SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 5
Baixar para ler offline
CAPÍTULO 2
     “O segredo da criatividade é saber como esconder as fontes."
     (Albert Einstein)


     Rodolfo sentou-se à frente do seu portátil. Parecia impossível ser sexta-feira e
estar em casa, a esta hora da noite, em vez de se estar a divertir com um programazinho
que já era praticamente um ritual. O jantar era, quase invariavelmente, no Oui, chez
mois, propriedade do seu grande amigo Filipe que estivera emigrado em França doze
anos. Entre outras iguarias, Filipe, ou melhor, o seu chef, Diniz, confeccionava uns
bifinhos de javali com castanhas, acompanhados ainda de um arroz de frutos secos, que
faziam com que Rodolfo, a meio da tarde, começasse a salivar por antecipação. No
final, Filipe arranjava sempre tempo para tomar um digestivo com ele. Um e outro eram
grandes apreciadores de aguardente velha, bebida que acompanhava dois dedos de
conversa, quase sempre sobre o assunto preferido dos homens. Depois, seguia-se uma
sessão de cinema no Centro Comercial Lux. Não era particular adepto da moda das
micro-salas de projecção, mas a falta, nas redondezas, de uma sala maior, aliada à
variedade cinéfila de oferta destas, fazia com que acabasse por ser esta a sua opção.
Estes programas de sexta à noite eram quase sempre passados em boa companhia.
Quase a fazer quarenta anos, Rodolfo mantinha um ar jovial, alicerçado, porventura, no
seu hábito diário de prática de exercício físico. Como não tinha paciência para ginásios,
era em cima da sua bicicleta de ciclismo que queimava calorias, que exercitava os seus
músculos e que mantinha a bomba oleada. Quando trabalhava no jornal, tinha sido ele o
primeiro a utilizar bicicleta para ir para a redacção. O seu hábito teve seguidores, de tal
forma que ir de bicicleta para o trabalho passou a ser uma imagem de marca daquele
diário. Agora que já não tinha de se deslocar para trabalhar, encontrava sempre forma de
dedicar umas duas horas diárias à sua amiga de duas rodas. Tinha a felicidade de morar
numa zona relativamente calma e de ter dois vizinhos que quase sempre lhe faziam
companhia nestas deambulações diárias. Em excelente forma física e quase sempre de
bom humor, encontrar companhia agradável não constituía dificuldade para Rodolfo.
No final da sessão, quase sempre optava por um bar tranquilo onde pudesse, sem ter que
berrar, manter uma conversa perceptível com os companheiros e, naturalmente,
companheiras. Não raramente, Rodolfo terminava estas noites de sexta-feira em bons
lençóis. Depois de quase cinco anos de relação mais séria, acabada abruptamente por
vontade (ou falta dela) da sua companheira, optou por desinvestir no sexo oposto. Não
significa isto que tenha passado a ter, em alternativa, um olhar especial para os seus
conspécimes masculinos. Apenas passou a fugir de compromissos como o Diabo da
cruz. Os únicos a que ainda não tinha sido capaz de escapar eram aqueles que o seu
editor lhe impunha. A pensar nisso, colocou a pen, seleccionou o Aleascript e iniciou a
sua instalação. Concluída esta operação, a qual durou breves minutos, abriu o programa
e fez o seu primeiro clique na tecla "enter", depois outro e ainda mais outro. Tal como
combinado com o seu amigo Paulo, ao fim de cinco cliques completar-se-ia uma série
de palavras com que ele deveria trabalhar. As palavras iam-se sucedendo: "SORTE",
"HISTÓRIA", "SAÍDA", "IDEIA", "MÁQUINA". Roberto decidiu tentar escrever algo
a partir destas 5 palavras.
      — “Aquele era o seu dia de sorte; finalmente, uma ideia brilhante iria permitir-lhe
escrever a mais extraordinária história alguma vez escrita! Teria mesmo de resultar,
pois era a única saída para acalmar o ansioso editor: uma máquina de escrita!”


      Olhou silenciosamente para o que tinha escrito. Não estava mal, não senhor. No
entanto, não deixava de ser surpreendente a coincidência com os acontecimentos
recentes. Aquela era a história dos seus últimos dias! Não quis dar muita importância
àquele acaso, pois não passaria, naturalmente, disso. Aliás, estava convencido de que
teriam sido os acontecimentos recentes a fazê-lo olhar para aqueles vocábulos daquela
forma. Se quisesse, não seria difícil compor a história de forma completamente diversa.
Experimentou, quanto mais não fosse para provar a si próprio que tinha razão.
      — “A gasolina estava mesmo no fim; por sorte, a menos de 500 metros esperava-
o uma saída, com direito a posto de gasolina e tudo! Saiu, atestou o depósito e,
enquanto esperava pela sua vez de pagar, entreteve-se a folhear alguns jornais expostos
no escaparate. Uma história especialmente escabrosa chamou-lhe a atenção, pela ideia
macabra do autor. Um jovem pegara numa máquina de roçar mato e entretivera-se a
destruir todas as árvores que lhe apareceram pelo caminho..."


      Olhou para o que escrevera e sorriu. Como pensara, era tudo uma questão de
orientação do pensamento. Finalmente, as ideias começavam a brotar e o seu editor, em
breve, deixaria de lhe massacrar a cabeça!
Largou a esferográfica, voltou ao teclado do seu computador e experimentou
novamente     o   Aleascript.   "BAR",     "SOLTEIRO",       "PAPAGAIO",        "AVIÃO",
"CANETA".
      — “O bar "O Solteiro" estava apinhado. Furou por entre aquela mole de gente
que esfumaçava e conseguiu chegar ao balcão. Um papagaio colorido entretinha alguns
clientes, apostados em fazê-lo falar. Um deles, visivelmente sob o efeito dos mais de
cinco uísques já emborcados, fazia esvoaçar uma caneta como se de um avião se
tratasse. “


      Já vira muita coisa bem mais mal escrita. Poderia dar origem a uma história
interessante. Decidiu experimentar outra combinação. “Solteiro há mais de 30 anos,
tantos quantos os que tinha, Roberto entrou naquele bar, disposto a fazer mais uma das
conquistas amorosas, ou melhor, sexuais a que dedicava grande parte dos seus tempos
livres, que, convenhamos, eram todos. Impossível, de imediato, ignorar um autêntico
avião que, sem qualquer constrangimento, falava com duas amigas com voz bem
audível. Monopolizava de tal forma a conversa que mais parecia um papagaio, mas
com imenso charme. Pegou num papel enrugado que trazia no bolso e numa caneta e
rabiscou umas palavras meigas, pedindo a um empregado para entregar aquela
missiva na mesa daquela mulher encantadora. Em pouco mais de duas horas já se
encontravam a caminho do aeroporto, com destino a Las Vegas, para um típico
casamento relâmpago.”
      Desta vez, Rodolfo empalideceu. Quando as coincidências são muitas, o escritor
desconfia. Há um ano, aquela fora a sua história! Numa noite de copos, conhecera uma
mulher num bar e, num impulso, voara para se casar na Capital do Jogo. Durara pouco,
como quase sempre nestas circunstâncias, mas tivera a sua piada! Esta nova
coincidência é que não era lá muito hilariante. Estaria a entrar em paranóia?
      — Não há duas sem três — pensou. — Experimentemos outra vez. — Com algum
receio, lá recomeçou a clicagem. "JORNAL", "ÁFRICA", "MASSACRE"...
      Parou de clicar. Seria possível? Há cerca de 5 anos, tivera a sua primeira (e última)
coroa de glória desde que abraçara a carreira jornalística, mas com que consequências!
Numa viagem ao continente africano, enviado pelo jornal onde trabalhava há mais de 10
anos, descobrira, quase por acaso, uma conspiração governamental para matar todos os
habitantes de uma dada etnia. Rodolfo tirara algumas fotos comprometedoras que lhe
valeram o assassinato do colega que o acompanhou. Rodolfo escapou, mas a catanada
que levou deixou-lhe uma recordação amarga, traduzida numa cicatriz com cerca de
trinta centímetros na parte anterior da coxa direita. Como sempre, no meio de muito
azar há sempre maneira de se ver uma ponta de sorte. Salvou-se o abono de família, mas
por pouco. Por pressão internacional, o governo absolutista e déspota resignou, tendo,
mais tarde, sido conseguida a condenação do presidente e dos seus correligionários.
Rodolfo foi condecorado por bravura e bons serviços à humanidade mas nunca mais se
aventurou em andanças deste tipo. Abandonou o jornalismo três anos depois mas não o
gosto pelas letras. Dedicou-se à escrita ficcional, o que, convenhamos, não difere muito
de grande parte da escrita jornalística.
     Clique,    clique.    “MEDALHA”,         “EXONERAÇÃO”.        Pois.    Cá    estava,
definitivamente, a terceira. Duas com três.
     Pegou no telefone. A coisa estava a tornar-se demasiado séria e assustadora para a
encarar sozinho. Como sempre acontecia nestas ocasiões, não teve dúvidas a quem ligar
para desabafar e procurar algum apoio.
     — Estou? — perguntou uma feminina voz doce, embora nitidamente ensonada.
     — Teresa? Sou eu, o Rodolfo. Desculpa estar a ligar-te a esta hora, mas
aconteceu-me uma coisa que não consigo explicar e…
     — Espero que seja suficientemente importante para me ligares às quatro da
manhã, Rodolfo! Ou é mais um dos teus estados de alma por não resistires aos encantos
de um qualquer rabo de saia? — perguntou-lhe, interrompendo-o, Teresa, mais do que
habituada às confidências amorosas do amigo.
     — Não, Teresa, desta vez não tem nada a ver com mulheres. Ou melhor, acho que
não tem, mas como me parece um caso de bruxaria, até talvez tenha, quem sabe!
     — Bruxaria? Tens a certeza de que não bebeste uns shots a mais? Estás em casa?
     — Sim, sim. Não bebi nada e estou em casa. Podes dar um salto aqui? É muito
importante e estou certo de que te vai interessar bastante!
     — Eu, interessada em bruxas? Duvido! Olha, se elas não te estão a bater com a
vassoura nem te estão a obrigar a provar uma qualquer poção para te transformar num
ratinho, será que podias esperar até de manhã para me contares tudo com calma? Se
estás muito assustado, então proponho--te que venhas cá dormir o resto da noite. No
sofá, claro! Sabes onde está a chave, entra, deita-te e ao pequeno-almoço, que vais fazer
para me compensares por me teres acordado a esta hora, falas-me dessas danadas que te
querem encher de feitiços, vale?
Rodolfo não pôde deixar de sorrir com a conversa da amiga. Fora sempre assim, a
sua relação de amizade, com Teresa a pôr água na fervura de Rodrigo. Os seus amigos
não conseguiam compreender como era possível um homem ter uma mulher como
amiga, especialmente quando ambos eram descomprometidos e a mulher era aquela.
Talvez fosse porque Teresa punha mesmo muita água na fervura…
     — Tens razão, Teresa. Estou mesmo com os nervos em franja com o que se está a
passar, mas não me parece que corra o risco de acordar moído de pancada vassoural ou
com um intrigante gosto exclusivo por queijo. No entanto, a tua proposta para passar aí
o resto da noite é irrecusável. Mesmo no sofá. Em trinta minutos estou aí. Beijo.

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Mf16 EducaçãO Sexual
Mf16 EducaçãO SexualMf16 EducaçãO Sexual
Mf16 EducaçãO Sexualmrvpimenta
 
Robert Silverberg O Homem que Jamais Esquecia
Robert Silverberg   O Homem que Jamais EsqueciaRobert Silverberg   O Homem que Jamais Esquecia
Robert Silverberg O Homem que Jamais EsqueciaHerman Schmitz
 
Ficha de leitura sobre o livro "Dom Casmurro"
Ficha de leitura sobre o livro "Dom Casmurro" Ficha de leitura sobre o livro "Dom Casmurro"
Ficha de leitura sobre o livro "Dom Casmurro" Geovana Pimentel Boalento
 
Ficha De Leitura Lingua Portuguesa
Ficha De Leitura   Lingua PortuguesaFicha De Leitura   Lingua Portuguesa
Ficha De Leitura Lingua PortuguesaRui Oliveira
 
23358748 caio-fernando-abreu-pequenas-epifanias
23358748 caio-fernando-abreu-pequenas-epifanias23358748 caio-fernando-abreu-pequenas-epifanias
23358748 caio-fernando-abreu-pequenas-epifaniasca11du06
 
18012180 negrinha-resumo-dos-contos[1]
18012180 negrinha-resumo-dos-contos[1]18012180 negrinha-resumo-dos-contos[1]
18012180 negrinha-resumo-dos-contos[1]Tatiane Pechiori
 
Ficha de Leitura " A marca de uma lágrima"
Ficha de Leitura " A marca de uma lágrima"Ficha de Leitura " A marca de uma lágrima"
Ficha de Leitura " A marca de uma lágrima"ThaiGouva
 
Stella e Simão Mil Folhas
Stella e Simão Mil FolhasStella e Simão Mil Folhas
Stella e Simão Mil Folhasmrvpimenta
 
Machado de Assis - Dom Casmurro
Machado de Assis - Dom CasmurroMachado de Assis - Dom Casmurro
Machado de Assis - Dom CasmurroLarissa Mascarello
 
A morte e a morte de quincas berro d água
A morte e a morte de quincas berro d águaA morte e a morte de quincas berro d água
A morte e a morte de quincas berro d águaAna Paula Medeiros
 
LUANDA LISBOA PARAISO de Djaimilia Pereira de Almeida
LUANDA LISBOA PARAISO de Djaimilia Pereira de AlmeidaLUANDA LISBOA PARAISO de Djaimilia Pereira de Almeida
LUANDA LISBOA PARAISO de Djaimilia Pereira de AlmeidaIsabel DA COSTA
 
língua portuguesa ficha literaria memórias póstumas de brás cubas
língua portuguesa ficha literaria memórias póstumas de brás cubaslíngua portuguesa ficha literaria memórias póstumas de brás cubas
língua portuguesa ficha literaria memórias póstumas de brás cubasWesley Germano Otávio
 
La vuelta ao día en ochenta mundos
La vuelta ao día en ochenta mundosLa vuelta ao día en ochenta mundos
La vuelta ao día en ochenta mundosPriscila Stuani
 
A morte e a morte de Quincas Berro Dágua
A morte e a morte de Quincas Berro DáguaA morte e a morte de Quincas Berro Dágua
A morte e a morte de Quincas Berro DáguaThiago Xavier
 

Mais procurados (20)

Mf16 EducaçãO Sexual
Mf16 EducaçãO SexualMf16 EducaçãO Sexual
Mf16 EducaçãO Sexual
 
Robert Silverberg O Homem que Jamais Esquecia
Robert Silverberg   O Homem que Jamais EsqueciaRobert Silverberg   O Homem que Jamais Esquecia
Robert Silverberg O Homem que Jamais Esquecia
 
Ficha de leitura sobre o livro "Dom Casmurro"
Ficha de leitura sobre o livro "Dom Casmurro" Ficha de leitura sobre o livro "Dom Casmurro"
Ficha de leitura sobre o livro "Dom Casmurro"
 
Ficha De Leitura Lingua Portuguesa
Ficha De Leitura   Lingua PortuguesaFicha De Leitura   Lingua Portuguesa
Ficha De Leitura Lingua Portuguesa
 
23358748 caio-fernando-abreu-pequenas-epifanias
23358748 caio-fernando-abreu-pequenas-epifanias23358748 caio-fernando-abreu-pequenas-epifanias
23358748 caio-fernando-abreu-pequenas-epifanias
 
18012180 negrinha-resumo-dos-contos[1]
18012180 negrinha-resumo-dos-contos[1]18012180 negrinha-resumo-dos-contos[1]
18012180 negrinha-resumo-dos-contos[1]
 
A moreninha-joaquim-manuel-de-macedo
A moreninha-joaquim-manuel-de-macedoA moreninha-joaquim-manuel-de-macedo
A moreninha-joaquim-manuel-de-macedo
 
Ficha de Leitura " A marca de uma lágrima"
Ficha de Leitura " A marca de uma lágrima"Ficha de Leitura " A marca de uma lágrima"
Ficha de Leitura " A marca de uma lágrima"
 
Stella e Simão Mil Folhas
Stella e Simão Mil FolhasStella e Simão Mil Folhas
Stella e Simão Mil Folhas
 
Realismo Dom Casmurro
Realismo Dom CasmurroRealismo Dom Casmurro
Realismo Dom Casmurro
 
Machado de Assis - Dom Casmurro
Machado de Assis - Dom CasmurroMachado de Assis - Dom Casmurro
Machado de Assis - Dom Casmurro
 
Bruxa Mimi
Bruxa MimiBruxa Mimi
Bruxa Mimi
 
A morte e a morte de quincas berro d água
A morte e a morte de quincas berro d águaA morte e a morte de quincas berro d água
A morte e a morte de quincas berro d água
 
Dom casmurro
Dom casmurroDom casmurro
Dom casmurro
 
LUANDA LISBOA PARAISO de Djaimilia Pereira de Almeida
LUANDA LISBOA PARAISO de Djaimilia Pereira de AlmeidaLUANDA LISBOA PARAISO de Djaimilia Pereira de Almeida
LUANDA LISBOA PARAISO de Djaimilia Pereira de Almeida
 
língua portuguesa ficha literaria memórias póstumas de brás cubas
língua portuguesa ficha literaria memórias póstumas de brás cubaslíngua portuguesa ficha literaria memórias póstumas de brás cubas
língua portuguesa ficha literaria memórias póstumas de brás cubas
 
Dom Casmurro
Dom CasmurroDom Casmurro
Dom Casmurro
 
La vuelta ao día en ochenta mundos
La vuelta ao día en ochenta mundosLa vuelta ao día en ochenta mundos
La vuelta ao día en ochenta mundos
 
A morte e a morte de Quincas Berro Dágua
A morte e a morte de Quincas Berro DáguaA morte e a morte de Quincas Berro Dágua
A morte e a morte de Quincas Berro Dágua
 
Casos do romualdo
Casos do romualdoCasos do romualdo
Casos do romualdo
 

Semelhante a Capítulo 2 aleascript

A moreninha
A moreninhaA moreninha
A moreninhaLaguat
 
Capítulo 1 aleascript
Capítulo 1 aleascriptCapítulo 1 aleascript
Capítulo 1 aleascriptRui Matos
 
Um romance rui zink - conto
Um romance   rui zink - contoUm romance   rui zink - conto
Um romance rui zink - contoz895911
 
Mayrant gallo por costa pinto
Mayrant gallo por costa pintoMayrant gallo por costa pinto
Mayrant gallo por costa pintogabriellealano
 
A Peste PT.pdf
A Peste PT.pdfA Peste PT.pdf
A Peste PT.pdflina87274
 
Micrônicas, por Walmar Andrade
Micrônicas, por Walmar AndradeMicrônicas, por Walmar Andrade
Micrônicas, por Walmar AndradeRedeMude
 
Capítulo 3 aleascript
Capítulo 3 aleascriptCapítulo 3 aleascript
Capítulo 3 aleascriptRui Matos
 
DUAS HORAS MUITO LOUCAS I
DUAS HORAS MUITO LOUCAS IDUAS HORAS MUITO LOUCAS I
DUAS HORAS MUITO LOUCAS IWendell Santos
 
Universidade estadual da paraíba pibid
Universidade estadual da paraíba   pibidUniversidade estadual da paraíba   pibid
Universidade estadual da paraíba pibidMaria das Dores Justo
 
Dias de verão a4
Dias de verão a4Dias de verão a4
Dias de verão a4rgrecia
 
Luis fernando verissimo o santinho (doc) (rev)
Luis fernando verissimo   o santinho (doc) (rev)Luis fernando verissimo   o santinho (doc) (rev)
Luis fernando verissimo o santinho (doc) (rev)Mara Virginia
 
Sophie weston o guerrilheiro das montanhas
Sophie weston   o guerrilheiro das montanhasSophie weston   o guerrilheiro das montanhas
Sophie weston o guerrilheiro das montanhasGisa Felix
 
Artur azevedo a ritinha
Artur azevedo   a ritinhaArtur azevedo   a ritinha
Artur azevedo a ritinhaTulipa Zoá
 

Semelhante a Capítulo 2 aleascript (20)

A moreninha
A moreninhaA moreninha
A moreninha
 
Portfolio Edison Morais
Portfolio Edison MoraisPortfolio Edison Morais
Portfolio Edison Morais
 
Capítulo 1 aleascript
Capítulo 1 aleascriptCapítulo 1 aleascript
Capítulo 1 aleascript
 
Um romance rui zink - conto
Um romance   rui zink - contoUm romance   rui zink - conto
Um romance rui zink - conto
 
Mayrant gallo por costa pinto
Mayrant gallo por costa pintoMayrant gallo por costa pinto
Mayrant gallo por costa pinto
 
A Peste PT.pdf
A Peste PT.pdfA Peste PT.pdf
A Peste PT.pdf
 
A crônica
A crônicaA crônica
A crônica
 
König pdf free
König pdf freeKönig pdf free
König pdf free
 
Micrônicas, por Walmar Andrade
Micrônicas, por Walmar AndradeMicrônicas, por Walmar Andrade
Micrônicas, por Walmar Andrade
 
Capítulo 3 aleascript
Capítulo 3 aleascriptCapítulo 3 aleascript
Capítulo 3 aleascript
 
QU4RTO DESAMP4RO
QU4RTO DESAMP4ROQU4RTO DESAMP4RO
QU4RTO DESAMP4RO
 
DUAS HORAS MUITO LOUCAS I
DUAS HORAS MUITO LOUCAS IDUAS HORAS MUITO LOUCAS I
DUAS HORAS MUITO LOUCAS I
 
Sombra
SombraSombra
Sombra
 
A
AA
A
 
Universidade estadual da paraíba pibid
Universidade estadual da paraíba   pibidUniversidade estadual da paraíba   pibid
Universidade estadual da paraíba pibid
 
Parte 3
Parte 3Parte 3
Parte 3
 
Dias de verão a4
Dias de verão a4Dias de verão a4
Dias de verão a4
 
Luis fernando verissimo o santinho (doc) (rev)
Luis fernando verissimo   o santinho (doc) (rev)Luis fernando verissimo   o santinho (doc) (rev)
Luis fernando verissimo o santinho (doc) (rev)
 
Sophie weston o guerrilheiro das montanhas
Sophie weston   o guerrilheiro das montanhasSophie weston   o guerrilheiro das montanhas
Sophie weston o guerrilheiro das montanhas
 
Artur azevedo a ritinha
Artur azevedo   a ritinhaArtur azevedo   a ritinha
Artur azevedo a ritinha
 

Capítulo 2 aleascript

  • 1. CAPÍTULO 2 “O segredo da criatividade é saber como esconder as fontes." (Albert Einstein) Rodolfo sentou-se à frente do seu portátil. Parecia impossível ser sexta-feira e estar em casa, a esta hora da noite, em vez de se estar a divertir com um programazinho que já era praticamente um ritual. O jantar era, quase invariavelmente, no Oui, chez mois, propriedade do seu grande amigo Filipe que estivera emigrado em França doze anos. Entre outras iguarias, Filipe, ou melhor, o seu chef, Diniz, confeccionava uns bifinhos de javali com castanhas, acompanhados ainda de um arroz de frutos secos, que faziam com que Rodolfo, a meio da tarde, começasse a salivar por antecipação. No final, Filipe arranjava sempre tempo para tomar um digestivo com ele. Um e outro eram grandes apreciadores de aguardente velha, bebida que acompanhava dois dedos de conversa, quase sempre sobre o assunto preferido dos homens. Depois, seguia-se uma sessão de cinema no Centro Comercial Lux. Não era particular adepto da moda das micro-salas de projecção, mas a falta, nas redondezas, de uma sala maior, aliada à variedade cinéfila de oferta destas, fazia com que acabasse por ser esta a sua opção. Estes programas de sexta à noite eram quase sempre passados em boa companhia. Quase a fazer quarenta anos, Rodolfo mantinha um ar jovial, alicerçado, porventura, no seu hábito diário de prática de exercício físico. Como não tinha paciência para ginásios, era em cima da sua bicicleta de ciclismo que queimava calorias, que exercitava os seus músculos e que mantinha a bomba oleada. Quando trabalhava no jornal, tinha sido ele o primeiro a utilizar bicicleta para ir para a redacção. O seu hábito teve seguidores, de tal forma que ir de bicicleta para o trabalho passou a ser uma imagem de marca daquele diário. Agora que já não tinha de se deslocar para trabalhar, encontrava sempre forma de dedicar umas duas horas diárias à sua amiga de duas rodas. Tinha a felicidade de morar numa zona relativamente calma e de ter dois vizinhos que quase sempre lhe faziam companhia nestas deambulações diárias. Em excelente forma física e quase sempre de bom humor, encontrar companhia agradável não constituía dificuldade para Rodolfo. No final da sessão, quase sempre optava por um bar tranquilo onde pudesse, sem ter que berrar, manter uma conversa perceptível com os companheiros e, naturalmente, companheiras. Não raramente, Rodolfo terminava estas noites de sexta-feira em bons lençóis. Depois de quase cinco anos de relação mais séria, acabada abruptamente por vontade (ou falta dela) da sua companheira, optou por desinvestir no sexo oposto. Não
  • 2. significa isto que tenha passado a ter, em alternativa, um olhar especial para os seus conspécimes masculinos. Apenas passou a fugir de compromissos como o Diabo da cruz. Os únicos a que ainda não tinha sido capaz de escapar eram aqueles que o seu editor lhe impunha. A pensar nisso, colocou a pen, seleccionou o Aleascript e iniciou a sua instalação. Concluída esta operação, a qual durou breves minutos, abriu o programa e fez o seu primeiro clique na tecla "enter", depois outro e ainda mais outro. Tal como combinado com o seu amigo Paulo, ao fim de cinco cliques completar-se-ia uma série de palavras com que ele deveria trabalhar. As palavras iam-se sucedendo: "SORTE", "HISTÓRIA", "SAÍDA", "IDEIA", "MÁQUINA". Roberto decidiu tentar escrever algo a partir destas 5 palavras. — “Aquele era o seu dia de sorte; finalmente, uma ideia brilhante iria permitir-lhe escrever a mais extraordinária história alguma vez escrita! Teria mesmo de resultar, pois era a única saída para acalmar o ansioso editor: uma máquina de escrita!” Olhou silenciosamente para o que tinha escrito. Não estava mal, não senhor. No entanto, não deixava de ser surpreendente a coincidência com os acontecimentos recentes. Aquela era a história dos seus últimos dias! Não quis dar muita importância àquele acaso, pois não passaria, naturalmente, disso. Aliás, estava convencido de que teriam sido os acontecimentos recentes a fazê-lo olhar para aqueles vocábulos daquela forma. Se quisesse, não seria difícil compor a história de forma completamente diversa. Experimentou, quanto mais não fosse para provar a si próprio que tinha razão. — “A gasolina estava mesmo no fim; por sorte, a menos de 500 metros esperava- o uma saída, com direito a posto de gasolina e tudo! Saiu, atestou o depósito e, enquanto esperava pela sua vez de pagar, entreteve-se a folhear alguns jornais expostos no escaparate. Uma história especialmente escabrosa chamou-lhe a atenção, pela ideia macabra do autor. Um jovem pegara numa máquina de roçar mato e entretivera-se a destruir todas as árvores que lhe apareceram pelo caminho..." Olhou para o que escrevera e sorriu. Como pensara, era tudo uma questão de orientação do pensamento. Finalmente, as ideias começavam a brotar e o seu editor, em breve, deixaria de lhe massacrar a cabeça!
  • 3. Largou a esferográfica, voltou ao teclado do seu computador e experimentou novamente o Aleascript. "BAR", "SOLTEIRO", "PAPAGAIO", "AVIÃO", "CANETA". — “O bar "O Solteiro" estava apinhado. Furou por entre aquela mole de gente que esfumaçava e conseguiu chegar ao balcão. Um papagaio colorido entretinha alguns clientes, apostados em fazê-lo falar. Um deles, visivelmente sob o efeito dos mais de cinco uísques já emborcados, fazia esvoaçar uma caneta como se de um avião se tratasse. “ Já vira muita coisa bem mais mal escrita. Poderia dar origem a uma história interessante. Decidiu experimentar outra combinação. “Solteiro há mais de 30 anos, tantos quantos os que tinha, Roberto entrou naquele bar, disposto a fazer mais uma das conquistas amorosas, ou melhor, sexuais a que dedicava grande parte dos seus tempos livres, que, convenhamos, eram todos. Impossível, de imediato, ignorar um autêntico avião que, sem qualquer constrangimento, falava com duas amigas com voz bem audível. Monopolizava de tal forma a conversa que mais parecia um papagaio, mas com imenso charme. Pegou num papel enrugado que trazia no bolso e numa caneta e rabiscou umas palavras meigas, pedindo a um empregado para entregar aquela missiva na mesa daquela mulher encantadora. Em pouco mais de duas horas já se encontravam a caminho do aeroporto, com destino a Las Vegas, para um típico casamento relâmpago.” Desta vez, Rodolfo empalideceu. Quando as coincidências são muitas, o escritor desconfia. Há um ano, aquela fora a sua história! Numa noite de copos, conhecera uma mulher num bar e, num impulso, voara para se casar na Capital do Jogo. Durara pouco, como quase sempre nestas circunstâncias, mas tivera a sua piada! Esta nova coincidência é que não era lá muito hilariante. Estaria a entrar em paranóia? — Não há duas sem três — pensou. — Experimentemos outra vez. — Com algum receio, lá recomeçou a clicagem. "JORNAL", "ÁFRICA", "MASSACRE"... Parou de clicar. Seria possível? Há cerca de 5 anos, tivera a sua primeira (e última) coroa de glória desde que abraçara a carreira jornalística, mas com que consequências! Numa viagem ao continente africano, enviado pelo jornal onde trabalhava há mais de 10 anos, descobrira, quase por acaso, uma conspiração governamental para matar todos os habitantes de uma dada etnia. Rodolfo tirara algumas fotos comprometedoras que lhe valeram o assassinato do colega que o acompanhou. Rodolfo escapou, mas a catanada
  • 4. que levou deixou-lhe uma recordação amarga, traduzida numa cicatriz com cerca de trinta centímetros na parte anterior da coxa direita. Como sempre, no meio de muito azar há sempre maneira de se ver uma ponta de sorte. Salvou-se o abono de família, mas por pouco. Por pressão internacional, o governo absolutista e déspota resignou, tendo, mais tarde, sido conseguida a condenação do presidente e dos seus correligionários. Rodolfo foi condecorado por bravura e bons serviços à humanidade mas nunca mais se aventurou em andanças deste tipo. Abandonou o jornalismo três anos depois mas não o gosto pelas letras. Dedicou-se à escrita ficcional, o que, convenhamos, não difere muito de grande parte da escrita jornalística. Clique, clique. “MEDALHA”, “EXONERAÇÃO”. Pois. Cá estava, definitivamente, a terceira. Duas com três. Pegou no telefone. A coisa estava a tornar-se demasiado séria e assustadora para a encarar sozinho. Como sempre acontecia nestas ocasiões, não teve dúvidas a quem ligar para desabafar e procurar algum apoio. — Estou? — perguntou uma feminina voz doce, embora nitidamente ensonada. — Teresa? Sou eu, o Rodolfo. Desculpa estar a ligar-te a esta hora, mas aconteceu-me uma coisa que não consigo explicar e… — Espero que seja suficientemente importante para me ligares às quatro da manhã, Rodolfo! Ou é mais um dos teus estados de alma por não resistires aos encantos de um qualquer rabo de saia? — perguntou-lhe, interrompendo-o, Teresa, mais do que habituada às confidências amorosas do amigo. — Não, Teresa, desta vez não tem nada a ver com mulheres. Ou melhor, acho que não tem, mas como me parece um caso de bruxaria, até talvez tenha, quem sabe! — Bruxaria? Tens a certeza de que não bebeste uns shots a mais? Estás em casa? — Sim, sim. Não bebi nada e estou em casa. Podes dar um salto aqui? É muito importante e estou certo de que te vai interessar bastante! — Eu, interessada em bruxas? Duvido! Olha, se elas não te estão a bater com a vassoura nem te estão a obrigar a provar uma qualquer poção para te transformar num ratinho, será que podias esperar até de manhã para me contares tudo com calma? Se estás muito assustado, então proponho--te que venhas cá dormir o resto da noite. No sofá, claro! Sabes onde está a chave, entra, deita-te e ao pequeno-almoço, que vais fazer para me compensares por me teres acordado a esta hora, falas-me dessas danadas que te querem encher de feitiços, vale?
  • 5. Rodolfo não pôde deixar de sorrir com a conversa da amiga. Fora sempre assim, a sua relação de amizade, com Teresa a pôr água na fervura de Rodrigo. Os seus amigos não conseguiam compreender como era possível um homem ter uma mulher como amiga, especialmente quando ambos eram descomprometidos e a mulher era aquela. Talvez fosse porque Teresa punha mesmo muita água na fervura… — Tens razão, Teresa. Estou mesmo com os nervos em franja com o que se está a passar, mas não me parece que corra o risco de acordar moído de pancada vassoural ou com um intrigante gosto exclusivo por queijo. No entanto, a tua proposta para passar aí o resto da noite é irrecusável. Mesmo no sofá. Em trinta minutos estou aí. Beijo.