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Organizadora
              Cecilia Ferreira
(em nome da Academia Araçatubense de Letras)




CONTOS
Premiados

             (Contos Escolhidos)
                 3.ª Edição



              Araçatuba, 2011
Copyright © vários autores
                     Edição: Cecilia Ferreira
                 Editoração e capa: Arlen Pontes
         CTP e Impressão: Editora Somos - (18) 3636.7790
                 Secretaria Municipal da Cultura
             Rua Anita Garibaldi, 75 - CEP 16010-280
                          Araçatuba - SP
         www.secretariacult@gmail.com - (18) 3636.1270




Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP Brasil)
                               ,


  Contos escolhidos / organizadora Cecilia Ferreira. --
  3. ed. -- Araçatuba, SP : Editora Somos, 2011.
  Vários autores.
  ISBN: 978-85-60886-37-1
  1. Contos brasileiros - Coletâneas I. Ferreira,
  Cecilia.

  11-09058                                                CDD-869.9308

Índices para catálogo sistemático:
1. Contos : Coletâneas : Literatura brasileira
869.9308
24.º Concurso Internacional de Contos
               da Cidade de Araçatuba
Categoria Nacional
1.º Lugar – Emir Rossoni – Cotovelos ao parapeito ......................................... 13

Menção Honrosa Nacional
José Carlos Barbosa de Aragão – Di-Lis ................................................................... 19
Guilherme Azambuja Castro – O Assessor ............................................................. 23
João Paulo Vaz – Os meninos ................................................................................. 29
Marcelo de Campos Lilla – Ana dorme............................................................... 30
Ronaldo Cagiano Barbosa – Sem Natal .............................................................. 41

Categoria Regional
1.º Lugar – Tarso José Ferreira – Amizade Sincera ......................................... 51
2.º Lugar – Danieli Elias Richart – A Palavra muda ....................................... 57
3.º Lugar – Mário Henrique Silveira Bueno – A Travessia.............................. 59

Menção Honrosa Regional
Regina Ruth Rincón Caíres – A magia do circo ............................................... 65
Odair Maurício de Albuquerque – A morte não manda recado ....................... 77
Ronaldo Ruiz Galdino – Uma história de 2924 .............................................. 85
Josiane da Silva Mesquita – O gato na janela .................................................. 93
Wanilda Maria Meira Costa Borghi – Acerto ..................................................... 101

Categoria Internacional
1.º Lugar – Tânia Ganho Gomes da Silva – Perfeita simetria .................... 105

Menção Honrosa Internacional
Vitor Manuel Capela Batista – As Insónias....................................................... 111


                                                                                                          5
Conto dos Julgadores
Cecilia Ferreira – Insuflando adágios ............................................................. 121
Tito Damazo – Perfeccionismo ........................................................................... 125




    6
Prefácio



       L
                  uiz Costa Lima publicou, além de muitos outros, o livro Por
                  que Literatura (Vozes, 1969), cujo primeiro capítulo recebe
                  o mesmo título. Ali, naquele ensaio, o professor e crítico lite-
rário de renome discute as razões pelas quais a literatura, tão antiga quanto
a civilização, subsiste como um organismo vivo, exposto ao tempo, ao espaço
e à história. Logo, sempre submetida a questionamentos, ameaças, crises e
transformações.
         Esses dinamismos e metamorfoses de que se reveste a literatura se
fazem, sobretudo, porque sua carnadura é essencialmente linguagem. E esta,
por sua vez, é ser mutante de que derivam permanentemente, inacabadamen-
te, seres e coisas, dentre os quais, a palavra, ou seja, a própria linguagem.
         À página 35 deste ensaio, o crítico afirma que “A arte e a literatura se
justificam por expressarem, a partir do lócus semântico do polissêmico (Della
Volpe), uma visão articulada do tempo. Visão que ao leitor ou ao expectador
consequente não pode ser apenas motivo de contemplação, elemento de des-
frute, prazer dos sentidos, porém mais do que isso, condição para o entendi-
mento crítico da realidade. E quando dizemos crítico pensamos em um ato
que não se encerra em compreender, mas em atuar a partir desta compre-
ensão”. E mais adiante diz que “A tarefa da literatura continuará a ser, agora
como antes, a de atingir e a de trazer na palavra a raiz das coisas onde se
deposita a raiz do homem.”
         Na esteira destas reflexões, podemos admitir que a literatura hoje, tanto
quanto ontem, se constitui um arcabouço de conhecimentos, os quais dão
à realidade uma dimensão outra, quase sempre inusitada, problematizando,
confrontando e polemizando com os paradigmas socioculturais e econômicos
estabelecidos.
         É verdade que a literatura – objeto de linguagem verbal escrita essen-

                                                                             7
cialmente – tem perdido o poder e o prestígio que até aqui mantivera, perante
um universo de pluricódigos, como o de hoje, em que a linguagem visual so-
fisticada tem poder de comunicação excepcional e avassalador.
        Todavia, a despeito desta crise inevitável em que se encontra, segura-
mente não perdeu seu fim e objeto, tampouco aqueles valores, os quais se
podem depreender das ponderações de Luiz Costa Lima acima transcritas.
        A crise, dentre outros fatores, estabelece a necessidade de se buscarem
mecanismos eficazes para superação dos problemas e obstáculos surgidos.
E a história mostra que é justamente na crise que a literatura, como de resto
as outras artes, se redimensiona num refazimento que a renova e a reedifica,
como uma fênix restabelecendo-se de sua própria cinza.
        Nesse sentido, cremos, é que se colocam os vários certames literários,
artísticos e culturais promovidos por instituições estatais e privadas, como este
já tradicional Concurso de Contos Cidade de Araçatuba, cujo resultado se con-
signa nas páginas deste livro.
        São dignificadores do bem estar de uma sociedade eventos e ações des-
ta natureza, os quais possibilitam à literatura espaços em que pode exercer
sua atuação como um dos fenômenos culturais fundamentais para a com-
plexa construção do espírito e pensamento humanos. Autorizar espaços que
garantam aos escritores o estímulo da criação literária, de forma convicta e
consciente da importância de tal acontecimento, como o faz a Secretaria da
Cultura do Município de Araçatuba, é um contributo de suma relevância para
a superação de uma crise que, assim, há de soçobrar.
        Escrever literatura não é fácil. E o fácil normalmente pode satisfazer
interesses pessoais, quase nunca os da literatura, que é um bem de interesse
social. Escrever literatura é, antes de tudo, um prazer a quem o faz, mas tam-
bém um trabalho que requer empenho criador.
        A essência da obra literária consiste em não ser concessiva nem sub-
missa. O que não quer dizer que dê ou deva dar as costas ao seu contexto
social. Pelo contrário, sua forma e conteúdo o refletem e o identificam. Mas
com ele se relaciona como um objeto autônomo, que se impõe como distinto

   8
e capaz de polemizar, contestar, denunciar, além de afetar, enlevando, engran-
decendo, sensibilizando e ou incomodando o seu leitor.
       Esse conjunto de elementos, aqui considerados, foram pressupostos
básicos pelos quais se conduziu a comissão julgadora deste 24º Concurso de
Contos Cidade de Araçatuba ao cumprir esta dificílima tarefa de determinar
posições a textos literários em competição.
       A presente obra traz no seu bojo a maioria daqueles contos que, se-
gundo a comissão, vai na pegada de um fazer literário que procura preservar
o papel de seu objeto e resistir aos contraventores de sua essência, cujo fim,
parece, quererem inutilizar, ou banalizar, autorizando e reverenciando sub-
produtos de uma escrita que procuram credenciar como obra literária.




                                                                         9
Categoria
NACIONAL




             11
1.º Lugar
                            Categoria Nacional
                             Porto Alegre - RS


                            Emir Rossoni é escritor e publicitário. Trabalha em
                            agências de publicidade gaúchas como redator e
                            diretor de criação, tendo trabalhado um ano em
                            Portugal. Possui publicações em sete antologias de
                            contos e uma de poesia e recebeu diversas premia-
                            ções nacionais na área da literatura.



                Cotovelos ao parapeito
                                Emir Ross




       S
                erá que era a eternidade que ele buscava? Alguns pensamentos
                até me disseram que sim. Mas sua posição estática a deixar
                apenas os cabelos moverem-se ao vento, que era forte, desper-
tou muitas dúvidas.
       Ele parecia saber o que queria. E queria eu que seus olhos virassem as
meninas de lado um pouco, para eu capturar algum reflexo de suas inspira-
ções. E como ele não se movia. E como ele parecia decidido. E como ele estava
longe e nada ouvia e ignorava qualquer movimento alheio, era hora de con-
tentar-me com a imagem que queimava ao outro lado da rua, no edifício um
pouco mais baixo, onde, do terraço, talvez ele aguardasse o momento certo.
       O momento, eu sabia – ao menos disso eu sabia – vivia dentro dele e
pretendia logo-logo viver fora: fugir das órbitas do que não se pode ver.
       Descansei minha curiosidade sobre sua imagem; acomodei-me. Fitava,
encantado. E minha existência foi navegando, navegando, navegando; numa


                                                                         13
ponte seca feita de um raio de olhar que unia os dois prédios. E, na ponte, não
existia nenhuma lei, nem a lei da gravidade.
        Cotovelos ao parapeito.
        Adormeci meia pálpebra; o dia mugia preguiçoso. Remoía uma tentati-
va de querer saber o que o sujeito fazia de braços estendidos na beira do topo
de um semi-arranha-céus. Firme-leve. Olhos fechados. Boca a sentir o sabor
do vento.
        Não. Eu não sentia medo por ele estar ali. Nem calafrios. No máximo,
um pouco de tédio que sempre é menor que a curiosidade. Então, a pálpebra
sonolenta despertou com o assobiar do vento. Vento que bate na vidraça: cai
cambaleante. Tombeia esmurrado por outro braço de vento que vem no senti-
do contrário: acidentes acontessem: cai morto.
        Mas lá ao outro lado, o vento só encontra cabelos; e cabelos gostam de
voar, porém, amarrados à cabeça do homem, não decolam. Lavava-se com os
ares. Purificava-se de dedos abertos e coxas contraídas. Porque não precisava
mais respirar. A cabeça tombada deixa o ar entrar por conta. Ele parecia feito
de nada. Seus contornos eram soltos como esboços de qualquer coisa. Então
vi que ele tinha poros abertos, muito abertos de vida, que saía e entrava e saía e
entrava muitas vezes a cada piscar que eu tentava não dar. E quando tentei não
piscar – não pisquei por bom tempo, até que agüentei não mexer as pálpebras
e não verter os olhos – vi que ele podia não estar lá, e vi depois de um átimo
de mim que havia outro ao seu lado, idêntico, crente que ia alcançar alguma
coisa. E quando a nuvem do não agüento mais enegreceu minha vista, eles
novamente misturaram-se. Dois-em-um-em-nenhum-num.
        No mesmo lugar. A fazer a coisa mesma.
        Nada.
        Então pensei que fosse um louco. Doido. Varrido-sozinho-fugido. Mas
loucos não fecham os olhos diante do vazio. Cientizam o que vêem. Amalucam
os terraços aos tropeções. Trôpegos indecisos. Ele era tudo de qualquer coisa.
Menos louco de momento.
        E o que era eu da janela fechada do apartamento a olhar por horas o

  14
homem que não se movia?
        Talvez eu fosse o grito que ele não ouviu.
        “Hei!”
        Talvez eu fosse a frase que o vento derrubou enquanto atravessava a
ponte.
        “Faz o que aí?”
        Sobre o que eu era não vale interessar. Quis perguntar-lhe muitas coi-
sas; mas o maldito não tinha ouvidos para o mundo que eu morava. E o ser
mais íntimo que tínhamos em comum era o vento e, esse, não gostava de
mim no momento. Nem adiantava pedir apresentações. Ora quando este me
tentava derrubar, sustentava o homem lá de cima; e ora quando eu gritava, ele
carregava minha voz para o lado oposto; em compensação, me fazia ouvir os
respirares do homem;
        Lento-pausados.
        Respirava, como se o ar o alimentasse.
        Confesso que por instantes o odiei. Odiei, por me fazer aguardar em
posição desconfortável. Odiei por ter tanto a fazer e não me desprender da
janela. Mas o odiei mais por ele estar lá, seguro e satisfeito.
        Enquanto a impaciência me corroía pelas bordas de dentro.
        Ele estava por um fio, prestes a cair no precipício de tantos andares e o
calafrio se dava em mim. Na minha espinha corcunda de roer possibilidades.
        Porque talvez quisesse ele heroizar-se por coisa-nada. E eu queria estar
lá, vendo tudo do quase-início ao fim. Talvez ficar heroizado também, mais
que ele até, por gravar as imagens com os olhos e contar depois para quem
não queria enxergar.
        Eu tinha esse sentimento de grandeza próxima. Mas, provável, maior
fosse o sentimento de inveja dentro. De querer que o vento me tratasse como o
tratava. Mas vejo agora que sua relação com o vento era a mesma que a minha
com o cimento. Com a diferença de que o cimento não é inalável, nem móvel,
nem muda de formas nem vai comigo onde o convido.
        Talvez quisesse o homem fugir do cimento.

                                                                           15
Do alto do prédio-cimento: para o baixo da rua-cimento.
         Um choque entre dois cimentos distantes e delatores; que nem o vento
conseguiria suavizar.
         Igual me contorcia para vê-lo, torcia para que se fosse. Se fosse logo.
Para qualquer. Não queria que fosse para fora, alguns segundos andares abai-
xo. Mas coçava-me para ver isso. Queria. Por quê. Queria?
         Eu sabia que isso mais cedo ou mais tarde aconteceria. E sentia que
ele, lá dentro da sua ausência, também disso sabia; ficaria lá então a cornetear
minha paciência e minha fome de vê-lo espatifar-se no chão. Sentia que ele
sabia de tudo; e que estaria esperando um lapso de atenção minha para des-
pencar lá de cima. Assim, ele me venceria.
         Assim eu pensava.
         Pensava. Pensava.
         Na real, eu não pensava. Eu estava é cansado. Sei agora que ele jamais
venceria, nem eu jamais venceria, pois luta nenhuma estava sendo travada.
         Talvez por isso eu ainda sinta raiva dele, de sua capacidade de ser nada.
De aparecer e sumir e desembarcar em minha mente a cada instante que olho
o topo vazio daquele edifício. E de ser o que bem entender.
         Foi vento quando pisquei os olhos. Foi pluma na imensidão dos segun-
dos em que os mantive fechados. Foi pedra quando os abri. E espalhou-se em
pedaços de mim quando o vi na calçada. Braços estendidos, pernas descan-
sando, dentes a correr soltos a se perder de vista. Era tudo dele que sobrara
depois da minha distração.
         A essa hora, muitos pararam para ver. Polícia rodeou. Dondocas colo-
caram os indicadores na testa, depois foram tomar café. Crianças juntaram
alguns dentes. Todos o estavam vendo. Todos.
         Mas havia uma coisa que só eu ainda percebia.
         Sua cara de deboche.
         Seus olhos de vão se fu.
         Seu vento que abrisava de cima a baixo a lateral do prédio sem ponte
nem lei.

  16
Respirei.
         Respirei.
         Fazia horas que não o fazia.
         E, então, lá de cima, também deixei-me despencar. Mas despenquei
apenas os joelhos à cama. Os olhos para dentro. Os pensamentos para nada.
         E, depois de não conseguir ficar encamado, fiz o mesmo trajeto que o
homem, rumo ao cimento da calçada, porém, de elevador.
         Era a primeira vez que pisava a calçada naquele dia, e era já fim de dia.
Não fora por falta de tempo que não o fizera: nem por falta de vontade. Foi por
falta de olhos.
         Vi o homem lá no chão, espatifado. Carregava a mesma expressão de
nada. Vazio-cheio-de-mundo.
         E eu cheio-de-olhos-de-todos. Não pude evitar que me olhassem. O sol
já se tinha ido e o dia era noite escura. E na penumbra apareciam dezenas de
pares luminosos de olhos de todas as cores. Zombeteiros-inquiridores.
         Queria evitar de ver os olhos. Mas, para isso, deveria olhar o homem
acimentado ao solo. Já o havia olhado durante o dia inteiro e isso já era de-
mais.
         Para talvez ser agradável àquela multidão faminta de mim, abri a
boca:
         “Sim, eu vi”.
         Os olhos entreolharam-se, vesgando-se.
         “Vi tudo, desde sempre”.
         Desvesgaram-se na minha direção.
         “Desde manhã cedo, tomava vento e estava surdo”.
         Ao princípio senti medo dos curiosos que bebiam a minha própria
curiosidade. A curiosidade que eu bebera durante o dia todo. Eles também
queriam. E eu não sabia por quê. Abaixo dos olhos, apareciam gargantas:
abrindo-fechando.
         Mas eu nada ouvia. Só as via. Acho que eu não sabia onde estava, nem
o que eu era. Talvez o cimento me pregasse as pernas como o homem me

                                                                            17
pregara os olhos.
        Então deixei-me derramar, cimento-líquido, e escorri junto ao corpo
dele. E, como o dia inteiro, quis chegar perto, quis gritar, e não fui ouvido,
desta vez ia na direção de um caminho que eu conseguia dominar. Escorri-me
sobre as lajes, untadas por cimento seco, escorri-me sobre alguns pés curio-
sos. Escorri-me, sob alguns pisões. E, de escorrência em escorrência, cheguei
finalmente onde os olhos não mais me incomodavam; onde o vento não so-
prava.
        Toquei-lhe os pés e nada senti. Agregaram-se a mim-à-calçada. Senti
por bem tocar também as pernas e agreguei-as também, misturadas com uma
fúria de submundo que emergia em torno. E cheguei às mãos secas, apertei a
direita com a minha, porosa-suada. E deixei-me ir a cobrir mais o seu corpo,
ventre-peito-tronco. E fiz força para não torcer-lhe a garganta. E fiz força para
não furar seus olhos, mas estavam fechados-fechados. Fechados.
        Ele que tivera tantas imagens para ir ver. Estava lá, de olhos fechados.
Um deles esmagado por uma nesga de pedra. E a boca mordia a língua; esta
nunca nada falava, podia ser engolida. Antes de cobri-lo por completo, reparei
última vez nos seus cabelos. Estáticos. Sem vento que os levasse. Então, dei
uma leve soprada: agitaram-se o suficiente. E escorri-me, em cimento, para
que ninguém mais visse vestígio dele na rua.




  18
Menção Honrosa
       Categoria Nacional
       Belo Horizonte - MG


                                   Di-lis
                     José Carlos Barbosa de Aragão




       N
                    o tempo – dele, Jão – de escolher moça pra compromisso,
                    escolheu Di-lis, a mais desejada. Escolha do comum acor-
                    do das partes, que já dividiam rabos-de-olho esconsos; e
das famílias.
        Ele, forte, garboso, cabelo domado a poder de brilhantina, cara qua-
drada, de homem-homem, braços que faziam suspirar as casadoiras de aqui
a acolá, no longo de todos os caminhos conhecidos. Di-lis não deixava por
menos e, por ela, também suspiravam outros olhares cobiçosos, esses, de se
meterem no vau profundo daquele colo farto, e daquelas ancas convidadeiras
feito as grunas da cachoeira na estiagem, onde o pacu-de-corredeira era pego
de mão.
        Menina ainda, ind’antes da primeira volta-da-lua, já lhe crescia os olhos
o Acúrcio, moço já-feito, passado, talvez, um tanto da idade de augurar prenda
tão jovem. Di-lis, extraindo do olhar do coitado sua vontade represa, tripudiou
o que pôde, acalentando falsas esperanças – que, toda vida, o mancebo não
lhe apetecia. Por gosto, só.
        Outro – esse, com ela, regulava idade – mais ela até se engraçaram,
quando nele já desciam os grãos e nela os pomos se insinuavam, divisando
um novo tempo. Não vingou, que ele, com a família, tomou o trem, foi ver
outras terras e por lá ficou e fez filho e fortuna, longe.
        Pretendentes, a ela não lhe faltavam, uns declarados, outros recatados;
uns falados e conhecidos, outros à moita; mas todos querendo a mais-flor, a

                                                                           19
de-lis, Di-lis – a única.
        Ela seguia adiante. Desfeiteava.
        Uma primavera: desabrochou. Temporã. Feito fosse outono. Flor ma-
dura: fruta. E Di-lis, sabida requerida e desejada, inchava os ares de fruta de
vez, mais, carnuda, suculenta.
        Casou de ser a hora de Jão, o também cobiçado galo do terreiro. Ela o
sabia de-ver, vez a vez, em festa de coroação e quermesses no largo da igreja;
e dos comentários das outras, cada qual sonhosa de lhe servir até que a morte
os separasse, mediante jura de altar. Tão desejado assim, quanto ela, havia de
ser aquele, então. E foi que ficou sendo ele, o escolhido.
        De resto, foi o tempo de se cruzarem em folguedos na praça, festas de
santo e logo o fogo pegar: os dois se assoprando e revirando o próprio carvão
em brasa, em furtividades no oitão da igreja ou trilha pra cachoeira, beirando
a linha de trem...
        De parte a parte, celibatários e virgens disponíveis – o noivado anun-
ciado e os proclamas correndo – agora resignados, buscaram consolo em
novenas, rezas, promessas e, há quem não confirme, mas... trabalhos de en-
cruzilhada, até.
        Juntaram as tralhas numa casinhola retirada, de onde, muitas vezes,
o sôfrego amor uivava e ria e pedia mais até de manhãzinha, ao testemunho
de quem passava, rumo da roça ou pra abrir o comércio. Eram felizes e se
mereciam e se fartavam de suas forças e belezas mútuas. Usufruto do que
desejaram, reciprocamente – razão de desfeita aos outros moços e moças des-
providos dessas virtudes naturais, de fachada.
        Tanto empenho e lhes vieram os filhos, em pencas, entra ano, sai ano,
sem saltar. Onze, os que vingaram. Um morreu, afobadinho, chutador, na bar-
riga de Di-lis; outro, de descuido em barranca de rio.
        Jão acusou mais o golpe. Descuidou-se da aparência, largou mão da
brilhantina, rápido encarquilhou-se. Pegou a beber e nunca mais se aprumou.
De Di-lis, dispensou o chamego, as desavergonhices consentidas, os incêndios
de cada noite, nos lençóis de cassa alva. Não que tivesse outra: esfriou tão-

  20
somente. Já da idade, seria. Ou tristeza, puramente.
         Di-lis não entendia. Culpava-se de não sabia o quê. Teria ficado velha
e feia, sem atrativos? O espelho a enganava, talvez, já que ainda a refletia com
talhe de louça fina, valiosa e rara. O colo não era o mesmo, depois de tantos
anos e filhos, mas não havia mais moças em pior estado, enfim? Cintura, ca-
deira, coxas não exerceriam mais o poder de outrora? Não duvidava que assim
fosse – nem cria.
         O caso é que o golpe que ela sentiu mais foi nem o de perder um filho
pras águas, mas o de perder Jão, que lhe fugia como areia fina no espaço do
entre os dedos. Perder Jão era mais que só perder Jão: era perder a confiança
que sempre tivera em si e em seus talentos e beleza de fêmea sonhável. E por
quê? E como? Perdera, ela, o viço, devagarzinho, aos bocados, a cada barriga, a
cada bolsa que rebentava, a cada safra de colostro? Ou fora o eito da casa, criar
menino, dar comida, colo e roupa, o ramerrame de mãe, sem termo?
         A relembrança da juventude a levava à incerteza do hoje. Era fatal que
o tempo lhe roubasse seus encantos, mas ela não se preparou para aquilo:
perder o poder que teve, nato, dádiva de Deus. Cresceu-lhe uma vontade de
confrontar o espelho com a verdade à vera, mostrar a ele que outros ainda
havia capazes de desejá-la, com a volúpia dos anos idos, com o ardor mesmo
que Jão.
         Testar-se? Que fosse.
         Oferecer-se a outros – que Jão, por tudo e tudo, não merecia – e com-
provar-se ainda cobiçável? Oferecer-se só até o limite de saber, ter a prova, e
sair limpa, para um sempre ainda possível desfrute de Jão, tardio?
         Decidiu-se, enfim, um dia.
         Fim de tarde, os meninos todos em casa de vó, Jão largado no mundo,
nas erranças dele. Meteu-se num vestido antigo, discreto, de alça larga e bo-
tões na frente, forrados de igual fazenda, do decote à barra, poucos, fácil de se
livrar. Recendia um perfume distante, quase esquecido.
         Tomou rumo diverso do arruamento principal, subiu uma encosta de
morro por trilhas entre restos de mata e pasto, deu a volta, desceu, subiu de

                                                                           21
novo. Encontrou os vestígios do caminho antigo do trem, que, agora, passava
ao largo, numa linha nova, de contorno, longe das casas da vila. Nem estação,
parada, ali tinha mais: passageiro mesmo, só de passagem, no saracoteio do
trem entre morro e mata, afastados. Seguiu até encontrar os novos trilhos, no
ponto mais fechado da curva, parte rasgada em rocha bruta em explosões que
se ouviram longe, tempos atrás – lembrava-se. Uma pedra grande, esquecida,
restou em área terraplenada, a poucos metros dali, plataforma de observação,
elevando-se a dois metros, se muito, em fácil escalada. Subiu. E esperou.
       O trem apitou ainda longe, confirmação de que lá vinha, fiel. Regateou
na subida, um pouco, mas logo despontou na curva, já descendo na carreira,
no rumo da pedra grande restada – Di-lis em riba dela.
       Di-lis em riba feito um anjo, miragem. Os braços, abertos; mãos esten-
didas, dadeiras; os pés, firmes, plantados na rocha; o olhar revirado branco
entre cortinas baixando como quem recebe amante convidado. Os cabelos,
deixou-os cair, soltos, sobre os ombros, e dançavam de par com o vento. E
ainda: o colo, o ventre, pernas... e o mais.
       Durou pouco, tudo. Uma passada de trem, em comboio de catorze,
quinze vagões – se muito.
       Mais tarde, em casa, Di-lis, exalava ares de felicidade, de novo segura
de que ainda lhe restava algum verdor, de que era, enfim, capaz de despertar
desejo e, quiçá, paixões. Ainda sentia na pele o conforto revivaz do fresco toque
dos olhares dos mais de cem que a viram e cobiçaram, naquela tarde, reluzen-
te, nua total, no alto da pedra grande.
       Flor-de-Lis Maria.
       Di-lis.
       Dilícia ainda, aos olhos dos homens nas janelas e varandas do lado
esquerdo do trem, naquela tarde sem par, sequiosos.
       A Di-lis, a certeza lhe valeu para o resto de sua vida toda. Podia dormir
em paz, segura.
       Jão, nem nunca que ficou sabendo. Nem ninguém, na vila. Miragem de
passageiro, na certa.

  22
Menção Honrosa
       Categoria Nacional
       Porto Alegre - RS


                            O Assessor
                      Guilherme Azambuja Castro




       A
                   ntes de conhecer o doutor Herculano, meu ofício era tomar
                   mate com halls na praça, todo santo dia. Acordava seis, seis
                   e meia, punha a chaleira no fogão, limpava a bomba com
um grampo espichado, deixava a erva inchar na cuia, tudo preparado pra ver o
Bom Dia Rio Grande tranquilo; oito, oito e meia, saía. Até a praça dava o quê?,
quatro, cinco quadras. Passava na padaria e comprava um pacote de halls pre-
to – gosto de chupar halls e tomar mate, dá um choquezinho dentro da boca
que é bem bom –, daí tomava meu mate olhando o movimento. Quando não
tinha mais bala pra chupar, ia pra casa. Fritava um bife, cozinhava arroz, al-
moçava tranquilo. Matava duas cumbucas de arroz-de-leite e voltava à praça.
Tudo normal.
        Defronte à Câmara de Vereadores de Canoa Branca tem um banco, ali
eu sentava. Via a chegada dos vereadores, quando tinha sessão. Quando não
tinha, assistia a chegada dos funcionários, dava no mesmo; importante im-
portante era o movimento. Certo dia, o Beto, um vereador que fazia questão
de ir de bicicleta pra Câmara – tá que o partido proibisse mostrar carro na
frente da Câmara, mas ele que era exibido – me disse que o doutor Herculano
queria gente pra assessor. Não que precisasse de dinheiro, tenho uma casinha
alugada que me basta, todo caso fui até o gabinete do doutor e perguntei sobre
esse negócio de ser assessor.
        Fez uma cara de agora é que me lembro e me mandou ficar à vontade.
Sentei. Abri a mateira. Sevei um mate.

                                                                         23
“Sabes bater à máquina, Brizola?” Me chamam assim pelas sobrance-
lhas, sempre esfiapadas.
        “Com um dedo, doutor”, fui sincero.
        “Me conta das tuas experiências, então”, ele prosseguiu.
        “Olha... Ultimamente tenho mais é tomado mate na praça, doutor.”
        “Então és um AMH.”
        “Sou?”
        “Analista de Movimento Humano”, me explicou o doutor.
        “Sim, claro”, achei interessante essa coisa.
         “Joice, me tira um coelhinho da cartola, sim?”, pelo telefone, ele pediu
à secretária, que logo apareceu com uma folha datilografada.
        “Assina aqui, meu assessor”, me disse ele, riscando um xis no pé da
página
        Termo de Posse, dizia.
        Assinei.
        “Agora espera que eu te chamo, tá?”.
        Queria saber do salário, quanto era, mas como ele não tocou no assun-
to, e nem eu, ficou por isso.
        Voltei à praça, tinha a térmica ainda pela metade, isso dava o quê?,
cinco, seis mates.
        Dia seguinte: seis, seis e meia, acordei. Aqueci água, pus erva pra in-
char, limpei a bomba, Sidney Sheldon na mateira; pra mim, escritor é Sidney
Sheldon; vi o Bom Dia Rio Grande tranquilo: ia chover em Pelotas. Bom, oito,
oito e meia, saí. Tudo normal.
        Sentei no banco e logo vi o doutor Herculano chegar à Câmara. Gritei:
“Ô, chefe!” Com as mãos, me mandou esperar; o portão, que fechava sozinho,
me foi retirando o doutor de vista. Pensei: bom, mas que sou assessor, isso
eu sou, pra mim papel assinado é o que conta. Segui tomando meu mate e
chupando halls.
        Por um mês, mais ou menos, eu gritei “ô, chefe!” quando via o doutor
chegar à Câmara; e ele, com as mãos, me dizia: “calma, Brizola!”

  24
Um dia, tomava meu mate e lia Sidney Sheldon bem na parte dum
incêndio alucinante quando ouvi ele me chamar. Fui até o gabinete.
        “Grande Brizola!”, me recebeu com festa. “Joice, traz uns coelhinhos,
sim?”. A Joice trouxe. Três. Desenhou o mesmo xis no pé das folhas: Folha-
ponto, dizia.
        “Assina aqui, meu assessor!”.
        Assinei.
        “E aqui.”
        Assinei.
        “Mais aqui.”
        Tudo assinadinho.
        “Te chamo em seguida, fica tranquilo”, ele disse, e já me deu as cos-
tas.
        Mas continuei ali, parado, esperando alguma ordem, sei lá, alguma coi-
sa. Então ele tapou o bocal do celular e disse vai embora com outras palavras:
“Fica tranquilo!”, foi o que ele disse. De fato fiquei, pra mim papel assinado é
o que vale, e nesse dia assinei três coelhinhos.
         Não sou de me queixar, mas teve a primeira vez. É que fim do mês
recebia em casa dez pacotes de erva-mate e cinco de halls como salário; con-
seguia me manter o quê?, vinte, vinte e um dias, nem isso.
        Fui ao gabinete.
         “Tá me faltando erva, doutor”, desembuchei, todo corajoso. Foi mais
fácil que pensei: me deu um aumento na hora; fecharia os trinta e um dias
folgado; a partir daí, mês de trinta sobrava o quê?, um pacote inteiro de erva.
Ganhando mais, hora de mostrar trabalho, pensei.
        O gravador eu já tinha, um portátil da Gradiente; o crachá, mandei
imprimir colorido na Canoa Press. Ficou assim: AMH em cima, Assessor em-
baixo, num canto a minha foto três por quatro de terno e gravata. A partir daí,
se perguntassem qual era o meu ofício, eu respondia: sou assessor do doutor
Herculano, e ainda mostrava o crachá pra quem não acreditasse.


                                                                          25
Um dia o doutor mandou dizer pelo Beto que era pra eu me tocar a
Pelotas. Me entregou um celular e uma cartola cheia de coelhinhos, Missão
de Estado.
        Cueca, meia, camisa, calça de brim, japona, três ou quatro potes de
Minancora – pra mim, desodorante é Minancora –, joguei tudo na mala; a
mateira já carregava, e o crachá: raramente tirava do pescoço.
        “Mando teu salário pelo ônibus, fica tranquilo”, me disse o Beto.
        Fiquei mesmo.
        Entrei no Embaixador. O ônibus não passava de oitenta, isso dava o
quê?, três horas, três horas e meia até Pelotas. Ultrapassado o pórtico de Canoa
Branca, os campos de arroz surgiram no para-brisa, um verde uniforme lindo
de se ver; nessa hora senti pena de, por causa do meu novo ofício, ter de sair
de lá, eu que só deixei a cidade uma vez, quando precisei trazer uma tia-avó
de Camaquã e fui dar em Jaguarão. Todo caso, vida de assessor é assim, dura,
devia eu desconfiar. Passando o Texaco, fechei a cortina, começava eu a sonhar
e um piparote do cobrador me acordou.
        “Já estamos chegando?”, perguntei, meio dormindo.
        “Vai pra onde, Brizola?”
        “Pelotas”, respondi.
        “Nem do Taim passamos”, ele respondeu. “São vinte reais”.
        O doutor havia me dado o quê?, cem, cento e vinte, mais umas quantas
bolsas de supermercado com erva e halls. Um adiantamento, exigência mi-
nha. Paguei os vinte e virei pro lado. Tranquilo.
        Pelotas, como toda cidade grande, tem mais auto que gente. Na rodoviá-
ria é uma quantidade de táxi esperando, realmente, que tu pague uma fortuna
pra meio-metro de corrida. Me nego. Mesmo. Dar dinheiro eu pra taxista? Saí
a pé e achei o Naite Pelotense, um hotel em conta, pegado à rodoviária, bem
bonzinho: quinze cruzeiros o pernoite, direito a café da manhã e tudo: pão
torrado, café preto, iogurte e uma banana. (Quando que eu ia tomar iogurte,
e de garrafinha?) Paguei dois pernoites adiantados à Baronesa, proprietária
e moradora do Naite. No quarto, escondi a cartola mais a mateira dentro do

  26
boxe, por segurança. E fui dormir com o celular preso ao elástico da cueca,
também por segurança; pânico de cidade grande.
         Seis, seis e meia, levantei. Crachá no pescoço, gravador com pilha nova
que era pro relatório não desandar na minha primeira manhã pelotense. Não
vi o Bom dia Rio Grande – no Naite só tinha rádio –, tomei café, iogurte, e
escondi a banana na mateira, pra mais tarde. Oito, oito e meia, perguntei à
Baronesa onde era a praça da cidade.
         “A mais próxima?”, me perguntou.
         “Ah, tem mais de uma...”
         “Olha, daqui? Umas doze quadras”.
         Coisa muito complicada, e longe, quase que uma Canoa Branca inteira.
Resolvi relaxar. Sentei na frente do hotel numa cadeira de praia. Sevei o mate.
Logo a Baronesa abriu outra cadeira ao lado. “Posso?”, perguntou. E eu vou
negacear? Cevei um mate pra ela. Dia seguinte cevei outro. Fui cevando, ce-
vando, todos os mates que ela pedia eu sevava. Às vezes colocava capim cidró
na térmica, só porque ela pedia; tava em Pelotas mesmo... Nenhum conhecido
vendo é a conta; porque pra mim, mate, só com halls. Mas tinha uns olhos
puxados, a Baronesa, tinha uma boca graúda ela, uma bunda que me segurava
pra não beliscar quando passava rebolando. A gente foi se conhecendo melhor
e, no decorrer do quê?, mês, mês e meio, já chamava ela de Barô, só Barô.
         Com mulher no meio a coisa fica mais profissional, organizada, é ine-
vitável isso. Foi ideia dela: passar a limpo e fichar os relatórios em pastinhas:
por turno, dia, mês, ano. Foi ideia minha: fixar uma placa de bronze na frente
do Naite: Unidade de AMH, dizia. Ela que pagou. Outra ideia, nossa: grampear
cartões de visita nos recibos dos hóspedes, que, aliás, eram praticamente dois:
seu Alexandre, vendedor itinerante de alpargatas, e eu.
         Resgatamos uma escrivaninha de compensado abandonada no porão
do Naite. Duas, três pinceladas de tinta branca, ficou como nova. Placa na
parede, cartões na praça, unidade pronta. Tirei então da cartola uns quantos
coelhinhos pra Barô assinar.
         “Que que é isso?”, perguntou.

                                                                           27
“Fica tranquila”, eu disse, “é coisa séria”. Beijei a testa dela. Ela amole-
ceu e começou a assinar, um por um, como uma boa fêmea deve ser, obedien-
te. Todos devidamente assinados, tomei-lhe os coelhinhos e guardei na cartola.
“Te ligo em seguida, minha assessora”, disse, apressado, porque o Embaixador
saía em quê?, uma hora, hora e meia no máximo. Saí a pé; táxi me nego.




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Menção Honrosa
       Categoria Nacional
       Rio de Janeiro - RJ


                            Os meninos
                               João Paulo Vaz




       N
                     enhum de nós sabe com certeza como e quando os meni-
                     nos começaram a aparecer.
                     Foi durante uma daquelas tréguas que podiam se estender
por semanas ou meses. As tréguas eram cada vez maiores e sempre bem-
vindas. No início, descansávamos, lubrificávamos as armas, remendávamos
uniformes. Deitávamos na sombra e a satisfação de continuar vivo nos engor-
dava. Depois, vinham o tédio e a preguiça. Quando me dei conta da presença
constante dos meninos, essa fase já havia começado.
        Nem é preciso dizer que nosso acampamento não é lugar para crian-
ças. Na verdade, não é lugar para ser humano algum, só nós mesmos, que não
temos outra escolha e já quase deixamos de ser humanos.
        O normal teria sido expulsá-los. Mas o comandante não se mexeu e
ninguém se sentiu na obrigação de tomar a iniciativa. Iniciativas de qualquer
tipo eram cada vez mais raras entre nós. A série infindável de pequenas vitórias
e derrotas sem consequência havia acabado com a esperança e o medo que
nos faziam bravos. Ninguém mais esperava vencer essa guerra que se diluiu no
tempo, na inutilidade dos tiros sem alvo visível, na falta de sentido das mortes
aleatórias. O fato é que, mais por inércia nossa que por qualquer outra coisa,
os meninos foram ficando.
        Dormiam junto à porta da cozinha, comiam os restos da nossa comida,
faziam pequenos serviços – apanhavam água no poço, lavavam as panelas,
matavam ratos. A matança dos ratos foi o que primeiro me fez prestar atenção

                                                                          29
neles. Passavam horas imóveis, atiradeiras nas mãos, espreitando a caça. En-
tão um deles esticava devagar a borracha, soltava e, de algum canto escuro, um
guincho de desespero anunciava a precisão da pedrada.
        Lembro bem da tarde em que eu me debatia num sonho especialmen-
te mórbido. As imagens eram as de um filme antigo, mudo, em preto e branco.
Estávamos num pântano, cercados pela fuzilaria inimiga. Balas e granadas
silenciosas nos arrancavam pedaços, mas ninguém morria nem se importava
muito, apenas continuávamos a chafurdar na massa escura onde já não era
possível discriminar o sangue da lama. De repente, um silvo intermitente de
alarme de bombardeio quebrou o silêncio do sonho. Acordei assustado. A meu
lado, aos guinchos, uma ratazana arrastava desesperada a coluna partida e os
quartos traseiros paralisados. Antes que eu acabasse de entender o que acon-
tecia, um dos meninos surgiu na minha frente e esmagou a cabeça do bicho
com uma pedrada de misericórdia.
        O que me surpreendeu naquele dia foi a expressão do olhar dele. De
satisfação com o próprio poder. Durou talvez uma fração de segundo, e imagi-
no que só a percebi porque, mal acordado, eu me achava naquele estado em
que a intuição ainda não está submetida à razão. A surpresa não foi tanto pela
expressão em si, mas por reencontrá-la justo no olhar de um deles. Desejo
de poder era um sentimento que ninguém ali experimentava havia tempo. E,
nos olhares dos meninos, até então, eu só tinha percebido a fragilidade dos
famintos, a paciência com que esperavam os restos das nossas refeições, a
subserviência com que lavavam as panelas.
        A trégua se prolongou além da nossa capacidade de contabilizar o
tempo. Durava tanto que, embora ninguém o dissesse nem a si próprio, já
começávamos a dar a guerra por encerrada. Prova disso era o desinteresse pe-
las armas empoeiradas, amontoadas num canto. De vez em quando, alguém
lembrava que era preciso lubrificá-las. E ficava nisso. Até que um dia, ao acor-
dar de manhã, dei com um dos meninos desmontando o fuzil do Gomes. “Ta
fazendo o que aí?” – perguntei. “O Gomes mandou”. Achei estranho. Ninguém
ali mexia em arma de ninguém. Aquilo mostrava a que ponto tinha chegado

  30
nosso desleixo. Decidi falar com o Gomes ou com o comandante, mas, como
os dois ainda dormiam, fui tomar café e acabei me esquecendo do caso.
        Nos dias seguintes, alguns meninos desmontaram e lubrificaram ou-
tros fuzis. “O meu pode deixar que eu mesmo faço” – avisei. Mas continuei
adiando a tarefa e, uma semana depois, quando percebi meu fuzil tão limpo
quanto os outros, não me animei a reclamar. A verdade é que meu interesse
por ele, àquela altura, era nenhum.
        Pouco tempo depois, num final de tarde, eu acompanhava o percurso
de uma ratazana, à espera da pedrada que a abateria. Atrás da cozinha, havia
um muro baixo sobre o qual se erguia outro mais estreito. A ratazana vinha
pelo degrau formado entre o topo de um e a base do outro. Protegida pela
sombra, dava alguns passos em direção ao latão de lixo da cozinha, parava,
fareja o ar, dava mais alguns passos. Sentado ao lado do latão e encostado no
muro, aproveitando ele também a proteção da sombra, o Batista se masturba-
va. A ratazana vinha pouco acima dele. “Vai cair na cabeça do Batista” – pensei
quando ela parou, levantou o focinho mais uma vez e eu esperei ouvir a retra-
ção do elástico de uma atiradeira.
        Mas o que se escutou foi um tiro de fuzil.
        O impacto da bala jogou a ratazana para cima. O corpo se esborrachou
contra o muro e caiu despedaçado na cabeça do Batista, que, no susto, saltou
de onde estava, e, saiu tropeçando na calça arriada.
        Aquilo tinha ultrapassado qualquer limite e a única atitude razoável
era chutar todos os meninos fora do acampamento no mesmo instante. Mas
o batalhão inteiro explodiu de rir com a cena do Batista, aos tropeções, cara
e peito salpicados do sangue da ratazana, tentando suspender a calça. Nossas
gargalhadas desarmaram sua fúria e ele não fez mais que arrancar o fuzil das
mãos do menino e berrar meia-dúzia de palavrões.
        É curioso o modo como as mudanças acontecem. Embora, entre o
início daquela última trégua e agora, o batalhão e a própria guerra tenham
mudado radicalmente, não é tão simples entender como e quando o processo
se deu. Mas ter permitido o acesso dos meninos às armas foi, sem dúvida, um

                                                                         31
divisor de águas.
        Desinteressados de um poder que não nos levava a lugar algum, dei-
xamos que os meninos o exercessem. O poder das armas. No que passaram a
andar de fuzil a tiracolo, eles foram mudando de atitude. Não esperavam mais
os restos das nossas refeições. Comiam junto. Não lavavam mais as panelas,
não apanhavam água no poço. Promoviam caçadas coletivas em que alguns
meninos revolviam o lixão enquanto os outros alvejavam as ratazanas em fuga,
e nós éramos obrigados a buscar proteção contra a fuzilaria.
        De vez em quando um de nós protestava, mas sempre esperando que
os outros assumissem alguma atitude, e a reação não passava disso. O co-
mandante não dava uma ordem havia tanto tempo que ninguém mais tomava
conhecimento dele. Quando, durante uma das caçadas, uma bala ricocheteou
no muro e atravessou sua cabeça, encaramos o fato como um acidente, nada
mais. Enterramos o corpo sem qualquer cerimônia especial, exceto por uma
salva de tiros que os meninos resolveram disparar.
        Hoje entendo que, num ambiente como o nosso, as armas – sejam elas
fuzis ou atiradeiras – são a principal fonte de virilidade e energia espiritual.
Sem elas, chafurdamos no pântano da indolência. Não acho que isso explique
tudo. Mas o fato é que, dias atrás, quando a trégua afinal terminou, continua-
mos lavando panelas.
        Da guerra se encarregam agora os meninos.




  32
Menção Honrosa
       Categoria Nacional
       Campo Belo - SP


                            Ana Dorme
                        Marcelo Campos de Lilla


                  “A realidade apenas se forma na memória; as flores que hoje me
                  mostram pela primeira vez não me parecem verdadeiras flores”
                                              Marcel Proust; No Caminho de Swann




       E
                  u gostava de olhar Ana dormir. Seu contorno suave, esculpido
                  pela lua na janela, era para mim um litoral conhecido. Muitas
                  noites eu adormeci perdido nas areias doces de suas praias,
sem querer me lembrar que toda felicidade é efêmera.
        Aqueles foram anos de indolência. De preguiça. Anos arrastados e fe-
lizes. Até estranho pensar que morávamos em São Paulo, nesta mesma São
Paulo tão rápida, imediata e urgente de hoje. Para mim, aqueles dias sempre
terão se passado num plano histórico e geográfico completamente à parte, um
parêntese na vida, como se houvesse uma barragem capaz de represar o rio
do tempo. Não se trata de nostalgia, de “como éramos felizes quando jovens”,
nem nada disso. Se minhas memórias daquela época estão tomadas de tons
leves e pastéis, onde tudo se desenrola num ritmo lento, de sonho, submarino,
é apenas porque Ana projetava isso ao redor de si. Sua beleza, ou sua presença,
sempre teve a capacidade de distorcer todo ambiente, derreter os relógios, do-
brar a realidade e, por consequência, qualquer memória dessa realidade.
        Hoje sou um homem amargurado, talvez por ter passado anos demais
procurando Ana em outras mulheres. Mas nem sempre fui esse homem de
pedra, nem sempre tive essa rispidez nas respostas ou essa curvatura precoce

                                                                          33
no caminhar. Isso é coisa recente, mas também não importa. Esta história não
é sobre quem eu sou, mas sobre quem eu deixei de ser.
        Não tem nada de mais na maneira como eu e Ana nos conhecemos.
Amiga de um amigo, um chopinho aqui, um cineminha ali, quando dei por
mim, estávamos dividindo um pequeno apartamento no centro da cidade. Na
época, eu ainda era um aspirante a escritor, ainda vivia naquele mundo perfei-
to e romântico que todo escritor iniciante habita antes de se tornar famoso ou
sucumbir às amarguras do fracasso. Era eu, Ana, minha máquina de escrever
e nossa cama. Na maioria das vezes, tudo isso ao mesmo tempo. De vez em
quando, eu passava dias inteiros deitado na cama, com a máquina apoiada na
barriga, consumindo um maço de cigarro atrás do outro. E Ana ficava sempre
ali, ao meu lado, lendo e opinando sobre o que eu escrevia, zombando de
meus erros de digitação ou da pieguice de algumas passagens. Não lembro
do que nos alimentávamos ou como pagávamos nossas contas naqueles dias,
mas hoje sei que, para mim, aquele quarto desarrumado foi o mais próximo
do paraíso que eu jamais conseguirei chegar.
        Se Deus existe, ele sabe quanto tempo eu passei tentando entender os
motivos que me levaram a fazer o que eu fiz. Talvez eu simplesmente não seja
talhado para a felicidade, afinal. Mas quanto mais eu penso, mais me convenço
de que eu me apavorei. O velho clichê do covarde inseguro que rejeita para não
ser rejeitado. Às vezes acho que ainda vivo preso dentro daquele momento,
aprisionado naquele exato instante em que, sob a soleira da porta, carregando
a maleta com a máquina de escrever e nada mais, eu olhei para ela uma últi-
ma vez. Dali da porta, estirada sobre a cama, confundindo-se aos lençóis, ela
parecia um anjo com asas de linho branco. Adormecida, seus traços revelavam
uma inocência e uma pureza que ela disfarçava habilmente quando estava
desperta mas que nunca falhavam em me comover. Acordada, Ana era uma
explosão de vida, uma daquelas pessoas que se tornam o centro iluminado de
todo lugar por onde passam. Mas era observando o seu sono que eu sentia que
realmente a amava. Quando ela dormia, eu recebia acesso exclusivo a uma
outra Ana, e era como se só então eu a possuísse de verdade. Provavelmente,

  34
era meu ego covarde e inseguro me dizendo que aquela era a única forma de
Ana se tornar previsível, sob controle, diferente da mulher impulsiva e cheia
de surpresas que ela era durante o dia. Mais de vinte anos depois, ainda não
sei dizer de onde tirei forças para me voltar e partir, fechar para sempre aquela
porta, mas foi o que eu fiz. Cada segundo que se seguiu depois disso foi como
a reverberação daquele momento, como as ondas circulares na superfície da
lagoa depois que a pedra afunda para sempre na escuridão submersa. Cada
livro que eu lançava, cada linha que eu publicava, era para ela que eu o fazia.
Tentava escrever como se ela ainda estivesse ao meu lado na cama, retirando,
com seu riso provocativo e brincalhão, as folhas da máquina enquanto eu ain-
da datilografava. Imaginava se ela acompanhava minha carreira, se comprava
e lia os livros que eu escrevia ou se ao menos os folheava desinteressadamente
nas livrarias, pensando que eu havia, enfim, conseguido me tornar um escri-
tor.
         Eu estaria mentindo se dissesse que nunca voltei a procurá-la. Mas,
quando me decidi por finalmente ir atrás de seu paradeiro, já era tarde. Nin-
guém sabia dizer ao certo o que havia sido feito de Ana. Diziam que havia se
mudado para Nova York ou Paris e que morava com um artista plástico de
renome, com quem havia tido um filho. Outros diziam que ela se afundara nas
drogas ou que tinha se tornado puta. Existia até uma versão em que ela havia
partido para a Índia e encontrado a iluminação e a paz na meditação transce-
dental. Eu sabia que nada disso era verdade, ou pelo menos não inteiramente
verdade. Foi apenas há cerca de um ano e meio que eu voltei a ter notícias
de Ana. Quando li seu nome no jornal, soube imediatamente que se tratava
dela. Ela tinha dois sobrenomes que eram bastante incomuns, o primeiro era
italiano e o último lituano, e a chance deles aparecerem combinados ao nome
de outra Ana era mínima. Não vou revelá-los aqui, em respeito à privacidade
de Ana e sua família, mas sempre achei que do inusitado casamento desses
sobrenomes resultava uma sonoridade bonita e exótica. O jornal dizia que ela
e uma amiga haviam se envolvido num acidente de automóvel quando volta-
vam de uma viagem, no final do mês anterior. A notícia, na verdade, era sobre

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a amiga de Ana. Após duas semanas internada e múltiplas cirurgias, ela não
resistira aos ferimentos e acabara falecendo. Falência múltipla dos órgãos, ou
coisa que o valha. O repórter terminava o pequeno texto mencionando rapida-
mente que a pessoa que dirigia o carro no momento do acidente, a empresária
Ana C**** P****, de 49 anos, permanecia em coma num hospital de São
Paulo e respirava sem a ajuda de aparelhos. Não sei quantas vezes eu reli aque-
la notinha. O nome, a idade, tudo batia. A certeza de que se tratava de Ana era
absoluta. Aparentemente, eu a havia encontrado, enfim.
         Por alguns dias, fiquei absolutamente perdido, sem conseguir desviar
meus pensamentos do fato de que Ana estava num hospital a poucos quilô-
metros de distância. Exaltado e ansioso, eu elocubrava mil cenas imaginárias,
pesando em minha mente se devia ou não ir visitá-la, afogado em labirínticas
argumentações silenciosas. No final, lógico, acabei indo, alguns talvez disses-
sem que em busca de algum tipo de redenção, mas todo o tempo eu soube
que o que me movia era a simples perspectiva de vê-la novamente, de re-
pousar o olhar sobre seu rosto, como se ele fosse um oásis para meus olhos
sedentos. Os anos passaram e eu não fiquei menos covarde por isso; admito
que só criei coragem para ir vê-la no hospital por saber que ela estaria desa-
cordada, que não haveria possibilidade de confronto ou reconhecimento. A
consciência de que ela estava deitada, adormecida, da mesma forma como eu
a havia deixado tantos anos antes, tornava a atração irresistível. Acho que não
houve nada que eu tivesse desejado mais em todos aqueles anos do que poder
voltar a contemplar o sono de Ana. E agora isso me era oferecido livremente,
sem que existissem as desvantagens de um reencontro amargo, sem a aspere-
za característica dos amores que ficaram para trás. Ver seu rosto de porcelana
mergulhado num sono calmo e profundo, sem que para isso fosse preciso
realizar a exumação de nosso relacionamento, inventariar antigas culpas ou
justificar o injustificável.
         Levei comigo um vasinho de flores só para ter algo nas mãos ao entrar
no quarto. É sempre complicado o protocolo das visitas hospitalares, princi-
palmente quando a única pessoa que você conhece está num coma profun-

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do. Não vou me alongar em detalhes da visita, mas posso dizer que foi um
baque. Deitada sobre a cama estava uma mulher de meia-idade, de cabelos
cortados bem curtos e pintados de acaju. Achei primeiramente que aquele
inchaço fosse decorrente de alguma medicação, mas logo percebi a papada
que pendia de suas faces e a pele molenga de seus braços e cotovelos. Aquela
senhora podia ser uma síndica, uma bibliotecária ou uma diretora de escola.
A minha Ana, jamais. Estarrecido, fiquei ali um tempo, que poderia ser um
minuto ou uma hora, sentado num sofazinho ao lado de sua cama, buscando
algum vestígio familiar naquele rosto pálido e macilento, marcado por duras
linhas de expressão e olheiras surpreendentemente profundas. Desde o início,
fui absolutamente incapaz de associar aquela mulher desacordada à minha
frente à imagem – forjada, ou talvez deformada, pela excessiva repetição das
lembranças – que eu tinha de Ana. Jamais me ocorrera que o tempo também
havia passado para ela. Para mim ela continuara sendo sempre aquela jovem
lânguida, que transbordava sensualidade em todos os seus gestos, e cujos ca-
belos cor de petróleo batiam na bunda redonda e arrebitada.
        Pensando agora, está claro que eu não estava preparado para aque-
la cena. Sobrinhos, tios e parentes povoavam o quarto, como uma perfeita
família interiorana; crianças e adolescentes conversando, velhos entediados,
senhoras oferecendo chá e biscoitos, tudo excessivamente prosaico, tudo em
severo desacordo com a idéia que eu preconcebera daquele encontro. Comecei
a me sentir oprimido ali dentro. Era estranha a sensação. As pessoas falavam
baixinho, como se estivessem incomodando o repouso da mulher na cama,
como se a qualquer momento ela fosse abrir os olhos e começar a falar. Não
é algo natural, o coma. É cruel e devastador para os que estão de fora. É como
um funeral que se estende por meses e anos, sem que ninguém possa fechar
o caixão, dizer adeus definitivamente e tocar a vida em frente. Mas o pior talvez
ainda seja aquela inevitável pitada de esperança, a espera passiva por alguma
mudança no quadro, a possibilidade, mesmo que ínfima, de um milagre. Um
verdadeiro inferno emocional. Mas, apesar de reconhecer as dores e aflições
daquelas pessoas, eu não era capaz de compartilhá-las. Talvez fosse insensibi-

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lidade de minha parte, mas tudo o que eu conseguia sentir era uma profunda
e egoísta tristeza por ver a imagem da minha Ana maculada por uma realidade
inclemente, eternamente empenhada em destroçar o mausoléu onde repou-
sam aquelas memórias que nos são mais caras e em fazer desvanecer toda
forma de sonho.
         Já na porta, ao sair, lancei um último olhar sobre aquela que diziam
ser a minha Ana, parafraseando o gesto que eu havia feito vinte e tantos anos
antes, apenas para me certificar de que eu não sentia nada por aquela mulher.
Nada a respeito dela se relacionava comigo ou com a Ana que habitava a minha
memória. Conforme eu atravessava o corredor em direção à saída do hospi-
tal, fui sentindo um alívio cada vez maior, como se a realidade estivesse aos
poucos voltando ao seu lugar à medida em que eu me afastava. Ainda no es-
tacionamento, fui assaltado pelo pensamento de que naquele exato momento
existiam duas Anas. Duas Anas igualmente estáticas, igualmente aprisionadas
num sono profundo, infinito, irremediável. Igualmente reais. A primeira era
uma senhora desconhecida, vítima de uma batida de carro, e cujo rosto bran-
co, iluminado por lâmpadas frias de hospital, se desintegrava em minha men-
te a uma velocidade impressionante. A outra Ana era aquela conhecida ninfa
de feições cálidas, que dormia eternamente sob o luar, como se este fosse um
dossel de prata que suavemente a envolvesse, protegendo o seu sono. Essa
Ana fora eu, não um acidente na estrada, quem prendera definitivamente na
cama. No momento em que fechei a porta do quarto e a deixei dormindo sob
a janela, a condenei a viver para sempre congelada dentro daquele instante,
sem poder jamais acordar.
         No afã de compreender tudo o que havia acabado de acontecer, uma
ideia começou a se formar na minha cabeça enquanto eu dirigia de volta para
casa. Hoje, está claro para mim que aquela Ana do presente, envelhecida, em
coma, era, afinal, nada mais que um espectro, uma projeção deformada da
Ana do passado. Um reflexo distorcido da mulher adormecida que eu ha-
via abandonado. A outra Ana, aquela que inicialmente não passava de uma
memória, ao contrário, mostrara ser aquilo que havia de mais consistente e

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palpável. Sua presença sorrateira e constante talvez tivesse sido a única coisa
verdadeiramente real em todos aqueles anos. Era como se as paredes que se-
paravam matéria e memória, passado e presente, houvessem ruído de repen-
te. Quando digo que é à Ana que dedico minha literatura, não me refiro àquela
senhora vegetando no hospital ou tampouco à memória da jovem esbelta e
cheia de vida que conheci nos anos de minha juventude, distantes e inacessí-
veis. Escrevo e continuarei a escrever para a única Ana possível, a minha Ana,
aquela que de alguma forma conseguiu iludir o tempo e alterar a ordem das
coisas. Intacta e perfeita, indiferente à passagem dos anos ou ao embotamento
das lembranças, esta Ana permanece viva e continua a sonhar debaixo de uma
lua que se mantém cheia no céu de todas as noites.




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Menção Honrosa
       Categoria Nacional
       São Paulo - SP


                              Sem Natal
                             Ronaldo Cagiano




       A
                   véspera de Natal trouxe Lindalva do trabalho em meio à má
                   vontade do tempo. Seus planos de reunir a família, convi-
                   dar os amigos, apesar do cansaço de mais de dez horas em
frente ao tear na Companhia Manufatora, pareciam mais uma vez esbarrar no
imponderável. Não queria repetir o sem-sal e sem açúcar dos anos anteriores.
Nesse, prometeu-se que seria diferente, guardou o que sobrou do 13º para
comprar uns presentes para as crianças. A Camila não cansava de pedir um
videogame, porém teria que contentar-se com uma boneca; Fabiano buzinou-
lhe nos ouvidos durante ano todo, mas o autorama [febre, sonho de consumo
da garotada naqueles plúmbeos anos 70, tempos de coturno e medo] não
viria dessa vez, a grana só deu mesmo para um carrinho movido a pilha, da
Estrela, comprado, a perder de vista, no Bazar René. Era o que podia ser feito.
Meses inteiros de sonhos que seriam concretizados pela metade, afinal, desde
que Amarildo saiu de casa para viver com a amante na Vila Reis, que Lindalva
teve que dar duro e tomar a frente de tudo, sem ajuda, sem pensão. A fatigante
tarefa diária no imenso salão onde máquinas expeliam línguas de panos, a
musculatura compulsória nos braços femininos cevada no empurra-leva-e-
traz de carrinhos abarrotados de fardos da tinturaria, tantas vezes vigiada pelos
contramestres alcoviteiros, a epiderme ressecada pela nuvem de poeira que
nascia das engrenagens, as lançadeiras ziguezagueando diante de seus olhos
vidrados na mistura dos fios bailarinos que não teciam outra vida, senão ceva-
vam o apetite dos patrões, alimentavam dozes meses de cansaço, a sobrecarga

                                                                           41
que se revezava a cada manhã. Tudo impunha uma terrível prostração àquela
mulher que tanto desejava estar inteira para viver pelo menos uma vez na vida
um Natal em família, mesmo com a ausência do marido empanando o brilho
nos olhos dos filhos. Era uma dor que ela não podia aplacar, senão já teria
mudado as coisas, passando uma borracha na história e virando a página,
mas Fabiano e Camila não se esqueciam do pai. Depois que foi embora, nem
mesmo se lembrava, ou aparecia, na data de seus aniversários.
        Esperançosos, os dois acordaram pela manhã na certeza de que ele
viria, um presentinho ao menos, ou um agrado que fosse pelo abraço, pelos
cumprimentos. Queriam o pai, a visita, ainda que trânsfuga a presença. Afinal,
os amigos da vizinhança comemoravam idade com pais e mães presentes,
só os dois naquele beco viviam uma espécie de orfandade de pai vivo. Nos
três últimos anos Lindalva fez das tripas coração para que não desistissem de
estudar. Tinha medo de que os filhos arrumassem corriola, não saberia onde
colocar a cara se um deles repetisse de ano ou fosse maconheiro como o Tadeu
e o Vinícius, filhos da Gorete, que desquitou cedo e ficou sem controle sobre
a casa, biscateando aqui e ali, e a Vanessa, que ficou falada de tanto biscatear.
Ela tinha medo dos línguas-soltas, por isso era da fábrica pra casa, de casa pra
fábrica. Por isso seu coração não tinha outro destino. Preocupavam-na as lon-
gas horas de silêncio com que Fabiano, debruçado sobre a janela, a sua carre-
tinha de rolimã aposentada debaixo da cama, com seus olhos, esquadrinhava
feito um periscópio, a volúpia de um louva-a-deus dançarino que brincava de
desaparecer com suas coreografias no distante da rua, ou se fixava, emudeci-
do, nas lesmas que escalavam os muros altos e musguentos, do minúsculo
quintal lindeiro ao de seu Durval. Ou, viajante e furtiva, sua atenção migrava
para os galhos da jabuticabeira, onde um pequeno enxame de marimbondos
principiava uma casa, indiferentes à dor das redondezas. Também doía-lhe
o coração flagrar calada as tantas vezes em que Camila se amotinava com as
bonecas debaixo da cama, fingindo uma conversa com um amigo secreto que
vinha à hora marcada, substituindo a ausência paterna, essa noite que se
postergava dentro dela, mais escura que a cabana sob o colchão mijado,

  42
viajava nos mundos que criava, na crina alucinada de uma fantasia que um dia
iria desmoronar. Após derrotar o sol, a noite chegava com o festim de insetos
nas luzes fracas da rua e uma legião de fantasmas habitando aquele corre-
dor de casas. Do 51 era possível divisar o ribeirão aos fundos, animal feroz
que se insurgia em muitos dezembros, batizando as moradas precárias com
o tumulto de suas águas e a adversidade das cheias que desalojavam tantos,
sem parcimônia, oceano de frustrações fustigando a alegria com que muitos
idealizavam passar as festas de fim de ano, apesar das privações. Aquela gente
pobre, se não tinha muito o que comemorar – as dificuldades prolongadas
não prenunciavam que as coisas melhorariam de repente – pelo menos um
leitão encomendado com certo sacrifício no açougue do Devair podia ser espe-
rado, para compartilhar uma parcela mínima de sorriso nos olhos miúdos de
suas existências proletárias, mas ainda habitados de mínima esperança. Mas
nenhuma alegria seria completa naquela casa onde além da água que tantas
vezes secava, faltava alguém; e a dor de saber que o pai comemoraria com
outros, achincalhava ainda mais os coraçõezinhos repletos de ilusão.
         – Mãe, o pai não vem? Quantas vezes Lindalva ouviu, embargada, o
sorriso interditado pela violência fulminante da pergunta dos filhos. Cada ano
morria, dando lugar a outro, e a incerteza que se cristalizava a cada nova mu-
dança de estação, na alternância do horóscopo. Nos últimos tempos era isso:
a felicidade esquiva, o rapto das mínimas emoções pela realidade aquartelada
e intransigente, apesar das vigílias. À insistência da pergunta que reverberava
como um chicote no seu peito, Lindalva não tinha o que dizer. Nem meias-
palavras, nem uma resposta paliativa que dourasse as circunstâncias. Era na
bucha, e tentando mimetizar as lágrimas com os olhos vermelhos enquanto
fatiava uma cebola na cozinha, que ela desenganava a filha ou despistando a
conversa, mandando Camila pegar o regador para aguar os vasos de avenca e
samambaia da sala minúscula:
         – Não conte com seu pai, ele tem outra vida, esperem em Deus, que
esse não falha e é graças à sua misericórdia que passamos o ano e com a ajuda
de sua avó, que pude cuidar de vocês. Não fosse os serões na fábrica, ela tam-

                                                                         43
bém não teria pago em dia o aluguel de um quase barraco, o Bira era pontual,
saía, de casa em casa, o colar reluzente como os dentes de ouro e a mania de
mascar palitos, cobrando os inquilinos, uma sangria mensal em seu salário,
nem dado conta de quitar em dia a caderneta da venda do Albertino. Fazia das
tripas coração para manter a casa, nunca faltar lanche na merendeira, as coi-
sas em ordem e as contas sem atraso, quando a brotoeja pintou a face miúda
da filhinha e trouxe uma febre inexcedível, [e o fantasma dos cortes rondava
a seção de estamparia, o Zé Batista foi despedido agora buchicham que o
Nestor e a Zélia vão pra rua também, porque votaram do doutor Agnelo, do
MDB] quase perdeu a mão no tear, sua cabeça estava na menina, o dia inteiro
comendo algodão na fábrica, e ainda ter que agüentar a língua comprida da
dona Mundinha e as cantadas do Vadinho, que de seu tamborete apontan-
do o jogo-de-bicho tomava conta de quem entrava de quem saía, o uniforme
sempre bem passado, apesar de surrado, o sacrifício que impedia que os fi-
lhos parassem os estudos, afinal, com quem poderia contar amanhã, senão
a mínima instrução que lhes abrisse caminhos, Lindalva não descuidava de
nada, antes de dormir ainda dava uma última passada com ferro em brasa
nos uniformes e uma conferência dos cadernos, tentava ajudar nas lições, nos
para-casa, tomava a tabuada, arguía os verbos. E os boletins de classe no fim
do mês não desmentiam, espelhavam seu esforço e sua luta: os meninos iam
bem. E quando já estavam os dois na cama, depois de ter aspergido o inseti-
cida com a bomba de Flit para espantar os pernilongos que vinham acicatar
todas as noites, desaninhados do corguinho dos fundos, ainda se desdobrava
para uma passada de escovão no piso de vermelhão, ainda bem que não tinha
mais que recolher as guimbas de cigarro que Amarildo deixava pelos cantos
da casa, e uma espanada na mobília pobre e feia e entrando já a madrugada,
a leitura de algum salmo, e pedia a Deus que a ajudasse a sair dali, sonhava
um holerite mais gordo e poder financiar uma casa decente pelo BNH ou pela
COHAB, o socorro da fé naquela Bíblia surrada e eternizada sobre a cristaleira
de pés capengas, vigiada pelo crucifixo de madeira que ela sempre limpabri-
lhava com óleo de peroba. Tempos escuros aqueles. As indústrias da cidade

  44
eram movidas a eletricidade, óleo diesel, carvão e medo. Os Andrades domi-
navam a economia, eram donos de todas as tecelagens, das fábricas de papel
e macarrão, da fundição, do matadouro, da Força e Luz. Controlavam tudo, da
saída dos operários às conversas políticas. A Arena mandava na cidade, onde
os parentes do líder político Emanuel Andrade revezavam no poder. No Golpe
de 64, muita gente foi dedurada por eles ou por seus puxa-sacos, baba-ovos,
cheira-peidos. Quando chegava novembro, mês de eleição, o voto de cabresto
garantia-lhes a permanência. Nada fugia ao controle. Sabiam quantos eleitores
havia em cada urna, em cada zona eleitoral e no departamento de pessoal das
companhias, a cópia dos títulos dos empregados era guardada como moeda de
troca. O terror rondava as seções e quando algum voto migrava para [os quin-
ta-colunas do Túlio farmacêutico e do Laércio do Sindicato] um candidato
a vereador ou prefeito da oposição, o funcionário recebia o bilhete vermelho,
as indenizações nem sempre corretas, dali em diante não conseguiam mais
colocação na cidade, muitos iam de mala e cuia pra São Paulo tentar emprego
no ABC ou na construção civil. Quantos natais trouxeram o inferno para tanta
gente. Lindalva tinha medo também de ir pro olho da rua, por isso nunca abria
a boca na época da política, votava em quem os capachos da diretoria ou os
pelegos mandavam.
        Nas casas de paredes-meias - eram doze, seis de cada lado, como era
comum nas vielas do Pouso Alegre - os sons algazarravam cedo. Barulhos de
lacres de cervejas e refrigerantes em lata se abrindo, garrafas sendo retiradas
dos engradados e os estampidos dos abridores se confundindo com a música
que escapava dos aparelhos de som ligados no máximo volume nas portas das
casas. Pagodes, sambas, boleros e sertanejos se misturavam sem divergên-
cias – vitrolas vozeiravam Agnaldo Timóteo, Nalva Aguiar, Wanderley Cardoso,
Lindomar Castilho, Odair José, Vanusa, Roberto Carlos, Jane e Herondi, Almir
Rogério. O chiado da carne, semelhante ao som de chuviscos de uma emisso-
ra de tevê fora do ar, sendo revirada em alguma grelha, disseminava o cheiro
do assado que impregnava a pequena ruela que separava as casas. Enquanto
adultos disputavam tira-gostos e petiscos na mesa exposta ao ar livre e compar-

                                                                         45
tilhada por toda a vizinhança, a molecada num frêmito a correr pralá-pracá.
Um vozerio de homens e mulheres que, alternando gargalhadas e gritos, pa-
reciam viver a plenitude de uma felicidade não compatível com o silêncio e a
modéstia com que Lindalva, Camila e Fabiano viviam noutra casa, quase um
jazigo, onde noutra mesa esperava um frango assado recheado com farofa e
ameixas, acompanhado de uma jarra de ki-suco, testemunhados pela árvore
de natal que pisca-piscava discreta num canto, onde dormitavam os presentes
que os meninos abririam no virar das horas, sem a efusiva comemoração que
se verificava nos outros lares. Ainda estava para sair o turno das dez horas, a
fábrica era um moedor de gente – faltava pouco para o sino da Matriz soar
as doze badaladas, alguns insetos bailando em torno da luz fraca dos postes
da rua, já se podiam ver os faróis dos carros realçando os grossos e compactos
fios de chuva, deslizando pelo tabuleiro de paralelepípedos já encharcados,
uma lua bêbada e intermitente entre nuvens velozes já não derramava sequer
uma claridade débil sobre os telhados, indicando que um aguaceiro vinha de
longe sem dó nem trégua, o campinho tá todo tomado, dona Vera – corria
de um lado pro outro o Valdo doidinho avisando nas casas, mas o movimento
do lado de fora negligenciava o apetite de uma tempestade em ascensão, nin-
guém ligava para os corpos molhados, para as nuvens com suas cortinas de
água chicoteando os quintais. A noite sem estrelas abria alas para o temporal
que assobiava seus ventos nos eucaliptos do morro do cemitério – tudo tão
certo e tão medido para essa época do ano naquelas margens do rio Pomba.
Nas últimas décadas era religioso: a chuva batizava os Natais da cidade e mui-
tos foram os reveillons em que o susto e a correria substituíam os estouros
dos champanhas. A opulência das nuvens não falhava de novo, trazendo um
medo antigo, papel carbono de conhecidos pesadelos, parindo tragédias na
corrosão da madrugada. Desde o final da tarde, os plantões da Rádio Catagua-
ses alertavam a população sobre as condições meteorológicas, mas ninguém
sintonizava o dial naquele dia, pareciam todos detidos no clima de final de ano,
ensimesmados em algum preparativo. Era preciso comemorar, beber, comer
o peru que em alguma mesa não faltaria, preparando-se para enterrar o ano

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moribundo. Chovia horas sem parar nas cabeceiras do rio, lá pelos lados do
pico dos Caramonãs e da Serra da Onça, onde o tempo estava armado e feioso.
Ninguém deu bola, ninguém queria se lembrar de como nos últimos anos os
céus reagiam, revelando toda sua força e brutalidade, todo seu escárnio no
espetáculo intimidatório e caudaloso e suas águas. Não acreditavam que mais
uma vez, depois da Missa do Galo, muita gente voltaria das igrejas sem poder
chegar em casa, sem o milagre da ceia, evacuadas de mais uma esperança.
        Os verões chuvosos sempre foram desmancha-prazeres da vida prole-
tária de Cataguases. As águas de março sempre adiantavam seu ciclo e apare-
ciam no último mês do ano e impunham seu regime de exceção, como nas
velhas ditaduras. Dos subterrâneos repressivos da natureza desiludida com os
homens despencava o chumbo torturante das nuvens. Os regatos, ribeirões,
lava-pés e calhas de esgoto não resistiam à pressão pluviométrica e se jun-
tavam num subversiva e implacável coreografia, levando tudo que viam pela
frente. E a calha do Pomba, serpente líquida e tinhosa, já assoberbada pelo
vômito de outros leitos, não comportando o taliônico tempo, decretava seus
desastres. Só quando ouviram os estrondos, pleonásticos e ensurdecedores,
no vácuo redundante e clarividente dos feixes de relâmpagos, perceberam que
a natureza, mais uma vez, não brincava em serviço e dava suas ordens. Já
inócua aquela correria repentina, diante de um Meia-Pataca travestido num
Atlântico na porta das casas. A tromba-d’água que havia caído a quilômetros
dali, chegava com fúria redobrada e toda a vila não passava de uma imensa
ilha da qual zarpava mais um Natal. Naquela correnteza não boiavam confu-
sos e sem rumo apenas os presentes que não foram entregues. Uma tristeza
absoluta e irreversível redemunhava dentro deles.




                                                                       47
Categoria
REGIONAL




             49
1.º Lugar
                            Categorial Regional
                              Araçatuba - SP


                            Tharso José Ferreira de Minas Gerais, residente em
                            Araçatuba, é autor de livros didáticos, criador da
                            revista infantil “Zé Limpinho”, desenhista, chargis-
                            ta, palestrante, vencedor do 21°, e menção honrosa
                            no 23° Concurso de Contos Cidade de Araçatuba,
                            em ambos na categoria municipal.




                      Amizade Sincera
                               Tharso José




       P
                 ois bem, tentarei contar, embora isso me desagrade muito,
                 mas me encorajo na curiosidade de todos. Se bem, e quero
                 que disso todos saibam, isto não é um desabafo e nada do
que contarei se afasta da verdade nua e crua, tal como acontecido. E aí quero
me safar de vez dos sorrisos de sarcasmo, quando, vez ou outra, me veem pela
rua. É isso que me irrita!
        Aqui todos sabem que João era meu amigo! Amizade leal, franca e de-
terminada. Comia em sua casa, bebia com ele noite adentro, não raro acordava
embriagado no chão de sua sala. João, amigos, era plácido, calmo e reservado,
sem capacidade de ferir, nem em palavras nem em ações. Ousam-me? Tinha
por ele uma amizade sincera, honesta, coisa à qual eu dirigia esforços em
preservar. Em nossa amizade existia de fato uma grande afinidade.
        Mas bem sabem os senhores que o destino nos faz troça. Brinca com

                                                                          51
nossas limitações e nos fere. João tinha uma esposa tão jovem que se passava
por filha. Bela, de uma beleza que só se encontra na juventude. Era de fala
suave, quase um sussurrar. Sempre de vestido ou saia. Isso lhe dava uma
feminilidade que hoje as mulheres já abandonaram. Mas não pensem os se-
nhores, nunca tive os olhos para ela! Mesmo quando João a maltratava e lhe
fazia represálias na minha presença. Me interessava mais o vinho da casa, a
cerveja, o corote de pinga do que sua jovem esposa.
        Todo sábado eu acabava por lá, era lá que eu bebia. João sabia disso e
me esperava sempre, mas naquele sábado ele não apareceu e, quando fiz o
giro para voltar, sua esposa me chamou com sua voz sussurrada dizendo que
ele voltaria logo, que eu entrasse e aguardasse. Eu, como já disse e os senhores
sabem; tenho uma queda pelo álcool, admito, é meu ponto fraco. Daí, condu-
zido pelo vício, entrei.
        Quero que me entendam que nunca dei motivos ao amigo, ou a quem
quer que fosse, de duvidar de meus respeitos com a esposa dele e essa não
seria a ocasião de quebrar tal confiança..., maldito dia!
        Ela me levou aos fundos, eu me acomodei num velho sofá de cor mos-
tarda, roto,perto do freezer. Era lá que ficavam as cervejas. Casa simples, anos
de convívio ali. Quando me levantei, ao pegar uma cerveja, dei de cara com os
olhos dela nos meus. Vi de imediato, enorme depressão, dessas que se dá em
fumadores de maconha. Visível tristeza. Indisfarçável. Desviei os olhos. Não
posso, pensei. Que tormento lhe assolava as faces? Que tinha eu com isso? Mas
ela continuou lá imóvel feito poste. Eu repelia de meu espírito o demônio da
curiosidade embora tivesse dela penosas impressões e, no proceder dos fatos,
vi que ela queria me dizer algo antes que eu me embriagasse. Desviei os olhos
para o chão, mas ao levantar lá estavam os dela, me fitando com beleza notá-
vel e expressão tão triste que me desconsertou. A brancura da pele e o brilho
miraculoso nos olhos causou-me sincera piedade e transpus o curto caminho
entre a lucidez e a insanidade quando lhe perguntei o que havia.
        – Sabe por que João me maltrata? – Perguntou com sua voz de fada –
Sou estéril.

  52
Então era esse o motivo de tamanha melancolia. Ora, João nunca me
havia dito nada. E olhem que ele me confiara coisas, perturbadoras, que nem
em sonho ouso dizer, mas dessa moléstia em seu casamento nem uma pala-
vra.
        – Fiz os exames, não sou eu, é ele o estéril. Menti para ele. – Me disse
encostando os lábios em meu ouvido. – Ele não virá aqui hoje, e eu confio em
você.
        Suportei até onde um homem pode. Eu sou um conhecedor de vinho,
cerveja, destilados, mas de mulheres, nada! Não as entendia e nem queria.
Menos ainda eu entendi quando ela se debruçou sobre mim se abrindo e me
abrindo com a suavidade das penas. Eu me apiedei quando lhe vi as coxas
arroxeadas pelo marido e nada disse quando ela me falou que fazia aquilo por
ele, pois o amava mais do que a si. Eu me converti em pedra, teso, grudado no
sofá imundo. Fechei os olhos diante do pecado e formei com ela, ali no sofá,
um único corpo.
        Por que falar aqui o que já sabem os senhores? Por que o relato dessa
vergonha? É odioso para mim repetir isso, codificar o acontecido em palavras
para que paire em vocês o entendimento. Ora, pois!
        Deixem-me apressar e evitar fervura que vejo agora em tantos olhos.
Depois disso não deixei de fazer minhas visitas ao amigo.Foram meses de tar-
des e mais tardes do mais fino álcool, até que o ventre de sua jovem esposa
se tornou volumoso e belo. Ele em êxtase, alegria total, aberto em sorrisos,
atencioso, carinhoso, afetuoso, moderado na bebida. Ela ainda mais bela,
mais calada, mais feliz, cantarolando pela casa. Comigo João tinha excessiva
cordialidade. Bebia conversando comigo, tardes inteiras, não se cabia de con-
tentamento, tinha assunto sobre assunto, tagarelava o tempo todo, alterara
seus modos para melhor. Eu, oculto,calado, feliz ao extremo, entusiasmado
com a situação. Nossa amizade já viçosa obteve mais vigor ainda.
        Quando o rebento veio ao mundo com a cara da mãe, João se tornou
absoluto como pai, atento e zeloso com mãe e filho. Eu em estado de graça, se-
cretamente. Isto me bastava. Aliança perfeita. O silêncio como aliado perpétuo.

                                                                          53
É esta a questão que quero que examinem! Acham que houve mais alguma
coisa entre eu e ela? De modo algum! Afeiçoei-me a ela fraternalmente, era
o papel que me cabia. Defendia silencioso a causa de todos, e disso fui meu
próprio juiz.
        Lembram-se do destino? Aquele que traz de surpresa benesses, benig-
nidade? Ora, não nos enganemos, ele zomba de nós e traz também infortú-
nios! E infortúnios como benesses são tão próximos que não os distinguimos.
E como o mal e consequência do bem, o contrário também é verdade. E, como
todos sabem, o mal não havia dado as caras. E, como é da alegria que nasce a
tristeza, ela me disse – Ele quer outro filho – Num sussurro quase inaudível.
        Quero ser aqui o mais claro possível. Tinha cumprido o propósito. To-
dos estavam felizes. Não havia de minha parte um porquê. Mas admito a todos,
tentação havia.
        É justo e provável que vocês não me entendam, mas eu posso entendê-
los. E eu não tenho aqui palavras adequadas para esclarecê-los do categórico
da minha negativa e, aqui, defendo a minha causa confiante.
        Mas ela falava docemente, devagar e, é essa a qualidade submissa que
amo nas mulheres. Aquilo tirava a consistência dos meus nãos. Ela sabia, por
me conhecer, que tal atitude sobre mim tinha delicioso efeito; então me tor-
turava a cada dia na dose suficiente para que eu perdesse a força da negativa
diante da volúpia de sua presença, seus pedidos constantes, seu cheiro. E que
homem não tomba diante do machado do desejo determinado de uma mu-
lher?
        Mas o amor proibido está sempre próximo do perigo. Depois disso,
senhores, ela passou a me evitar. Não me dirigia a palavra e nem o olhar.
Quando eu entrava, ela saia. Procurava ficar sempre fora de minhas vistas,
sem disfarce, exagerada.
        – Porque me faz isso? – Perguntei.
        Ela me disse que percebera amor em meus olhos, que meus desejos
estavam se tornando uma ameaça ao combinado.
        Sabendo disso assumi uma personalidade abstrata, neutra, pus de lado

  54
a postura que me dava um pouco de dignidade, se é que um bêbado sabe o
que é isso, e esperei com paciência, afinal éramos todos companheiros. Ela
sempre atarefada, trabalhos domésticos infindáveis, com assuntos e mais as-
suntos particulares fora de casa, numa justa tentativa de não me dar atenção.
         Quando nasceu o bebê, uma menina inconfundível, réplica minha,
enormes orelhas de abano, pele branquinha, mãos e olhos iguais, senhores!
Iguais aos meus! Tal criança arrebatou-me a alma, de imediato, me vi nela.
         Qualquer coisa agora que fizesse lançaria meu filho a uma condenação
injusta. Calei-me feito lápide. Passei a ser uma sombra silenciosa e atenta.
Minha vontade morreu diante da vida que nascia. João espalhava a sua cara
alegre em tudo com uma vocação divina em fazer tudo parecer bem. Longe de
censurá-lo passei a admirá-lo ainda mais num misto confuso de sentimentos.
Muitas vezes ele chegava e aninhava a filha em meus braços – Pratica aí a
paternidade, um dia você vai ter o seu! – Parecia saber da minha paixão pela
menina.
         O meu apreço pelos vapores do vinho se foi e ficou um mecanismo
desconhecido, uma certa tolerância a tudo. Nesse trato novo que dei à vida,
desenhei a gosto o meu próprio conceito de moralidade, honestidade, pecado.
Enfim, tudo a meu gosto, ao que me convinha, que me deixasse em vantagens
sobre os meus sentimentos, dando cores ao meu destino.
         Senhores, o que é de fato verdade? Pois na verdade todo conhecimento
é oco e cabe a cada um preenchê-lo como quiser. Eu sei que o amor se apre-
senta cheio de infelicidade para aquele que ama, já que quem ama não troca-
ria a ilusão do amor pela certeza da indiferença do amado, eu preferia ser o
amante infeliz, ignorado, do que estar fora daquela casa, daquelas vivências.
         Todos sabem que o adultério é companheiro inseparável dos longos ca-
samentos. Logicamente, se existe entre nós algum advogado ele terá na men-
te a atitude legal de representar contra. Argumentação tipicamente jurídica,
fria,estabelecida na lei, no papel. E aqui não apetece tecer comentários, aos
defensores da lei, sim, são farejadores do mal.
         Acomodei-me na casa do amigo. Não saía de lá. Vivia uma ilusão só

                                                                        55
minha. Impávido diante da paixão. Notava a jovem mãe calada em seus afaze-
res pela casa. Mas o amor e a morte, meus caros, são irmãos. Minha fissura
amorosa a consumia diante meus olhos de abutre, imoral, insano, perpétuo
e confuso. Tal doença furiosa infectou por completo toda a casa. Ela notou
tudo e acalentou para si tal angústia. Com o tempo emudeceu de vez. Silêncio
de morte. Quando eu me aproximava ela tinha uma espécie de ataque. Tal
moléstia crescia dia a dia, sua voz leve sumiu para sempre. Nutrido pela culpa
passei a cuidar de tudo desmedidamente. João tomou aquilo como resposta
da nossa amizade e aceitou.
        Ultrapassei tudo, quebrei regras, me pus servil. De nada adiantou, o
mal nela evoluiu e nada do que fazíamos surtia efeito, e como todos sabem
a vida lhe fugiu, ela faleceu num dia cinzento de outono, trazendo a mim e
ao João um dor irremovível. Entendem agora como vocês nos irritam quando
olham, comentam e riem quando andamos os quatro de mãos dadas pela
rua?
        Onde está o vinho, Senhores?!




  56
2.º Lugar
       Categoria Regional
       Penápolis - SP


                       A palavra muda
                               Danieli Elias




       V
                   antuiluriel.
                   Nunca entendera porque sua mãe lhe dera esse nome tão
                   incomum. Não, pensando melhor, esse era um nome bizar-
ro. Por que não se chamava João, Carlos ou Ernesto como todos os outros ao
invés de Vantuiluriel? Sempre fora motivo de piadas por isso. Aliás, os óculos
grotescos que usava também não ajudavam muito.
        Com o passar dos anos acabou se entrincheirando dentro de si. Não
queria que rissem dele, por isso nunca falava ou olhava para os outros. An-
dava cabisbaixo, sempre, como que procurando algo há muito perdido. Não
pronunciava palavra e ninguém conhecia o som da sua voz. A verdade é que
a vida tornava-se menos encantadora a cada minuto e não importava o quão
feliz devesse estar, simplesmente não conseguia. Queria viver uma vida breve e
sem sofrimento, assim como as borboletas. Simplesmente ser!
        Vantuiluriel não tinha má aparência, mas seu semblante triste encobria
sua beleza. Seus olhos negros, dotados de uma melancolia extrema, e seus
ombros encurvados pelo peso da amargura tiravam-lhe o encanto juvenil.
        No começo todos se sentiam desafiados por aquele simples garoto. Por
que tanta infelicidade? E com o decorrer do tempo, quando Vantuiluriel passa-
va, as pessoas sentiam apenas um leve sopro de ar. Já não o notavam. Morrera,
enfim.
        Mas se deu que um dia Vantuiluriel teve uma visão divina. Algo que o
fez esquecer seus problemas e desejar viver séculos.

                                                                        57
Sofia.
        Seus pés foram a única coisa capaz de fazer aqueles melancólicos olhos
negros erguerem-se pela primeira vez em doze anos. Aquela era a visão mais
doce que já tivera ou imaginara poder ter. Os olhos de Sofia faiscavam e a paz
emanava de seu sorriso. Vantuiluriel foi tomado por um sentimento novo, o
qual não podia explicar e que nunca havia sentido. Amor!
        Passou anos a observá-la, notando cada mínimo detalhe: o modo como
ela enrolava uma mecha de cabelo quando estava distraída, sua preferência
por sorvete de morango com chantilly, seu olhar absorto quando lia. Foram
anos alimentando-se daquela visão, sonhando... Seu peito sufocava e por mais
que quisesse se prevenir não pôde evitar o único desfecho para aquela situa-
ção. Seu coração clamava descompassadamente por revelação. Correria o ris-
co e falaria a Sofia que a amava.
        Encontrou-a sozinha numa mesa da biblioteca. Sofia adorava livros.
Fora lá que a vira pela primeira vez há cinco anos. Sentou-se frente a ela e a
fitou. Por segundos, Sofia correspondeu-lhe o olhar e depois o voltou para o
livro que lia. Romeu e Julieta.
        Vantuiluriel diria as palavras que o atormentavam. Para os outros sem-
pre falta uma palavra, mas para ele não faltaria nenhuma. Sempre fora dife-
rente. Sentiu as letras juntarem-se em sua cabeça, passarem por seu coração
e se dirigirem para a garganta.
        Era agora, iria dizê-las. De repente ele engasgou-se. Sofia e os outros ao
redor se assustaram.
        Correria.
        Vantuiluriel ficou roxo e o ar extinguiu-se em seus pulmões. O coração,
que antes batia por Sofia, parou. Morreu. E sem dizer palavra. Se para todos
falta uma palavra para ele não foi diferente. “Ah, Sofia! Como eu...” Foi a pri-
meira vez em seus vinte e dois anos de existência que se sentiu igual aos outros
e uma felicidade incomum preencheu o seu ser. Finalmente era igual, mesmo
se chamando Vantuiluriel e não Carlos, João, Ernesto, César...


  58
3.º Lugar
       Categoria Regional
       Araçatuba - SP


                            A Travessia
                               Mário Bueno




       A
                    inda era escuro quando ele acordou com o barulho do des-
                    pertador. Apesar do sono, estava ansioso com a chegada
                    desse dia e assim tratou logo de sair da cama. Esfregou os
olhos, espreguiçou-se e caminhou rumo ao chuveiro para o costumeiro banho
matinal.
        Há anos sonhava com essa aventura, mas somente agora é que final-
mente conseguiria realizar tão esperado sonho.
        Em silêncio, para não acordar a mulher, foi até a cozinha e preparou
um reforçado café da manhã. O dia seria longo e cansativo, portanto precisaria
estar bem alimentado.
        Caminhou até a sala de jantar e por um momento contemplou orgu-
lhoso toda a parafernália espalhada pela mesa e chão. Aos poucos conferiu a
lista para certificar-se de que não se esquecera de nada e que tudo estava em
ordem: barraca, saco de dormir, colchonete, rede de descanso e mapas. Nos
alforges roupas, calçados, produtos de higiene pessoal, ferramentas, peças so-
bressalentes, primeiros socorros, fogareiro, panelas, alimentos e tantas outras
coisas necessárias para a viagem.
        Tinha aproximadamente uma centena de itens, organizados e separa-
dos em sacolas diferentes para facilitar a localização e o acesso de qualquer
coisa a qualquer momento.
        Ele nunca havia feito nada parecido antes, entretanto toda informação
que amealhara durante meses de pesquisa seria mais do que suficiente para

                                                                         59
completar a empreitada com alguma tranquilidade.
        Enquanto carregava as coisas para fora de casa, a família pouco a pouco
foi acordando. A mulher, os filhos, o pai, a mãe.
        Ainda sonolentos observavam com um misto de resignação e compla-
cência o pedalante ajeitar os últimos detalhes em sua bicicleta completamente
carregada.
        Seu objetivo era atingir o pico do Porta do Céu, o monte mais alto do
país, a cerca de cinco mil quilômetros distantes de casa. Faria isso pedalando
por essas estradas do mundão de seu Deus, ao longo de três ou quatro meses
de viagem, com a intenção de chegar por lá no inverno, quando poderia des-
frutar de um dos céus noturnos mais belos do planeta.
        Tudo pronto para a partida, iniciou-se outra rodada de despedidas. Ha-
via um clima de tristeza no ar. Os filhos, ainda pequenos, brincavam ao redor
da bicicleta, sem entender direito o que se passava. Silenciosamente abraçou
seus familiares como se fosse a última vez; todos com lágrimas nos olhos
como que pedindo para ele ficar.
        Olhou para as crianças de modo tão direto e profundo, que as palavras
se tornaram desnecessárias, pois as mesmas já haviam sido ditas e reditas
como um mantra, várias e várias vezes durante o período de incubação da
jornada.
        Finalmente montou em sua bicicleta e, reticente, partiu sem olhar para
trás. Eram seis da manhã. Assim que dobrou a esquina, a mulher, já com a
mão no rosto, correu em prantos para dentro de casa chorando compulsiva-
mente.
        Para o pedalante, entretanto, todo o cenário parecia novo por mais que
ainda estivesse a poucos metros de casa. Os velhos e conhecidos caminhos do
bairro adquiriam um aspecto totalmente diferente, como se fosse a primeira
vez que estivesse passando por ali. Sua própria existência ganhava novos con-
tornos.
        Enquanto pedalava lentamente em direção à saída da cidade, repassava
em pensamento todo o longo trajeto que percorreria nos próximos meses.

  60
Partindo do litoral onde morava, subiria em direção ao norte, margeando o
país pela praia por centenas de quilômetros. Duas semanas de viagem, talvez.
Depois, rumo ao oeste, atravessaria várias cidades, estados, culturas e costu-
mes diferentes, percorrendo intrincados caminhos em zigue-zague, subidas e
descidas por morros e montes, até finalmente chegar na Porta do Céu, o ponto
mais alto do país.
        Bastaram poucas pedaladas para que o asfalto ficasse para trás. Entrou
por uma estreita trilha de terra, bem arborizada, fresca, e após alguns quilô-
metros teve acesso à praia onde foi saudado com deslumbrante nascer do sol,
de alaranjado incandescente.
        Agora, sim, a viagem começa de verdade, pensou. Com tudo que preci-
sava a bordo, e casa nas costas, o pedalante estava por conta própria.
        A areia da praia, úmida e compactada, era terreno perfeito para pedalar
de maneira bem cadenciada, permitindo que a bicicleta atingisse boas veloci-
dades. Dessa forma era possível percorrer dezenas de quilômetros em poucas
horas, fazendo rápidas paradas apenas para beber água, descansar e recuperar
as energias.
        Ao entardecer encontrou um pequeno gramado sob algumas árvores,
ligeiramente recuado da praia e bem protegido da brisa marítima. Ali montou
seu acampamento e rapidamente preparou o jantar, pois a fome e o cansaço
se manifestavam com intensidade.
        Sentado à porta da barraca, enquanto comia, admirava a noite que
calmamente se anunciava. O céu com lua cheia prometia um espetáculo à
parte.
        Sacou um pequeno livro do bolso, cujo autor era um renomado nave-
gante, e pela milésima vez leu – desta vez em voz alta – o trecho que poderia
resumir toda a sua existência: “Um homem precisa viajar. Por sua conta, não
por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus
olhos e pés, para entender o que é seu”. E ele estava ali para isso.
        Seriam meses que valeriam por toda sua vida. Meses nos quais ele
aprenderia muito sobre o desapego e a simplicidade; a descobrir como é bom

                                                                         61
viver e ser feliz com pouco.
        Já deitado em seu saco de dormir, adormeceu profundamente enquan-
to ainda pensava nas palavras do livro.
        Despertou com as primeiras luzes do sol e logo percebeu que o relógio
já não seria mais necessário. O sol, a lua, a fome e a sede seriam a partir de
agora seus guias.
        Saiu da barraca e caminhou para o mar.
        Mergulhou naquelas águas límpidas, levemente esverdeadas. A areia
quase branca. O lugar era paradisíaco, e por ser de difícil acesso ainda manti-
nha suas características originais.
        Ao sair da água sentiu forte tontura. Com a respiração ofegante, sentou-
se para não cair e assim ficou por alguns minutos até que a cabeça voltasse
ao normal.
        Logo que a tontura passou, levantou-se, caminhou até o acampamen-
to, tomou um rápido café da manhã e desmontou toda a tralha para seguir
viagem.
        Por volta do oitavo dia deparou-se com um imprevisto. Um rio cortava
seu caminho. Não era exatamente largo, mas em compensação não era raso o
suficiente para atravessar pedalando. Contorná-lo seria impossível.
        Sem pestanejar arrancou a camisa, os calçados, e entrou na água para
verificar a profundidade. Vendo que era possível fazer a travessia, tirou os alfor-
ges, bolsas e sacolas da bicicleta e um a um foi transportando sobre a cabeça
para que não molhassem, até chegar do outro lado do rio. Por último ficou a
bicicleta, que também foi transportada acima da linha d´água.
        No décimo quarto dia encerrou o trecho do litoral e partiu para oeste,
em direção ao interior do país.
        Quilômetro após quilômetro as semanas foram se passando. A cada
dois ou três dias parava em alguma cidade, ou vilarejo, para repor os supri-
mentos ou fazer pequenos reparos, sempre que chegava com a bicicleta carre-
gada, atraía a atenção para si. Os locais perguntavam de onde ele vinha, para
onde estava indo e queriam saber da sua história, dessa aparente loucura que

  62
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  • 3. Organizadora Cecilia Ferreira (em nome da Academia Araçatubense de Letras) CONTOS Premiados (Contos Escolhidos) 3.ª Edição Araçatuba, 2011
  • 4. Copyright © vários autores Edição: Cecilia Ferreira Editoração e capa: Arlen Pontes CTP e Impressão: Editora Somos - (18) 3636.7790 Secretaria Municipal da Cultura Rua Anita Garibaldi, 75 - CEP 16010-280 Araçatuba - SP www.secretariacult@gmail.com - (18) 3636.1270 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP Brasil) , Contos escolhidos / organizadora Cecilia Ferreira. -- 3. ed. -- Araçatuba, SP : Editora Somos, 2011. Vários autores. ISBN: 978-85-60886-37-1 1. Contos brasileiros - Coletâneas I. Ferreira, Cecilia. 11-09058 CDD-869.9308 Índices para catálogo sistemático: 1. Contos : Coletâneas : Literatura brasileira 869.9308
  • 5. 24.º Concurso Internacional de Contos da Cidade de Araçatuba Categoria Nacional 1.º Lugar – Emir Rossoni – Cotovelos ao parapeito ......................................... 13 Menção Honrosa Nacional José Carlos Barbosa de Aragão – Di-Lis ................................................................... 19 Guilherme Azambuja Castro – O Assessor ............................................................. 23 João Paulo Vaz – Os meninos ................................................................................. 29 Marcelo de Campos Lilla – Ana dorme............................................................... 30 Ronaldo Cagiano Barbosa – Sem Natal .............................................................. 41 Categoria Regional 1.º Lugar – Tarso José Ferreira – Amizade Sincera ......................................... 51 2.º Lugar – Danieli Elias Richart – A Palavra muda ....................................... 57 3.º Lugar – Mário Henrique Silveira Bueno – A Travessia.............................. 59 Menção Honrosa Regional Regina Ruth Rincón Caíres – A magia do circo ............................................... 65 Odair Maurício de Albuquerque – A morte não manda recado ....................... 77 Ronaldo Ruiz Galdino – Uma história de 2924 .............................................. 85 Josiane da Silva Mesquita – O gato na janela .................................................. 93 Wanilda Maria Meira Costa Borghi – Acerto ..................................................... 101 Categoria Internacional 1.º Lugar – Tânia Ganho Gomes da Silva – Perfeita simetria .................... 105 Menção Honrosa Internacional Vitor Manuel Capela Batista – As Insónias....................................................... 111 5
  • 6. Conto dos Julgadores Cecilia Ferreira – Insuflando adágios ............................................................. 121 Tito Damazo – Perfeccionismo ........................................................................... 125 6
  • 7. Prefácio L uiz Costa Lima publicou, além de muitos outros, o livro Por que Literatura (Vozes, 1969), cujo primeiro capítulo recebe o mesmo título. Ali, naquele ensaio, o professor e crítico lite- rário de renome discute as razões pelas quais a literatura, tão antiga quanto a civilização, subsiste como um organismo vivo, exposto ao tempo, ao espaço e à história. Logo, sempre submetida a questionamentos, ameaças, crises e transformações. Esses dinamismos e metamorfoses de que se reveste a literatura se fazem, sobretudo, porque sua carnadura é essencialmente linguagem. E esta, por sua vez, é ser mutante de que derivam permanentemente, inacabadamen- te, seres e coisas, dentre os quais, a palavra, ou seja, a própria linguagem. À página 35 deste ensaio, o crítico afirma que “A arte e a literatura se justificam por expressarem, a partir do lócus semântico do polissêmico (Della Volpe), uma visão articulada do tempo. Visão que ao leitor ou ao expectador consequente não pode ser apenas motivo de contemplação, elemento de des- frute, prazer dos sentidos, porém mais do que isso, condição para o entendi- mento crítico da realidade. E quando dizemos crítico pensamos em um ato que não se encerra em compreender, mas em atuar a partir desta compre- ensão”. E mais adiante diz que “A tarefa da literatura continuará a ser, agora como antes, a de atingir e a de trazer na palavra a raiz das coisas onde se deposita a raiz do homem.” Na esteira destas reflexões, podemos admitir que a literatura hoje, tanto quanto ontem, se constitui um arcabouço de conhecimentos, os quais dão à realidade uma dimensão outra, quase sempre inusitada, problematizando, confrontando e polemizando com os paradigmas socioculturais e econômicos estabelecidos. É verdade que a literatura – objeto de linguagem verbal escrita essen- 7
  • 8. cialmente – tem perdido o poder e o prestígio que até aqui mantivera, perante um universo de pluricódigos, como o de hoje, em que a linguagem visual so- fisticada tem poder de comunicação excepcional e avassalador. Todavia, a despeito desta crise inevitável em que se encontra, segura- mente não perdeu seu fim e objeto, tampouco aqueles valores, os quais se podem depreender das ponderações de Luiz Costa Lima acima transcritas. A crise, dentre outros fatores, estabelece a necessidade de se buscarem mecanismos eficazes para superação dos problemas e obstáculos surgidos. E a história mostra que é justamente na crise que a literatura, como de resto as outras artes, se redimensiona num refazimento que a renova e a reedifica, como uma fênix restabelecendo-se de sua própria cinza. Nesse sentido, cremos, é que se colocam os vários certames literários, artísticos e culturais promovidos por instituições estatais e privadas, como este já tradicional Concurso de Contos Cidade de Araçatuba, cujo resultado se con- signa nas páginas deste livro. São dignificadores do bem estar de uma sociedade eventos e ações des- ta natureza, os quais possibilitam à literatura espaços em que pode exercer sua atuação como um dos fenômenos culturais fundamentais para a com- plexa construção do espírito e pensamento humanos. Autorizar espaços que garantam aos escritores o estímulo da criação literária, de forma convicta e consciente da importância de tal acontecimento, como o faz a Secretaria da Cultura do Município de Araçatuba, é um contributo de suma relevância para a superação de uma crise que, assim, há de soçobrar. Escrever literatura não é fácil. E o fácil normalmente pode satisfazer interesses pessoais, quase nunca os da literatura, que é um bem de interesse social. Escrever literatura é, antes de tudo, um prazer a quem o faz, mas tam- bém um trabalho que requer empenho criador. A essência da obra literária consiste em não ser concessiva nem sub- missa. O que não quer dizer que dê ou deva dar as costas ao seu contexto social. Pelo contrário, sua forma e conteúdo o refletem e o identificam. Mas com ele se relaciona como um objeto autônomo, que se impõe como distinto 8
  • 9. e capaz de polemizar, contestar, denunciar, além de afetar, enlevando, engran- decendo, sensibilizando e ou incomodando o seu leitor. Esse conjunto de elementos, aqui considerados, foram pressupostos básicos pelos quais se conduziu a comissão julgadora deste 24º Concurso de Contos Cidade de Araçatuba ao cumprir esta dificílima tarefa de determinar posições a textos literários em competição. A presente obra traz no seu bojo a maioria daqueles contos que, se- gundo a comissão, vai na pegada de um fazer literário que procura preservar o papel de seu objeto e resistir aos contraventores de sua essência, cujo fim, parece, quererem inutilizar, ou banalizar, autorizando e reverenciando sub- produtos de uma escrita que procuram credenciar como obra literária. 9
  • 10.
  • 12.
  • 13. 1.º Lugar Categoria Nacional Porto Alegre - RS Emir Rossoni é escritor e publicitário. Trabalha em agências de publicidade gaúchas como redator e diretor de criação, tendo trabalhado um ano em Portugal. Possui publicações em sete antologias de contos e uma de poesia e recebeu diversas premia- ções nacionais na área da literatura. Cotovelos ao parapeito Emir Ross S erá que era a eternidade que ele buscava? Alguns pensamentos até me disseram que sim. Mas sua posição estática a deixar apenas os cabelos moverem-se ao vento, que era forte, desper- tou muitas dúvidas. Ele parecia saber o que queria. E queria eu que seus olhos virassem as meninas de lado um pouco, para eu capturar algum reflexo de suas inspira- ções. E como ele não se movia. E como ele parecia decidido. E como ele estava longe e nada ouvia e ignorava qualquer movimento alheio, era hora de con- tentar-me com a imagem que queimava ao outro lado da rua, no edifício um pouco mais baixo, onde, do terraço, talvez ele aguardasse o momento certo. O momento, eu sabia – ao menos disso eu sabia – vivia dentro dele e pretendia logo-logo viver fora: fugir das órbitas do que não se pode ver. Descansei minha curiosidade sobre sua imagem; acomodei-me. Fitava, encantado. E minha existência foi navegando, navegando, navegando; numa 13
  • 14. ponte seca feita de um raio de olhar que unia os dois prédios. E, na ponte, não existia nenhuma lei, nem a lei da gravidade. Cotovelos ao parapeito. Adormeci meia pálpebra; o dia mugia preguiçoso. Remoía uma tentati- va de querer saber o que o sujeito fazia de braços estendidos na beira do topo de um semi-arranha-céus. Firme-leve. Olhos fechados. Boca a sentir o sabor do vento. Não. Eu não sentia medo por ele estar ali. Nem calafrios. No máximo, um pouco de tédio que sempre é menor que a curiosidade. Então, a pálpebra sonolenta despertou com o assobiar do vento. Vento que bate na vidraça: cai cambaleante. Tombeia esmurrado por outro braço de vento que vem no senti- do contrário: acidentes acontessem: cai morto. Mas lá ao outro lado, o vento só encontra cabelos; e cabelos gostam de voar, porém, amarrados à cabeça do homem, não decolam. Lavava-se com os ares. Purificava-se de dedos abertos e coxas contraídas. Porque não precisava mais respirar. A cabeça tombada deixa o ar entrar por conta. Ele parecia feito de nada. Seus contornos eram soltos como esboços de qualquer coisa. Então vi que ele tinha poros abertos, muito abertos de vida, que saía e entrava e saía e entrava muitas vezes a cada piscar que eu tentava não dar. E quando tentei não piscar – não pisquei por bom tempo, até que agüentei não mexer as pálpebras e não verter os olhos – vi que ele podia não estar lá, e vi depois de um átimo de mim que havia outro ao seu lado, idêntico, crente que ia alcançar alguma coisa. E quando a nuvem do não agüento mais enegreceu minha vista, eles novamente misturaram-se. Dois-em-um-em-nenhum-num. No mesmo lugar. A fazer a coisa mesma. Nada. Então pensei que fosse um louco. Doido. Varrido-sozinho-fugido. Mas loucos não fecham os olhos diante do vazio. Cientizam o que vêem. Amalucam os terraços aos tropeções. Trôpegos indecisos. Ele era tudo de qualquer coisa. Menos louco de momento. E o que era eu da janela fechada do apartamento a olhar por horas o 14
  • 15. homem que não se movia? Talvez eu fosse o grito que ele não ouviu. “Hei!” Talvez eu fosse a frase que o vento derrubou enquanto atravessava a ponte. “Faz o que aí?” Sobre o que eu era não vale interessar. Quis perguntar-lhe muitas coi- sas; mas o maldito não tinha ouvidos para o mundo que eu morava. E o ser mais íntimo que tínhamos em comum era o vento e, esse, não gostava de mim no momento. Nem adiantava pedir apresentações. Ora quando este me tentava derrubar, sustentava o homem lá de cima; e ora quando eu gritava, ele carregava minha voz para o lado oposto; em compensação, me fazia ouvir os respirares do homem; Lento-pausados. Respirava, como se o ar o alimentasse. Confesso que por instantes o odiei. Odiei, por me fazer aguardar em posição desconfortável. Odiei por ter tanto a fazer e não me desprender da janela. Mas o odiei mais por ele estar lá, seguro e satisfeito. Enquanto a impaciência me corroía pelas bordas de dentro. Ele estava por um fio, prestes a cair no precipício de tantos andares e o calafrio se dava em mim. Na minha espinha corcunda de roer possibilidades. Porque talvez quisesse ele heroizar-se por coisa-nada. E eu queria estar lá, vendo tudo do quase-início ao fim. Talvez ficar heroizado também, mais que ele até, por gravar as imagens com os olhos e contar depois para quem não queria enxergar. Eu tinha esse sentimento de grandeza próxima. Mas, provável, maior fosse o sentimento de inveja dentro. De querer que o vento me tratasse como o tratava. Mas vejo agora que sua relação com o vento era a mesma que a minha com o cimento. Com a diferença de que o cimento não é inalável, nem móvel, nem muda de formas nem vai comigo onde o convido. Talvez quisesse o homem fugir do cimento. 15
  • 16. Do alto do prédio-cimento: para o baixo da rua-cimento. Um choque entre dois cimentos distantes e delatores; que nem o vento conseguiria suavizar. Igual me contorcia para vê-lo, torcia para que se fosse. Se fosse logo. Para qualquer. Não queria que fosse para fora, alguns segundos andares abai- xo. Mas coçava-me para ver isso. Queria. Por quê. Queria? Eu sabia que isso mais cedo ou mais tarde aconteceria. E sentia que ele, lá dentro da sua ausência, também disso sabia; ficaria lá então a cornetear minha paciência e minha fome de vê-lo espatifar-se no chão. Sentia que ele sabia de tudo; e que estaria esperando um lapso de atenção minha para des- pencar lá de cima. Assim, ele me venceria. Assim eu pensava. Pensava. Pensava. Na real, eu não pensava. Eu estava é cansado. Sei agora que ele jamais venceria, nem eu jamais venceria, pois luta nenhuma estava sendo travada. Talvez por isso eu ainda sinta raiva dele, de sua capacidade de ser nada. De aparecer e sumir e desembarcar em minha mente a cada instante que olho o topo vazio daquele edifício. E de ser o que bem entender. Foi vento quando pisquei os olhos. Foi pluma na imensidão dos segun- dos em que os mantive fechados. Foi pedra quando os abri. E espalhou-se em pedaços de mim quando o vi na calçada. Braços estendidos, pernas descan- sando, dentes a correr soltos a se perder de vista. Era tudo dele que sobrara depois da minha distração. A essa hora, muitos pararam para ver. Polícia rodeou. Dondocas colo- caram os indicadores na testa, depois foram tomar café. Crianças juntaram alguns dentes. Todos o estavam vendo. Todos. Mas havia uma coisa que só eu ainda percebia. Sua cara de deboche. Seus olhos de vão se fu. Seu vento que abrisava de cima a baixo a lateral do prédio sem ponte nem lei. 16
  • 17. Respirei. Respirei. Fazia horas que não o fazia. E, então, lá de cima, também deixei-me despencar. Mas despenquei apenas os joelhos à cama. Os olhos para dentro. Os pensamentos para nada. E, depois de não conseguir ficar encamado, fiz o mesmo trajeto que o homem, rumo ao cimento da calçada, porém, de elevador. Era a primeira vez que pisava a calçada naquele dia, e era já fim de dia. Não fora por falta de tempo que não o fizera: nem por falta de vontade. Foi por falta de olhos. Vi o homem lá no chão, espatifado. Carregava a mesma expressão de nada. Vazio-cheio-de-mundo. E eu cheio-de-olhos-de-todos. Não pude evitar que me olhassem. O sol já se tinha ido e o dia era noite escura. E na penumbra apareciam dezenas de pares luminosos de olhos de todas as cores. Zombeteiros-inquiridores. Queria evitar de ver os olhos. Mas, para isso, deveria olhar o homem acimentado ao solo. Já o havia olhado durante o dia inteiro e isso já era de- mais. Para talvez ser agradável àquela multidão faminta de mim, abri a boca: “Sim, eu vi”. Os olhos entreolharam-se, vesgando-se. “Vi tudo, desde sempre”. Desvesgaram-se na minha direção. “Desde manhã cedo, tomava vento e estava surdo”. Ao princípio senti medo dos curiosos que bebiam a minha própria curiosidade. A curiosidade que eu bebera durante o dia todo. Eles também queriam. E eu não sabia por quê. Abaixo dos olhos, apareciam gargantas: abrindo-fechando. Mas eu nada ouvia. Só as via. Acho que eu não sabia onde estava, nem o que eu era. Talvez o cimento me pregasse as pernas como o homem me 17
  • 18. pregara os olhos. Então deixei-me derramar, cimento-líquido, e escorri junto ao corpo dele. E, como o dia inteiro, quis chegar perto, quis gritar, e não fui ouvido, desta vez ia na direção de um caminho que eu conseguia dominar. Escorri-me sobre as lajes, untadas por cimento seco, escorri-me sobre alguns pés curio- sos. Escorri-me, sob alguns pisões. E, de escorrência em escorrência, cheguei finalmente onde os olhos não mais me incomodavam; onde o vento não so- prava. Toquei-lhe os pés e nada senti. Agregaram-se a mim-à-calçada. Senti por bem tocar também as pernas e agreguei-as também, misturadas com uma fúria de submundo que emergia em torno. E cheguei às mãos secas, apertei a direita com a minha, porosa-suada. E deixei-me ir a cobrir mais o seu corpo, ventre-peito-tronco. E fiz força para não torcer-lhe a garganta. E fiz força para não furar seus olhos, mas estavam fechados-fechados. Fechados. Ele que tivera tantas imagens para ir ver. Estava lá, de olhos fechados. Um deles esmagado por uma nesga de pedra. E a boca mordia a língua; esta nunca nada falava, podia ser engolida. Antes de cobri-lo por completo, reparei última vez nos seus cabelos. Estáticos. Sem vento que os levasse. Então, dei uma leve soprada: agitaram-se o suficiente. E escorri-me, em cimento, para que ninguém mais visse vestígio dele na rua. 18
  • 19. Menção Honrosa Categoria Nacional Belo Horizonte - MG Di-lis José Carlos Barbosa de Aragão N o tempo – dele, Jão – de escolher moça pra compromisso, escolheu Di-lis, a mais desejada. Escolha do comum acor- do das partes, que já dividiam rabos-de-olho esconsos; e das famílias. Ele, forte, garboso, cabelo domado a poder de brilhantina, cara qua- drada, de homem-homem, braços que faziam suspirar as casadoiras de aqui a acolá, no longo de todos os caminhos conhecidos. Di-lis não deixava por menos e, por ela, também suspiravam outros olhares cobiçosos, esses, de se meterem no vau profundo daquele colo farto, e daquelas ancas convidadeiras feito as grunas da cachoeira na estiagem, onde o pacu-de-corredeira era pego de mão. Menina ainda, ind’antes da primeira volta-da-lua, já lhe crescia os olhos o Acúrcio, moço já-feito, passado, talvez, um tanto da idade de augurar prenda tão jovem. Di-lis, extraindo do olhar do coitado sua vontade represa, tripudiou o que pôde, acalentando falsas esperanças – que, toda vida, o mancebo não lhe apetecia. Por gosto, só. Outro – esse, com ela, regulava idade – mais ela até se engraçaram, quando nele já desciam os grãos e nela os pomos se insinuavam, divisando um novo tempo. Não vingou, que ele, com a família, tomou o trem, foi ver outras terras e por lá ficou e fez filho e fortuna, longe. Pretendentes, a ela não lhe faltavam, uns declarados, outros recatados; uns falados e conhecidos, outros à moita; mas todos querendo a mais-flor, a 19
  • 20. de-lis, Di-lis – a única. Ela seguia adiante. Desfeiteava. Uma primavera: desabrochou. Temporã. Feito fosse outono. Flor ma- dura: fruta. E Di-lis, sabida requerida e desejada, inchava os ares de fruta de vez, mais, carnuda, suculenta. Casou de ser a hora de Jão, o também cobiçado galo do terreiro. Ela o sabia de-ver, vez a vez, em festa de coroação e quermesses no largo da igreja; e dos comentários das outras, cada qual sonhosa de lhe servir até que a morte os separasse, mediante jura de altar. Tão desejado assim, quanto ela, havia de ser aquele, então. E foi que ficou sendo ele, o escolhido. De resto, foi o tempo de se cruzarem em folguedos na praça, festas de santo e logo o fogo pegar: os dois se assoprando e revirando o próprio carvão em brasa, em furtividades no oitão da igreja ou trilha pra cachoeira, beirando a linha de trem... De parte a parte, celibatários e virgens disponíveis – o noivado anun- ciado e os proclamas correndo – agora resignados, buscaram consolo em novenas, rezas, promessas e, há quem não confirme, mas... trabalhos de en- cruzilhada, até. Juntaram as tralhas numa casinhola retirada, de onde, muitas vezes, o sôfrego amor uivava e ria e pedia mais até de manhãzinha, ao testemunho de quem passava, rumo da roça ou pra abrir o comércio. Eram felizes e se mereciam e se fartavam de suas forças e belezas mútuas. Usufruto do que desejaram, reciprocamente – razão de desfeita aos outros moços e moças des- providos dessas virtudes naturais, de fachada. Tanto empenho e lhes vieram os filhos, em pencas, entra ano, sai ano, sem saltar. Onze, os que vingaram. Um morreu, afobadinho, chutador, na bar- riga de Di-lis; outro, de descuido em barranca de rio. Jão acusou mais o golpe. Descuidou-se da aparência, largou mão da brilhantina, rápido encarquilhou-se. Pegou a beber e nunca mais se aprumou. De Di-lis, dispensou o chamego, as desavergonhices consentidas, os incêndios de cada noite, nos lençóis de cassa alva. Não que tivesse outra: esfriou tão- 20
  • 21. somente. Já da idade, seria. Ou tristeza, puramente. Di-lis não entendia. Culpava-se de não sabia o quê. Teria ficado velha e feia, sem atrativos? O espelho a enganava, talvez, já que ainda a refletia com talhe de louça fina, valiosa e rara. O colo não era o mesmo, depois de tantos anos e filhos, mas não havia mais moças em pior estado, enfim? Cintura, ca- deira, coxas não exerceriam mais o poder de outrora? Não duvidava que assim fosse – nem cria. O caso é que o golpe que ela sentiu mais foi nem o de perder um filho pras águas, mas o de perder Jão, que lhe fugia como areia fina no espaço do entre os dedos. Perder Jão era mais que só perder Jão: era perder a confiança que sempre tivera em si e em seus talentos e beleza de fêmea sonhável. E por quê? E como? Perdera, ela, o viço, devagarzinho, aos bocados, a cada barriga, a cada bolsa que rebentava, a cada safra de colostro? Ou fora o eito da casa, criar menino, dar comida, colo e roupa, o ramerrame de mãe, sem termo? A relembrança da juventude a levava à incerteza do hoje. Era fatal que o tempo lhe roubasse seus encantos, mas ela não se preparou para aquilo: perder o poder que teve, nato, dádiva de Deus. Cresceu-lhe uma vontade de confrontar o espelho com a verdade à vera, mostrar a ele que outros ainda havia capazes de desejá-la, com a volúpia dos anos idos, com o ardor mesmo que Jão. Testar-se? Que fosse. Oferecer-se a outros – que Jão, por tudo e tudo, não merecia – e com- provar-se ainda cobiçável? Oferecer-se só até o limite de saber, ter a prova, e sair limpa, para um sempre ainda possível desfrute de Jão, tardio? Decidiu-se, enfim, um dia. Fim de tarde, os meninos todos em casa de vó, Jão largado no mundo, nas erranças dele. Meteu-se num vestido antigo, discreto, de alça larga e bo- tões na frente, forrados de igual fazenda, do decote à barra, poucos, fácil de se livrar. Recendia um perfume distante, quase esquecido. Tomou rumo diverso do arruamento principal, subiu uma encosta de morro por trilhas entre restos de mata e pasto, deu a volta, desceu, subiu de 21
  • 22. novo. Encontrou os vestígios do caminho antigo do trem, que, agora, passava ao largo, numa linha nova, de contorno, longe das casas da vila. Nem estação, parada, ali tinha mais: passageiro mesmo, só de passagem, no saracoteio do trem entre morro e mata, afastados. Seguiu até encontrar os novos trilhos, no ponto mais fechado da curva, parte rasgada em rocha bruta em explosões que se ouviram longe, tempos atrás – lembrava-se. Uma pedra grande, esquecida, restou em área terraplenada, a poucos metros dali, plataforma de observação, elevando-se a dois metros, se muito, em fácil escalada. Subiu. E esperou. O trem apitou ainda longe, confirmação de que lá vinha, fiel. Regateou na subida, um pouco, mas logo despontou na curva, já descendo na carreira, no rumo da pedra grande restada – Di-lis em riba dela. Di-lis em riba feito um anjo, miragem. Os braços, abertos; mãos esten- didas, dadeiras; os pés, firmes, plantados na rocha; o olhar revirado branco entre cortinas baixando como quem recebe amante convidado. Os cabelos, deixou-os cair, soltos, sobre os ombros, e dançavam de par com o vento. E ainda: o colo, o ventre, pernas... e o mais. Durou pouco, tudo. Uma passada de trem, em comboio de catorze, quinze vagões – se muito. Mais tarde, em casa, Di-lis, exalava ares de felicidade, de novo segura de que ainda lhe restava algum verdor, de que era, enfim, capaz de despertar desejo e, quiçá, paixões. Ainda sentia na pele o conforto revivaz do fresco toque dos olhares dos mais de cem que a viram e cobiçaram, naquela tarde, reluzen- te, nua total, no alto da pedra grande. Flor-de-Lis Maria. Di-lis. Dilícia ainda, aos olhos dos homens nas janelas e varandas do lado esquerdo do trem, naquela tarde sem par, sequiosos. A Di-lis, a certeza lhe valeu para o resto de sua vida toda. Podia dormir em paz, segura. Jão, nem nunca que ficou sabendo. Nem ninguém, na vila. Miragem de passageiro, na certa. 22
  • 23. Menção Honrosa Categoria Nacional Porto Alegre - RS O Assessor Guilherme Azambuja Castro A ntes de conhecer o doutor Herculano, meu ofício era tomar mate com halls na praça, todo santo dia. Acordava seis, seis e meia, punha a chaleira no fogão, limpava a bomba com um grampo espichado, deixava a erva inchar na cuia, tudo preparado pra ver o Bom Dia Rio Grande tranquilo; oito, oito e meia, saía. Até a praça dava o quê?, quatro, cinco quadras. Passava na padaria e comprava um pacote de halls pre- to – gosto de chupar halls e tomar mate, dá um choquezinho dentro da boca que é bem bom –, daí tomava meu mate olhando o movimento. Quando não tinha mais bala pra chupar, ia pra casa. Fritava um bife, cozinhava arroz, al- moçava tranquilo. Matava duas cumbucas de arroz-de-leite e voltava à praça. Tudo normal. Defronte à Câmara de Vereadores de Canoa Branca tem um banco, ali eu sentava. Via a chegada dos vereadores, quando tinha sessão. Quando não tinha, assistia a chegada dos funcionários, dava no mesmo; importante im- portante era o movimento. Certo dia, o Beto, um vereador que fazia questão de ir de bicicleta pra Câmara – tá que o partido proibisse mostrar carro na frente da Câmara, mas ele que era exibido – me disse que o doutor Herculano queria gente pra assessor. Não que precisasse de dinheiro, tenho uma casinha alugada que me basta, todo caso fui até o gabinete do doutor e perguntei sobre esse negócio de ser assessor. Fez uma cara de agora é que me lembro e me mandou ficar à vontade. Sentei. Abri a mateira. Sevei um mate. 23
  • 24. “Sabes bater à máquina, Brizola?” Me chamam assim pelas sobrance- lhas, sempre esfiapadas. “Com um dedo, doutor”, fui sincero. “Me conta das tuas experiências, então”, ele prosseguiu. “Olha... Ultimamente tenho mais é tomado mate na praça, doutor.” “Então és um AMH.” “Sou?” “Analista de Movimento Humano”, me explicou o doutor. “Sim, claro”, achei interessante essa coisa. “Joice, me tira um coelhinho da cartola, sim?”, pelo telefone, ele pediu à secretária, que logo apareceu com uma folha datilografada. “Assina aqui, meu assessor”, me disse ele, riscando um xis no pé da página Termo de Posse, dizia. Assinei. “Agora espera que eu te chamo, tá?”. Queria saber do salário, quanto era, mas como ele não tocou no assun- to, e nem eu, ficou por isso. Voltei à praça, tinha a térmica ainda pela metade, isso dava o quê?, cinco, seis mates. Dia seguinte: seis, seis e meia, acordei. Aqueci água, pus erva pra in- char, limpei a bomba, Sidney Sheldon na mateira; pra mim, escritor é Sidney Sheldon; vi o Bom Dia Rio Grande tranquilo: ia chover em Pelotas. Bom, oito, oito e meia, saí. Tudo normal. Sentei no banco e logo vi o doutor Herculano chegar à Câmara. Gritei: “Ô, chefe!” Com as mãos, me mandou esperar; o portão, que fechava sozinho, me foi retirando o doutor de vista. Pensei: bom, mas que sou assessor, isso eu sou, pra mim papel assinado é o que conta. Segui tomando meu mate e chupando halls. Por um mês, mais ou menos, eu gritei “ô, chefe!” quando via o doutor chegar à Câmara; e ele, com as mãos, me dizia: “calma, Brizola!” 24
  • 25. Um dia, tomava meu mate e lia Sidney Sheldon bem na parte dum incêndio alucinante quando ouvi ele me chamar. Fui até o gabinete. “Grande Brizola!”, me recebeu com festa. “Joice, traz uns coelhinhos, sim?”. A Joice trouxe. Três. Desenhou o mesmo xis no pé das folhas: Folha- ponto, dizia. “Assina aqui, meu assessor!”. Assinei. “E aqui.” Assinei. “Mais aqui.” Tudo assinadinho. “Te chamo em seguida, fica tranquilo”, ele disse, e já me deu as cos- tas. Mas continuei ali, parado, esperando alguma ordem, sei lá, alguma coi- sa. Então ele tapou o bocal do celular e disse vai embora com outras palavras: “Fica tranquilo!”, foi o que ele disse. De fato fiquei, pra mim papel assinado é o que vale, e nesse dia assinei três coelhinhos. Não sou de me queixar, mas teve a primeira vez. É que fim do mês recebia em casa dez pacotes de erva-mate e cinco de halls como salário; con- seguia me manter o quê?, vinte, vinte e um dias, nem isso. Fui ao gabinete. “Tá me faltando erva, doutor”, desembuchei, todo corajoso. Foi mais fácil que pensei: me deu um aumento na hora; fecharia os trinta e um dias folgado; a partir daí, mês de trinta sobrava o quê?, um pacote inteiro de erva. Ganhando mais, hora de mostrar trabalho, pensei. O gravador eu já tinha, um portátil da Gradiente; o crachá, mandei imprimir colorido na Canoa Press. Ficou assim: AMH em cima, Assessor em- baixo, num canto a minha foto três por quatro de terno e gravata. A partir daí, se perguntassem qual era o meu ofício, eu respondia: sou assessor do doutor Herculano, e ainda mostrava o crachá pra quem não acreditasse. 25
  • 26. Um dia o doutor mandou dizer pelo Beto que era pra eu me tocar a Pelotas. Me entregou um celular e uma cartola cheia de coelhinhos, Missão de Estado. Cueca, meia, camisa, calça de brim, japona, três ou quatro potes de Minancora – pra mim, desodorante é Minancora –, joguei tudo na mala; a mateira já carregava, e o crachá: raramente tirava do pescoço. “Mando teu salário pelo ônibus, fica tranquilo”, me disse o Beto. Fiquei mesmo. Entrei no Embaixador. O ônibus não passava de oitenta, isso dava o quê?, três horas, três horas e meia até Pelotas. Ultrapassado o pórtico de Canoa Branca, os campos de arroz surgiram no para-brisa, um verde uniforme lindo de se ver; nessa hora senti pena de, por causa do meu novo ofício, ter de sair de lá, eu que só deixei a cidade uma vez, quando precisei trazer uma tia-avó de Camaquã e fui dar em Jaguarão. Todo caso, vida de assessor é assim, dura, devia eu desconfiar. Passando o Texaco, fechei a cortina, começava eu a sonhar e um piparote do cobrador me acordou. “Já estamos chegando?”, perguntei, meio dormindo. “Vai pra onde, Brizola?” “Pelotas”, respondi. “Nem do Taim passamos”, ele respondeu. “São vinte reais”. O doutor havia me dado o quê?, cem, cento e vinte, mais umas quantas bolsas de supermercado com erva e halls. Um adiantamento, exigência mi- nha. Paguei os vinte e virei pro lado. Tranquilo. Pelotas, como toda cidade grande, tem mais auto que gente. Na rodoviá- ria é uma quantidade de táxi esperando, realmente, que tu pague uma fortuna pra meio-metro de corrida. Me nego. Mesmo. Dar dinheiro eu pra taxista? Saí a pé e achei o Naite Pelotense, um hotel em conta, pegado à rodoviária, bem bonzinho: quinze cruzeiros o pernoite, direito a café da manhã e tudo: pão torrado, café preto, iogurte e uma banana. (Quando que eu ia tomar iogurte, e de garrafinha?) Paguei dois pernoites adiantados à Baronesa, proprietária e moradora do Naite. No quarto, escondi a cartola mais a mateira dentro do 26
  • 27. boxe, por segurança. E fui dormir com o celular preso ao elástico da cueca, também por segurança; pânico de cidade grande. Seis, seis e meia, levantei. Crachá no pescoço, gravador com pilha nova que era pro relatório não desandar na minha primeira manhã pelotense. Não vi o Bom dia Rio Grande – no Naite só tinha rádio –, tomei café, iogurte, e escondi a banana na mateira, pra mais tarde. Oito, oito e meia, perguntei à Baronesa onde era a praça da cidade. “A mais próxima?”, me perguntou. “Ah, tem mais de uma...” “Olha, daqui? Umas doze quadras”. Coisa muito complicada, e longe, quase que uma Canoa Branca inteira. Resolvi relaxar. Sentei na frente do hotel numa cadeira de praia. Sevei o mate. Logo a Baronesa abriu outra cadeira ao lado. “Posso?”, perguntou. E eu vou negacear? Cevei um mate pra ela. Dia seguinte cevei outro. Fui cevando, ce- vando, todos os mates que ela pedia eu sevava. Às vezes colocava capim cidró na térmica, só porque ela pedia; tava em Pelotas mesmo... Nenhum conhecido vendo é a conta; porque pra mim, mate, só com halls. Mas tinha uns olhos puxados, a Baronesa, tinha uma boca graúda ela, uma bunda que me segurava pra não beliscar quando passava rebolando. A gente foi se conhecendo melhor e, no decorrer do quê?, mês, mês e meio, já chamava ela de Barô, só Barô. Com mulher no meio a coisa fica mais profissional, organizada, é ine- vitável isso. Foi ideia dela: passar a limpo e fichar os relatórios em pastinhas: por turno, dia, mês, ano. Foi ideia minha: fixar uma placa de bronze na frente do Naite: Unidade de AMH, dizia. Ela que pagou. Outra ideia, nossa: grampear cartões de visita nos recibos dos hóspedes, que, aliás, eram praticamente dois: seu Alexandre, vendedor itinerante de alpargatas, e eu. Resgatamos uma escrivaninha de compensado abandonada no porão do Naite. Duas, três pinceladas de tinta branca, ficou como nova. Placa na parede, cartões na praça, unidade pronta. Tirei então da cartola uns quantos coelhinhos pra Barô assinar. “Que que é isso?”, perguntou. 27
  • 28. “Fica tranquila”, eu disse, “é coisa séria”. Beijei a testa dela. Ela amole- ceu e começou a assinar, um por um, como uma boa fêmea deve ser, obedien- te. Todos devidamente assinados, tomei-lhe os coelhinhos e guardei na cartola. “Te ligo em seguida, minha assessora”, disse, apressado, porque o Embaixador saía em quê?, uma hora, hora e meia no máximo. Saí a pé; táxi me nego. 28
  • 29. Menção Honrosa Categoria Nacional Rio de Janeiro - RJ Os meninos João Paulo Vaz N enhum de nós sabe com certeza como e quando os meni- nos começaram a aparecer. Foi durante uma daquelas tréguas que podiam se estender por semanas ou meses. As tréguas eram cada vez maiores e sempre bem- vindas. No início, descansávamos, lubrificávamos as armas, remendávamos uniformes. Deitávamos na sombra e a satisfação de continuar vivo nos engor- dava. Depois, vinham o tédio e a preguiça. Quando me dei conta da presença constante dos meninos, essa fase já havia começado. Nem é preciso dizer que nosso acampamento não é lugar para crian- ças. Na verdade, não é lugar para ser humano algum, só nós mesmos, que não temos outra escolha e já quase deixamos de ser humanos. O normal teria sido expulsá-los. Mas o comandante não se mexeu e ninguém se sentiu na obrigação de tomar a iniciativa. Iniciativas de qualquer tipo eram cada vez mais raras entre nós. A série infindável de pequenas vitórias e derrotas sem consequência havia acabado com a esperança e o medo que nos faziam bravos. Ninguém mais esperava vencer essa guerra que se diluiu no tempo, na inutilidade dos tiros sem alvo visível, na falta de sentido das mortes aleatórias. O fato é que, mais por inércia nossa que por qualquer outra coisa, os meninos foram ficando. Dormiam junto à porta da cozinha, comiam os restos da nossa comida, faziam pequenos serviços – apanhavam água no poço, lavavam as panelas, matavam ratos. A matança dos ratos foi o que primeiro me fez prestar atenção 29
  • 30. neles. Passavam horas imóveis, atiradeiras nas mãos, espreitando a caça. En- tão um deles esticava devagar a borracha, soltava e, de algum canto escuro, um guincho de desespero anunciava a precisão da pedrada. Lembro bem da tarde em que eu me debatia num sonho especialmen- te mórbido. As imagens eram as de um filme antigo, mudo, em preto e branco. Estávamos num pântano, cercados pela fuzilaria inimiga. Balas e granadas silenciosas nos arrancavam pedaços, mas ninguém morria nem se importava muito, apenas continuávamos a chafurdar na massa escura onde já não era possível discriminar o sangue da lama. De repente, um silvo intermitente de alarme de bombardeio quebrou o silêncio do sonho. Acordei assustado. A meu lado, aos guinchos, uma ratazana arrastava desesperada a coluna partida e os quartos traseiros paralisados. Antes que eu acabasse de entender o que acon- tecia, um dos meninos surgiu na minha frente e esmagou a cabeça do bicho com uma pedrada de misericórdia. O que me surpreendeu naquele dia foi a expressão do olhar dele. De satisfação com o próprio poder. Durou talvez uma fração de segundo, e imagi- no que só a percebi porque, mal acordado, eu me achava naquele estado em que a intuição ainda não está submetida à razão. A surpresa não foi tanto pela expressão em si, mas por reencontrá-la justo no olhar de um deles. Desejo de poder era um sentimento que ninguém ali experimentava havia tempo. E, nos olhares dos meninos, até então, eu só tinha percebido a fragilidade dos famintos, a paciência com que esperavam os restos das nossas refeições, a subserviência com que lavavam as panelas. A trégua se prolongou além da nossa capacidade de contabilizar o tempo. Durava tanto que, embora ninguém o dissesse nem a si próprio, já começávamos a dar a guerra por encerrada. Prova disso era o desinteresse pe- las armas empoeiradas, amontoadas num canto. De vez em quando, alguém lembrava que era preciso lubrificá-las. E ficava nisso. Até que um dia, ao acor- dar de manhã, dei com um dos meninos desmontando o fuzil do Gomes. “Ta fazendo o que aí?” – perguntei. “O Gomes mandou”. Achei estranho. Ninguém ali mexia em arma de ninguém. Aquilo mostrava a que ponto tinha chegado 30
  • 31. nosso desleixo. Decidi falar com o Gomes ou com o comandante, mas, como os dois ainda dormiam, fui tomar café e acabei me esquecendo do caso. Nos dias seguintes, alguns meninos desmontaram e lubrificaram ou- tros fuzis. “O meu pode deixar que eu mesmo faço” – avisei. Mas continuei adiando a tarefa e, uma semana depois, quando percebi meu fuzil tão limpo quanto os outros, não me animei a reclamar. A verdade é que meu interesse por ele, àquela altura, era nenhum. Pouco tempo depois, num final de tarde, eu acompanhava o percurso de uma ratazana, à espera da pedrada que a abateria. Atrás da cozinha, havia um muro baixo sobre o qual se erguia outro mais estreito. A ratazana vinha pelo degrau formado entre o topo de um e a base do outro. Protegida pela sombra, dava alguns passos em direção ao latão de lixo da cozinha, parava, fareja o ar, dava mais alguns passos. Sentado ao lado do latão e encostado no muro, aproveitando ele também a proteção da sombra, o Batista se masturba- va. A ratazana vinha pouco acima dele. “Vai cair na cabeça do Batista” – pensei quando ela parou, levantou o focinho mais uma vez e eu esperei ouvir a retra- ção do elástico de uma atiradeira. Mas o que se escutou foi um tiro de fuzil. O impacto da bala jogou a ratazana para cima. O corpo se esborrachou contra o muro e caiu despedaçado na cabeça do Batista, que, no susto, saltou de onde estava, e, saiu tropeçando na calça arriada. Aquilo tinha ultrapassado qualquer limite e a única atitude razoável era chutar todos os meninos fora do acampamento no mesmo instante. Mas o batalhão inteiro explodiu de rir com a cena do Batista, aos tropeções, cara e peito salpicados do sangue da ratazana, tentando suspender a calça. Nossas gargalhadas desarmaram sua fúria e ele não fez mais que arrancar o fuzil das mãos do menino e berrar meia-dúzia de palavrões. É curioso o modo como as mudanças acontecem. Embora, entre o início daquela última trégua e agora, o batalhão e a própria guerra tenham mudado radicalmente, não é tão simples entender como e quando o processo se deu. Mas ter permitido o acesso dos meninos às armas foi, sem dúvida, um 31
  • 32. divisor de águas. Desinteressados de um poder que não nos levava a lugar algum, dei- xamos que os meninos o exercessem. O poder das armas. No que passaram a andar de fuzil a tiracolo, eles foram mudando de atitude. Não esperavam mais os restos das nossas refeições. Comiam junto. Não lavavam mais as panelas, não apanhavam água no poço. Promoviam caçadas coletivas em que alguns meninos revolviam o lixão enquanto os outros alvejavam as ratazanas em fuga, e nós éramos obrigados a buscar proteção contra a fuzilaria. De vez em quando um de nós protestava, mas sempre esperando que os outros assumissem alguma atitude, e a reação não passava disso. O co- mandante não dava uma ordem havia tanto tempo que ninguém mais tomava conhecimento dele. Quando, durante uma das caçadas, uma bala ricocheteou no muro e atravessou sua cabeça, encaramos o fato como um acidente, nada mais. Enterramos o corpo sem qualquer cerimônia especial, exceto por uma salva de tiros que os meninos resolveram disparar. Hoje entendo que, num ambiente como o nosso, as armas – sejam elas fuzis ou atiradeiras – são a principal fonte de virilidade e energia espiritual. Sem elas, chafurdamos no pântano da indolência. Não acho que isso explique tudo. Mas o fato é que, dias atrás, quando a trégua afinal terminou, continua- mos lavando panelas. Da guerra se encarregam agora os meninos. 32
  • 33. Menção Honrosa Categoria Nacional Campo Belo - SP Ana Dorme Marcelo Campos de Lilla “A realidade apenas se forma na memória; as flores que hoje me mostram pela primeira vez não me parecem verdadeiras flores” Marcel Proust; No Caminho de Swann E u gostava de olhar Ana dormir. Seu contorno suave, esculpido pela lua na janela, era para mim um litoral conhecido. Muitas noites eu adormeci perdido nas areias doces de suas praias, sem querer me lembrar que toda felicidade é efêmera. Aqueles foram anos de indolência. De preguiça. Anos arrastados e fe- lizes. Até estranho pensar que morávamos em São Paulo, nesta mesma São Paulo tão rápida, imediata e urgente de hoje. Para mim, aqueles dias sempre terão se passado num plano histórico e geográfico completamente à parte, um parêntese na vida, como se houvesse uma barragem capaz de represar o rio do tempo. Não se trata de nostalgia, de “como éramos felizes quando jovens”, nem nada disso. Se minhas memórias daquela época estão tomadas de tons leves e pastéis, onde tudo se desenrola num ritmo lento, de sonho, submarino, é apenas porque Ana projetava isso ao redor de si. Sua beleza, ou sua presença, sempre teve a capacidade de distorcer todo ambiente, derreter os relógios, do- brar a realidade e, por consequência, qualquer memória dessa realidade. Hoje sou um homem amargurado, talvez por ter passado anos demais procurando Ana em outras mulheres. Mas nem sempre fui esse homem de pedra, nem sempre tive essa rispidez nas respostas ou essa curvatura precoce 33
  • 34. no caminhar. Isso é coisa recente, mas também não importa. Esta história não é sobre quem eu sou, mas sobre quem eu deixei de ser. Não tem nada de mais na maneira como eu e Ana nos conhecemos. Amiga de um amigo, um chopinho aqui, um cineminha ali, quando dei por mim, estávamos dividindo um pequeno apartamento no centro da cidade. Na época, eu ainda era um aspirante a escritor, ainda vivia naquele mundo perfei- to e romântico que todo escritor iniciante habita antes de se tornar famoso ou sucumbir às amarguras do fracasso. Era eu, Ana, minha máquina de escrever e nossa cama. Na maioria das vezes, tudo isso ao mesmo tempo. De vez em quando, eu passava dias inteiros deitado na cama, com a máquina apoiada na barriga, consumindo um maço de cigarro atrás do outro. E Ana ficava sempre ali, ao meu lado, lendo e opinando sobre o que eu escrevia, zombando de meus erros de digitação ou da pieguice de algumas passagens. Não lembro do que nos alimentávamos ou como pagávamos nossas contas naqueles dias, mas hoje sei que, para mim, aquele quarto desarrumado foi o mais próximo do paraíso que eu jamais conseguirei chegar. Se Deus existe, ele sabe quanto tempo eu passei tentando entender os motivos que me levaram a fazer o que eu fiz. Talvez eu simplesmente não seja talhado para a felicidade, afinal. Mas quanto mais eu penso, mais me convenço de que eu me apavorei. O velho clichê do covarde inseguro que rejeita para não ser rejeitado. Às vezes acho que ainda vivo preso dentro daquele momento, aprisionado naquele exato instante em que, sob a soleira da porta, carregando a maleta com a máquina de escrever e nada mais, eu olhei para ela uma últi- ma vez. Dali da porta, estirada sobre a cama, confundindo-se aos lençóis, ela parecia um anjo com asas de linho branco. Adormecida, seus traços revelavam uma inocência e uma pureza que ela disfarçava habilmente quando estava desperta mas que nunca falhavam em me comover. Acordada, Ana era uma explosão de vida, uma daquelas pessoas que se tornam o centro iluminado de todo lugar por onde passam. Mas era observando o seu sono que eu sentia que realmente a amava. Quando ela dormia, eu recebia acesso exclusivo a uma outra Ana, e era como se só então eu a possuísse de verdade. Provavelmente, 34
  • 35. era meu ego covarde e inseguro me dizendo que aquela era a única forma de Ana se tornar previsível, sob controle, diferente da mulher impulsiva e cheia de surpresas que ela era durante o dia. Mais de vinte anos depois, ainda não sei dizer de onde tirei forças para me voltar e partir, fechar para sempre aquela porta, mas foi o que eu fiz. Cada segundo que se seguiu depois disso foi como a reverberação daquele momento, como as ondas circulares na superfície da lagoa depois que a pedra afunda para sempre na escuridão submersa. Cada livro que eu lançava, cada linha que eu publicava, era para ela que eu o fazia. Tentava escrever como se ela ainda estivesse ao meu lado na cama, retirando, com seu riso provocativo e brincalhão, as folhas da máquina enquanto eu ain- da datilografava. Imaginava se ela acompanhava minha carreira, se comprava e lia os livros que eu escrevia ou se ao menos os folheava desinteressadamente nas livrarias, pensando que eu havia, enfim, conseguido me tornar um escri- tor. Eu estaria mentindo se dissesse que nunca voltei a procurá-la. Mas, quando me decidi por finalmente ir atrás de seu paradeiro, já era tarde. Nin- guém sabia dizer ao certo o que havia sido feito de Ana. Diziam que havia se mudado para Nova York ou Paris e que morava com um artista plástico de renome, com quem havia tido um filho. Outros diziam que ela se afundara nas drogas ou que tinha se tornado puta. Existia até uma versão em que ela havia partido para a Índia e encontrado a iluminação e a paz na meditação transce- dental. Eu sabia que nada disso era verdade, ou pelo menos não inteiramente verdade. Foi apenas há cerca de um ano e meio que eu voltei a ter notícias de Ana. Quando li seu nome no jornal, soube imediatamente que se tratava dela. Ela tinha dois sobrenomes que eram bastante incomuns, o primeiro era italiano e o último lituano, e a chance deles aparecerem combinados ao nome de outra Ana era mínima. Não vou revelá-los aqui, em respeito à privacidade de Ana e sua família, mas sempre achei que do inusitado casamento desses sobrenomes resultava uma sonoridade bonita e exótica. O jornal dizia que ela e uma amiga haviam se envolvido num acidente de automóvel quando volta- vam de uma viagem, no final do mês anterior. A notícia, na verdade, era sobre 35
  • 36. a amiga de Ana. Após duas semanas internada e múltiplas cirurgias, ela não resistira aos ferimentos e acabara falecendo. Falência múltipla dos órgãos, ou coisa que o valha. O repórter terminava o pequeno texto mencionando rapida- mente que a pessoa que dirigia o carro no momento do acidente, a empresária Ana C**** P****, de 49 anos, permanecia em coma num hospital de São Paulo e respirava sem a ajuda de aparelhos. Não sei quantas vezes eu reli aque- la notinha. O nome, a idade, tudo batia. A certeza de que se tratava de Ana era absoluta. Aparentemente, eu a havia encontrado, enfim. Por alguns dias, fiquei absolutamente perdido, sem conseguir desviar meus pensamentos do fato de que Ana estava num hospital a poucos quilô- metros de distância. Exaltado e ansioso, eu elocubrava mil cenas imaginárias, pesando em minha mente se devia ou não ir visitá-la, afogado em labirínticas argumentações silenciosas. No final, lógico, acabei indo, alguns talvez disses- sem que em busca de algum tipo de redenção, mas todo o tempo eu soube que o que me movia era a simples perspectiva de vê-la novamente, de re- pousar o olhar sobre seu rosto, como se ele fosse um oásis para meus olhos sedentos. Os anos passaram e eu não fiquei menos covarde por isso; admito que só criei coragem para ir vê-la no hospital por saber que ela estaria desa- cordada, que não haveria possibilidade de confronto ou reconhecimento. A consciência de que ela estava deitada, adormecida, da mesma forma como eu a havia deixado tantos anos antes, tornava a atração irresistível. Acho que não houve nada que eu tivesse desejado mais em todos aqueles anos do que poder voltar a contemplar o sono de Ana. E agora isso me era oferecido livremente, sem que existissem as desvantagens de um reencontro amargo, sem a aspere- za característica dos amores que ficaram para trás. Ver seu rosto de porcelana mergulhado num sono calmo e profundo, sem que para isso fosse preciso realizar a exumação de nosso relacionamento, inventariar antigas culpas ou justificar o injustificável. Levei comigo um vasinho de flores só para ter algo nas mãos ao entrar no quarto. É sempre complicado o protocolo das visitas hospitalares, princi- palmente quando a única pessoa que você conhece está num coma profun- 36
  • 37. do. Não vou me alongar em detalhes da visita, mas posso dizer que foi um baque. Deitada sobre a cama estava uma mulher de meia-idade, de cabelos cortados bem curtos e pintados de acaju. Achei primeiramente que aquele inchaço fosse decorrente de alguma medicação, mas logo percebi a papada que pendia de suas faces e a pele molenga de seus braços e cotovelos. Aquela senhora podia ser uma síndica, uma bibliotecária ou uma diretora de escola. A minha Ana, jamais. Estarrecido, fiquei ali um tempo, que poderia ser um minuto ou uma hora, sentado num sofazinho ao lado de sua cama, buscando algum vestígio familiar naquele rosto pálido e macilento, marcado por duras linhas de expressão e olheiras surpreendentemente profundas. Desde o início, fui absolutamente incapaz de associar aquela mulher desacordada à minha frente à imagem – forjada, ou talvez deformada, pela excessiva repetição das lembranças – que eu tinha de Ana. Jamais me ocorrera que o tempo também havia passado para ela. Para mim ela continuara sendo sempre aquela jovem lânguida, que transbordava sensualidade em todos os seus gestos, e cujos ca- belos cor de petróleo batiam na bunda redonda e arrebitada. Pensando agora, está claro que eu não estava preparado para aque- la cena. Sobrinhos, tios e parentes povoavam o quarto, como uma perfeita família interiorana; crianças e adolescentes conversando, velhos entediados, senhoras oferecendo chá e biscoitos, tudo excessivamente prosaico, tudo em severo desacordo com a idéia que eu preconcebera daquele encontro. Comecei a me sentir oprimido ali dentro. Era estranha a sensação. As pessoas falavam baixinho, como se estivessem incomodando o repouso da mulher na cama, como se a qualquer momento ela fosse abrir os olhos e começar a falar. Não é algo natural, o coma. É cruel e devastador para os que estão de fora. É como um funeral que se estende por meses e anos, sem que ninguém possa fechar o caixão, dizer adeus definitivamente e tocar a vida em frente. Mas o pior talvez ainda seja aquela inevitável pitada de esperança, a espera passiva por alguma mudança no quadro, a possibilidade, mesmo que ínfima, de um milagre. Um verdadeiro inferno emocional. Mas, apesar de reconhecer as dores e aflições daquelas pessoas, eu não era capaz de compartilhá-las. Talvez fosse insensibi- 37
  • 38. lidade de minha parte, mas tudo o que eu conseguia sentir era uma profunda e egoísta tristeza por ver a imagem da minha Ana maculada por uma realidade inclemente, eternamente empenhada em destroçar o mausoléu onde repou- sam aquelas memórias que nos são mais caras e em fazer desvanecer toda forma de sonho. Já na porta, ao sair, lancei um último olhar sobre aquela que diziam ser a minha Ana, parafraseando o gesto que eu havia feito vinte e tantos anos antes, apenas para me certificar de que eu não sentia nada por aquela mulher. Nada a respeito dela se relacionava comigo ou com a Ana que habitava a minha memória. Conforme eu atravessava o corredor em direção à saída do hospi- tal, fui sentindo um alívio cada vez maior, como se a realidade estivesse aos poucos voltando ao seu lugar à medida em que eu me afastava. Ainda no es- tacionamento, fui assaltado pelo pensamento de que naquele exato momento existiam duas Anas. Duas Anas igualmente estáticas, igualmente aprisionadas num sono profundo, infinito, irremediável. Igualmente reais. A primeira era uma senhora desconhecida, vítima de uma batida de carro, e cujo rosto bran- co, iluminado por lâmpadas frias de hospital, se desintegrava em minha men- te a uma velocidade impressionante. A outra Ana era aquela conhecida ninfa de feições cálidas, que dormia eternamente sob o luar, como se este fosse um dossel de prata que suavemente a envolvesse, protegendo o seu sono. Essa Ana fora eu, não um acidente na estrada, quem prendera definitivamente na cama. No momento em que fechei a porta do quarto e a deixei dormindo sob a janela, a condenei a viver para sempre congelada dentro daquele instante, sem poder jamais acordar. No afã de compreender tudo o que havia acabado de acontecer, uma ideia começou a se formar na minha cabeça enquanto eu dirigia de volta para casa. Hoje, está claro para mim que aquela Ana do presente, envelhecida, em coma, era, afinal, nada mais que um espectro, uma projeção deformada da Ana do passado. Um reflexo distorcido da mulher adormecida que eu ha- via abandonado. A outra Ana, aquela que inicialmente não passava de uma memória, ao contrário, mostrara ser aquilo que havia de mais consistente e 38
  • 39. palpável. Sua presença sorrateira e constante talvez tivesse sido a única coisa verdadeiramente real em todos aqueles anos. Era como se as paredes que se- paravam matéria e memória, passado e presente, houvessem ruído de repen- te. Quando digo que é à Ana que dedico minha literatura, não me refiro àquela senhora vegetando no hospital ou tampouco à memória da jovem esbelta e cheia de vida que conheci nos anos de minha juventude, distantes e inacessí- veis. Escrevo e continuarei a escrever para a única Ana possível, a minha Ana, aquela que de alguma forma conseguiu iludir o tempo e alterar a ordem das coisas. Intacta e perfeita, indiferente à passagem dos anos ou ao embotamento das lembranças, esta Ana permanece viva e continua a sonhar debaixo de uma lua que se mantém cheia no céu de todas as noites. 39
  • 40.
  • 41. Menção Honrosa Categoria Nacional São Paulo - SP Sem Natal Ronaldo Cagiano A véspera de Natal trouxe Lindalva do trabalho em meio à má vontade do tempo. Seus planos de reunir a família, convi- dar os amigos, apesar do cansaço de mais de dez horas em frente ao tear na Companhia Manufatora, pareciam mais uma vez esbarrar no imponderável. Não queria repetir o sem-sal e sem açúcar dos anos anteriores. Nesse, prometeu-se que seria diferente, guardou o que sobrou do 13º para comprar uns presentes para as crianças. A Camila não cansava de pedir um videogame, porém teria que contentar-se com uma boneca; Fabiano buzinou- lhe nos ouvidos durante ano todo, mas o autorama [febre, sonho de consumo da garotada naqueles plúmbeos anos 70, tempos de coturno e medo] não viria dessa vez, a grana só deu mesmo para um carrinho movido a pilha, da Estrela, comprado, a perder de vista, no Bazar René. Era o que podia ser feito. Meses inteiros de sonhos que seriam concretizados pela metade, afinal, desde que Amarildo saiu de casa para viver com a amante na Vila Reis, que Lindalva teve que dar duro e tomar a frente de tudo, sem ajuda, sem pensão. A fatigante tarefa diária no imenso salão onde máquinas expeliam línguas de panos, a musculatura compulsória nos braços femininos cevada no empurra-leva-e- traz de carrinhos abarrotados de fardos da tinturaria, tantas vezes vigiada pelos contramestres alcoviteiros, a epiderme ressecada pela nuvem de poeira que nascia das engrenagens, as lançadeiras ziguezagueando diante de seus olhos vidrados na mistura dos fios bailarinos que não teciam outra vida, senão ceva- vam o apetite dos patrões, alimentavam dozes meses de cansaço, a sobrecarga 41
  • 42. que se revezava a cada manhã. Tudo impunha uma terrível prostração àquela mulher que tanto desejava estar inteira para viver pelo menos uma vez na vida um Natal em família, mesmo com a ausência do marido empanando o brilho nos olhos dos filhos. Era uma dor que ela não podia aplacar, senão já teria mudado as coisas, passando uma borracha na história e virando a página, mas Fabiano e Camila não se esqueciam do pai. Depois que foi embora, nem mesmo se lembrava, ou aparecia, na data de seus aniversários. Esperançosos, os dois acordaram pela manhã na certeza de que ele viria, um presentinho ao menos, ou um agrado que fosse pelo abraço, pelos cumprimentos. Queriam o pai, a visita, ainda que trânsfuga a presença. Afinal, os amigos da vizinhança comemoravam idade com pais e mães presentes, só os dois naquele beco viviam uma espécie de orfandade de pai vivo. Nos três últimos anos Lindalva fez das tripas coração para que não desistissem de estudar. Tinha medo de que os filhos arrumassem corriola, não saberia onde colocar a cara se um deles repetisse de ano ou fosse maconheiro como o Tadeu e o Vinícius, filhos da Gorete, que desquitou cedo e ficou sem controle sobre a casa, biscateando aqui e ali, e a Vanessa, que ficou falada de tanto biscatear. Ela tinha medo dos línguas-soltas, por isso era da fábrica pra casa, de casa pra fábrica. Por isso seu coração não tinha outro destino. Preocupavam-na as lon- gas horas de silêncio com que Fabiano, debruçado sobre a janela, a sua carre- tinha de rolimã aposentada debaixo da cama, com seus olhos, esquadrinhava feito um periscópio, a volúpia de um louva-a-deus dançarino que brincava de desaparecer com suas coreografias no distante da rua, ou se fixava, emudeci- do, nas lesmas que escalavam os muros altos e musguentos, do minúsculo quintal lindeiro ao de seu Durval. Ou, viajante e furtiva, sua atenção migrava para os galhos da jabuticabeira, onde um pequeno enxame de marimbondos principiava uma casa, indiferentes à dor das redondezas. Também doía-lhe o coração flagrar calada as tantas vezes em que Camila se amotinava com as bonecas debaixo da cama, fingindo uma conversa com um amigo secreto que vinha à hora marcada, substituindo a ausência paterna, essa noite que se postergava dentro dela, mais escura que a cabana sob o colchão mijado, 42
  • 43. viajava nos mundos que criava, na crina alucinada de uma fantasia que um dia iria desmoronar. Após derrotar o sol, a noite chegava com o festim de insetos nas luzes fracas da rua e uma legião de fantasmas habitando aquele corre- dor de casas. Do 51 era possível divisar o ribeirão aos fundos, animal feroz que se insurgia em muitos dezembros, batizando as moradas precárias com o tumulto de suas águas e a adversidade das cheias que desalojavam tantos, sem parcimônia, oceano de frustrações fustigando a alegria com que muitos idealizavam passar as festas de fim de ano, apesar das privações. Aquela gente pobre, se não tinha muito o que comemorar – as dificuldades prolongadas não prenunciavam que as coisas melhorariam de repente – pelo menos um leitão encomendado com certo sacrifício no açougue do Devair podia ser espe- rado, para compartilhar uma parcela mínima de sorriso nos olhos miúdos de suas existências proletárias, mas ainda habitados de mínima esperança. Mas nenhuma alegria seria completa naquela casa onde além da água que tantas vezes secava, faltava alguém; e a dor de saber que o pai comemoraria com outros, achincalhava ainda mais os coraçõezinhos repletos de ilusão. – Mãe, o pai não vem? Quantas vezes Lindalva ouviu, embargada, o sorriso interditado pela violência fulminante da pergunta dos filhos. Cada ano morria, dando lugar a outro, e a incerteza que se cristalizava a cada nova mu- dança de estação, na alternância do horóscopo. Nos últimos tempos era isso: a felicidade esquiva, o rapto das mínimas emoções pela realidade aquartelada e intransigente, apesar das vigílias. À insistência da pergunta que reverberava como um chicote no seu peito, Lindalva não tinha o que dizer. Nem meias- palavras, nem uma resposta paliativa que dourasse as circunstâncias. Era na bucha, e tentando mimetizar as lágrimas com os olhos vermelhos enquanto fatiava uma cebola na cozinha, que ela desenganava a filha ou despistando a conversa, mandando Camila pegar o regador para aguar os vasos de avenca e samambaia da sala minúscula: – Não conte com seu pai, ele tem outra vida, esperem em Deus, que esse não falha e é graças à sua misericórdia que passamos o ano e com a ajuda de sua avó, que pude cuidar de vocês. Não fosse os serões na fábrica, ela tam- 43
  • 44. bém não teria pago em dia o aluguel de um quase barraco, o Bira era pontual, saía, de casa em casa, o colar reluzente como os dentes de ouro e a mania de mascar palitos, cobrando os inquilinos, uma sangria mensal em seu salário, nem dado conta de quitar em dia a caderneta da venda do Albertino. Fazia das tripas coração para manter a casa, nunca faltar lanche na merendeira, as coi- sas em ordem e as contas sem atraso, quando a brotoeja pintou a face miúda da filhinha e trouxe uma febre inexcedível, [e o fantasma dos cortes rondava a seção de estamparia, o Zé Batista foi despedido agora buchicham que o Nestor e a Zélia vão pra rua também, porque votaram do doutor Agnelo, do MDB] quase perdeu a mão no tear, sua cabeça estava na menina, o dia inteiro comendo algodão na fábrica, e ainda ter que agüentar a língua comprida da dona Mundinha e as cantadas do Vadinho, que de seu tamborete apontan- do o jogo-de-bicho tomava conta de quem entrava de quem saía, o uniforme sempre bem passado, apesar de surrado, o sacrifício que impedia que os fi- lhos parassem os estudos, afinal, com quem poderia contar amanhã, senão a mínima instrução que lhes abrisse caminhos, Lindalva não descuidava de nada, antes de dormir ainda dava uma última passada com ferro em brasa nos uniformes e uma conferência dos cadernos, tentava ajudar nas lições, nos para-casa, tomava a tabuada, arguía os verbos. E os boletins de classe no fim do mês não desmentiam, espelhavam seu esforço e sua luta: os meninos iam bem. E quando já estavam os dois na cama, depois de ter aspergido o inseti- cida com a bomba de Flit para espantar os pernilongos que vinham acicatar todas as noites, desaninhados do corguinho dos fundos, ainda se desdobrava para uma passada de escovão no piso de vermelhão, ainda bem que não tinha mais que recolher as guimbas de cigarro que Amarildo deixava pelos cantos da casa, e uma espanada na mobília pobre e feia e entrando já a madrugada, a leitura de algum salmo, e pedia a Deus que a ajudasse a sair dali, sonhava um holerite mais gordo e poder financiar uma casa decente pelo BNH ou pela COHAB, o socorro da fé naquela Bíblia surrada e eternizada sobre a cristaleira de pés capengas, vigiada pelo crucifixo de madeira que ela sempre limpabri- lhava com óleo de peroba. Tempos escuros aqueles. As indústrias da cidade 44
  • 45. eram movidas a eletricidade, óleo diesel, carvão e medo. Os Andrades domi- navam a economia, eram donos de todas as tecelagens, das fábricas de papel e macarrão, da fundição, do matadouro, da Força e Luz. Controlavam tudo, da saída dos operários às conversas políticas. A Arena mandava na cidade, onde os parentes do líder político Emanuel Andrade revezavam no poder. No Golpe de 64, muita gente foi dedurada por eles ou por seus puxa-sacos, baba-ovos, cheira-peidos. Quando chegava novembro, mês de eleição, o voto de cabresto garantia-lhes a permanência. Nada fugia ao controle. Sabiam quantos eleitores havia em cada urna, em cada zona eleitoral e no departamento de pessoal das companhias, a cópia dos títulos dos empregados era guardada como moeda de troca. O terror rondava as seções e quando algum voto migrava para [os quin- ta-colunas do Túlio farmacêutico e do Laércio do Sindicato] um candidato a vereador ou prefeito da oposição, o funcionário recebia o bilhete vermelho, as indenizações nem sempre corretas, dali em diante não conseguiam mais colocação na cidade, muitos iam de mala e cuia pra São Paulo tentar emprego no ABC ou na construção civil. Quantos natais trouxeram o inferno para tanta gente. Lindalva tinha medo também de ir pro olho da rua, por isso nunca abria a boca na época da política, votava em quem os capachos da diretoria ou os pelegos mandavam. Nas casas de paredes-meias - eram doze, seis de cada lado, como era comum nas vielas do Pouso Alegre - os sons algazarravam cedo. Barulhos de lacres de cervejas e refrigerantes em lata se abrindo, garrafas sendo retiradas dos engradados e os estampidos dos abridores se confundindo com a música que escapava dos aparelhos de som ligados no máximo volume nas portas das casas. Pagodes, sambas, boleros e sertanejos se misturavam sem divergên- cias – vitrolas vozeiravam Agnaldo Timóteo, Nalva Aguiar, Wanderley Cardoso, Lindomar Castilho, Odair José, Vanusa, Roberto Carlos, Jane e Herondi, Almir Rogério. O chiado da carne, semelhante ao som de chuviscos de uma emisso- ra de tevê fora do ar, sendo revirada em alguma grelha, disseminava o cheiro do assado que impregnava a pequena ruela que separava as casas. Enquanto adultos disputavam tira-gostos e petiscos na mesa exposta ao ar livre e compar- 45
  • 46. tilhada por toda a vizinhança, a molecada num frêmito a correr pralá-pracá. Um vozerio de homens e mulheres que, alternando gargalhadas e gritos, pa- reciam viver a plenitude de uma felicidade não compatível com o silêncio e a modéstia com que Lindalva, Camila e Fabiano viviam noutra casa, quase um jazigo, onde noutra mesa esperava um frango assado recheado com farofa e ameixas, acompanhado de uma jarra de ki-suco, testemunhados pela árvore de natal que pisca-piscava discreta num canto, onde dormitavam os presentes que os meninos abririam no virar das horas, sem a efusiva comemoração que se verificava nos outros lares. Ainda estava para sair o turno das dez horas, a fábrica era um moedor de gente – faltava pouco para o sino da Matriz soar as doze badaladas, alguns insetos bailando em torno da luz fraca dos postes da rua, já se podiam ver os faróis dos carros realçando os grossos e compactos fios de chuva, deslizando pelo tabuleiro de paralelepípedos já encharcados, uma lua bêbada e intermitente entre nuvens velozes já não derramava sequer uma claridade débil sobre os telhados, indicando que um aguaceiro vinha de longe sem dó nem trégua, o campinho tá todo tomado, dona Vera – corria de um lado pro outro o Valdo doidinho avisando nas casas, mas o movimento do lado de fora negligenciava o apetite de uma tempestade em ascensão, nin- guém ligava para os corpos molhados, para as nuvens com suas cortinas de água chicoteando os quintais. A noite sem estrelas abria alas para o temporal que assobiava seus ventos nos eucaliptos do morro do cemitério – tudo tão certo e tão medido para essa época do ano naquelas margens do rio Pomba. Nas últimas décadas era religioso: a chuva batizava os Natais da cidade e mui- tos foram os reveillons em que o susto e a correria substituíam os estouros dos champanhas. A opulência das nuvens não falhava de novo, trazendo um medo antigo, papel carbono de conhecidos pesadelos, parindo tragédias na corrosão da madrugada. Desde o final da tarde, os plantões da Rádio Catagua- ses alertavam a população sobre as condições meteorológicas, mas ninguém sintonizava o dial naquele dia, pareciam todos detidos no clima de final de ano, ensimesmados em algum preparativo. Era preciso comemorar, beber, comer o peru que em alguma mesa não faltaria, preparando-se para enterrar o ano 46
  • 47. moribundo. Chovia horas sem parar nas cabeceiras do rio, lá pelos lados do pico dos Caramonãs e da Serra da Onça, onde o tempo estava armado e feioso. Ninguém deu bola, ninguém queria se lembrar de como nos últimos anos os céus reagiam, revelando toda sua força e brutalidade, todo seu escárnio no espetáculo intimidatório e caudaloso e suas águas. Não acreditavam que mais uma vez, depois da Missa do Galo, muita gente voltaria das igrejas sem poder chegar em casa, sem o milagre da ceia, evacuadas de mais uma esperança. Os verões chuvosos sempre foram desmancha-prazeres da vida prole- tária de Cataguases. As águas de março sempre adiantavam seu ciclo e apare- ciam no último mês do ano e impunham seu regime de exceção, como nas velhas ditaduras. Dos subterrâneos repressivos da natureza desiludida com os homens despencava o chumbo torturante das nuvens. Os regatos, ribeirões, lava-pés e calhas de esgoto não resistiam à pressão pluviométrica e se jun- tavam num subversiva e implacável coreografia, levando tudo que viam pela frente. E a calha do Pomba, serpente líquida e tinhosa, já assoberbada pelo vômito de outros leitos, não comportando o taliônico tempo, decretava seus desastres. Só quando ouviram os estrondos, pleonásticos e ensurdecedores, no vácuo redundante e clarividente dos feixes de relâmpagos, perceberam que a natureza, mais uma vez, não brincava em serviço e dava suas ordens. Já inócua aquela correria repentina, diante de um Meia-Pataca travestido num Atlântico na porta das casas. A tromba-d’água que havia caído a quilômetros dali, chegava com fúria redobrada e toda a vila não passava de uma imensa ilha da qual zarpava mais um Natal. Naquela correnteza não boiavam confu- sos e sem rumo apenas os presentes que não foram entregues. Uma tristeza absoluta e irreversível redemunhava dentro deles. 47
  • 48.
  • 50.
  • 51. 1.º Lugar Categorial Regional Araçatuba - SP Tharso José Ferreira de Minas Gerais, residente em Araçatuba, é autor de livros didáticos, criador da revista infantil “Zé Limpinho”, desenhista, chargis- ta, palestrante, vencedor do 21°, e menção honrosa no 23° Concurso de Contos Cidade de Araçatuba, em ambos na categoria municipal. Amizade Sincera Tharso José P ois bem, tentarei contar, embora isso me desagrade muito, mas me encorajo na curiosidade de todos. Se bem, e quero que disso todos saibam, isto não é um desabafo e nada do que contarei se afasta da verdade nua e crua, tal como acontecido. E aí quero me safar de vez dos sorrisos de sarcasmo, quando, vez ou outra, me veem pela rua. É isso que me irrita! Aqui todos sabem que João era meu amigo! Amizade leal, franca e de- terminada. Comia em sua casa, bebia com ele noite adentro, não raro acordava embriagado no chão de sua sala. João, amigos, era plácido, calmo e reservado, sem capacidade de ferir, nem em palavras nem em ações. Ousam-me? Tinha por ele uma amizade sincera, honesta, coisa à qual eu dirigia esforços em preservar. Em nossa amizade existia de fato uma grande afinidade. Mas bem sabem os senhores que o destino nos faz troça. Brinca com 51
  • 52. nossas limitações e nos fere. João tinha uma esposa tão jovem que se passava por filha. Bela, de uma beleza que só se encontra na juventude. Era de fala suave, quase um sussurrar. Sempre de vestido ou saia. Isso lhe dava uma feminilidade que hoje as mulheres já abandonaram. Mas não pensem os se- nhores, nunca tive os olhos para ela! Mesmo quando João a maltratava e lhe fazia represálias na minha presença. Me interessava mais o vinho da casa, a cerveja, o corote de pinga do que sua jovem esposa. Todo sábado eu acabava por lá, era lá que eu bebia. João sabia disso e me esperava sempre, mas naquele sábado ele não apareceu e, quando fiz o giro para voltar, sua esposa me chamou com sua voz sussurrada dizendo que ele voltaria logo, que eu entrasse e aguardasse. Eu, como já disse e os senhores sabem; tenho uma queda pelo álcool, admito, é meu ponto fraco. Daí, condu- zido pelo vício, entrei. Quero que me entendam que nunca dei motivos ao amigo, ou a quem quer que fosse, de duvidar de meus respeitos com a esposa dele e essa não seria a ocasião de quebrar tal confiança..., maldito dia! Ela me levou aos fundos, eu me acomodei num velho sofá de cor mos- tarda, roto,perto do freezer. Era lá que ficavam as cervejas. Casa simples, anos de convívio ali. Quando me levantei, ao pegar uma cerveja, dei de cara com os olhos dela nos meus. Vi de imediato, enorme depressão, dessas que se dá em fumadores de maconha. Visível tristeza. Indisfarçável. Desviei os olhos. Não posso, pensei. Que tormento lhe assolava as faces? Que tinha eu com isso? Mas ela continuou lá imóvel feito poste. Eu repelia de meu espírito o demônio da curiosidade embora tivesse dela penosas impressões e, no proceder dos fatos, vi que ela queria me dizer algo antes que eu me embriagasse. Desviei os olhos para o chão, mas ao levantar lá estavam os dela, me fitando com beleza notá- vel e expressão tão triste que me desconsertou. A brancura da pele e o brilho miraculoso nos olhos causou-me sincera piedade e transpus o curto caminho entre a lucidez e a insanidade quando lhe perguntei o que havia. – Sabe por que João me maltrata? – Perguntou com sua voz de fada – Sou estéril. 52
  • 53. Então era esse o motivo de tamanha melancolia. Ora, João nunca me havia dito nada. E olhem que ele me confiara coisas, perturbadoras, que nem em sonho ouso dizer, mas dessa moléstia em seu casamento nem uma pala- vra. – Fiz os exames, não sou eu, é ele o estéril. Menti para ele. – Me disse encostando os lábios em meu ouvido. – Ele não virá aqui hoje, e eu confio em você. Suportei até onde um homem pode. Eu sou um conhecedor de vinho, cerveja, destilados, mas de mulheres, nada! Não as entendia e nem queria. Menos ainda eu entendi quando ela se debruçou sobre mim se abrindo e me abrindo com a suavidade das penas. Eu me apiedei quando lhe vi as coxas arroxeadas pelo marido e nada disse quando ela me falou que fazia aquilo por ele, pois o amava mais do que a si. Eu me converti em pedra, teso, grudado no sofá imundo. Fechei os olhos diante do pecado e formei com ela, ali no sofá, um único corpo. Por que falar aqui o que já sabem os senhores? Por que o relato dessa vergonha? É odioso para mim repetir isso, codificar o acontecido em palavras para que paire em vocês o entendimento. Ora, pois! Deixem-me apressar e evitar fervura que vejo agora em tantos olhos. Depois disso não deixei de fazer minhas visitas ao amigo.Foram meses de tar- des e mais tardes do mais fino álcool, até que o ventre de sua jovem esposa se tornou volumoso e belo. Ele em êxtase, alegria total, aberto em sorrisos, atencioso, carinhoso, afetuoso, moderado na bebida. Ela ainda mais bela, mais calada, mais feliz, cantarolando pela casa. Comigo João tinha excessiva cordialidade. Bebia conversando comigo, tardes inteiras, não se cabia de con- tentamento, tinha assunto sobre assunto, tagarelava o tempo todo, alterara seus modos para melhor. Eu, oculto,calado, feliz ao extremo, entusiasmado com a situação. Nossa amizade já viçosa obteve mais vigor ainda. Quando o rebento veio ao mundo com a cara da mãe, João se tornou absoluto como pai, atento e zeloso com mãe e filho. Eu em estado de graça, se- cretamente. Isto me bastava. Aliança perfeita. O silêncio como aliado perpétuo. 53
  • 54. É esta a questão que quero que examinem! Acham que houve mais alguma coisa entre eu e ela? De modo algum! Afeiçoei-me a ela fraternalmente, era o papel que me cabia. Defendia silencioso a causa de todos, e disso fui meu próprio juiz. Lembram-se do destino? Aquele que traz de surpresa benesses, benig- nidade? Ora, não nos enganemos, ele zomba de nós e traz também infortú- nios! E infortúnios como benesses são tão próximos que não os distinguimos. E como o mal e consequência do bem, o contrário também é verdade. E, como todos sabem, o mal não havia dado as caras. E, como é da alegria que nasce a tristeza, ela me disse – Ele quer outro filho – Num sussurro quase inaudível. Quero ser aqui o mais claro possível. Tinha cumprido o propósito. To- dos estavam felizes. Não havia de minha parte um porquê. Mas admito a todos, tentação havia. É justo e provável que vocês não me entendam, mas eu posso entendê- los. E eu não tenho aqui palavras adequadas para esclarecê-los do categórico da minha negativa e, aqui, defendo a minha causa confiante. Mas ela falava docemente, devagar e, é essa a qualidade submissa que amo nas mulheres. Aquilo tirava a consistência dos meus nãos. Ela sabia, por me conhecer, que tal atitude sobre mim tinha delicioso efeito; então me tor- turava a cada dia na dose suficiente para que eu perdesse a força da negativa diante da volúpia de sua presença, seus pedidos constantes, seu cheiro. E que homem não tomba diante do machado do desejo determinado de uma mu- lher? Mas o amor proibido está sempre próximo do perigo. Depois disso, senhores, ela passou a me evitar. Não me dirigia a palavra e nem o olhar. Quando eu entrava, ela saia. Procurava ficar sempre fora de minhas vistas, sem disfarce, exagerada. – Porque me faz isso? – Perguntei. Ela me disse que percebera amor em meus olhos, que meus desejos estavam se tornando uma ameaça ao combinado. Sabendo disso assumi uma personalidade abstrata, neutra, pus de lado 54
  • 55. a postura que me dava um pouco de dignidade, se é que um bêbado sabe o que é isso, e esperei com paciência, afinal éramos todos companheiros. Ela sempre atarefada, trabalhos domésticos infindáveis, com assuntos e mais as- suntos particulares fora de casa, numa justa tentativa de não me dar atenção. Quando nasceu o bebê, uma menina inconfundível, réplica minha, enormes orelhas de abano, pele branquinha, mãos e olhos iguais, senhores! Iguais aos meus! Tal criança arrebatou-me a alma, de imediato, me vi nela. Qualquer coisa agora que fizesse lançaria meu filho a uma condenação injusta. Calei-me feito lápide. Passei a ser uma sombra silenciosa e atenta. Minha vontade morreu diante da vida que nascia. João espalhava a sua cara alegre em tudo com uma vocação divina em fazer tudo parecer bem. Longe de censurá-lo passei a admirá-lo ainda mais num misto confuso de sentimentos. Muitas vezes ele chegava e aninhava a filha em meus braços – Pratica aí a paternidade, um dia você vai ter o seu! – Parecia saber da minha paixão pela menina. O meu apreço pelos vapores do vinho se foi e ficou um mecanismo desconhecido, uma certa tolerância a tudo. Nesse trato novo que dei à vida, desenhei a gosto o meu próprio conceito de moralidade, honestidade, pecado. Enfim, tudo a meu gosto, ao que me convinha, que me deixasse em vantagens sobre os meus sentimentos, dando cores ao meu destino. Senhores, o que é de fato verdade? Pois na verdade todo conhecimento é oco e cabe a cada um preenchê-lo como quiser. Eu sei que o amor se apre- senta cheio de infelicidade para aquele que ama, já que quem ama não troca- ria a ilusão do amor pela certeza da indiferença do amado, eu preferia ser o amante infeliz, ignorado, do que estar fora daquela casa, daquelas vivências. Todos sabem que o adultério é companheiro inseparável dos longos ca- samentos. Logicamente, se existe entre nós algum advogado ele terá na men- te a atitude legal de representar contra. Argumentação tipicamente jurídica, fria,estabelecida na lei, no papel. E aqui não apetece tecer comentários, aos defensores da lei, sim, são farejadores do mal. Acomodei-me na casa do amigo. Não saía de lá. Vivia uma ilusão só 55
  • 56. minha. Impávido diante da paixão. Notava a jovem mãe calada em seus afaze- res pela casa. Mas o amor e a morte, meus caros, são irmãos. Minha fissura amorosa a consumia diante meus olhos de abutre, imoral, insano, perpétuo e confuso. Tal doença furiosa infectou por completo toda a casa. Ela notou tudo e acalentou para si tal angústia. Com o tempo emudeceu de vez. Silêncio de morte. Quando eu me aproximava ela tinha uma espécie de ataque. Tal moléstia crescia dia a dia, sua voz leve sumiu para sempre. Nutrido pela culpa passei a cuidar de tudo desmedidamente. João tomou aquilo como resposta da nossa amizade e aceitou. Ultrapassei tudo, quebrei regras, me pus servil. De nada adiantou, o mal nela evoluiu e nada do que fazíamos surtia efeito, e como todos sabem a vida lhe fugiu, ela faleceu num dia cinzento de outono, trazendo a mim e ao João um dor irremovível. Entendem agora como vocês nos irritam quando olham, comentam e riem quando andamos os quatro de mãos dadas pela rua? Onde está o vinho, Senhores?! 56
  • 57. 2.º Lugar Categoria Regional Penápolis - SP A palavra muda Danieli Elias V antuiluriel. Nunca entendera porque sua mãe lhe dera esse nome tão incomum. Não, pensando melhor, esse era um nome bizar- ro. Por que não se chamava João, Carlos ou Ernesto como todos os outros ao invés de Vantuiluriel? Sempre fora motivo de piadas por isso. Aliás, os óculos grotescos que usava também não ajudavam muito. Com o passar dos anos acabou se entrincheirando dentro de si. Não queria que rissem dele, por isso nunca falava ou olhava para os outros. An- dava cabisbaixo, sempre, como que procurando algo há muito perdido. Não pronunciava palavra e ninguém conhecia o som da sua voz. A verdade é que a vida tornava-se menos encantadora a cada minuto e não importava o quão feliz devesse estar, simplesmente não conseguia. Queria viver uma vida breve e sem sofrimento, assim como as borboletas. Simplesmente ser! Vantuiluriel não tinha má aparência, mas seu semblante triste encobria sua beleza. Seus olhos negros, dotados de uma melancolia extrema, e seus ombros encurvados pelo peso da amargura tiravam-lhe o encanto juvenil. No começo todos se sentiam desafiados por aquele simples garoto. Por que tanta infelicidade? E com o decorrer do tempo, quando Vantuiluriel passa- va, as pessoas sentiam apenas um leve sopro de ar. Já não o notavam. Morrera, enfim. Mas se deu que um dia Vantuiluriel teve uma visão divina. Algo que o fez esquecer seus problemas e desejar viver séculos. 57
  • 58. Sofia. Seus pés foram a única coisa capaz de fazer aqueles melancólicos olhos negros erguerem-se pela primeira vez em doze anos. Aquela era a visão mais doce que já tivera ou imaginara poder ter. Os olhos de Sofia faiscavam e a paz emanava de seu sorriso. Vantuiluriel foi tomado por um sentimento novo, o qual não podia explicar e que nunca havia sentido. Amor! Passou anos a observá-la, notando cada mínimo detalhe: o modo como ela enrolava uma mecha de cabelo quando estava distraída, sua preferência por sorvete de morango com chantilly, seu olhar absorto quando lia. Foram anos alimentando-se daquela visão, sonhando... Seu peito sufocava e por mais que quisesse se prevenir não pôde evitar o único desfecho para aquela situa- ção. Seu coração clamava descompassadamente por revelação. Correria o ris- co e falaria a Sofia que a amava. Encontrou-a sozinha numa mesa da biblioteca. Sofia adorava livros. Fora lá que a vira pela primeira vez há cinco anos. Sentou-se frente a ela e a fitou. Por segundos, Sofia correspondeu-lhe o olhar e depois o voltou para o livro que lia. Romeu e Julieta. Vantuiluriel diria as palavras que o atormentavam. Para os outros sem- pre falta uma palavra, mas para ele não faltaria nenhuma. Sempre fora dife- rente. Sentiu as letras juntarem-se em sua cabeça, passarem por seu coração e se dirigirem para a garganta. Era agora, iria dizê-las. De repente ele engasgou-se. Sofia e os outros ao redor se assustaram. Correria. Vantuiluriel ficou roxo e o ar extinguiu-se em seus pulmões. O coração, que antes batia por Sofia, parou. Morreu. E sem dizer palavra. Se para todos falta uma palavra para ele não foi diferente. “Ah, Sofia! Como eu...” Foi a pri- meira vez em seus vinte e dois anos de existência que se sentiu igual aos outros e uma felicidade incomum preencheu o seu ser. Finalmente era igual, mesmo se chamando Vantuiluriel e não Carlos, João, Ernesto, César... 58
  • 59. 3.º Lugar Categoria Regional Araçatuba - SP A Travessia Mário Bueno A inda era escuro quando ele acordou com o barulho do des- pertador. Apesar do sono, estava ansioso com a chegada desse dia e assim tratou logo de sair da cama. Esfregou os olhos, espreguiçou-se e caminhou rumo ao chuveiro para o costumeiro banho matinal. Há anos sonhava com essa aventura, mas somente agora é que final- mente conseguiria realizar tão esperado sonho. Em silêncio, para não acordar a mulher, foi até a cozinha e preparou um reforçado café da manhã. O dia seria longo e cansativo, portanto precisaria estar bem alimentado. Caminhou até a sala de jantar e por um momento contemplou orgu- lhoso toda a parafernália espalhada pela mesa e chão. Aos poucos conferiu a lista para certificar-se de que não se esquecera de nada e que tudo estava em ordem: barraca, saco de dormir, colchonete, rede de descanso e mapas. Nos alforges roupas, calçados, produtos de higiene pessoal, ferramentas, peças so- bressalentes, primeiros socorros, fogareiro, panelas, alimentos e tantas outras coisas necessárias para a viagem. Tinha aproximadamente uma centena de itens, organizados e separa- dos em sacolas diferentes para facilitar a localização e o acesso de qualquer coisa a qualquer momento. Ele nunca havia feito nada parecido antes, entretanto toda informação que amealhara durante meses de pesquisa seria mais do que suficiente para 59
  • 60. completar a empreitada com alguma tranquilidade. Enquanto carregava as coisas para fora de casa, a família pouco a pouco foi acordando. A mulher, os filhos, o pai, a mãe. Ainda sonolentos observavam com um misto de resignação e compla- cência o pedalante ajeitar os últimos detalhes em sua bicicleta completamente carregada. Seu objetivo era atingir o pico do Porta do Céu, o monte mais alto do país, a cerca de cinco mil quilômetros distantes de casa. Faria isso pedalando por essas estradas do mundão de seu Deus, ao longo de três ou quatro meses de viagem, com a intenção de chegar por lá no inverno, quando poderia des- frutar de um dos céus noturnos mais belos do planeta. Tudo pronto para a partida, iniciou-se outra rodada de despedidas. Ha- via um clima de tristeza no ar. Os filhos, ainda pequenos, brincavam ao redor da bicicleta, sem entender direito o que se passava. Silenciosamente abraçou seus familiares como se fosse a última vez; todos com lágrimas nos olhos como que pedindo para ele ficar. Olhou para as crianças de modo tão direto e profundo, que as palavras se tornaram desnecessárias, pois as mesmas já haviam sido ditas e reditas como um mantra, várias e várias vezes durante o período de incubação da jornada. Finalmente montou em sua bicicleta e, reticente, partiu sem olhar para trás. Eram seis da manhã. Assim que dobrou a esquina, a mulher, já com a mão no rosto, correu em prantos para dentro de casa chorando compulsiva- mente. Para o pedalante, entretanto, todo o cenário parecia novo por mais que ainda estivesse a poucos metros de casa. Os velhos e conhecidos caminhos do bairro adquiriam um aspecto totalmente diferente, como se fosse a primeira vez que estivesse passando por ali. Sua própria existência ganhava novos con- tornos. Enquanto pedalava lentamente em direção à saída da cidade, repassava em pensamento todo o longo trajeto que percorreria nos próximos meses. 60
  • 61. Partindo do litoral onde morava, subiria em direção ao norte, margeando o país pela praia por centenas de quilômetros. Duas semanas de viagem, talvez. Depois, rumo ao oeste, atravessaria várias cidades, estados, culturas e costu- mes diferentes, percorrendo intrincados caminhos em zigue-zague, subidas e descidas por morros e montes, até finalmente chegar na Porta do Céu, o ponto mais alto do país. Bastaram poucas pedaladas para que o asfalto ficasse para trás. Entrou por uma estreita trilha de terra, bem arborizada, fresca, e após alguns quilô- metros teve acesso à praia onde foi saudado com deslumbrante nascer do sol, de alaranjado incandescente. Agora, sim, a viagem começa de verdade, pensou. Com tudo que preci- sava a bordo, e casa nas costas, o pedalante estava por conta própria. A areia da praia, úmida e compactada, era terreno perfeito para pedalar de maneira bem cadenciada, permitindo que a bicicleta atingisse boas veloci- dades. Dessa forma era possível percorrer dezenas de quilômetros em poucas horas, fazendo rápidas paradas apenas para beber água, descansar e recuperar as energias. Ao entardecer encontrou um pequeno gramado sob algumas árvores, ligeiramente recuado da praia e bem protegido da brisa marítima. Ali montou seu acampamento e rapidamente preparou o jantar, pois a fome e o cansaço se manifestavam com intensidade. Sentado à porta da barraca, enquanto comia, admirava a noite que calmamente se anunciava. O céu com lua cheia prometia um espetáculo à parte. Sacou um pequeno livro do bolso, cujo autor era um renomado nave- gante, e pela milésima vez leu – desta vez em voz alta – o trecho que poderia resumir toda a sua existência: “Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu”. E ele estava ali para isso. Seriam meses que valeriam por toda sua vida. Meses nos quais ele aprenderia muito sobre o desapego e a simplicidade; a descobrir como é bom 61
  • 62. viver e ser feliz com pouco. Já deitado em seu saco de dormir, adormeceu profundamente enquan- to ainda pensava nas palavras do livro. Despertou com as primeiras luzes do sol e logo percebeu que o relógio já não seria mais necessário. O sol, a lua, a fome e a sede seriam a partir de agora seus guias. Saiu da barraca e caminhou para o mar. Mergulhou naquelas águas límpidas, levemente esverdeadas. A areia quase branca. O lugar era paradisíaco, e por ser de difícil acesso ainda manti- nha suas características originais. Ao sair da água sentiu forte tontura. Com a respiração ofegante, sentou- se para não cair e assim ficou por alguns minutos até que a cabeça voltasse ao normal. Logo que a tontura passou, levantou-se, caminhou até o acampamen- to, tomou um rápido café da manhã e desmontou toda a tralha para seguir viagem. Por volta do oitavo dia deparou-se com um imprevisto. Um rio cortava seu caminho. Não era exatamente largo, mas em compensação não era raso o suficiente para atravessar pedalando. Contorná-lo seria impossível. Sem pestanejar arrancou a camisa, os calçados, e entrou na água para verificar a profundidade. Vendo que era possível fazer a travessia, tirou os alfor- ges, bolsas e sacolas da bicicleta e um a um foi transportando sobre a cabeça para que não molhassem, até chegar do outro lado do rio. Por último ficou a bicicleta, que também foi transportada acima da linha d´água. No décimo quarto dia encerrou o trecho do litoral e partiu para oeste, em direção ao interior do país. Quilômetro após quilômetro as semanas foram se passando. A cada dois ou três dias parava em alguma cidade, ou vilarejo, para repor os supri- mentos ou fazer pequenos reparos, sempre que chegava com a bicicleta carre- gada, atraía a atenção para si. Os locais perguntavam de onde ele vinha, para onde estava indo e queriam saber da sua história, dessa aparente loucura que 62