Carta Aberta ao Ministério da Saúde sobre o câncer do colo do útero
Debate sobre a idade ideal para mamografia
1. Debate em saúde
A medicina está longe de ser uma ciência exata. Tal qual uma partitura musical que permite várias interpretações, lidar com doentes
e doenças também permite diferentes opções, ainda que solidamente embasadas em conhecimentos técnico-científicos.
Dessa diversidade de abordagem surge a idéia desta subseção, na qual áreas da medicina são abordadas e discutidas em diferentes
ângulos, por renomados especialistas.
Nelson Hamerschlak
Gisela Dias de Matos
Editores da seção
Visto a polêmica, a sessão Debate em Saúde con-
A mamografia na prevenção do vidou renomados especialistas no assunto, Doutores
câncer de mama: qual a idade ideal? Silvio Bromberg (SB), Carlos Shimizu (CS) e Paula de
Camargo Moraes (PCM) para esclarecer alguns aspec-
Nelson Hamerschlak1, Gisela Dias de Matos2, Silvio tos desse tema ainda tão controverso.
Bromberg3, Carlos Shimizu4, Paula de Camargo Moraes5 Boa leitura!
1
Hematologista; Chefe do Serviço de Hematologia do Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São
Paulo (SP), Brasil.
2
Enfermeira Responsável pela Educação do Paciente e Família do Hospital Israelita Albert Einstein Nelson Hamerschlak (NH) e Gisela Dias de Matos
– HIAE, São Paulo (SP), Brasil. (GDM): Você concorda que a adoção da prática da reali-
3
Doutor; Coordenador Cirúrgico do Grupo de Filantropia Mamária do Hospital Israelita Albert
Einstein – HIAE; Coordenador da Pós-Graduação Lato Sensu em Mastologia do Hospital Israelita zação de mamografia seja o melhor caminho para preve-
Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil. nir o câncer de mama? Por quê?
4
Médico Radiologista do Setor de Mama do Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, do Hospital
das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo Carlos Shimizu (CS) e Paula de Camargo Moraes
– ICESP, São Paulo (SP), Brasil. (PCM): Sim. A mamografia reduz a mortalidade por
5
Médica Radiologista do Setor de Mama do Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE; Médica
Assistente do Instituto de Radiologia do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo – USP, câncer de mama em até 30 - 40% pela detecção preco-
São Paulo (SP), Brasil. ce. É o principal método diagnóstico no rastreamento
do câncer de mama, cientificamente comprovado por
Um dos segredos do sucesso da luta contra o câncer é a estudos controlados envolvendo centenas de milhares
prevenção. Sem dúvida, a realização de exames de pre- de mulheres em diversos países.
venção e de detecção precoce da neoplasia de mama Silvio Bromberg (SB): O rastreamento mamográ-
em mulheres acima de 40 anos e naquelas com risco fico tem sido cuidadosamente estudado como nenhum
identificado na família, até de forma bem mais precoce outro teste de rastreamento jamais o foi; nos últimos 50
– entre os 25 e os 30 anos, deve ser estimulada. anos houve mais de 10 trials randomizados com cerca de
Sabe-se que o câncer de mama é o que mais afeta a 10 anos de seguimento. Parece irônico que ainda conti-
população feminina e está entre as principais causas de nuemos a discutir seu valor dentro da prática médica.
morte em mulheres. Foram estimados aproximadamen- Programas de rastreamento conforme faixa etária
te 50 mil novos casos no Brasil em 2010 pelo Instituto demonstram uma redução de 10 a 25% na mortalidade
Nacional do Câncer (INCA). Contudo, se diagnostica- do câncer de mama específico entre as mulheres. O be-
do precocemente, o câncer de mama apresenta chances neficio do rastreamento mamográfico aumenta durante
de cura superiores a 90%. o decorrer da vida. Além disso, sabemos que, em muitos
No entanto, em alguns países, a comunidade médica casos, o diagnóstico precoce do câncer de mama pode
recomenda que a realização regular de mamografia seja possibilitar até 100% de curabilidade.
feita depois dos 50 anos de idade, com base na análise Acredito que a melhor estratégia de prevenção
dos resultados de programas de redução da mortalida- ocorre por meio da aplicação de programas educativos
de por câncer de mama. e de conscientização da saúde mamária; realização de
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programas de rastreamento por imagem e submissão a CS e PCM: No Brasil, entrou em vigor no ano pas-
exame clínico periódico. sado a Lei Federal 11.664/2008, que normatiza a reali-
zação de mamografia para todas as mulheres a partir
NH e GDM: Para você, qual a vantagem em realizar dos 40 anos(3). Mesmo antes de 2009, a realização da
a primeira mamografia aos 35, aos 40 ou aos 45 anos mamografia a partir dos 40 anos já era adotada em mui-
numa paciente sem histórico familiar? E em paciente tos hospitais brasileiros, como o Hospital das Clínicas
com histórico: qual a diferença? da Universidade de São Paulo. Essa lei é um passo im-
CS e PCM: Apesar de a mamografia ser o méto- portantíssimo no sentido de políticas de rastreamento
do de rastreamento do câncer de mama com eficácia nacionais que garantam a inclusão de todas as brasilei-
comprovada há vários anos, ainda se discute muito na ras com idade superior a 40 anos. Entretanto, políticas
comunidade médica a idade com a qual se deva iniciar de rastreamento envolvem não só recursos financeiros e
a mamografia, se aos 40 ou aos 50 anos. A recomen- humanos, como também conscientização da população
dação das principais entidades médicas que estudam da necessidade da realização do exame.
o assunto é o início do rastreamento aos 40 anos para É importante salientar que a mamografia não evita o
mulheres que não apresentam alto risco para o câncer surgimento de novos casos de cânceres de mama. Estes
de mama e este deve ser feito anualmente. continuarão a surgir, mesmo nas mulheres que realizam
Já nas mulheres de alto risco (risco maior que 20% de o rastreamento. O objetivo da mamografia é detectar o
desenvolver câncer de mama), o rastreamento deve ter iní- câncer de mama em estádio ainda precoce, o que está
cio entre 25 e 35 anos e deve ter a ressonância magnética associado a maiores taxas de sucesso da terapia. O que
associada. Ambos os exames devem ser feitos anualmente, a mamografia mudou na história natural da evolução
juntos ou com intervalo de seis meses entre eles. do câncer de mama foi permitir a detecção do câncer
SB: Estima-se que uma mulher que viva até os 85 com pequenas dimensões, bem antes da lesão se tornar
anos de idade terá a chance de um em nove de desen- palpável, possibilitando cirurgias com preservação da
volver um câncer de mama. Como o grau do risco não mama e com maiores taxas de cura.
é o mesmo em toda a população, algumas nunca desen- SB: O programa de rastreamento não evita o surgi-
volverão um câncer de mama enquanto outras viverão mento de novos casos de câncer mama, mas apenas o
com esse risco aumentado. diagnóstico da doença. Sendo um exame de prevenção
Sabe-se que o câncer de mama é esporádico em cer- secundária – diferentemente do exame de prevenção do
ca de 80% dos casos, é familiar em cerca de 10 a 20% câncer de colo uterino – a mamografia simplesmente
e hereditário em cerca de 5 a 10% dos casos. Por esse “atesta” a situação da mama naquele momento.
motivo, procuramos classificar a população feminina O rastreamento mamográfico a partir dos 40 anos
conforme a chance de a mulher desenvolver o câncer seguramente levará ao overdiagnosis e, consequente-
de mama durante a vida. mente, ao overtreatment. Estima-se que uma em cada
Chamamos de “alto risco” aquela mulher que tem três mulheres será tratada desnecessariamente, ou seja,
uma chance de 20% ou mais de desenvolver o câncer por uma situação que provavelmente nunca iria preju-
de mama durante a vida, enquanto classificamos como dicá-la. No entanto, como não temos a possibilidade de,
“risco padrão” aquelas que têm o risco de desenvolver o ao diagnosticar uma lesão, saber se ela irá ou não pro-
câncer de mama igual ao da população geral. gredir, acreditamos que devemos continuar praticando
As mulheres classificadas como “alto risco” são o chamado overtreatment. É provável que, no futuro,
aquelas que têm casos de câncer de mama e/ou ovário possamos identificar nessas lesões determinadas altera-
na família; aquelas que tiveram diagnóstico prévio de ções biológicas que permitam definir uma possível evo-
lesão pré-maligna de mama; aquelas que receberam ra- lução e, então, a necessidade do tratamento.
dioterapia sobre o tórax etc.
Como as pacientes de alto risco geralmente de- NH e GDM: Você acha que o sistema público de
senvolvem a doença em idade mais precoce, sugere- saúde precisará de quanto tempo para absorver a de-
se a esse grupo exame mamográfico anual a partir dos manda por exames de mamografia para a população a
25-30 anos, conforme é recomendado por diferentes partir dos 40 anos? Acredita que será viável a introdu-
guidelines(1,2). ção dessa prática no Sistema Único de Saúde (SUS)?
CS e PCM: A realização do rastreamento mamo-
NH e GDM: Em sua opinião, se a adoção da rea- gráfico para todo o território nacional depende de re-
lização da mamografia a partir dos 40 anos realmente cursos econômicos que possam tornar viável essa polí-
“pegar”, em quanto tempo esse procedimento vai evitar tica de saúde. Dizer quando isso ocorrerá é algo difícil
o surgimento de novos casos de câncer de mama? de precisar.
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SB: Infelizmente não tenho o dado demográfico des- cerca de 20% terá um resultado pré-maligno ou maligno
sa faixa etária, sendo assim fica difícil analisar em quanto e necessitarão de cuidados específicos, ou seja, o SUS
tempo o sistema de saúde irá absorver essa população. deverá absorver um contingente grande de mulheres
Infelizmente, alguns dados que temos demonstram uma que precisarão de atenção além do rastreamento. Since-
fragilidade do sistema de saúde quanto ao atendimen- ramente, não sei se estamos preparados para isso.
to dessas mulheres. Temos que, na população feminina
no Brasil assistida pelo SUS, 34% nunca teve sua mama
examinada; somente 9% dos municípios brasileiros têm REFERÊNCIAS
mamógrafo, sendo que, entre esses, somente cerca de 1. Carlson RW, Anderson BO, Bensinger W, Cox CE, Davidson NE, Edge SB, Farrar
20% são submetidos ao controle de qualidade do Co- WB, Goldstein LJ, Gradishar WJ, Lichter AS, McCormick B, Nabell LM, Reed
légio Brasileiro de Radiologia. Temos que 49% das EC, Silver SM, Smith ML, Somlo G, Theriault R, Ward JH, Winer EP, Wolff A;
National Comprehensive Cancer Network. NCCN practice guidelines for breast
mulheres acima de 50 anos de idade nunca fizeram ma- cancer. Oncology (Williston Park). 2000;14(11A):33-49.
mografia. Devemos ainda considerar que cerca de 10% 2. Ready K, Arun B. Clinical assessment of breast cancer risk based on family
das mulheres rastreadas necessitarão de outros exames history. J Natl Compr Canc Netw. 2010;8(10):1148-55.
complementares, como biópsia, por exemplo. Dessas, 3. Brasil. Lei Federal n.º. 11.664, de 29 de abril de 2008. DOU 30.04.2008.
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