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O pastelão e a torta 
Farsa Medieval Francesa. Autor Anônimo 
Tradução e adaptação: Silvio Selva (abertura adaptada de Artur de Azevedo inserção de Karl 
Valentin) 
Chumbinho 
Julião 
Seu Joaquim 
Dona Maria 
CORO — 
Mais presteza! 
Ligeireza! 
É comer e sorrir 
O povo com certeza 
com demora vai partir. 
Chumbinho — Olá senhor! 
Julião — Olá senhora! 
Joaquim — vá passear! 
Chumbinho — sem se zangar: 
eu vou embora!! 
maria — bem devagar 
vai mastigar 
joaquim (A plateia.) — Provai nossa comida. 
maria (A outro.) — Que belo pastelão! 
joaquim (A outro.) — E nossa torta bem sortida! 
maria (A outro.) — Não quer que o sirva, não? 
joaquim— Escutai! Um costumezinho, 
ao qual convém vos informar, 
a maria, num instantinho, 
vai, a cantar, vos explicar... 
chumbinho — Pois não venham com mais essa! 
julião — comecemos logo a peça!!! 
Prólogo 
joaquim Afinal de contas esse jato d´água é maravilhoso. 
Maria É muito bonito quando ele esguicha. 
joaquim Esguichar, esguichar. O que quer dizer isso? Se ele não esguichasse não seria um jato d’água. 
maria Que tipo de jato seria? 
joaquim Não seria jato nenhum. 
maria Ah. Não? 
joaquim Não seria jato nenhum. Seria apenas um jato que não esguicha. 
maria Sim, mas ele está ai. 
joaquim Claro que ele está ai. 
maria Mas, a gente não pode vê-lo.
joaquim Quando ele não esguicha, não. 
maria A gente também não pode escuta-lo. 
Joaquim Quando ele esguicha, a água murmura. 
maria Ele murmura e ao mesmo tempo, esguicha. 
joaquim Não é o jato que murmura, é a água! 
maria Sem o jato? 
joaquim Não, com o jato. 
maria A gente pode comprar um jato desses? 
joaquim Não, a gente não tem nem pra comer. 
maria Então, como a Prefeitura fez para conseguir um jato desses? 
joaquim É uma licitação... 
maria. - Entregaram esguichando? 
Joaquim Não. Primeiro é preciso esburacar o chão, tirar os jacarés, cortar árvores, depois instalar o 
encanamento, cimentar o chão, botar os ladrilhos horrorosos, e então se coloca um muro em volta. 
Maria E depois? 
joaquim Depois terminou. 
maria Mas a gente ainda pode vê-lo. 
joaquim Quem? 
Maria O jato em si. 
Joaquim Não, só quando se abre a água é que o jato começa a esguichar pro alto. 
Maria De alegria? 
joaquim Bem, é uma lei da natureza, da física, sei lá! Quando se abre uma torneira, a água esguicha pro 
alto. 
maria Nem sempre. Quando se abre uma torneira, a água sai pra baixo. 
joaquim Uma torneira e uma praça pública são duas coisas bem diferentes. 
Maria Sim. Mas não se pode dizer que um jato d’água como esses seja uma coisa útil. 
jjoaquim Ele não tem nenhuma utilidade. 
maria Então, por que se constróem esses esguichos? 
joaquim Pra enfeitar, pra olhar! 
maria Quem? 
jjoaquim Os habitantes da cidade. 
maria Há quanto tempo que esse chafariz existe? 
joaquim Desde 1860, eu acho. Quer dizer, há quase cem anos. Não, espera, antes tinha a pracinha com os 
jacarés e sei lá quanto tempo faz.. 
maria Bem, então todos os habitantes já devem tê-lo visto. 
Joaquim É uma questão de gosto. As coisas belas podem ser vistas duas, três vezes... 
maria Tá certo... duas, três vezes. Mas os velhos ou mesmo os que moram perto da praça já devem ter em 
enchido o saco de tanto olhar. E ele nem é tão bonito assim. 
joaquim Mas ele não foi feito somente para os habitantes da cidade, ele foi construido, principalmente para 
os turistas. 
Maria Não, isso não é verdade. Os turistas não vêm pra cá por causa de água, eles vêm por causa do 
sanduiche. 
joaquim É... 
maria Eu nunca vi um turista perguntar: “Por favor, meu senhor, onde será que eu poderia ver um chafariz 
que esguicha água, por aqui?” Mas já vi muitos me perguntarem: “Onde tem o sanduiche, eu vi o 
Monumento do Sanduiche e me deu....” 
joaquim Tá certo, ninguém vem aqui por causa da água, nem ninguém pode matar a fome com a água do 
esguicho. 
Maria Então, porque botaram esse muro em volta? 
joaquim Se alguém chegar muito perto do chafariz, não poderá nadar. 
maria E no inverno? 
julião No inverno? Nem sei se ligam no inverno. 
maria Mas se um turista quiser ver o chafariz no inverno? 
Joaquim Ele não vai poder. Terá de esperar o verão. 
Maria Ele vai ter que ficar esse tempo todo esperando? 
joaquim Não, ele vai embora e volta no verão. 
maria E se ele não voltar? 
joaquim Ele aí não vai ver. 
maria É mais fácil então pro pessoal daqui. Eles podem ver quando quiserem. 
joaquim Não no inverno. 
maria Por que ele não funciona no inverno? 
joaquim Dizem que a função principal dele é refrescar o calor e acho que o jato d’água ficaria congelado.
maria Ah, isso não pode ser verdade. Aqui nem faz tanto frio assim e tem mais: A água corrente não 
congela nunca. 
joaquim Você tem razão. Uma vez um encanador me disse isso. Vai ver que as autoridades públicas não 
estão sabem disso. 
maria É preciso então avisar a eles. Eles vão ficar contentes e vão economizar o trabalho de ter que fechar 
o jato d’água. 
joaquim Claro. É ai que a gente vê que até nós também podemos ter boas ideias de vez em quando. 
maria A única coisa certa pra mim é que a água espirra pro alto, desce, cai no negócio redondo e escapa 
pelo ralo. 
joaquim Mas é certíssimo. Porque se a gente observar bem o ralo é a coisa mais importante que tem; mais 
importante mesmo que o próprio jato d’água, porque se não houvesse o ralo para escorrer e se a água não 
pudesse escapar por ele desde 1860, a cidade inteira, a o país inteiro, talvez estariam completamente 
inundados. E o que você está dizendo é que haveria uma catástrofe descomunal se, por acaso alguém 
resolvesse, para se divertir, entupir o ralo do chafariz. 
maria Ah, agora eu sei por que é que eles botaram um muro em volta.. 
Joaquim, Bem, vamos embora que esta conversa deu fome, vamos comer um pastelão 
CENA 1 
Julião Credo, toda essa história me deu mais fome ainda.... 
Chumbinho ela só falou de fonte, devia ter dado sede 
julião pois foi a parte do pastelão que me deu fome 
Chumbinho: (andando pela cena, tremendo, fingindo muito frio) Brrrr... Brr... 
JULIÃO: (sentado, triste) O que é que há, Chumbinho, que frio é este?! 
Chumbinho: é freio de fome, compadre! Se ao menos tivesse um bom casaco igual o seu... Brrrr... 
Julião: O meu foi feito num grande alfaiate (se exibindo com um casaco velho). 
Chumbinho: O que é que há compadre, deu pra se exibir agora é? 
Julião: Este frio de fome também me mata. (disfarçando) Também com este casaco tão ralo. Bem se vê 
que não sou nenhum ricaço. 
Chumbinho: E eu? Sou por acaso um milionário? Tenho frio... E tenho fome... Estou furioso por não ter um 
só vintém na bolsa! Isto, não é situação para um homem de minha idade. A menos que... Eu arrisque o 
pescoço emprestando de algum trouxa. 
Julião: Mas não se prende ninguém por pedir emprestado. 
Chumbinho: Mas se prende muita gente por emprestar sem avisar ao dono! E eu, se não tentar qualquer 
coisa, só me resta ficar aqui de boca aberta, à espera de alguma comidinha, que não tem motivo nenhum 
pra voar pra minha boca... Pobre boca, Pobre estômago... Ah! Meu pobre estomagozinho... 
JULIÃO: A vida é dura mesmo. Em vez de falar do seu estômago, faríamos melhor negócio se 
descobríssemos um meio de comer sem ir para a cadeia. ((começam procurar pelo palco) 
Chumbinho: Ah! 
Julião: Ah! 
Chumbinho: Não. (procurando) 
Julião: Ah! 
Chumbinho: Ah! 
Julião: Diabo! O jeito é ir para um hotel sem mexer nas moedas da bolsa. 
Chumbinho: Eu não conheço nenhum hotel assim. Mesmo porque, nós não temos moeda nenhuma na 
bolsa. Em toda parte se paga para comer. É um costume besta, mas é assim. 
Julião: Só nos resta mesmo mendigar de porta em porta. 
Chumbinho: (VOLTANDO-SE) É! 
Julião: (VOLTANDO-SE) É! 
AMBOS: É. 
(Julião SAI).
Chumbinho: (batendo no fundo do palco) Tem piedade, meu bom senhor, de um pobre fenômeno que 
tem fome duas vezes por dia ou até três. Uma monstruosidade da natureza que tenho no estômago. 
CENA 02 
Seu Joaquim: (Aparecendo) Meu amigo, coitadinho, esfomeado, eu sinto sua dor, mas eu não tenho 
dinheiro. É minha mulher quem manda na casa e guarda a bolsa e, no momento ela não está. Mas passe lá 
por volta do Natal e nós lhe daremos uma boa esmola. 
(Chumbinho vai embora com raiva.). 
CENA 03 
Julião: (aproxima-se do mesmo lugar, gemendo) Boa gente, uma esmola, pois sou muito necessitado. 
(pausa, respira, começa gritar) Estou dizendo que sou um necessitado e que preciso de qualquer coisa 
para por no estômago. 
Dona Maria: (APARECE) Meu marido não está em casa e é ele quem guarda o cofre. Volte amanhã que 
nós lhe daremos uma boa esmola. 
Julião: (imitando) Volte amanhã que lhe daremos uma boa esmola! É um ofício engraçado este de ter fome 
toda hora. Ora! Deixemos essa tarefa para o compadre Chumbinho... 
(senta-se). 
CENA 04 
Nesta cena, Julião finge se esconder, escutando diálogos.. 
Seu Joaquim: (saindo da cena) Mulher, jantarei na cidade, hoje. A respeito do pastelão, fica combinado 
que mandarei uma pessoa buscá-lo. 
Dona Maria: Está bem, você sabe que sem ordem não faço nada. 
Seu Joaquim: Ótimo! Só entregue o pastelão à pessoa que lhe fizer certo sinal. 
Dona Maria: E qual será este sinal? 
Seu Joaquim: Nem bilhetes, nem conversa. Arranjarei um moleque ou qualquer desempregado. Meu 
mensageiro dará um sinal assim (faz uma mímica toda esquisita). A este sinal você entregará o pastelão e 
o despacha logo. 
Dona Maria: (repete a mímica de maneira diferente) Até logo. 
ELE SAI E MARIA REPETE MAIS UMA VEZ A MÍMICA E ENTRA EM CASA. 
CENA 05 
Chumbinho: (na cena, observa Julião com olhar perdido) Como? Arranjou alguma coisa? 
JULIÃO: Bolas! Alimentaram-me com palavras. E você? 
Chumbinho: Também. É sempre a mesma coisa. É a mulher que guarda a bolsa, mas volte pelo Natal que 
nós lhe daremos uma boa esmola. 
JULIÃO: (IMITANDO) É meu marido que tem o dinheiro. Nós lhe daremos uma boa soma, amanhã. 
Chumbinho: Essa vida é uma dureza! 
JULIÃO COMEÇA A ANDAR. 
JULIÃO: Que vida, meu Deus! (PAUSA) Tive uma ideia! 
Chumbinho: O quê? 
JULIÃO: Nada! (CONTINUA ANDANDO) Se eu lhe indicar um meio... 
Chumbinho: De comer? Vá dizendo! 
JULIÃO: (PAUSADAMENTE) É o seguinte: vá nesse seu passinho sexy em direção daquela casa onde 
mora a encantadora pasteleira. (para a plateia) Cruzes! Encantadora! Um fiofó de cachorro é mais bonito. 
Suponhamos que você lhe diga...
Chumbinho: Inútil! Ela já me deu um bruto fora! 
JULIÃO: Escute aqui. Suponhamos que você lhe diga: venho da parte de seu Joaquim buscar certo 
pastelão que ele mandou buscar pra levar até ele porque ele não pode buscar.... 
Chumbinho: Bem... 
JULIÃO: Compreendeu? 
Chumbinho: Não, mas eu tenho boa memória e vou guardar tudo: Venho da parte do seu Pastelão... 
Julião: (GRITANDO) Venho da parte de certo senhor gordo... Não. Venho da parte de seu Joaquim buscar 
certo gordo pastelão... 
Chumbinho: Isso não é difícil. 
JULIÃO: E para provar que você é mesmo o portador, você tem que fazer assim e assim (MÍMICA). Ande 
depressa! 
Chumbinho: (APROXIMA-SE DA PORTA, FAZ O GESTO, INTERROGA JULIÃO). 
Julião: Isso mesmo. 
Chumbinho: (APROXIMANDO-SE E TORNA A VOLTAR) Mas... 
Julião: Vá, vá! 
Chumbinho: Vou tentar... (VOLTA SUBITAMENTE PARA JULIÃO) E se o marido não tiver saído ainda? 
Julião: Eu o vi sair com meus próprios olhos. 
Chumbinho: Está bem, vou fazer tudo aquilo. (APROXIMA-SE DA CASA) A que ponto chegamos! (ALTO) 
Olá! (BATE) Ô de casa! 
Julião: (SAI ESFREGANDO AS MÃOS) Comeremos pastelão, antes de São João! 
CENA 06 
Chumbinho: Senhora... Senhora!... Senhora! 
Dona Maria: Que é que há? 
Chumbinho: (DE UMA VEZ) Venho da parte do seu Paste... Do seu Joaquim. Ele me disse que viesse 
pegar certo pastelão que todos estão esperando para o jantar. 
Dona Maria: (DESCONFIADA) Mas antes de lhe mandar não lhe disse ele alguma palavra... Algum sinal 
para eu saber que o senhor veio mesmo da parte dele? Alguma coisa assim: (mimica) 
Chumbinho: (CONFIANTE) Não disse nada, mandou que eu fizesse assim... (mimica) 
Dona Maria: É esse o sinal combinado. Espere um pouco que vou lá dentro por o pastelão num prato para 
que não se perca nenhum pedacinho. 
Chumbinho: Oh! Fique tranquila. Teremos o cuidado de comê-lo até a última migalha. 
Dona Maria: (VOLTANDO) Que disse? 
Chumbinho: Disse... que não dá pra vê-lo embrulhado na toalha. 
Dona Maria entrega o pastelão. 
Chumbinho: Terei tanto cuidado com ele, bela senhora, como se ele fosse minha marmita.... 
CENA 07 
Chumbinho: (SÓ) Ela poderia ao pior desejar com apetite. (OLHANDO AMOROSAMENTE PARA O 
PASTELÃO) Um pastel... Um rico pastelzinho (DANÇA COM O PASTELÃO) Santo pastel abençoe o 
pasteleiro, o seu pastelzinho e a sua prole! (OLHANDO O PASTELÃO) Um pastelão que faria descer para 
o inferno todos os habitantes do paraíso. (coloca o pastel no chão e se ajoelha perante ele) Senhor 
pastel! Realíssimo pastelão! Eu te saúdo! Digníssimo e saborosíssimo senhor. Chumbinho, o pobre diabo 
vos convida esta noite para jantar. (ROLA AO CHÃO, PERNAS PARA O AR, DE ALEGRIA) Um pastelão 
para mim (LEVANTANDO-SE LENTAMENTE) Um pastelão dentro de mim! (AMOROSAMENTE) Eu o 
morderei lentamente, comerei devagarinho... Ele é meu... É meu... Muito meu. (JULIÃO ENTRA
ENQUANTO CHUMBINHO TERMINA A ÚLTIMA FRASE. VENDO-O) Ele é nosso, muito nosso. De nós 
dois Julião e eu. 
CENA 08 
Julião: Você! E com o pastelão! 
Chumbinho: Senhor Julião, apresento-lhe sua alteza, o Pastelão, nosso convidado desta noite. 
JULIÃO: Então? Não disse? E você fez um bom trabalho. 
Chumbinho: (SEGURANDO O PASTELÃO RESPEITOSAMENTE) O sereníssimo Pastelão... 
Julião: Miam... Miam... 
Chumbinho: O pasteianíssimo pastelão... 
Julião: Miam... Miam... 
Chumbinho: O pastelaníssimo pastelão. 
Julião: Miam... Miam... 
SAEM BABANDO DE ENTUSIASMO NUMA (*) DANÇA DE GULODICE. 
CENA 09 
Joaquim: (ENTRA FURIOSO) Sim senhor! Que desaforo. Como é que se deixa na porta, esperando 
inutilmente, um convidado como eu? Nunca vi gente tão grosseira. Chego todo alegre, toco a campainha, 
ensaio uma linda saudação... E nada! (AMEAÇADOR) Mas saberei me vingar. (BATE NA PORTA) Agora 
vou saborear o pastelão com a minha pequena Maria. (SILÊNCIO. BATE COM MAIS FORÇA) Será que 
hoje todas as portas estão fechadas para mim? (PÁRA). 
Dona Maria: Ué! Por que todo este barulho? Já de volta? E o jantar com os amigos? 
Seu Joaquim: (MAL HUMORADO) Bati, bati ninguém respondeu. Meus amigos devem ter se esquecido do 
dia. (COM VONTADE) Mas não tem importância, farei a festa sem eles, só com minha Mariazinha. 
Dona Maria: Pena que só tem uns biscoitinhos e nos resta uma torta. 
Seu Joaquim: He! He! Brincalhona… está se esquecendo do pastelão? 
Dona Maria: O pastelão? Que eu saiba não existe dois pastelões. 
Seu Joaquim: (INQUIETO) Que é que você quer dizer? 
Dona Maria: O seu portador não entregou o pastelão? 
Seu Joaquim: Que portador? 
Dona Maria: O que veio cá e que, como tínhamos combinado, fez todo o sinal 
Seu Joaquim: (CONTENDO-SE) Às vezes é contra a vontade que um marido chega ao ponto de dar uma 
surra na mulher. Mas há casos em que isso é preciso para a segurança do lar e para manter o respeito, 
essa tal Maria da Penha, vou te contar... (FURIOSO) Você pensa que sou tolo? 
Dona Maria: (IRRITADA) Mas o que é isso? Você sabe muito bem que o pastelão... 
Seu Joaquim: (INTERROGANDO-A) Você o comeu? 
Dona Maria: (SUFOCADA) Oh! 
Seu Joaquim: Se você o comeu, sua gorda gulosa, farei digeri-lo a porretadas! Que fez do pastelão? Vou 
lhe... 
Dona Maria: (INTERROMPENDO) Como ousa me fazer de palhaça depois de ter enchido essa enorme 
barriga? Bandido, ordinário, vilão... 
Seu Joaquim: Cale a boca, mulher! 
Dona Maria: Mentiroso! Patife! Doido de pedra! 
Seu Joaquim: Que fez do meu pastelão, responda! 
Dona Maria: Já disse que vieram...
Seu Joaquim: Você insiste em me fazer de idiota, quando chego de barriga vazia e não encontro nada para 
comer? Vai ver agora o que é um marido furioso. 
PUXA-A PARA DENTRO DE CASA. OUVE-SE BARULHO DE PANCADA E GRITOS. Os dois gritam, se 
percebe que um bate no outro 
CENA 10 
Chumbinho: (COM VOLÚPIA) Ah... Não posso mais nem respirar. 
Julião: Estou cheio. Uf! Que jantar! 
Chumbinho: Pois eu (APONTA PARA A BARRIGA) tenho um lugarzinho onde ainda há uma vaga. Uma 
torta com creme, por exemplo, encheria muito bem este caminho. 
Julião: (EUFÓRICO) Talvez, sem forçar muito... 
Chumbinho: Então vá bater à porta da pasteleira e traga... 
Julião: Pode deixar, conheço bem o terreno. 
Chumbinho: Bem, vá então buscar a sobremesa dessa refeição de arcebispo. (VAI SAINDO E PÁRA). 
Mas lembre-se de que somos sócios e que tudo que arranjar deve ser dividido com o outro. 
Julião: Combinado, meu compadre. Metade para cada um. 
Chumbinho sai. 
CENA 11 
Dona Maria: (DE DENTRO) Ai... Ai... Ai... Mamãe estou morta de pancada! Tratar assim sua Mariazinha... 
Ai... ai... 
Julião: (BATENDO) Ô de casa! Abra a porta, boa senhora! 
Maria: (APARECENDO) Que deseja? 
Julião: Parece que o pastelão esteve suculento... Vim agora buscar a torta. O sinal, faz favor! 
Dona Maria: Não é preciso. Você me parece sincero. (para a platéia) A torta está mesmo a seu gosto. 
(para ele) Mas ele não mandou buscar também a bebida? 
Julião: É verdade, já ia me esquecendo... Esqueço sempre alguma coisa. Dê-me uma tubaina, uma 
cachacinha.... 
Dona Maria: Quantas garrafas? 
Julião: Quantas? Umas duas. Uma e depois a outra. 
Dona Maria: Vou buscar três. 
Julião: Estão me tratando como se eu fosse um príncipe. Estes pasteleiros estão nos arranjando um 
banquete. 
Joaquim se aproxima e lhe dá uma pancada. 
Seu Joaquim: Meu pastelão! Que faz de meu pastelão? Responda ou mando enforcá-lo. 
Julião: (DEFENDENDO-SE) Senhor, mentiram-lhe. Nunca vi pastelão algum em minha vida. 
Seu Joaquim: Ladrão, canalha! Toma patife! (BATE). 
Julião: Meu bom senhor, meu honrado senhor! 
Seu Joaquim: Que fez do meu pastelão? 
Julião: Informaram mal ao meu caro senhor. Nunca vi esse tal pastelão. Não estou entendendo... 
Seu Joaquim: Já vou fazer você entender. (BATE) Então, comeu ou não comeu? 
Julião: Ai! Ai! Pare, por favor. Sim, comi tudo. Dois, três, quatro, dez. 
Seu Joaquim: Não, foi um só. Um soberbo pastelão. Toma! Responda! Quero o meu pastelão. Onde está 
ele? 
Julião: Ui! Ui! Escondido, senhor.
Seu Joaquim: Onde? 
Julião: Num lugar nada fácil de achar. 
Seu Joaquim: (LEVANTANDO A BENGALA) Vou te ajudar, bandido. Onde escondeu o pastelão? 
Julião: Numa barriga... Na minha senhor, calma... Senhor Joaquim. Na barriga do meu companheiro... Por 
favor, afaste esse bastão de mim, que eu conto tudo. Ouvi, por acaso, quando estava descansando ali, a 
história do mensageiro e do sinal de sua senhora. 
Seu Joaquim: E depois? 
Julião: Então minha fome convidou meu companheiro para vir buscar o pastelão. 
Seu Joaquim: Ah, já sei. E agora, você vem buscar a torta. 
Julião: Mas não sou culpado, meu caro senhor. É o meu companheiro. Ele viu a torta quando veio buscar o 
pastelão.. Havíamos combinado dividir tudo. 
Seu Joaquim: Ah! Compreendo calhordas! Já que dividem tudo, vá buscar seu companheiro para que ele 
receba a sua parte nas pancadas. Senão te mando enforcar. 
Julião: Muito justo, senhor, porque não terá ele o seu quinhão na surra, se eu tive o meu no pastelão? 
CENA 12 
Chumbinho: (ENTRANDO) É então, e a torta de amêndoas? 
Julião: Ah! Era de amêndoas? Meu caro Chumbinho, a senhora é quem está cuidando dela e me disse: O 
mensageiro que veio buscar o pastelão tem que ser o mesmo que vem buscar a torta. Se quisermos comer 
a torta, é você quem deverá buscá-la. 
Chumbinho: Sempre eu (COM AR SUPERIOR). Você me deixa louco. Sou eu o único que sabe o que quer 
dizer a palavra trabalho. 
JULIÃO: Você tem razão, Chumbinho. Fará melhor trabalho que eu. Vá buscar a torta. 
Chumbinho: Sim, irei. Ela vale a amolação. Oh! A torta! O pasteleiro deve ter a mão leve... 
Julião: Ah! Sim, a mão leve. Isso você vai ver logo... 
CENA 13 
Chumbinho: (BATENDO COM FORÇA) Olá! Depressa, minha senhora. (MARIA APARECE) Venho da 
parte de seu marido, para levar a torta. 
Dona Maria: Pois não. Entre. O senhor deve estar cansado. 
Chumbinho: Obrigado, estou com pressa. 
Dona Maria: Oh, sim! Mas tome alguma coisa. 
ELE ENTRA. OUVE-SE A VOZ DE JOAQUIM. BARULHO E GRITOS. Chumbinho: Ai, piedade! Ai! Ai! Por 
piedade! 
VÊ-SE SOMENTE O PÉ DE JOAQUIM QUE O ATIRA PARA FORA. 
Seu Joaquim: Eis a torta, mensageiro do diabo! 
Chumbinho: (NO CHÃO) Socorro! Estou morto! Ai! 
Julião: (ENTRA MANCANDO) E a torta? 
Chumbinho: (LEVANTANDO-SE COM DIFICULDADE) Não é tão boa quanto o pastelão. Você me jogou 
um belo amassador de pão. Bate como um louco! Mas era preciso dividir, não? 
Julião: Era preciso dividir, não era? Não seja ciumento, tive também o meu pedaço. 
Chumbinho: Que o capeta leve o pasteleiro, a mulher e aquela torta! 
Julião: O pastelão era melhor. 
Chumbinho: Melhor? Era sim. Sagrado pastelão! 
Julião: E depois, não custou nada.
Chumbinho: O diabo, a sua torta! 
Julião: Console-se, compadre. Comemos antes de amanhã. 
Chumbinho: Se a gente pudesse comer mais um pouco até a noite... 
OLHAM-SE COMO SE ACABASSEM DE DECIDIR QUALQUER COISA. 
OS DOIS: Piedade, meu bom senhor! Alguma coisa para matar a fome de dois pobres diabos que ainda não 
jantaram! 
Fim
Chumbinho: O diabo, a sua torta! 
Julião: Console-se, compadre. Comemos antes de amanhã. 
Chumbinho: Se a gente pudesse comer mais um pouco até a noite... 
OLHAM-SE COMO SE ACABASSEM DE DECIDIR QUALQUER COISA. 
OS DOIS: Piedade, meu bom senhor! Alguma coisa para matar a fome de dois pobres diabos que ainda não 
jantaram! 
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O Pastelão e a Torta: Farsa Medieval Francesa

  • 1. O pastelão e a torta Farsa Medieval Francesa. Autor Anônimo Tradução e adaptação: Silvio Selva (abertura adaptada de Artur de Azevedo inserção de Karl Valentin) Chumbinho Julião Seu Joaquim Dona Maria CORO — Mais presteza! Ligeireza! É comer e sorrir O povo com certeza com demora vai partir. Chumbinho — Olá senhor! Julião — Olá senhora! Joaquim — vá passear! Chumbinho — sem se zangar: eu vou embora!! maria — bem devagar vai mastigar joaquim (A plateia.) — Provai nossa comida. maria (A outro.) — Que belo pastelão! joaquim (A outro.) — E nossa torta bem sortida! maria (A outro.) — Não quer que o sirva, não? joaquim— Escutai! Um costumezinho, ao qual convém vos informar, a maria, num instantinho, vai, a cantar, vos explicar... chumbinho — Pois não venham com mais essa! julião — comecemos logo a peça!!! Prólogo joaquim Afinal de contas esse jato d´água é maravilhoso. Maria É muito bonito quando ele esguicha. joaquim Esguichar, esguichar. O que quer dizer isso? Se ele não esguichasse não seria um jato d’água. maria Que tipo de jato seria? joaquim Não seria jato nenhum. maria Ah. Não? joaquim Não seria jato nenhum. Seria apenas um jato que não esguicha. maria Sim, mas ele está ai. joaquim Claro que ele está ai. maria Mas, a gente não pode vê-lo.
  • 2. joaquim Quando ele não esguicha, não. maria A gente também não pode escuta-lo. Joaquim Quando ele esguicha, a água murmura. maria Ele murmura e ao mesmo tempo, esguicha. joaquim Não é o jato que murmura, é a água! maria Sem o jato? joaquim Não, com o jato. maria A gente pode comprar um jato desses? joaquim Não, a gente não tem nem pra comer. maria Então, como a Prefeitura fez para conseguir um jato desses? joaquim É uma licitação... maria. - Entregaram esguichando? Joaquim Não. Primeiro é preciso esburacar o chão, tirar os jacarés, cortar árvores, depois instalar o encanamento, cimentar o chão, botar os ladrilhos horrorosos, e então se coloca um muro em volta. Maria E depois? joaquim Depois terminou. maria Mas a gente ainda pode vê-lo. joaquim Quem? Maria O jato em si. Joaquim Não, só quando se abre a água é que o jato começa a esguichar pro alto. Maria De alegria? joaquim Bem, é uma lei da natureza, da física, sei lá! Quando se abre uma torneira, a água esguicha pro alto. maria Nem sempre. Quando se abre uma torneira, a água sai pra baixo. joaquim Uma torneira e uma praça pública são duas coisas bem diferentes. Maria Sim. Mas não se pode dizer que um jato d’água como esses seja uma coisa útil. jjoaquim Ele não tem nenhuma utilidade. maria Então, por que se constróem esses esguichos? joaquim Pra enfeitar, pra olhar! maria Quem? jjoaquim Os habitantes da cidade. maria Há quanto tempo que esse chafariz existe? joaquim Desde 1860, eu acho. Quer dizer, há quase cem anos. Não, espera, antes tinha a pracinha com os jacarés e sei lá quanto tempo faz.. maria Bem, então todos os habitantes já devem tê-lo visto. Joaquim É uma questão de gosto. As coisas belas podem ser vistas duas, três vezes... maria Tá certo... duas, três vezes. Mas os velhos ou mesmo os que moram perto da praça já devem ter em enchido o saco de tanto olhar. E ele nem é tão bonito assim. joaquim Mas ele não foi feito somente para os habitantes da cidade, ele foi construido, principalmente para os turistas. Maria Não, isso não é verdade. Os turistas não vêm pra cá por causa de água, eles vêm por causa do sanduiche. joaquim É... maria Eu nunca vi um turista perguntar: “Por favor, meu senhor, onde será que eu poderia ver um chafariz que esguicha água, por aqui?” Mas já vi muitos me perguntarem: “Onde tem o sanduiche, eu vi o Monumento do Sanduiche e me deu....” joaquim Tá certo, ninguém vem aqui por causa da água, nem ninguém pode matar a fome com a água do esguicho. Maria Então, porque botaram esse muro em volta? joaquim Se alguém chegar muito perto do chafariz, não poderá nadar. maria E no inverno? julião No inverno? Nem sei se ligam no inverno. maria Mas se um turista quiser ver o chafariz no inverno? Joaquim Ele não vai poder. Terá de esperar o verão. Maria Ele vai ter que ficar esse tempo todo esperando? joaquim Não, ele vai embora e volta no verão. maria E se ele não voltar? joaquim Ele aí não vai ver. maria É mais fácil então pro pessoal daqui. Eles podem ver quando quiserem. joaquim Não no inverno. maria Por que ele não funciona no inverno? joaquim Dizem que a função principal dele é refrescar o calor e acho que o jato d’água ficaria congelado.
  • 3. maria Ah, isso não pode ser verdade. Aqui nem faz tanto frio assim e tem mais: A água corrente não congela nunca. joaquim Você tem razão. Uma vez um encanador me disse isso. Vai ver que as autoridades públicas não estão sabem disso. maria É preciso então avisar a eles. Eles vão ficar contentes e vão economizar o trabalho de ter que fechar o jato d’água. joaquim Claro. É ai que a gente vê que até nós também podemos ter boas ideias de vez em quando. maria A única coisa certa pra mim é que a água espirra pro alto, desce, cai no negócio redondo e escapa pelo ralo. joaquim Mas é certíssimo. Porque se a gente observar bem o ralo é a coisa mais importante que tem; mais importante mesmo que o próprio jato d’água, porque se não houvesse o ralo para escorrer e se a água não pudesse escapar por ele desde 1860, a cidade inteira, a o país inteiro, talvez estariam completamente inundados. E o que você está dizendo é que haveria uma catástrofe descomunal se, por acaso alguém resolvesse, para se divertir, entupir o ralo do chafariz. maria Ah, agora eu sei por que é que eles botaram um muro em volta.. Joaquim, Bem, vamos embora que esta conversa deu fome, vamos comer um pastelão CENA 1 Julião Credo, toda essa história me deu mais fome ainda.... Chumbinho ela só falou de fonte, devia ter dado sede julião pois foi a parte do pastelão que me deu fome Chumbinho: (andando pela cena, tremendo, fingindo muito frio) Brrrr... Brr... JULIÃO: (sentado, triste) O que é que há, Chumbinho, que frio é este?! Chumbinho: é freio de fome, compadre! Se ao menos tivesse um bom casaco igual o seu... Brrrr... Julião: O meu foi feito num grande alfaiate (se exibindo com um casaco velho). Chumbinho: O que é que há compadre, deu pra se exibir agora é? Julião: Este frio de fome também me mata. (disfarçando) Também com este casaco tão ralo. Bem se vê que não sou nenhum ricaço. Chumbinho: E eu? Sou por acaso um milionário? Tenho frio... E tenho fome... Estou furioso por não ter um só vintém na bolsa! Isto, não é situação para um homem de minha idade. A menos que... Eu arrisque o pescoço emprestando de algum trouxa. Julião: Mas não se prende ninguém por pedir emprestado. Chumbinho: Mas se prende muita gente por emprestar sem avisar ao dono! E eu, se não tentar qualquer coisa, só me resta ficar aqui de boca aberta, à espera de alguma comidinha, que não tem motivo nenhum pra voar pra minha boca... Pobre boca, Pobre estômago... Ah! Meu pobre estomagozinho... JULIÃO: A vida é dura mesmo. Em vez de falar do seu estômago, faríamos melhor negócio se descobríssemos um meio de comer sem ir para a cadeia. ((começam procurar pelo palco) Chumbinho: Ah! Julião: Ah! Chumbinho: Não. (procurando) Julião: Ah! Chumbinho: Ah! Julião: Diabo! O jeito é ir para um hotel sem mexer nas moedas da bolsa. Chumbinho: Eu não conheço nenhum hotel assim. Mesmo porque, nós não temos moeda nenhuma na bolsa. Em toda parte se paga para comer. É um costume besta, mas é assim. Julião: Só nos resta mesmo mendigar de porta em porta. Chumbinho: (VOLTANDO-SE) É! Julião: (VOLTANDO-SE) É! AMBOS: É. (Julião SAI).
  • 4. Chumbinho: (batendo no fundo do palco) Tem piedade, meu bom senhor, de um pobre fenômeno que tem fome duas vezes por dia ou até três. Uma monstruosidade da natureza que tenho no estômago. CENA 02 Seu Joaquim: (Aparecendo) Meu amigo, coitadinho, esfomeado, eu sinto sua dor, mas eu não tenho dinheiro. É minha mulher quem manda na casa e guarda a bolsa e, no momento ela não está. Mas passe lá por volta do Natal e nós lhe daremos uma boa esmola. (Chumbinho vai embora com raiva.). CENA 03 Julião: (aproxima-se do mesmo lugar, gemendo) Boa gente, uma esmola, pois sou muito necessitado. (pausa, respira, começa gritar) Estou dizendo que sou um necessitado e que preciso de qualquer coisa para por no estômago. Dona Maria: (APARECE) Meu marido não está em casa e é ele quem guarda o cofre. Volte amanhã que nós lhe daremos uma boa esmola. Julião: (imitando) Volte amanhã que lhe daremos uma boa esmola! É um ofício engraçado este de ter fome toda hora. Ora! Deixemos essa tarefa para o compadre Chumbinho... (senta-se). CENA 04 Nesta cena, Julião finge se esconder, escutando diálogos.. Seu Joaquim: (saindo da cena) Mulher, jantarei na cidade, hoje. A respeito do pastelão, fica combinado que mandarei uma pessoa buscá-lo. Dona Maria: Está bem, você sabe que sem ordem não faço nada. Seu Joaquim: Ótimo! Só entregue o pastelão à pessoa que lhe fizer certo sinal. Dona Maria: E qual será este sinal? Seu Joaquim: Nem bilhetes, nem conversa. Arranjarei um moleque ou qualquer desempregado. Meu mensageiro dará um sinal assim (faz uma mímica toda esquisita). A este sinal você entregará o pastelão e o despacha logo. Dona Maria: (repete a mímica de maneira diferente) Até logo. ELE SAI E MARIA REPETE MAIS UMA VEZ A MÍMICA E ENTRA EM CASA. CENA 05 Chumbinho: (na cena, observa Julião com olhar perdido) Como? Arranjou alguma coisa? JULIÃO: Bolas! Alimentaram-me com palavras. E você? Chumbinho: Também. É sempre a mesma coisa. É a mulher que guarda a bolsa, mas volte pelo Natal que nós lhe daremos uma boa esmola. JULIÃO: (IMITANDO) É meu marido que tem o dinheiro. Nós lhe daremos uma boa soma, amanhã. Chumbinho: Essa vida é uma dureza! JULIÃO COMEÇA A ANDAR. JULIÃO: Que vida, meu Deus! (PAUSA) Tive uma ideia! Chumbinho: O quê? JULIÃO: Nada! (CONTINUA ANDANDO) Se eu lhe indicar um meio... Chumbinho: De comer? Vá dizendo! JULIÃO: (PAUSADAMENTE) É o seguinte: vá nesse seu passinho sexy em direção daquela casa onde mora a encantadora pasteleira. (para a plateia) Cruzes! Encantadora! Um fiofó de cachorro é mais bonito. Suponhamos que você lhe diga...
  • 5. Chumbinho: Inútil! Ela já me deu um bruto fora! JULIÃO: Escute aqui. Suponhamos que você lhe diga: venho da parte de seu Joaquim buscar certo pastelão que ele mandou buscar pra levar até ele porque ele não pode buscar.... Chumbinho: Bem... JULIÃO: Compreendeu? Chumbinho: Não, mas eu tenho boa memória e vou guardar tudo: Venho da parte do seu Pastelão... Julião: (GRITANDO) Venho da parte de certo senhor gordo... Não. Venho da parte de seu Joaquim buscar certo gordo pastelão... Chumbinho: Isso não é difícil. JULIÃO: E para provar que você é mesmo o portador, você tem que fazer assim e assim (MÍMICA). Ande depressa! Chumbinho: (APROXIMA-SE DA PORTA, FAZ O GESTO, INTERROGA JULIÃO). Julião: Isso mesmo. Chumbinho: (APROXIMANDO-SE E TORNA A VOLTAR) Mas... Julião: Vá, vá! Chumbinho: Vou tentar... (VOLTA SUBITAMENTE PARA JULIÃO) E se o marido não tiver saído ainda? Julião: Eu o vi sair com meus próprios olhos. Chumbinho: Está bem, vou fazer tudo aquilo. (APROXIMA-SE DA CASA) A que ponto chegamos! (ALTO) Olá! (BATE) Ô de casa! Julião: (SAI ESFREGANDO AS MÃOS) Comeremos pastelão, antes de São João! CENA 06 Chumbinho: Senhora... Senhora!... Senhora! Dona Maria: Que é que há? Chumbinho: (DE UMA VEZ) Venho da parte do seu Paste... Do seu Joaquim. Ele me disse que viesse pegar certo pastelão que todos estão esperando para o jantar. Dona Maria: (DESCONFIADA) Mas antes de lhe mandar não lhe disse ele alguma palavra... Algum sinal para eu saber que o senhor veio mesmo da parte dele? Alguma coisa assim: (mimica) Chumbinho: (CONFIANTE) Não disse nada, mandou que eu fizesse assim... (mimica) Dona Maria: É esse o sinal combinado. Espere um pouco que vou lá dentro por o pastelão num prato para que não se perca nenhum pedacinho. Chumbinho: Oh! Fique tranquila. Teremos o cuidado de comê-lo até a última migalha. Dona Maria: (VOLTANDO) Que disse? Chumbinho: Disse... que não dá pra vê-lo embrulhado na toalha. Dona Maria entrega o pastelão. Chumbinho: Terei tanto cuidado com ele, bela senhora, como se ele fosse minha marmita.... CENA 07 Chumbinho: (SÓ) Ela poderia ao pior desejar com apetite. (OLHANDO AMOROSAMENTE PARA O PASTELÃO) Um pastel... Um rico pastelzinho (DANÇA COM O PASTELÃO) Santo pastel abençoe o pasteleiro, o seu pastelzinho e a sua prole! (OLHANDO O PASTELÃO) Um pastelão que faria descer para o inferno todos os habitantes do paraíso. (coloca o pastel no chão e se ajoelha perante ele) Senhor pastel! Realíssimo pastelão! Eu te saúdo! Digníssimo e saborosíssimo senhor. Chumbinho, o pobre diabo vos convida esta noite para jantar. (ROLA AO CHÃO, PERNAS PARA O AR, DE ALEGRIA) Um pastelão para mim (LEVANTANDO-SE LENTAMENTE) Um pastelão dentro de mim! (AMOROSAMENTE) Eu o morderei lentamente, comerei devagarinho... Ele é meu... É meu... Muito meu. (JULIÃO ENTRA
  • 6. ENQUANTO CHUMBINHO TERMINA A ÚLTIMA FRASE. VENDO-O) Ele é nosso, muito nosso. De nós dois Julião e eu. CENA 08 Julião: Você! E com o pastelão! Chumbinho: Senhor Julião, apresento-lhe sua alteza, o Pastelão, nosso convidado desta noite. JULIÃO: Então? Não disse? E você fez um bom trabalho. Chumbinho: (SEGURANDO O PASTELÃO RESPEITOSAMENTE) O sereníssimo Pastelão... Julião: Miam... Miam... Chumbinho: O pasteianíssimo pastelão... Julião: Miam... Miam... Chumbinho: O pastelaníssimo pastelão. Julião: Miam... Miam... SAEM BABANDO DE ENTUSIASMO NUMA (*) DANÇA DE GULODICE. CENA 09 Joaquim: (ENTRA FURIOSO) Sim senhor! Que desaforo. Como é que se deixa na porta, esperando inutilmente, um convidado como eu? Nunca vi gente tão grosseira. Chego todo alegre, toco a campainha, ensaio uma linda saudação... E nada! (AMEAÇADOR) Mas saberei me vingar. (BATE NA PORTA) Agora vou saborear o pastelão com a minha pequena Maria. (SILÊNCIO. BATE COM MAIS FORÇA) Será que hoje todas as portas estão fechadas para mim? (PÁRA). Dona Maria: Ué! Por que todo este barulho? Já de volta? E o jantar com os amigos? Seu Joaquim: (MAL HUMORADO) Bati, bati ninguém respondeu. Meus amigos devem ter se esquecido do dia. (COM VONTADE) Mas não tem importância, farei a festa sem eles, só com minha Mariazinha. Dona Maria: Pena que só tem uns biscoitinhos e nos resta uma torta. Seu Joaquim: He! He! Brincalhona… está se esquecendo do pastelão? Dona Maria: O pastelão? Que eu saiba não existe dois pastelões. Seu Joaquim: (INQUIETO) Que é que você quer dizer? Dona Maria: O seu portador não entregou o pastelão? Seu Joaquim: Que portador? Dona Maria: O que veio cá e que, como tínhamos combinado, fez todo o sinal Seu Joaquim: (CONTENDO-SE) Às vezes é contra a vontade que um marido chega ao ponto de dar uma surra na mulher. Mas há casos em que isso é preciso para a segurança do lar e para manter o respeito, essa tal Maria da Penha, vou te contar... (FURIOSO) Você pensa que sou tolo? Dona Maria: (IRRITADA) Mas o que é isso? Você sabe muito bem que o pastelão... Seu Joaquim: (INTERROGANDO-A) Você o comeu? Dona Maria: (SUFOCADA) Oh! Seu Joaquim: Se você o comeu, sua gorda gulosa, farei digeri-lo a porretadas! Que fez do pastelão? Vou lhe... Dona Maria: (INTERROMPENDO) Como ousa me fazer de palhaça depois de ter enchido essa enorme barriga? Bandido, ordinário, vilão... Seu Joaquim: Cale a boca, mulher! Dona Maria: Mentiroso! Patife! Doido de pedra! Seu Joaquim: Que fez do meu pastelão, responda! Dona Maria: Já disse que vieram...
  • 7. Seu Joaquim: Você insiste em me fazer de idiota, quando chego de barriga vazia e não encontro nada para comer? Vai ver agora o que é um marido furioso. PUXA-A PARA DENTRO DE CASA. OUVE-SE BARULHO DE PANCADA E GRITOS. Os dois gritam, se percebe que um bate no outro CENA 10 Chumbinho: (COM VOLÚPIA) Ah... Não posso mais nem respirar. Julião: Estou cheio. Uf! Que jantar! Chumbinho: Pois eu (APONTA PARA A BARRIGA) tenho um lugarzinho onde ainda há uma vaga. Uma torta com creme, por exemplo, encheria muito bem este caminho. Julião: (EUFÓRICO) Talvez, sem forçar muito... Chumbinho: Então vá bater à porta da pasteleira e traga... Julião: Pode deixar, conheço bem o terreno. Chumbinho: Bem, vá então buscar a sobremesa dessa refeição de arcebispo. (VAI SAINDO E PÁRA). Mas lembre-se de que somos sócios e que tudo que arranjar deve ser dividido com o outro. Julião: Combinado, meu compadre. Metade para cada um. Chumbinho sai. CENA 11 Dona Maria: (DE DENTRO) Ai... Ai... Ai... Mamãe estou morta de pancada! Tratar assim sua Mariazinha... Ai... ai... Julião: (BATENDO) Ô de casa! Abra a porta, boa senhora! Maria: (APARECENDO) Que deseja? Julião: Parece que o pastelão esteve suculento... Vim agora buscar a torta. O sinal, faz favor! Dona Maria: Não é preciso. Você me parece sincero. (para a platéia) A torta está mesmo a seu gosto. (para ele) Mas ele não mandou buscar também a bebida? Julião: É verdade, já ia me esquecendo... Esqueço sempre alguma coisa. Dê-me uma tubaina, uma cachacinha.... Dona Maria: Quantas garrafas? Julião: Quantas? Umas duas. Uma e depois a outra. Dona Maria: Vou buscar três. Julião: Estão me tratando como se eu fosse um príncipe. Estes pasteleiros estão nos arranjando um banquete. Joaquim se aproxima e lhe dá uma pancada. Seu Joaquim: Meu pastelão! Que faz de meu pastelão? Responda ou mando enforcá-lo. Julião: (DEFENDENDO-SE) Senhor, mentiram-lhe. Nunca vi pastelão algum em minha vida. Seu Joaquim: Ladrão, canalha! Toma patife! (BATE). Julião: Meu bom senhor, meu honrado senhor! Seu Joaquim: Que fez do meu pastelão? Julião: Informaram mal ao meu caro senhor. Nunca vi esse tal pastelão. Não estou entendendo... Seu Joaquim: Já vou fazer você entender. (BATE) Então, comeu ou não comeu? Julião: Ai! Ai! Pare, por favor. Sim, comi tudo. Dois, três, quatro, dez. Seu Joaquim: Não, foi um só. Um soberbo pastelão. Toma! Responda! Quero o meu pastelão. Onde está ele? Julião: Ui! Ui! Escondido, senhor.
  • 8. Seu Joaquim: Onde? Julião: Num lugar nada fácil de achar. Seu Joaquim: (LEVANTANDO A BENGALA) Vou te ajudar, bandido. Onde escondeu o pastelão? Julião: Numa barriga... Na minha senhor, calma... Senhor Joaquim. Na barriga do meu companheiro... Por favor, afaste esse bastão de mim, que eu conto tudo. Ouvi, por acaso, quando estava descansando ali, a história do mensageiro e do sinal de sua senhora. Seu Joaquim: E depois? Julião: Então minha fome convidou meu companheiro para vir buscar o pastelão. Seu Joaquim: Ah, já sei. E agora, você vem buscar a torta. Julião: Mas não sou culpado, meu caro senhor. É o meu companheiro. Ele viu a torta quando veio buscar o pastelão.. Havíamos combinado dividir tudo. Seu Joaquim: Ah! Compreendo calhordas! Já que dividem tudo, vá buscar seu companheiro para que ele receba a sua parte nas pancadas. Senão te mando enforcar. Julião: Muito justo, senhor, porque não terá ele o seu quinhão na surra, se eu tive o meu no pastelão? CENA 12 Chumbinho: (ENTRANDO) É então, e a torta de amêndoas? Julião: Ah! Era de amêndoas? Meu caro Chumbinho, a senhora é quem está cuidando dela e me disse: O mensageiro que veio buscar o pastelão tem que ser o mesmo que vem buscar a torta. Se quisermos comer a torta, é você quem deverá buscá-la. Chumbinho: Sempre eu (COM AR SUPERIOR). Você me deixa louco. Sou eu o único que sabe o que quer dizer a palavra trabalho. JULIÃO: Você tem razão, Chumbinho. Fará melhor trabalho que eu. Vá buscar a torta. Chumbinho: Sim, irei. Ela vale a amolação. Oh! A torta! O pasteleiro deve ter a mão leve... Julião: Ah! Sim, a mão leve. Isso você vai ver logo... CENA 13 Chumbinho: (BATENDO COM FORÇA) Olá! Depressa, minha senhora. (MARIA APARECE) Venho da parte de seu marido, para levar a torta. Dona Maria: Pois não. Entre. O senhor deve estar cansado. Chumbinho: Obrigado, estou com pressa. Dona Maria: Oh, sim! Mas tome alguma coisa. ELE ENTRA. OUVE-SE A VOZ DE JOAQUIM. BARULHO E GRITOS. Chumbinho: Ai, piedade! Ai! Ai! Por piedade! VÊ-SE SOMENTE O PÉ DE JOAQUIM QUE O ATIRA PARA FORA. Seu Joaquim: Eis a torta, mensageiro do diabo! Chumbinho: (NO CHÃO) Socorro! Estou morto! Ai! Julião: (ENTRA MANCANDO) E a torta? Chumbinho: (LEVANTANDO-SE COM DIFICULDADE) Não é tão boa quanto o pastelão. Você me jogou um belo amassador de pão. Bate como um louco! Mas era preciso dividir, não? Julião: Era preciso dividir, não era? Não seja ciumento, tive também o meu pedaço. Chumbinho: Que o capeta leve o pasteleiro, a mulher e aquela torta! Julião: O pastelão era melhor. Chumbinho: Melhor? Era sim. Sagrado pastelão! Julião: E depois, não custou nada.
  • 9. Chumbinho: O diabo, a sua torta! Julião: Console-se, compadre. Comemos antes de amanhã. Chumbinho: Se a gente pudesse comer mais um pouco até a noite... OLHAM-SE COMO SE ACABASSEM DE DECIDIR QUALQUER COISA. OS DOIS: Piedade, meu bom senhor! Alguma coisa para matar a fome de dois pobres diabos que ainda não jantaram! Fim
  • 10. Chumbinho: O diabo, a sua torta! Julião: Console-se, compadre. Comemos antes de amanhã. Chumbinho: Se a gente pudesse comer mais um pouco até a noite... OLHAM-SE COMO SE ACABASSEM DE DECIDIR QUALQUER COISA. OS DOIS: Piedade, meu bom senhor! Alguma coisa para matar a fome de dois pobres diabos que ainda não jantaram! Fim