigual.
A humilhação trocista – a expressão não podia ser mais adequada –
dos proprietários de terras, comerciantes, professores e profissionais
na China, veio mostrar a um mundo atônito e horrorizado que o
objetivo último da fúria revolucionária, não era o mero nivelamento
social e econômico, mas sim uma total inversão de valores. Alguém
com uma situação econômica superior era humilhado e aviltado com
um castigo quid pro quo em função da sua condição social anterior.
Em toda essa lógica, o que estaria pela frente? Corrêa de Oliveira (1998, p.30)
arrisca vaticinar o panorama vindouro:
E o que de mais lógico? O deísmo tem como fruto normal o ateísmo.
A sensualidade, revoltada contra os frágeis obstáculos do divórcio,
tende por si mesma ao amor livre. O orgulho, inimigo de toda
superioridade, haveria de investir contra a última desigualdade, isto é,
a de fortunas. E assim, ébrio de sonhos de República Universal, de
supressão de toda autoridade eclesiástica ou civil, de abolição de
qualquer Igreja e, depois de uma ditadura operária de transição,
também do próprio Estado, aí está o neobárbaro do século XX,
produto mais recente e mais extremado do processo revolucionário.
26. 26
1.4 DO FENECIMENTO E DAS MUDANÇAS DE RUMO DO PROCESSO
REVOLUCIONÁRIO
Apesar de seu apogeu internacional, – tanto na extensão de seu domínio como
na expansão de sua doutrina – o comunismo começa a dar mostras de declínio no seu
poder persuasório e de proselitismo. Largos setores da opinião pública em todo o
Ocidente se tornam infensos à sua doutrinação explícita e categórica. Especialmente a
partir da segunda metade do século XX, vai tornando-se mais patente o decrescimento
do poder persuasivo da dialética e da propaganda comunista – integral e ostensiva
(CORRÊA DE OLIVEIRA, 1998, p.163-166).
A violência – método direto e fulminante, do qual os mentores do comunismo
esperavam obter, com o mínimo de riscos de fracasso, o máximo de resultados, no
mínimo de tempo – foi dando aos revolucionários vantagens cada vez menores.
Malogros sucessivos começavam a se acumular, como, por exemplo, o das guerrilhas
disseminadas por Cuba na América Latina (ROLLEMBERG, 2001.).
Tornava-se necessária uma mudança de estratégia. Começa então um
movimento de câmbio: mesmo embora nascido necessariamente da luta de classes, e
voltado por sua própria lógica interna para o uso da violência exercida por meio de
guerras e revoluções, o socialismo recua, dissimula seu rancor, utiliza-se do sorriso.
Não extingue a violência, mas a transfere do campo de operações do físico e palpável,
para o das atuações psicológicas impalpáveis. Seu objetivo: “alcançar, no interior das
almas, por etapas e invisivelmente, a vitória que certas circunstâncias lhe estavam
impedindo conquistar de modo drástico e visível, segundo os métodos clássicos”
(CORRÊA DE OLIVEIRA, 1998, p. 163).
Essa mudança de método tem um marco simbólico: a rebelião estudantil da
Sorbone, em maio de 1968. É a partir de então que numerosos autores socialistas e
marxistas em geral passaram a reconhecer a necessidade de uma forma de revolução
prévia às transformações políticas e sócio-econômicas, que operasse na vida cotidiana,
nos modos de ser, de sentir e de viver (LOPES; URETA, 2002, passim). O Prof. Plinio
27. 27
Corrêa de Oliveira (1998, p.164) mostra os traços essenciais desse novo modo de agir:
Esta revolução, preponderantemente psicológica e tendencial, é uma
etapa indispensável para se chegar à mudança de mentalidade que
tornaria possível a implantação da utopia igualitária, pois, sem tal
preparação, a transformação revolucionária e as conseqüentes
“mudanças de estrutura” tornar-se-iam efêmeras.
As esquerdas começam a perceber em Gramsci um potencial renovador de
sua estratégia. Suas idéias, em princípio limitadas a restritos círculos locais italianos, só
alcançam difusão na própria Itália, mais de dez anos após a seu falecimento, quando
Palmiro Togliati terminou o projeto de organização temática dos Cadernos do Cárcere,
em seis volumes que foram publicados sucessivamente entre 1948 e 1950 (AVELLAR
COUTINHO, 2002, p.15).
Entretanto, as novas proposições não repercutiram largamente desde logo.
Grande parte dos meios revolucionários ainda estava inebriada do desejo de uma
revolução armada ao estilo da de Outubro de 1917. Empecilhos de ordem prática
proporcionaram que, nas mais variadas partes do ocidente, a idéia de uma revolução
gradual fosse adotada em substituição aos artifícios até então utilizados (os quais não
foram inteiramente abandonados; veja-se, nesse sentido, o exemplo colombiano).
1.5 O GRAMSCISMO E AS ESQUERDAS NO BRASIL
No Brasil, as primeiras iniciativas para a publicação de uma tradução dos
Cadernos do Cárcere têm início em 1962, mas só em 1966 e 1968 foram publicados
quatro dos seis volumes da edição temática italiana. “Reeditados no final da década de
1970, foi esta publicação que introduziu Gramsci à intelectualidade do país, ‘uma
contribuição muito importante para a formação de um novo espírito revolucionário da
esquerda brasileira ’ ” [grifo do autor] (Ibid.).
Essa obra foi muito lida, mas, numa atmosfera em que dominava a obsessão
pela tomada violenta do poder, não exerceu influência prática imediata (CARVALHO,
28. 28
O., 1994, p.44). Seu potencial ficou retido até a derrota da luta armada, que provocou,
como não poderia deixar de ser, um impulso generalizado às teses do combate pacífico
e aliancista.
Em busca de uma estratégia pela qual se orientar, não sendo capaz de criar
uma nova e não encontrando no repertório mundial uma outra à sua disposição,
restou àqueles desejosos de realizar uma revolução, aderir a Gramsci. Fizeram-no
“quase que por automatismo, sonambulicamente, levados pela carência de opções”
(CARVALHO, O., 1994, p.44).
Um dos acontecimentos mais significativos no cenário político e da história
nacional nos últimos tempos foi “a conversão formal ou informal, consciente ou
inconsciente da intelectualidade de esquerda à estratégia de Antonio Gramsci” (Ibid.,
p.18). O filósofo e articulista Olavo de Carvalho (Ibid., p.17) relata, em que
circunstâncias ocorreu essa guinada:
A geração, derrotada pela ditadura militar, abandonou os sonhos de
chegar ao poder pela luta armada e se dedicou, em silêncio, a uma
revisão de sua estratégia, à luz dos ensinamentos de Antonio
Gramsci. O que Gramsci lhe ensinou foi abdicar do radicalismo
ostensivo para ampliar a margem de alianças; foi renunciar à pureza
dos esquemas ideológicos aparentes para ganhar eficiência na arte de
aliciar e comprometer; foi recuar do combate político direto para a
zona mais profunda da sabotagem psicológica. Com Gramsci ela
aprendeu que uma revolução da mente deve preceder uma revolução
política; que é mais importante solapar as bases morais e culturais do
adversário do que ganhar votos; que um colaborador inconsciente e
sem compromisso, de cujas ações o partido jamais possa ser
responsabilizado, vale mais que mil militantes inscritos. Com
Gramsci ela aprendeu uma estratégia tão vasta em sua abrangência,
tão sutil em seus meios, tão complexa e quase contraditória em sua
pluralidade simultânea de canais de ação, que é praticamente
impossível o adversário mesmo não acabar colaborando com ela de
algum modo, tecendo, como profetizou Lênin, a corda com que será
enforcado.
É possível de se afirmar que o marco da adoção oficial e definitiva de Gramsci
pelas esquerdas no Brasil foi a desmoronamento da Cortina de Ferro. Entretanto, não
nos interessa a discussão a respeito do momento em que a aceitação de Gramsci
torna-se generalizada. O fato é que os mais diversos autores estudiosos do tema,
29. 29
adeptos ou não do pensamento gramsciano, são praticamente unânimes em
reconhecer, na atualidade brasileira, a adesão das esquerdas às idéias do ideólogo
italiano. Carlos Nelson Coutinho, professor titular de Teoria Política na Universidade
Federal do Rio de Janeiro e vice-presidente da International Gramsci Society (IGS) por
exemplo, afirma:
Começa a emergir também no Brasil uma esquerda moderna,
disseminada em diferentes partidos e organizações, mas que tem em
comum o fato de ter assimilado uma lição essencial da estratégia
gramsciana: o objetivo das forças populares é a conquista da
hegemonia, no curso de uma difícil e prolongada “guerra de
posições”. Ora, no caso brasileiro, isso significa que a consolidação
da democracia pluralista [...], deve ser considerado ponto de partida
e, ao mesmo tempo, condição permanente de nosso caminho para
um socialismo democrático [ver item 2.7.2, infra] [grifo do autor]
(COUTINHO, 1999, p.218).
Gramsci está atualíssimo no cenário nacional. Presume-se de que, para cada
três teses acadêmico-educacionais, uma faz referência ao pensador sardo (TAVARES DE
JESUS, 1989, p.14). “Mas Gramsci está na moda também fora da academia, sendo
reivindicado intensamente no espaço político partidário” (ARRUDA JÚNIOR, 1995b,
p.29). A esse respeito, diz bastante a declaração abaixo, recolhida da página principal
do site Gramsci e o Brasil dedicado ao pensamento gramsciano e organizado por
nomes como o do Prof. Carlos Nelson Coutinho:
Depois da queda de todos os muros, descobrimos que Gramsci está
vivo. Ficamos ainda mais convencidos de que o Brasil é um enorme
laboratório político, no qual as categorias gramscianas – e da
esquerda em geral – devem voltar a mostrar sua força analítica e seu
poder de convencimento (COUTINHO; HERIQUES; NOGUEIRA, 2004).
A afirmação não é de pouca relevância. Indica um rumo, uma direção já
adotada de forma assaz ampla nos cenários intelectual e político pátrios. Digna de
passagem é a opinião de Carvalho (1994, p.18-19) concernente a esse fato:
[...] O Brasil, de fato, tem um descompasso crônico em relação ao
tempo da História universal. O reconhecimento mundial da débâcle
do comunismo ecoou neste país – paradoxalmente, segundo a lógica
humana, mas coerente, segundo a linha constante da História
nacional – como um toque de esperança: chegou a nossa vez de
30. 30
conquistar aquilo que já ninguém mais quer.
[...] A geração que atingiu a idade adulta no momento em que a
ditadura fechava as portas de acesso à vida política está agora com
cinqüenta anos. Ao longo dos últimos trinta ela esperou, planejou,
[...] e, sobretudo, leu muito Antônio Gramsci. Que a Revolução
socialista já tenha mostrado ao mundo sua verdadeira face, que ela já
tenha provado cabalmente que não vale a pena, isto pouco interessa.
A geração dos guerrilheiros fará o que longamente se preparou para
fazer. Pouco importa que, pelo relógio do mundo, tenha passado a
hora [grifo do autor].
Edmundo Lima de Arruda Júnior (1995c, p.8), um dos corifeus do
alternativismo jurídico, na apresentação da obra que leva o sugestivo título Gramsci:
Estado, direito e sociedade, afirma estar convencido “de que o marxismo deve ser
revisto, não substituído. Deve ser atualizado, não abolido”. Adiante, esclarece que isso
significa ter o marxismo “como fonte de inspiração e horizonte para ações práticas, e
[para alcançar tal escopo] nada mais vigoroso que o aporte da filosofia da praxis de
Antonio Gramsci” [grifo do autor]. Por fim, confiante na eficácia da estratégia
gramsciana, o autor propõe uma difusão mais acelerada do pensamento de Gramsci
junto ao público jurídico. A essa aplicação do gramscismo no direito, nos dedicaremos
mais adiante.
31. Capítulo 2
DA REVOLUÇÃO CULTURAL
GRAMSCIANA
O gramscismo propõe uma revolução cultural que
subverta todos os critérios admitidos do
conhecimento, instaurando em seu lugar um
“historicismo absoluto”, no qual a função da
inteligência e da cultura já não seja captar a
verdade objetiva, mas “expressar” a crença
coletiva, colocada assim fora e acima da distinção
entre verdadeiro e falso (Olavo de Carvalho).
SUMÁRIO: 2.1 Linhas gerais sobre a vida de Antonio Gramsci. 2.2 Da
diferenciação entre sociedades ocidentais e orientais. 2.3 Sociedade civil:
arena da revolução cultural. 2.4 Da hegemonia. 2.5 Da distinção entre
direção e domínio. 2.6 Da reforma do senso comum. 2.7 Dos intelectuais
orgânicos. 2.8 Liberdade e democracia em Gramsci. 2.8.1 Do conceito
de liberdade. 2.8.2 Da democracia radical, do socialismo democrático e do
intermezzo democratico. 2.9 Gramsci e Maquiavel. 2.10 Considerações gerais.
2.1 LINHAS GERAIS SOBRE A VIDA DE ANTONIO GRAMSCI
De acordo com dados colhidos do prólogo da obra de Avellar Coutinho
(2002, p.13-16) A Revolução Gramscista no Ocidente, Antonio Gramsci (1891-1937),
marxista e intelectual italiano, foi na sua mocidade socialista revolucionário e membro
do Partido Socialista Italiano, no seio do qual fez sua iniciação ideológica. Fez-se
32. 32
imediato simpatizante da revolução bolchevista de 1917. Em dezembro de 1920
participou do congresso que constituiu a fração comunista do Partido Socialista
Italiano e já em janeiro de 1921, os delegados dessa facção decidiram fundar o Partido
Comunista Italiano. Gramsci, um dos fundadores, vem a fazer parte do Comitê
Central do recém criado partido.
Em outubro de 1922, o PCI entra na ilegalidade, ocorrendo a prisão de vários
dirigentes do partido. Gramsci se encontrava então em Moscou, escapando de ser
detido. Entre 1923 e 1926, apesar das condições adversas na Itália, Gramsci
desenvolveu intensa atividade política no país e na Europa até quando, em novembro
de 1926, os fascistas endureceram o regime a pretexto de um alegado atentado contra
a vida de Mussolini. Na execução de “Medidas Excepcionais”, Gramsci é preso e
processado do que resultou sua condenação, em junho de 1928, a mais de 20 anos de
reclusão.
Apesar do rigor da Casa Penal de Turim, para onde finalmente fora mandado
para cumprimento de pena, o prisioneiro veio a conseguir cela individual (tendo em
vista a sua frágil saúde) e recebeu permissão para escrever e fazer leitura regularmente.
A partir dos primeiros meses de 1929, Gramsci começa a redigir suas primeiras notas e
apontamentos que vieram a encher, no transcorrer de seis anos, trinta e três cadernos
do tipo escolar. Escreveu até 1935, enquanto sua saúde o permitiu.
Não se tratava de um diário, mas de anotações que abrangiam os mais
variados assuntos: exercícios de tradução, Filosofia, Sociologia, Política, Pedagogia,
Geopolítica, crítica literária e comentários de diversificados temas. O trabalho não
segue um esquema prévio, ao contrário, os temas são apresentados fragmentariamente
e sem seqüência lógica, algumas vezes reescritos ou retomados de forma melhorada e
ampliada. Apesar disso, há enorme coerência ao longo dos escritos.
A redação dos cadernos foi interrompida em 1935, quando o precário estado
de saúde de Gramsci se agravou, do que resultou a sua transferência para clínicas
médicas onde pôde tratar-se em liberdade condicional. Em abril de 1937, já em fase
final de vida, lhe é concedida a plena liberdade, recurso de que se vale o regime fascista
para que o líder comunista não viesse a morrer na prisão, tornando-se um mártir.
33. 33
Após sua morte, Tatiana Schucht, sua cunhada e destinatária de
correspondência no período de prisão, remeteu os Cadernos para Moscou, onde
chegaram às mãos de Palmiro Togliati, líder comunista italiano que se tornou o
responsável pela primeira edição dos Cadernos.
2.2 DA DIFERENCIAÇÃO ENTRE SOCIEDADES OCIDENTAIS E ORIENTAIS
A formulação gramsciana nasce da constatação do fato de que a estratégia
marxista-leninista de tomada do poder, vitoriosa na Rússia, “não obteve êxito nos
países europeus (entre 1921 e 1923 na Alemanha, Polônia, Hungria, Estônia e
Bulgária) de economia capitalista e sociedade democrática” (AVELLAR COUTINHO,
2002, p.19; GRAMSCI, 2000, v.3, p.24). As próprias dificuldades de êxito da Revolução
Russa também serviriam de inspiração para Gramsci:
Gramsci estava particularmente impressionado com a violência das
guerras que o governo revolucionário da Rússia tivera de empreen-
der para submeter ao comunismo as massas recalcitrantes, apegadas
aos valores e praxes de uma velha cultura. A resistência de um povo
arraigadamente religioso e conservador a um regime que se afirmava
destinado a beneficiá-lo colocou em risco a estabilidade do governo
soviético durante quase uma década [...] (CARVALHO, O., 1994, p.36).
Isso o levou a criar uma distinção entre sociedades orientais e ocidentais.
Denominação que não têm propriamente significado geográfico, mas relação com o
estágio de avanço político, econômico e social em que se encontram os países. Essa
diferenciação permitiu lhe responder à questão do malogro da revolução nos países
ocidentais:
Esse fracasso ocorreu, supõe Gramsci, porque não se levou na
devida conta a diferença estrutural que existe entre, por um lado, as
formações sociais do “Oriente” (entre as quais se inclui a da Rússia
czarista), caracterizadas pela debilidade da sociedade civil em
contraste com o predomínio quase absoluto do Estado-coerção; e,
por outro, as formações sociais do “Ocidente”, onde se dá uma
relação mais equilibrada entre sociedade civil e sociedade política, ou
34. 34
seja, onde se realizou concretamente a “ampliação” do Estado
(COUTINHO, 1999, p.147).
Tendo em vista essas diferenças, Gramsci (2000, v.3, p.255-256) identifica
como guerra de posição, o conjunto de estratégias a serem seguidas em um processo
revolucionário eficaz nas sociedades ocidentais. Diferente da guerra de movimento
termo utilizado para designar o método clássico de assalto ao poder, adequado às
sociedades orientais:
O ataque frontal ao Estado para a tomada imediata do poder, com o
emprego da violência revolucionária, foi comparada por Gramsci à
“guerra de movimento”. É a concepção estratégica leninista que teve
êxito na Rússia em 1917 e que se tornou o modelo revolucionário
universal da Internacional Comunista Soviética. Esta estratégia teve
êxito em países de tipo oriental (Rússia em 1917) e fracassou em
outros de tipo Ocidental (Alemanha em 1923).
Para as sociedades do tipo ocidental, mais complexas e protegidas por
forte sistema de “trincheiras” e de “defesas políticas e ideológicas”, a
“guerra de movimento” não se mostrara adequada. Nestas sociedades,
a luta teria que ser semelhante à “guerra de posição”, longa e
obstinada, conduzida no seio da sociedade civil para conquistar cada
“trincheira” e cada defesa da classe dominante burguesa. [...]
Esta visualização estratégico-militar transposta para a política,
Gramsci foi buscar na experiência da Primeira Guerra Mundial de
recente e marcante lembrança, em que as operações, diante do
equilíbrio de forças, evoluíram para a desgastante guerra de
trincheiras que só seria decidida pela exaustão física e moral de um
dos contendores [grifo nosso] (AVELLAR COUTINHO, 2002, p.34).
A grande invenção contida na concepção revolucionária da guerra de posições,
está na mudança da direção estratégica da tomada do poder. O eixo do plano de ação
consiste em preparar remotamente as mentalidades para a aceitação das mudanças
futuras, ou nas palavras de Olavo de Carvalho (1994, p.37):
Amestrar o povo para o socialismo antes de fazer a revolução. Fazer
com que todos pensassem, sentissem e agissem como membros de
um Estado comunista enquanto ainda vivendo num quadro externo
capitalista. Assim, quando viesse o comunismo, as resistências
possíveis já estariam neutralizadas de antemão e todo mundo
aceitaria o novo regime com a maior naturalidade.
35. 35
Há nesse processo idealizado pelo italiano um significativo distanciamento de
qualquer método de implantação do socialismo que existisse até então:
A estratégia de Gramsci virava de cabeça para baixo a fórmula
leninista, na qual uma vanguarda organizadíssima e armada tomava o
poder pela força, autonomeando-se representante do proletariado e
somente depois tratando de persuadir os [...] proletários de que eles,
sem ter disto a menor suspeita, haviam sido os autores da
revolução.(CARVALHO, O., 1994, p.37).
Em vez de realizar o assalto direto ao Estado e tomar imediatamente o
poder como na concepção de Lenine, “guerra de movimento”, a sua
manobra é de envolvimento, designando a sociedade civil como
primeiro objetivo a conquistar, ou melhor, a dominar. Isto será feito
predominantemente pela guerra psicológica ou penetração cultural para
minar e neutralizar as “trincheiras” e defesas da sociedade e do Estado
“burgueses”.
Nesta longa luta de desgaste se incluem a neutralização do aparelho de
hegemonia da burguesia e do aparelho de coerção estatal e a superação
psicológica, intelectual e moral das classes subalternas e das classes
burguesas, fazendo-as aceitar (ou se conformar) a transição para o
socialismo como coisa natural, evolutiva e democrática [grifo nosso]
(AVELLAR COUTINHO, 2002, p.38)
2.3 SOCIEDADE CIVIL: ARENA DA REVOLUÇÃO CULTURAL
Ao definir seu método revolucionário, Gramsci põe no centro da análise a idéia
de “transição como processo” (COUTINHO, 1999, p.135; GRAMSCI, 2000, v.3, p.354). O
palco de realização desse processo é o que autor italiano classificou de sociedade civil.
Avellar Coutinho (2002, p.20) explica que “o entendimento gramsciano de
sociedade civil não deve ser confundido com a concepção jurídica comum de
associação ou entidade que não tem por objeto atos de comércio, em oposição à
sociedade comercial”.
Poderia parecer à primeira vista, que sociedade civil seria a soma dos cidadãos
em um determinado país. Não se trata disso. Na concepção gramsciana, ela é
composta por todos “os organismos de participação política aos quais se adere
36. 36
voluntariamente (e, por isso, são ‘privados’)” (AVELLAR COUTINHO, 2002, p.125).
Gramsci entende que todas essas instituições têm um nexo qualquer com a elaboração
e a difusão da cultura (BOBBIO, 1999, p. 68). Dito de outra forma:
São os organismos sociais coletivos voluntários, relativamente
autônomos ante a sociedade política (Estado) como, por exemplo
clubes, sindicatos, corporações, partidos, Igrejas, órgãos de
comunicação de massa, editora, expressões artísticas, movimentos
populares, sociais etc (AVELLAR COUTINHO, 2002, p.22).
O grupo social que exerce a hegemonia no âmbito da sociedade civil (classe
dirigente) pode ser a burguesia dominante na fase histórica econômico-corporativa do
país (para Marx, sociedade burguesa), ou as classes subalternas que se tornaram
sujeitos ativos e organizados e que conquistaram a hegemonia sobre a inteira sociedade,
subtraindo-se da influência da burguesia (Ibid., p.20).
É no interior da sociedade civil – e através dela – que o grupo revolucionário
promoverá uma longa batalha pela conquista da hegemonia (Ibid., p.135). E sua
importância está no fato de que ela é a arena mesma da luta de classes:
A luta de classes se desenvolve na sociedade civil e com ela se busca
a eliminação da burguesia e do estado liberal-democrático (ou da
ditadura totalitária) porque este sistema representa a sociedade
fundada na divisão de classes.
Em última instância, o objetivo será o fim do estado e da própria
classe na sociedade comunista.
A luta de classes para Gramsci tem dois momentos importantes:
– A conquista da hegemonia das classes subalternas sobre a inteira
sociedade civil;
– A destruição ou absorção da burguesia eliminando-a como classe
[...] (Ibid., p.28).
As classes em confronto, a burguesia e proletariado, receberam novas bases de
composição. Fala-se em um proletariado ampliado, do qual, por exemplo, um
homossexual milionário, ativista de seus direitos, poderá ser representante, com muito
mais legitimidade inclusive, que um operário avesso a agitações.
Gramsci, por um lado, assumiu as lutas do que ele denominou de classes
37. 37
subalternas, em cuja composição entram muitos outros elementos além do proletariado
a que Marx se dirigia. Ofensivas antipatriarcais do feminismo, a defesa de pseudo-
direitos das minorias sexuais, a promoção de estilos de vida alternativos, a liberalização
da droga, a defesa da legitimidade do banditismo como protesto social; enfim, as causas
de todos os chamados excluídos, aos quais Marx denominava de lumpen proletariat e
desaconselhava veementemente a aproximação com tais elementos (CARVALHO, O.,
1994, p.44.; AVELLAR COUTINHO, 2002, p.29; LOPES; URETA, 2002 p.39).
Por outro, incluiu sob a designação de burguesia uma mixórdia bem variada de
setores da sociedade designados por ele como classe média. Entram nessa classificação
“ ‘camadas intelectuais, os profissionais liberais empregados’ (pequena e média
burguesia). A classe média alta corresponde à burguesia capitalista e aos executivos
empresariais, não-empregados. A classe média é o ‘não-povo’ ” [grifo do autor]
(AVELLAR COUTINHO, 2002, p.29).
2.4 DA HEGEMONIA
É interessante observar que os termos hegemonia e sociedade civil aparecem
sempre juntos. Este é mais um dos pontos em que cabe uma reflexão mais detida.
Resta então esclarecer: em que consiste essa hegemonia a ser conquistada? De antemão,
podemos dizer que se trata de um dos conceitos fundamentais explicitados por
Gramsci (BOBBIO, 1999, p.65).
A luta pela hegemonia é a visão atualizada que Gramsci tem de um
momento da luta de classes. Mas é importante reconhecer que não
se trata de um processo reformista, mas de um processo trans-
formador, revolucionário, conduzido numa longa e original transição
para o socialismo [grifo nosso] (AVELLAR COUTINHO, 2002, p.28).
Segundo Gramsci (apud COUTINHO, 1999, p.154), “um grupo social pode e
mesmo deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governamental (é essa uma
das condições principais para a própria conquista do poder)”.
38. 38
Avellar Coutinho (2002, p.22) resume o entendimento gramsciano de
hegemonia como “condição ou capacidade de influência e de direção política e cultural
que, por intermédio de organismos sociais voluntários, um grupo social exerce sobre
[o restante da] sociedade civil [...]”. A vanguarda empenhada em fazer a revolução
deverá adquirir paulatinamente essa supremacia. Ou, em outras palavras, “conquistar
progressivamente para si a hegemonia” (COUTINHO,1999, p. 155).
Avellar Coutinho (2002, p.22) explica que essa conquista progressiva do
exercício da hegemonia ocorre em três planos distintos:
A hegemonia é exercida em três esferas diferentes, simultaneamente,
embora em graus diferentes em cada etapa da luta pela hegemonia.
Primeiramente, a de um grupo social sobre a inteira sociedade civil,
disputando-a com o grupo dominante.
Depois, a da sociedade civil, “já conquistada” sobre a sociedade
política, influindo sobre ela pela direção política e cultural.
Finalmente, a do partido sobre todo o processo revolucionário,
inclusive sobre outros partidos e organizações políticas e privadas de
hegemonia.
A hegemonia é portanto uma etapa necessária e preparatória para a obtenção
do poder. A sua conquista pelas classes subalternas (retirando-a das mãos da classe
dominante no seio da sociedade civil) e a formação do consenso (livre da coerção) são o
centro da concepção estratégica gramscista de transição para o socialismo, significando
construir as bases do socialismo, mesmo antes de tomar o poder.
Na construção da hegemonia não se desprezará as alianças e colaborações
com elementos centristas. Gramsci (apud COUTINHO, 1999, p.56-57) afirma:
Para vencer nosso inimigo de classe, que é poderoso, que tem
muitos meios e reservas à sua disposição, devemos aproveitar
qualquer rusga em seu seio e devemos utilizar todo aliado possível,
ainda que incerto, vacilante e provisório.
[...] Na guerra dos exércitos, não se pode atingir o fim estratégico,
que é a destruição do inimigo e a ocupação de seu território, sem ter
atingido antes uma série de objetivos táticos tendentes a desagregar
o inimigo antes de enfrentá-lo em campo aberto.
39. 39
2.5 DA DISTINÇÃO ENTRE DIREÇÃO E DOMÍNIO
Há uma distinção que se não pode desconsiderar: a que Gramsci faz entre
dominar e dirigir. Os detentores da hegemonia exercem o poder de direção. Este último
difere substancialmente do poder de domínio ou controle. Avellar Coutinho (2002, p.23)
explica que classe dominante é aquela que detém o poder, exercendo o domínio e a
coerção por intermédio da sociedade política. Ao passo que, grupo dirigente ou
hegemônico é aquele que tem a hegemonia, ou seja que tem capacidade de influir e de
orientar a ação política, sem uso da coerção.
Gramsci (apud COUTINHO, 1999, p.130) em seus Cadernos esclarece que a
supremacia de um grupo social manifesta-se de dois modos:
Como “domínio” [coerção] e como “direção intelectual e moral”
[hegemonia]. Um grupo social é dominante dos grupos adversários
que tende a “liquidar” ou submeter também mediante a força
armada; e é dirigente dos grupos afins ou aliados.
Em circunstâncias históricas estáveis, o grupo dominante é também dirigente. O
aparelho de coerção estatal (sociedade política) é o instrumento legal do grupo
dominante que assegura a conformidade social e política daqueles que dissentem e
que, por ação ou omissão, podem gerar uma crise de comando ou de direção
(AVELLAR COUTINHO, 2002, p.23).
Daí decorre a idéia de Estado para Gramsci: como articulação da sociedade
política (Estado em sentido estrito) com a sociedade civil (organizada) exercendo
concomitantemente as funções de dominação (poder pela força) e direção (poder
consentido). Este é o fundamento do Estado ampliado.
Olavo de Carvalho (1994, p.37) também reconhece a importância da distinção
gramsciana entre as duas espécies de poder. Acredita que não se trata apenas de uma
conceituação abstrata, mas de um dos fundamentos da estratégia de tomada do poder:
[O domínio é o poder] sobre o aparelho de Estado, sobre a
administração, o exército e a polícia. A hegemonia é o domínio
psicológico sobre a multidão. A revolução leninista tomava o poder
40. 40
para estabelecer a hegemonia. O gramscismo conquista a hegemonia
para ser levado ao poder suavemente, imperceptivelmente.Não é
preciso dizer que o poder, fundado numa hegemonia prévia, é poder
absoluto e incontestável: domina ao mesmo tempo pela força bruta e
pelo consentimento popular – aquela forma profunda e irrevogável
de consentimento que se assenta na força do hábito, principalmente
dos automatismos mentais adquiridos que uma longa repetição torna
inconscientes e coloca fora do alcance da discussão e da crítica. O
governo revolucionário leninista reprime pela violência as idéias
adversas. O gramscismo espera chegar ao poder quando já não
houver mais idéias adversas no repertório mental do povo.
O Prof. Carlos Nelson Coutinho (1999, p.155) afirma, coincidindo em larga
medida com a afirmação de Carvalho, que essa conquista da hegemonia, a
transformação da classe dominada em classe dirigente antes da tomada do poder, é o
elemento central da estratégia gramsciana de transição ao socialismo; uma estratégia
que além de imposta pela maior complexidade das sociedades ocidentais, tem ainda a
vantagem de oferecer resultados mais estáveis e seguros, “pois – segundo Gramsci – ‘a
guerra de posição, uma vez vencida, é decidida definitivamente’ ” [grifo do autor].
No fundo da distinção entre essas duas “categorias” (dirigir e dominar), está a
idéia de uma nova mentalidade:
O socialismo é também a criação de uma nova cultura, sem o que não
poderá realizar plenamente suas potencialidades: e essa é uma idéia
que Gramsci jamais abandonará, como podemos ver em suas
reflexões carcerárias sobre a importância de uma “reforma intelectual
e moral”, da luta pela hegemonia (COUTINHO, 1999, p.20).
Há entretanto que se evitar equívocos com o uso gramsciano da palavra
reforma. Com efeito, Bobbio (1999, p.67) explica que o pensador sardo não atribui a
esse termo o sentido “fraco”, de uso corrente em nossos dias:
Gramsci entende a introdução de uma “reforma” no sentido forte
que esse termo possui quando se refere a uma transformação dos
costumes e da cultura, em antítese ao sentido fraco que ele adquiriu
na linguagem política.
Hegemonia compreende assim em toda a amplitude o momento decisivo do
processo gramsciano. A sua conquista pressupõe um longo percurso já percorrido,
41. 41
durante o qual se logrou êxito em reformar o senso comum e alcançar o consenso. A
conseqüência direta e última é o domínio político baseado duplamente, na força e no
assentimento, que dirige ao mesmo tempo em que domina.
2.6 DA REFORMA DO SENSO COMUM
O senso comum é o conjunto de valores, história, tradições, hábitos e costumes,
conceitos e expectativas (culturais, religiosas, cívicas, sociais, filosóficas etc.) aceito
consciente ou inconscientemente e praticado pelos membros de uma sociedade em
geral. Constitui uma “cultura” ou “filosofia” generalizada que se enraíza na consciência
coletiva e que se expressa numa concepção de vida, de homem e do mundo (GRAMSCI,
2000, v.2, p.209). Gramsci, entretanto, constatava que o senso comum não coincidia
com a ideologia de classe. Considerava esse fato como um complicado obstáculo para
sua estratégia:
É precisamente aí que está o problema. Na maior parte das pessoas,
o senso comum se compõe de uma sopa de elementos heteróclitos
colhidos nas ideologias de várias classes. É por isto que, movido
pelo senso comum, um homem pode agir de maneiras que,
objetivamente, contrariam o seu interesse de classe, como por
exemplo quando um proletário vai à missa.
Nesta simples rotina dominical oculta-se uma mistura das mais
surpreendentes, onde um valor típico da cultura feudal-aristocrática,
reelaborado e posto a serviço da ideologia burguesa, aparece
transfundido em hábito proletário, graças ao qual um pobre coitado,
acreditando salvar a alma, comete, na realidade, [uma “traição”]
contra seus companheiros de classe e contra si mesmo (CARVALHO,
O., 1994, p.38).
A sua reforma consiste em apagar certos valores tradicionais e uma parte
significativa da herança cultural (intelectual e moral) da sociedade dita burguesa.
Concomitantemente, substituí-las por conceitos novos e pragmáticos, capazes de criar
no imaginário coletivo a idéia de inevitabilidade e modernidade da futura sociedade
sem classes (AVELLAR COUTINHO, 2002, p.53; MACCIOCCHI, 1977, p. 198-199). É essa
42. 42
a razão pela qual a estratégia gramsciana não fica limitada aos embates ideológicos e
doutrinários:
A luta pela hegemonia não se resume apenas ao confronto formal
das ideologias, mas penetra num terreno mais profundo, que é o
daquilo que Gramsci denomina — dando ao termo uma acepção
peculiar — “senso comum”. O senso comum é um aglomerado de
hábitos e expectativas, inconscientes ou semiconscientes na maior
parte, que governam o dia-a-dia das pessoas. Ele se expressa, por
exemplo, em frases feitas, em giros verbais típicos, em gestos
automáticos, em modos mais ou menos padronizados de reagir às
situações. O conjunto dos conteúdos do senso comum identifica-se,
para o seu portador humano, com a realidade mesma, embora não
constitua de fato senão um recorte bastante parcial e freqüentemente
imaginoso. O senso comum não “apreende” a realidade, mas opera
nela ao mesmo tempo uma filtragem e uma montagem, segundo
padrões que, herdados de culturas ancestrais, permanecem ocultos e
inconscientes (CARVALHO, O., 1994, p.38).
A superação do senso comum é um empreendimento de profunda e demorada
transformação cultural e psicológica da sociedade civil como um todo e das classes
subalternas em particular. No novo senso comum, “podem ser preservados alguns velhos
conceitos que possam ser ‘instrumentais’, bastando aprimorá-los para também
contribuírem para a formação da nova mentalidade” (AVELLAR COUTINHO, 2002, p.53).
Trata-se de elaborar uma filosofia que torne o senso comum renovado, coerente
com a filosofia popular e com os fins buscados no processo político-ideológico no
qual tudo deve estar inserido. Para isso, será necessário estabelecer um amplo sistema
de difusão do senso comum (GRAMSCI, 2000, v.2, p.205):
É preciso ainda estabelecer um amplo sistema orgânico e também
“espontâneo” no interior da sociedade civil, abrangendo variados
canais informais, desligados das organizações políticas (partidos e
estado), por meio do qual se fará a penetração dos novos sentimentos,
conceitos e expectativas. Dentre os canais de difusão do novo senso
comum, em primeiro lugar estão os meios de comunicação social
(imprensa, rádio e televisão), mas não excluindo, como igualmente
importantes, o setor editorial, a cátedra, o magistério, a expressão
artística e o meio intelectual tradicional (AVELLAR COUTINHO, id.).
Essa renovação deve conter ares de espontaneidade, decorrência natural da
“evolução das consciências”. Por isso mesmo, “são indispensáveis os multiplicadores,