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Revista eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo da Escola Superior de Teologia 
Volume 12 (ano 06, n. 01 ) –– janeiro-abril de 2007 
São Leopoldo –– RS 
Periodicidade Quadrimestral - ISSN 1678-6408 
http://www3.est.edu.br/nepp
Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia 
Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408
Coordenador Geral 
Prof. Dr. Oneide Bobsin 
Conselho Editorial 
Berge Furre - Universidade de Oslo 
Emil A. Sobottka - PUCRS 
Adriane Luísa Rodolpho – Escola Superior de Teologia 
Ricardo W. Rieth – Escola Superior de Teologia/ULBRA 
Edla Eggert - Unisinos 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 2 
ISSN: 1678-6408 
Responsável por esta edição 
Valério Guilherme Schaper e Kathlen Luana de Oliveira 
Capa desta edição 
Iuri Andréas Reblin 
Revisão 
Iuri Andréas Reblin, Kathlen Luana de Oliveira, Valério Guilherme Schaper. 
Editoração Eletrônica 
Iuri Andréas Reblin 
Esta versão em PDF é uma edição revista da edição original. 
Link Desta Edição: http://www3.est.edu.br/nepp/revista/012/ano06n1.pdf 
Protestantismo em Revista é um órgão do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP), 
que visa ser um canal de socialização de pesquisas de docentes e discentes da área de Teologia, 
Ciências das Religiões, abrangendo o espectro das Ciências Humanas e das Ciências Sociais Aplicadas, 
tanto de integrantes da Escola Superior de Teologia (EST) quanto de outras instituições. 
Protestantismo em Revista está sob a coordenação do Prof. Dr. Oneide Bobsin, titular da Cadeira de 
Ciências das Religiões da EST. 
A revista eletrônica Protestantismo em Revista é uma publicação quadrimestral (jan.-abr.; mai.-ago., 
set.-dez.), sendo que as três edições do ano são tradicionalmente planejadas em duas edições temáticas 
e uma edição livre. Comumente, a equipe de redação aceita textos até o final do segundo mês do 
quadrimestre e a publicação acontece normalmente na segunda quinzena do terceiro mês do 
quadrimestre, salvo exceções. Confira a data estipulada na grade do tópico “edições anteriores” no site 
da revista. 
Os trabalhos deverão ser enviados para o correio eletrônico do Núcleo de Estudos e Pesquisa do 
Protestantismo: nepp_iepg@yahoo.com.br. Consulte as normas no site da revista. Demais 
informações e edições anteriores, acesse o site (http://www3.est.edu.br/nepp)
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Sumário 
Editorial................................................................................................................................................. 4 
Textos: 
Emblemas da intolerância: Jean Calas, Jean Charles e a tolerância segundo Voltaire ............... 8 
Por Valério Guilherme Schaper 
Fronteiras da Intolerância ................................................................................................................. 20 
Por Mario Miranda Filho 
Tolerância Repressiva........................................................................................................................ 28 
Por Herbert Marcuse [Tradução de Kathlen Luana de Oliveira] 
A Tolerância e a ironia da trajetória protestante: refletindo sobre as intolerâncias na história 
do protestantismo, a partir de uma leitura da obra Dogmatismo  Tolerância de Rubem Alves 
............................................................................................................................................................... 59 
Por Kathlen Luana de Oliveira 
O Testemunho Histórico da Intolerância nos Documentos relacionados aos Direitos 
Humanos ............................................................................................................................................. 80 
Por Clemildo Anacleto da Silva 
Pedagogia da Tolerância ................................................................................................................... 99 
Por Thyeles Borcarte Strelhow 
O X da Questão: Evolução, alteridade e preconceito como desafios à tolerância - uma leitura 
a partir dos X-Men - ......................................................................................................................... 114 
Por Iuri Andréas Reblin 
Resenhas, Leituras e Prefácios de Obras: 
Prefácio à edição brasileira de O sentido e o Fim da Religião de Wilfred Cantwell Smith........ 126 
Por Oneide Bobsin 
Como citar esta revista.................................................................................................................... 129 
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Editorial 
A pergunta pelo intolerável traça as fronteiras éticas em todas as culturas. 
Nenhum povo constitui-se com base na total permissividade. É justamente a média 
entre o tolerável e o intolerável que determina os povos. 
O Ocidente ousou criar uma nova forma de colocar em relação estes termos 
essenciais. A história de autoconstituição da cultura ocidental é a história da criação 
de uma fronteira móvel quanto ao tolerável. Neste novo enfoque, intolerável é 
somente o que tende a constituir barreiras para o exercício do tolerável. 
Esta compreensão, que ganhou uma formulação clássica sob o tema da 
tolerância justamente durante as guerras de religião na Europa, na passagem dos 
séculos XVII para XVIII, tornou-se objeto de pesquisa de um projeto em curso na 
Escola Superior de Teologia. 
Porque móvel, a fronteira do tolerável no Ocidente constitui-se sempre de 
novo a partir de coordenadas altamente complexas, gerando dinâmicas inesperadas. 
A pesquisa se faz a partir de interesses éticos e também metodológicos. De um lado, 
permanece sempre aberta a pergunta pela melhor forma de ler as constituições de 
sentido que a fronteira móvel do tolerável engendra. De outro lado, a reflexão ética 
persegue a trilha das possíveis aplicações do saldo desta pesquisa. 
Aqui está reunida uma mostra das primeiras aproximações ao tema no bojo 
deste projeto e também através da contribuição de amigos/as cujas pesquisas estão 
em referência cruzada com a deste projeto. 
O primeiro texto é de Valério Guilherme Schaper que traz reflexões a partir 
de Voltaire e seu Tratado sobre a Tolerância. O autor pauta a discussão a partir de dois 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 4
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Jeans: Jean Calas (1762) e Jean Charles de Menezes (2005). Ambas histórias são 
marcadas por uma cruel intolerância. Com a crítica de Voltaire, o autor aborda o 
fundamentalismo presente nas religiões. Voltaire aponta para a necessidade da 
tolerância, “apanágio da natureza” conforme a razão, perguntando pela essência da 
religião. Tais considerações evocam a tolerância como assunto de discussão para os 
dias atuais. 
No texto seguinte, Mário Miranda Filho expõe sua preocupação com a 
intolerância como manifestação perversa. “Ser intolerante é instituir uma identidade 
(de Ego, de grupo), com o propósito de negar ao outro sua humanidade, sua 
dignidade”. O autor retrata a tradição filosófica que edificou a defesa da liberdade e 
da tolerância, entrecruzada com outras disciplinas, em especial, a história e a religião. 
O texto traz a tensão entre a realidade e a teoria a partir de duas histórias: a da 
pensadora Irshad Manji e a da refugiada Ayaan Hirsi Ali, esta última apresentada 
por Espinosa. Por fim, aponta para a necessidade de valorizar a reflexão teórica 
capaz de dar conta do relativismo, a fim de tentar “desmontar os mecanismos 
engenhosos” da “máquina de exclusão” da intolerância. 
O terceiro texto tem por título Tolerância Repressiva, de autoria de Herbert 
Marcuse (1898-1979), e foi traduzido para o português a partir da versão inglesa 
disponibilizada na Internet por Harold Marcuse, o qual cordialmente autorizou a 
publicação desta tradução nesta revista eletrônica (agradecemos desde já). Situando o 
contexto do liberalismo, Marcuse coloca em cheque a compreensão de tolerância. O 
autor afirma que tolerância requer intolerância frente a opiniões e atitudes devido às 
políticas predominantes. Tolerância apresenta-se como uma “meta partidária, uma 
prática e uma noção libertária subversiva”, como em suas origens, no começo do 
período moderno. Dissonante das “coisas bonitas” que a palavra tolerância evoca, 
tolerância está servindo a causa da opressão. 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 5
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Já Kathlen Luana de Oliveira coloca em discussão os desafios da tolerância 
dentro da trajetória do protestantismo. Evidencia que o protestantismo surgiu a 
partir de um espírito profético, mas ironicamente, na história, o ideal libertário se 
torna uma instituição repressora. A partir de uma leitura da obra de Rubem Alves, 
Dogmatismo e Tolerância, percebe-se que grande parte dessa ironia se deve a 
manutenção da reta doutrina como unidade institucional. O espírito profético, 
especialmente quando crítico e autocrítico, impulsiona uma compreensão de 
tolerância engajada na luta contra as injustiças. Tolerância evidencia divergências, 
evidencia a diversidade e não pode compactuar com ideologias repressivas, 
discriminatórias e exclusivistas. Assim, Rubem Alves aponta para o resgate do 
espírito profético e para o diálogo com o catolicismo para a edificação da tolerância. 
O texto seguinte é da autoria de Clemildo Anacleto da Silva e traz uma 
análise de documentos históricos que colaboraram no desenvolvimento do 
pensamento relacionado à liberdade e ao exercício da prática religiosa dentro da 
perspectiva dos Direitos Humanos. O autor destaca artigos e menções que 
cooperaram tanto para a tolerância quanto para a intolerância religiosa e ressalta a 
necessidade do reconhecimento e o respeito das diferenças como ato imprescindível 
para o exercício da tolerância e a obrigação do Estado em garantir através da 
educação e da legislação um tratamento igualitário e digno a todos os seres humanos. 
Para o autor, a intolerância é uma “questão de justiça”. 
Thyeles Borcarte Schleihow realiza uma leitura da obra Pedagogia da 
Tolerância, uma obra com reflexões e de diálogos de Paulo Freire sobre o respectivo 
tema. O autor descreve como Paulo Freire combina sua compreensão e sua prática 
pedagógica com a questão da tolerância e como a presente obra contribui para a 
construção epistemológica da paz e da tolerância. Para Paulo Freire, a tolerância é 
virtude da convivência humana. Isso significa conviver com o diferente em uma 
perspectiva dialógica, em cumplicidade, com vistas à cidadania. 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 6
Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia 
Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 
O último texto desta edição é da autoria de Iuri Andréas Reblin e aborda o 
tema da tolerância na trilogia cinematográfica dos super-heróis mutantes conhecidos 
como X-Men. O autor apresenta os conceitos antropológicos de evolução, alteridade e 
preconceito como obstáculos para o exercício da tolerância e indica a necessidade de 
uma interconexão entre as diferentes esferas sociais para a garantia da convivência 
pacífica entre os seres humanos. Por fim, o texto aponta para a prática do amor, 
segundo a compreensão do teólogo Søren Kierkegaard, como engrenagem-mestre de 
uma convivência tolerante e eqüitativa. 
A todos o nosso muito obrigado. Que a pesquisa avance e que seu produto 
seja um serviço à defesa da dignidade inalienável do ser humano. 
São Leopoldo, abril de 2007. 
Prof. Dr. Valério Guilherme Schaper 
Kathlen Luana de Oliveira 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 7
Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia 
Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 
Emblemas da intolerância: Jean Calas, Jean Charles e a 
tolerância segundo Voltaire 
Por Valério Guilherme Schaper* 
Resumo: 
O texto é uma apresentação do tratamento que Voltaire deu ao tema da intolerância a 
propósito de um caso que se tornou famoso na França no século XVIII. O caso envolve o 
julgamento público de um protestante calvinista que foi acusado de ter enforcado o próprio 
filho que, se supõe, pretendia passar para o catolicismo. A pretexto deste caso, Voltaire 
empreende uma leitura mordaz e irônica das práticas religiosas, cujo zelo enredam os 
cristãos em um emaranhado de contradições, que colocam a França numa situação caótica e 
sob o risco de se desintegrar política e economicamente. A análise ferina de Voltaire é um 
microscópio que amplia os labirintos insuperáveis do fanatismo no seio das religiões. O texto 
de Voltaire oportuniza ainda uma interessante reflexão sobre fatos atuais os quais recolocam 
a pergunta pela tolerância como condição indispensável da vida em sociedade. 
Palavras-chave: 
fanatismo, superstição, tolerância, intolerância, religião, Voltaire 
“[...] tanto é fácil ao fanatismo arrancar a vida à inocência, 
como é difícil à razão restituir-lhe a justiça”. 
Voltaire 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 8 
Prólogo 
* Doutor em teologia e professor de teologia sistemática e de ética da Escola Superior de Teologia em 
São Leopoldo. Membro da Comissão Teológica do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) e 
da Comissão Bilateral Católico-romana e evangélico-luterana, vem se dedicando no último ano a 
um projeto de pesquisa voltado para o tema da tolerância.
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Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 
A morte de Jean Charles de Menezes1, num metrô de Londres em 2005, 
converteu-se em um emblema do tipo de “fricções” que as recentes correntes 
migratórias vêm gerando pelo globo afora2. As grandes migrações que, no passado 
da humanidade, foram oportunidade para espalhar vida, combinando genes e 
culturas, converteram-se em ameaça à vida, às culturas. Jean Charles, não obstante o 
nome quase anglo-galês, entrou num padrão de suspeição étnico-cultural, acirrado 
pelos embates entre o Ocidente e o Oriente. 
Vítima do medo, Jean Charles tornou-se mais um personagem na longa 
história de um drama que ele sequer chegou a atinar ou, mesmo, entender. Presumo 
que o povo de Gonzaga, cidade onde nasceu Jean Charles, tampouco chegará a 
entender de fato a amplitude deste evento3. E se quiserem entender, como explicar a 
derrocada da tolerância num povo que tem como um dos seus pais intelectuais, John 
Locke, filósofo que contribuiu decisivamente para estabelecer o uso moderno do 
1 “A polícia britânica matou ontem o mineiro Jean Charles de Menezes, 27, na estação de Stockwell, 
no sul de Londres, após tê-lo confundido com terrorista ligado aos ataques da última quinta-feira 
na capital britânica. Ele era natural de Gonzaga, no interior de Minas Gerais, e vivia há cerca de 
quatro anos em Londres trabalhando como eletricista. Hoje, a Scotland Yard admitiu o erro e 
informou que o homem foi atingido cinco vezes na cabeça depois de ter se recusado a obedecer a 
ordens da polícia de parar dentro de um vagão do metrô.” Érica FRAGA. - Polícia britânica mata 
brasileiro por engano após confundi-lo com terrorista. Notícia publicada na Folha Online em 
23.07.2005. Notícia disponível em 
http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u86015.shtml, acessada em 02.04.07. 
2 Gonzaga, MG, vizinha da famigerada cidade de Governador Valadares - a cidade brasileira mais 
próxima dos EUA - tem nominalmente cerca de 5.482 habitantes. Fernanda MENA, Adriana 
CHAVES E Deborah GIANNINI. Morte choca cidade de 5.500 habitantes. 
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft2407200504.htm. Acessado em 28.07.05. Segundo 
Istoé Dinheiro, cerca de 1.500 jovens de Gonzaga estão espalhados pelos EUA e Europa. No Brasil, 
esse número quase chega à casa dos 3 milhões de brasileiras/os, que enviaram ao país, em 2004, 
um total de US$ 3,268 bilhões. Elaine COTTA. Amargo regresso. Disponível em 
http://www.terra.com.br/istoedinheiro/412/economia/amargo_regresso.htm. Acessado em 
28.07.05. 
3 Há pessoas da localidade que intuíram o problema, como indica a seguinte frase de uma moradora 
de 68 anos: “Isso vai continuar acontecendo enquanto a juventude se achar sem condições de 
crescer financeiramente por aqui mesmo”. Elaine COTTA. Amargo regresso. Disponível em 
http://www.terra.com.br/istoedinheiro/412/economia/amargo_regresso.htm. Acessado em 
28.07.05. 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 9
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conceito? Como explicar o assassinato de um jovem numa sociedade que foi 
admirada por Voltaire pela capacidade de aceitar a pluralidade da sociedade?4 
Voltaire e o caso Jean Calas 
Foi um equívoco de ordem semelhante5, uma morte sob o manto do 
cumprimento da justiça e da salvaguarda da sociedade, que motivou o filósofo 
Voltaire6 a escrever seu “Tratado sobre a Tolerância”. 
Em Toulouse, França, em 09.03.1762, Jean Calas, cujo primeiro nome também 
coincide emblemática e ironicamente com o do brasileiro, condenado pela justiça, 
morreu na “roda do suplício” por ter, assim supôs a justiça francesa, enforcado o 
próprio filho, Marc-Antoine. 
A história, no entanto, é complexa. A família Calas, negociante em Toulouse 
há mais de 40 anos, era protestante (calvinista) num local e numa época pouco 
favorável para as dissidências religiosas. Um filho havia abjurado do protestantismo. 
A cozinheira, há muitos anos na família, também era católica-romana. Havia, então, 
espaço para opção religiosa no seio da família. O filho morto não se ajustava ao 
4 VOLTAIRE, Tratado sobre a tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 22. 
5 As semelhanças param por aí. Jean Calas, bem ou mal, teve um julgamento e foi supliciado após ter 
se chegado a um veredicto. Jean Charles foi sumariamente assassinado. Um erro brutal! O 
julgamento que se seguiu não conseguiu atribuir responsabilidades nem culpas. O fato entrou para 
a nebulosa área do “acidente lamentável”. Ignora-se, conscientemente ou não, que os mecanismos 
de suspeição protetivos da sociedade Ocidental diante do Oriente Muçulmano estão disparando os 
mecanismos irracionais do medo coletivo, o medo como epidemia. Todos, e principalmente os que 
entrarem no padrão de suspeição étnico-cultural, são culpados até que se prove o contrário. A 
fronteira nebulosa entre motivações religiosas, políticas e econômicas é, contudo, muito 
semelhante. 
6 François Marie Arouet, mais conhecido pelo pseudônimo Voltaire, nasceu em 1694 e faleceu em 
1778. Foi filósofo e homem de letras e sua obra teve grande repercussão, ainda durante a sua vida. 
Deísta de forte influência empirista, Voltaire é um dos grandes nomes do Iluminismo francês. 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 10
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comércio e aspirava à magistratura, no que foi impedido por não obter os certificados 
de catolicidade romana. Desesperançado, imagina-se, enforcou-se. 
A multidão, que afluiu a casa no momento em que o corpo foi encontrado, 
não interpretou assim. A multidão histérica entendeu que o Pai (auxiliado pela mãe, 
pelo irmão e por um amigo de visita) matou o filho porque ele pretendia abjurar da 
sua fé e converter-se ao catolicismo no dia seguinte. No desvario, imaginou-se um 
complô dos protestantes. Arrastado ao julgamento, Jean Calas foi condenado num 
julgamento de poucas provas materiais e grande divisão dos magistrados. 
Dos treze conselheiros, oito votaram a favor da morte. Mesmo com um 
resultado tão apertado, “[...] era preferível supliciar um velho calvinista inocente a 
expor oito conselheiros [...] a admitirem que haviam se enganado”7, como se disse na 
época. Voltaire coloca da seguinte forma o dilema: ou o fanatismo religioso da 
multidão induziu e coagiu a magistratura a fazer supliciar um inocente, ou o 
fanatismo religioso do pai (mãe, irmão, amigo) levou-o a estrangular o filho. Num 
caso ou noutro, o excesso religioso gerou um crime. 
Voltaire decidiu apresentar ao público suas reflexões sobre a tolerância, 
“apanágio da natureza” segundo a razão, tendo como tema central uma pergunta 
acerca da essência da religião: ser bárbara ou caridosa. Por que este remoto incidente 
deveria nos interessar hoje? Voltaire diz que a desgraça de Calas deveria provocar a 
“maior impressão”, como se fosse um “trovão irrompendo na serenidade de um belo 
dia”. 
As questões que se colocam hoje a partir do caso de Jean Charles, assim como 
as que se colocavam no caso de Jean Calas, apontam para um amálgama gigantesco 
de motivações religiosas, étnicas, culturais, econômicas, políticas que se cruzam num 
7 VOLTAIRE, 2000, p. 13. 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 11
Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia 
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mosaico assustador, cuja imagem se nega terminantemente a se entregar a qualquer 
forma superficial de compreensão. 
Neste teatro de absurdos, um clamor ora forte, ora frágil, ora racional, ora 
emotivo, parece convergir para a idéia da tolerância, como uma espécie de 
“apanágio” residual - celebra Voltaire! - de um mundo que navega sobre incertezas. 
Tolerância parece circular entre nós como uma espécie de “últimos dos moicanos” 
conceituais, relicário de valores e direitos inalienáveis. Apresentam-nos a tolerância 
como “tabu”, novo interdito moral capaz de refundar a civilização, recriar as 
instituições. Teria a tolerância tanto poder? Afinal em que consiste a tolerância para 
que dela se possa esperar tanto? Nos fatos narrados acima, ela não se apresenta tão 
convincente quanto derrotada? Quem pôs e põe a circular este conceito? De onde ele 
vem? Para onde nos conduz? Trata-se de um tesouro ou mero ouro de tolo? 
Sem assumir o compromisso de responder pontualmente estas questões, 
queremos nos deter aqui nas reflexões de Voltaire sobre aquele caso do passado, na 
esperança de que o presente seja iluminado. 
Um terreno movediço 
Para se ter uma breve idéia retrospectiva das belicosas relações entre 
católicos-romanos e huguenotes (protestantes franceses) na França, basta lembrar 
que enfretamentos armados com muito derramamento de sangue que atravessaram 
os séculos XVI e XVII. Os primeiros protestantes aparecem na França em 1520, 
embora livros de Lutero já circulassem em Paris em 1519. Até que se firmasse o Édito 
de Saint-Germain (1570), dando direito de culto aos protestantes em duas localidades 
nos subúrbios de Paris e controle militar sobre 04 cidades, assistiu-se a vários 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 12
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enfrentamentos8 (1562-3, 1567-8, 1568-70). Entretanto, a frágil trégua consagrada pelo 
Édito de Saint-Germain durou dois anos. Em 1572, a tentativa mal-sucedida de 
eliminar um dos maiores líderes protestantes, Almirante Coligny, desencadeou, na 
noite do dia 24 de agosto de 1572, um massacre de protestantes, que passou à história 
como “Noite de São Bartolomeu”. Novamente os enfretamentos militares voltaram 
(1573, 1574-6, 1577, 1580). Finalmente, chegou-se ao Édito de Nantes, que previa 
liberdade religiosa, política e militar para protestantes. Em 1610, Richelieu persegue 
os protestantes e retira seus direitos políticos e militares, restando a liberdade 
religiosa. Em 1685, Luís XIV aboliu também a liberdade religiosa dos protestantes, 
ocasionando uma massiva fuga de protestantes e, obviamente, uma evasão de 
capitais9. Este cenário todo é amplamente intensificado pela crescente influência do 
jansenismo10, que apresentava vários pontos de contato doutrinário com o 
calvinismo. 
Diferentemente do que ocorria em outros países (Alemanha, Inglaterra, 
Holanda) na Europa no século XVIII, a França não oferecia muitas possibilidades de 
interpretação religiosa dentro do cristianismo. A opção real dava-se entre o 
catolicismo-romano de forte cunho jesuítico e a posição racionalista que crescia e que 
desaguaria, com os resultados conhecidos, na Revolução Francesa (1789). Neste 
complexo cenário de enfrentamentos, é preciso situar os fatos imediatos que 
motivam Voltaire a escrever e os demais eventos da questão religiosa, a maioria deles 
arrolados na argumentação de Voltaire. 
8 O primeiro édito de tolerância de 1562, fruto mais palpável do colóquio de Poissy, durou menos de 
um mês (janeiro a fevereiro de 1562). LINDBERG, Carter. As reformas na Europa. São Leopoldo: 
Sinodal, 2001. p. 342-5. 
9 LINDBERG, 2001, p. 345-54; WALKER, W. História da Igreja Cristã. São Paulo: ASTE, 1981, v.2. p. 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 13 
110-20. 
10 Tendo iniciado sob a égide do bispo de Ypres, Cornelius Jansen (1585-1638), o jansenismo, de forte 
influência agostiniana e ênfase na predestinação do ser humano para a salvação e para a perdição, 
expandiu-se na França graças ao trabalho de Jean Duvergier de Hauranne, abade de Saint-Cyran, 
Antoine Arnauld e, mais tarde, de Pasquier Quesnel (1634-1719). Blaise Pascal (1623-1662) esteve 
ligado a este movimento.
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Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 
A essência da religião e as razões da tolerância 
Voltaire inicia sua argumentação mostrando que o espírito faccioso e a 
perseguição causaram muitos males. Ele sugere que a indulgência e a liberdade de 
consciência jamais causariam males como aqueles e demonstra, por inúmeros 
exemplos históricos, que a intolerância causa mais males do que a tolerância. Em 
suma, ele contesta qualquer possibilidade de fundar a intolerância em algum suposto 
direito natural ou humano. O princípio universal, argumenta ele, é o de fazer ao 
outro o que se deseja para si. 
Com ironia e mordacidade, Voltaire investe contra um suposto direito à 
intolerância por parte da religião dominante contra os heréticos. Ele demonstra as 
contradições em que incorre a intolerância, pois afirmá-la supõe condenar os pais da 
fé cristã e dar razão aos que supliciaram tantos mártires. Deveria uma religião divina 
reinar pelo ódio? Pergunta Voltaire. Ele afirma que quanto mais divina uma religião, 
tanto menos compete aos seres humanos comandá-la. Isto cabe a Deus. O suposto 
direito da intolerância chegaria ao cúmulo de encher o céu de criminosos, pois seria 
tanto mais santo aquele que mais hereges matasse. Voltaire tem em mente aqui a 
fatídica noite de São Bartolomeu que, segundo dados aproximados, significou a 
morte violenta de 20 mil protestantes. 
A partir de um atento exame da Escritura, Voltaire passa por textos 
complexos do Antigo Testamento e do Novo Testamento, contestando as leituras que 
procuravam encontrar ali apoio para as práticas intolerantes. Voltaire assegura que, 
no Antigo Testamento, se percebe que Deus não somente tolerava outros povos como 
tinha por eles um cuidado particular. Do exame do Novo Testamento, sobretudo, do 
ensino de Jesus, Voltaire conclui ali é pregada a doçura, a paciência e a indulgência. 
Ele aconselha aos que querem imitar Cristo que observem bem, pois aos imitadores 
cabe mais atitude de mártir do que de algoz. Ele insiste que é preciso ter razões 
muito mesquinhas para querer encontrar na Escritura fundamento para intolerância. 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 14
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Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 
O único acaso em que a intolerância é de direito humano é quando se deve resistir 
aos intolerantes e sua ações pretensamente bem intencionadas. 
O autor encerra conclamando todos a uma tolerância universal, pois somos 
todos filhos/as do mesmo Pai e criaturas do mesmo Deus. As condenações e 
exclusões mútuas não competem ao ser humano, pois significaria antecipar o juízo de 
Deus. Para finalizar, ele dirige-se não mais às pessoas, mas ao próprio Deus em 
oração, clamando por misericórdia pelos erros dos seres humanos e pedindo para 
que as pessoas ajudem a suportar o fardo da vida e para que se lembrem de que são 
irmãos/ãs. 
O fanatismo é uma superstição! 
Deísta e defensor da razão como norma primeira da vida, Voltaire afirma 
que é estranho que, em uma época de tantos progressos da razão, o fanatismo tenha 
prevalecido. Otimista, ele quer crer que estas convulsões súbitas do fanatismo sejam 
estertores de morte. Ele se debate tanto mais se apercebe de sua condição de 
prisioneiro condenado a uma morte eminente. Contudo, ele admite a fraqueza da 
razão e a insuficiência das leis. Por isso mesmo entende que cabe, nesta hora, o uso 
imparcial da razão para restituir as coisas aos seus lugares, pois, não obstante, fraca, 
Voltaire crê na força persuasiva da razão e aponta para a necessidade de cultivar os 
seus frutos, posto ser “impossível impedi-los de nascer”11. 
Como todo pensador das luzes, Voltaire trava batalha cerrada contra toda 
forma de obscurantismo. Ele entende que não pode dar trégua a qualquer forma de 
“superstição”. 
11 VOLTAIRE, 2000, p. 115. 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 15
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A religião abusada torna-se superstição: “Quando os homens não têm noções 
corretas da divindade, as idéias falsas as substituem, assim como nos tempos difíceis 
trafica-se com moeda ruim, quando não se tem a boa”12. A superstição, diz Voltaire, 
funciona para a religião como a astrologia para a astronomia, é “a filha muito 
insensata de uma mãe muito sensata”13. Ambas subjugaram a terra por muito tempo. 
E o ser humano prefere viver afogado em superstições a viver sem religião. Em certo 
sentido, admite Voltaire, a religião é até mesmo necessária em qualquer lugar em que 
haja sociedade, pois, enquanto a lei protege contra crimes conhecidos, a religião 
protege contra os crimes secretos14. A religião funcionaria como uma espécie de 
trincheira ética, um tipo de freio moral contra as pulsões interiores. 
De toda as superstições, a mais perigosa, afirma Voltaire, é a de “odiar o 
próximo por suas opiniões”15. Voltaire afirma que, no cristianismo, pessoas são 
mortas por causa de “parágrafos”, “opiniões”, enfim, “crenças”16. Quando isso 
ocorre, a superstição degenera-se no fanatismo, que supõe ser criminoso todo o que 
pensa diferente, todo o que não concorda integralmente. No seu entender, o motor 
gerador da intolerância em toda sua extensão é o fanatismo17. O fanatismo, ensina 
Voltaire, é inimigo da natureza; a tolerância é o apanágio da natureza, apanágio dos 
razoáveis, dos não fanáticos18. O fanatismo é irracional. Só os não fanáticos merecem 
a tolerância, pois todo o fanatismo perturba a sociedade e configura-se como crime 
passível de punição por parte do estado. Não é possível, então, como dito, tolerar o 
fanático. 
Para a superstição do fanatismo, como para todas as outras em geral, vale o 
princípio da razão iluminista: só há uma forma de reduzir o número de fanáticos, 
12 VOLTAIRE, 2000, p. 113. 
13 VOLTAIRE, 2000, p. 113. 
14 VOLTAIRE, 2000, p. 113. 
15 VOLTAIRE, 2000, p. 116. 
16 VOLTAIRE, 2000, p. 34; 37. 
17 VOLTAIRE, 2000, p. 132. 
18 VOLTAIRE, 2000, p. 105; 132. 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 16
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maníacos: “submeter esta doença do espírito ao regime da razão, que esclarece lenta 
mais infalivelmente, os homens”19. 
Voltaire não define exatamente o que seria a tolerância. Em alguns 
momentos, o texto sugere que seja um dispositivo legal para o correto funcionamento 
do estado de direitos20. Em outros momentos, soa como uma virtude a ser 
cultivada21. Em outras ocasiões, o texto sugere simplesmente que, por ser um 
“apanágio da natureza”, cujo corolário é o regime da razão, a tolerância seria um 
fruto inevitável em termos de saldo civilizatório que deve apenas ser administrado22. 
Voltaire não menciona os mecanismos educacionais como instrumento para alcançar 
a tolerância. Theodor Adorno, pensador contemporâneo de influência neo-iluminista, 
insiste no poder da educação contra a possibilidade de repetição da barbárie, como a 
de Auschwitz. Ele não crê que a educação impeça o surgimento de mentes fanáticas, 
facciosas, criminosas, mas pode impedir que pessoas, abaixo deles, estejam 
suscetíveis a praticar atos que as escravize, destituindo-as de sua dignidade 
humana23. 
Como diz o texto em epígrafe, Voltaire está ciente de que é mais fácil ao 
fanatismo macular a inocência e atacar a vida, do que o mero recurso à razão 
devolver-lhe justiça. No caso Calas, em 09 de março de 1765, no mesmo dia do 
suplício de Jean Calas, três anos depois, a justiça reconheceu o equívoco e inocentou 
a família. Além disso, a família contou ainda com o direito da beneficência e foi 
indenizada pelo estado. Obviamente, a justiça feita à família Calas não reparou os 
danos provocados pelo fanatismo. Somente a tolerância pode evitar que a terra seja 
devastada pelo fanatismo e que os irreparáveis males decorrentes fustigue as 
consciências e destrua vidas. 
19 VOLTAIRE, 2000, p. 30. 
20 VOLTAIRE, 2000, p. 105. 
21 VOLTAIRE, 2000, p. 13; 127. 
22 VOLTAIRE, 2000, p. 30. 
23 ADORNO, Theodor. Educação após Auschwitz. In: COHN, Gabriel (Org.). Sociologia. 1986. p. 45. 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 17
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A religião com vórtice 
Voltaire volta-se contra uma leitura por demais estreita da tradição cristã no 
âmbito do catolicismo-romano levada a cabo pelos jesuítas. Neste sentido, ele faz 
coro ao jansenistas em seu combate aos jesuítas. Voltaire advoga a dissolução desta 
ordem, pois, no seu entender, parte dos males que assolam a França está na 
intolerância dos jesuítas, no seu fanatismo24. Voltaire percebe que o fanatismo 
implícito nos dois lados do enfrentamento, mas especialmente criticado por ele na 
posição jesuíta, estava gerando problemas de outra ordem: econômica25. 
Assim, ele espalha pelo livro várias considerações de ordem prática que 
mostram claramente que, em primeiro lugar, a concórdia entre as religiões, tendo 
como referência a tolerância, era benéfica para a sociedade em termos materiais26. Em 
segundo lugar, ele indica regiões da França onde a prevalência do luteranismo 
coincide com a opulência das províncias27. Em terceiro lugar, ele indica que o fim das 
disputas poderia significar o repatriamento de muitas fortunas que se foram por 
medo28. Em quarto lugar, ele frisa que até mesmo a mais corriqueira negociação fica 
impossibilitada de fazer parte do pressuposto de que o outro é réprobo29. Em quinto 
lugar, ele insiste, que se o cenário não mudar manufaturas francesas que geram 
muitos empregos e divisas continuarão saindo para a Holanda, de onde não 
voltarão30. 
24 VOLTAIRE, 2000, p. 26. 
25 VOLTAIRE, 2000, p. 27. 
26 VOLTAIRE, 2000, p. 22, 25. 
27 VOLTAIRE, 2000, p. 23. 
28 VOLTAIRE, 2000, p. 29-30; 32. 
29 VOLTAIRE, 2000, p. 124. 
30 VOLTAIRE, 2000, p. 130-1. 
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Pomeau, na introdução ao livro de Voltaire, chama a atenção para o fato de 
que o conflito religioso permite que tensões de outra ordem se manifestem31. Outros 
autores chamaram a atenção para as tentativas de descaracterização religiosa destes 
eventos que se deram na França em torno do protestantismo32. O fato é que, como 
bem observou, Walker, nos Países Baixos e na França, os elementos políticos e 
econômicos foram mesclando-se cada vez mais ao religioso, com crescente destaque 
para este último33. Os argumentos de Voltaire, embora tragam um forte viés 
filosófico, deixam transparecer os reais benefícios da tolerância para a vida social: a 
paz e o respeito que permitem o tranqüilo desenvolvimento econômico da sociedade. 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 19 
Epílogo 
A título de encerramento vale citar estas palavras de Voltaire, porque 
caracterizam o seu enfoque filosófico ao mesmo tempo em que indicam a ocultação 
das motivações materiais da tolerância: 
Esse texto sobre a tolerância é uma petição que a humanidade 
apresenta muito humildemente ao poder e à prudência. Semeio um 
grão que algum dia poderá produzir uma grande colheita. Esperemos 
tudo do tempo, da bondade do rei, da sabedoria de seus ministros e 
do espírito de razão que começa a espalhar por toda parte sua luz.34 
31 POMEAU René. Introdução. In: VOLTAIRE, 2000, p. vii. 
32 LINDBERG, 2001, p. 349-50. 
33 WALKER, 1981, p. 112. 
34 VOLTAIRE, 2000, p. 136.
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Fronteiras da Intolerância* 
Por Mario Miranda Filho** 
“Se todos nós que viemos do Nietzscheismo, do nihilismo ou do 
realismo histórico disséssemos em público que estávamos errados e 
que existem valores morais e que no futuro devemos fazer o que for 
necessário para implanta-los e ilustra-los, não lhes parece que isto 
seria o começo de uma esperança?” 
A. Camus, Cadernos de Notas, 1942-1951. 
‘Fronteiras da Intolerância’ é uma designação voluntariamente ampla, como 
deve ser um título genérico cuja função é abrir espaço para a reflexão e o debate, mas 
por isso mesmo portadora de algumas ambigüidades. Dentre estas, destaco a mais 
óbvia: na expressão acima, estaremos designando fatos ou idéias? A questão pode 
parecer algo escolástica ou especiosa, já que fatos sem idéias são cegos e idéias 
desvinculadas de fatos nos transformam em nefelibatas, mas, como esperamos 
justificar a seguir, cremos que terá sua utilidade. 
Parto do pressuposto de que nosso seminário visa antes um esclarecimento 
conceitual e, portanto, é nesse sentido que encaminharei minha intervenção. Mas, 
tendo em vista que não se podem deixar de lado ‘os fenômenos’, procurarei trabalhar 
os conceitos vinculados a exemplos factuais. 
* Comunicação apresentada por Mario Miranda Filho no Seminário Interno do LEI, em 24/09/05, na 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 20 
USP. 
** Mário Miranda Filho é graduado e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1973 e 
1986, respectivamente). Atualmente, é Professor-Doutor da Universidade de São Paulo. Tem 
experiência na área de Filosofia, com ênfase em História da Filosofia, atuando principalmente nos 
seguintes temas: Augusto Conte, filosofia antiga. (Apresentação extraída do CV-Lattes)
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Do ponto de vista empírico, a intolerância é uma manifestação perversa, 
como cremos, de uma auto-afirmação excludente, particularista, tribalista, que 
institui fronteiras apenas com o propósito de demarcar o território do mesmo em 
relação ao outro, do nosso em relação ao deles – ‘os infiéis’ – numa operação em que 
os segundos são sempre potencial ou realmente excluídos, senão eliminados. Ser 
intolerante é instituir uma identidade (de Ego, de grupo), com o propósito de negar 
ao outro sua humanidade, sua dignidade. 
Diante assim dos fatos brutos, e brutais, da intolerância empírica, como se 
orienta preliminarmente nosso pensamento? Como opera diante dessa percepção ou 
mais precisamente: como podemos nos capacitar para, primeiramente, definir a 
‘coisa’ e quais os recursos de que dispomos em nossa cultura filosófica para tentar 
desmontar os mecanismos engenhosos desta máquina de exclusão a serviço da 
barbárie? 
Com essa questão, passamos para o plano propriamente conceitual e, ao 
mesmo tempo, tocamos em cheio no subtema deste seminário: ‘Intolerância e 
Multidisciplinaridade’, pois todos sabemos que, desde seu início, a filosofia procurou 
produzir conceitos aptos a cumprir esta dupla tarefa de definição e desmonte. Não 
podemos, pois, compreender esse antigo exercício filosófico sem recorrer antes a 
outra disciplina: a História. 
Mas há mais: quando estudamos a filosofia em seu berço, na Grécia, os 
historiadores mostram que ela nasce numa civilização constituída de Poleis (cidades-estado). 
Não vou repetir aqui o que já tive ocasião de expor em outros seminários do 
LEI, lembro apenas de Fustel de Coulanges, citando Tito-Lívio: “Não há um lugar 
nesta cidade que não esteja impregnado de religião...os deuses habitam nela”. 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 21
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Assim, define a cidade antiga: “Toda cidade era um santuário... podia ser 
chamada de cidade santa”1. E acrescenta: “É portanto um erro singular, entre todos 
os erros humanos acreditar que nas cidades antigas o homem gozava de liberdade. 
Não tinha sequer a mais ligeira idéia dela. Não julgava que pudesse existir direito em 
frente da cidade e dos seus deuses”2. Os historiadores nos asseguram, assim, de que 
a pátria da filosofia é uma comunidade marcada por uma mentalidade 
eminentemente religiosa, que restringe ou exclui a liberdade individual. Em outros 
termos: a filosofia nasce numa ‘sociedade fechada’, para empregarmos um conceito 
moderno. 
Estamos, então, operando no entrecruzamento de três disciplinas: filosofia, 
história e religião. Nesse sentido, refletindo sobre as dificuldades com que se 
defrontou a filosofia em seu nascimento, Merleau-Ponty dizia a propósito de um dos 
primeiros atos de intolerância contra ela que: “Para arrumar na terra um lar para a 
filosofia foram precisos justamente filósofos como Sócrates”3. Séculos mais tarde, B. 
Espinosa, no século de ouro da Holanda, reencontraria, mutatis mutandis, o mesmo 
obstáculo e anotava no seu Tratado Teológico Político que seu propósito era o de obter 
a liberdade para filosofar. Ambos os filósofos, em épocas diferentes, afirmam a 
filosofia em confronto com sociedades onde predomina a mentalidade hegemônica 
da religião. 
Podemos perceber, então, a existência de um fio, nem sempre muito visível, 
mas sólido, que vai dos antigos aos modernos, passando pelos medievais, que se 
caracteriza por ser a marca de uma grande tradição filosófica que podemos designar 
de Republicana, Liberal, ou Iluminista. (Ela envolve distintas áreas do conhecimento. 
Alem das três mencionadas mencionemos a Filologia ou a Hermenêutica, prestimosa 
quando se trata de saber, p. ex., se a palavra árabe, do Alcorão, ‘Hur’ significa 
1 COULANGES, F. de. A Cidade Antiga. Lisboa, 1919, v.1. p. 242. 
2 COULANGES, 1919, v.1. p. 404. 
3 MERLEAU-PONTY, M. Éloge de la Philosophie. Paris: Gallimard, 1960. p. 46. 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 22
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‘virgens de olhos negros’ ou ‘uvas’, já que ninguém daria sua vida em troca de um 
além onde receberia apenas uvas). Foi essa mesma tradição que consolidou nos 
tempos modernos a defesa da liberdade e da tolerância, que precederam até mesmo a 
instituição dos Direitos Naturais consagrados, como direitos universais do homem, 
nas nossas constituições republicanas. 
A História também narra o que ocorre quando defensores da liberdade de 
pensamento e de discurso se põem a praticá-la em sociedades fechadas. Narra 
também quanto tempo – e não só tempo, é claro – foi necessário para ‘abrirmos’ 
nossas sociedades de modo a fazê-las aceitar o pluralismo. Nada disso é novo. Mas, 
talvez, hoje, a pergunta mais interessante é a que indaga acerca da situação inversa a 
essa mencionada, ou seja: O que ocorre quando práticas corriqueiras em sociedades 
fechadas se introduzem, graças às imigrações, em sociedades abertas? 
Essa questão pode servir para reduzir a ambigüidade presente em nosso 
tema ‘Fronteiras da Intolerância’, uma vez que ela nos permite visualizar o problema 
em sua dupla dimensão: teórica e empírica. Para tratar dessa questão, vou recorrer a 
dois exemplos que, ambos, provêm da história contemporânea, do calor da hora. Ela 
diz respeito a uma boa parte da humanidade, talvez, até mais do que a metade dela: 
as mulheres. 
Nosso primeiro exemplo é o da pensadora Irshad Manji, jornalista, que 
publicou, em 2003, The Trouble with Islam Today, a muslim call for reform in her faith4. 
Irshad é de origem Ugandense e sua família se exilou fugindo de Idi Amin Dada para 
o Canadá em 1972. É negra, assume publicamente sua condição de lésbica e se define 
como uma Islâmica ‘Refusenik’, empregando o termo usado na extinta URSS para 
designar os judeus soviéticos que lutavam por sua liberdade contra o totalitarismo. 
Seu livro, escrito sob forma de depoimento, é a história de sua libertação de um 
4 MANJI, I. The Trouble with Islam Today. New York: St. Martins’s Grifin, 2003. 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 23
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sistema teocrático especialmente perverso para as mulheres expostas, entre outras 
barbáries, à mutilação sexual. 
Nela vemos a história da transição entre as fronteiras da teoria e da prática, 
da passagem por uma doutrinação – a que foi submetida na Madrassa Islâmica de 
Vancouver – para a real educação para a liberdade que ela encontrou nessa mesma 
cidade, mas agora numa escola de ensino ‘Republicano’, onde aprendeu a “Pensar, 
pesquisar, falar, trocar, discutir, desafiar e repensar”5, enfim, a conquistar o que I. 
Kant chamou de maioridade em O que é Ilustração. Sem abandonar sua fé, ela passou 
a investigar a origem do esclerosado dogmatismo que interditava o pensamento aos 
Islâmicos e descobriu a existência de uma tradição de livre pensamento 
independente que era anterior a este fanatismo e que se designa em árabe pelo termo 
‘Ijtihad’. 
Essa tradição, conta-nos, surgiu e se desenvolveu no Islã de 750 a 1250 e se 
define como uma ‘cultura da tolerância’ entre árabes e judeus na Espanha e no 
Iraque, sede do império Islâmico, onde Cristãos, Judeus e Muçulmanos traduziram e, 
assim, devolveram vida aos textos da filosofia grega6. Irshad pôde assim descobrir a 
idade de ouro islâmica no século XII e a obra de Moses ben Maimônides, filósofo e 
médico judeu que escrevia em árabe (conta-nos que Ben Gurion aprendeu árabe para 
lê-lo no original). Cita esta passagem do Guia dos Perplexos: “Está na natureza do 
homem prezar o que lhe é familiar e os ensinamentos em que foi educado, e temer o 
que é estrangeiro. A pluralidade das religiões e sua mútua intolerância derivam do 
fato de que as pessoas permanecem fiéis a educação que receberam”. E cita também o 
correspondente árabe de Maimônides, o filósofo cordobês Averróes7. 
5 MANJI, 2003, p. 19. 
6 Sobre as semelhanças entre a situação da filosofia no mundo grego e no mundo islâmico-judeu, v. 
STRAUSS, Leo. How to begin to study medieval philosophy. In: The Rebirth of Classical Political 
Rationalism. Chicago, 1989, p. 207-226. 
7 Sobre filosofia medieval, v. a seguinte coletânea: LERNER, Ralph, MADHI, Muhsin (Ed.). Medieval 
Political Philosophy. New York: Cornell Un. Press, 1991. 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 24
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Bem, é ocioso dizer o quanto Irshad sofreu e vem sofrendo todo tipo de 
perseguição por suas idéias e práticas e o quanto lhe tem sido valioso o encontro 
desta tradição ‘Ijtihad’, graças à qual a filosofia grega se transmitiu aos autores 
medievais, como Maimônides e Averróes, que Espinosa tomaria como interlocutores 
fundamentais em sua obra que lança as bases para o Iluminismo moderno. É 
Espinosa que nos leva para nosso segundo exemplo. 
Trata-se também de outra refugiada, proveniente igualmente da África – 
Somália – e também islâmica, embora tenha se tornado, atualmente, atéia: Ayaan 
Hirsi Ali. Resumindo muito: Ali fugiu e se asilou na Holanda onde pôde realizar seus 
estudos na Universidade de Leiden, onde freqüentou cursos de Filosofia Política e 
publicou, em 2004, The Cage of Virgins. Tornou-se famosa por ter feito um filme – 
‘Submissão, parte I’ – juntamente com o cineasta Leo van Gogh, que foi assassinado 
em novembro de 2004, pelo fundamentalista islâmico, nascido na Holanda, 
Muhammed Bouyeri, filho de imigrantes marroquinos. Nesse filme, eles apresentam 
versos do Alcorão projetados sobre os corpos nus de mulheres. Acusada de 
sensacionalismo, ela retruca que “estes corpos são o motivo de metade da nação da 
Arábia Saudita não ter permissão para dirigir automóveis”. 
Ali passou pela mesma doutrinação que Irshad recebera e que ensinava 
ambas a odiar passionalmente os judeus. Diz Ali: “eu que até meus 16 anos nunca 
tinha sequer visto um israelita”8. Hoje, já na condição de deputada, seu propósito é o 
de “desafiar a auto-imagem da elite européia como tolerante, enquanto que sob seu 
nariz mulheres vivem como escravas”. Por suas posições, ela foi denominada de 
“fundamentalista do iluminismo” e diz que o Islã precisa de seu próprio Voltaire. De 
fato, reivindica ser herdeira, em linha direta, do iluminismo Holandês, constatando 
que, naquela época, a maioria dos filósofos era ‘Allochtonen”9, e não obstante terem 
8 Citada por Christopher Caldwell, no artigo “Daughter of Enlightenment”, no New York Times, 
April 3, 2005 . V. agora de ALI, Ayaan Hirsi. Infidel. New York: Free Press, 2007 e BURUMA, Ian. 
Murder in Amsterdã. New York: The Penguin Press, 2006. 
9 Holandês para imigrantes, o contrário de autóctones. 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 25
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sido odiados, não eram perseguidos, nem assassinados e reconhece em Espinosa sua 
maior inspiração no Ocidente. 
É ela que enuncia uma questão com a qual encerro. Diz que, em breve, 
Amsterdã, uma cidade artística, terá 60% de sua população composta de cidadãos de 
origem não-ocidental. Quando a municipalidade, nessas condições, tiver que votar 
sobre a distribuição de recursos, enfrentando dúvidas, tais como, se os fundos devem 
ser destinados a preservar a arte ou construir mesquitas, esses cidadãos poderiam, 
talvez, perguntar por que deveriam pagar por esta ‘estúpida pintura’? Ela vê aqui 
apenas um exemplo das dificuldades de convivência postas numa democracia 
moderna cujos representantes tendem a se refugiar num pragmatismo que evita o 
debate sobre valores. O perigo, diz ela, é que a Holanda se veja dividida entre duas 
extremas direitas: uma islâmica e outra não-islâmica. 
Nossos dois exemplos ilustram a riqueza de instrumentos de que dispomos 
no Ocidente, desde os primórdios da nossa história – em particular a doutrina do 
Direito Natural – para combater as tentativas, em suas várias modalidades, de 
intolerância, sempre à espreita em nossas sociedades. Cremos que a rememoração 
deste acervo de direitos, que constitui nossa tradição filosófica iluminista, é tanto 
mais importante quanto, hoje, a chamada filosofia pós-moderna tem procurado 
‘desconstruir’, isto é, desqualificar, essa mesma tradição, acusada de metafísica, 
universalista, etnocêntrica, logocrática, etc. Em suma, estamos assistindo hoje a um 
emaranhamento de fronteiras, tanto no sentido literal, geográfico-étnico, quanto no 
plano teórico, e sabemos bem que, se não dispusermos de uma boa reflexão teórica 
que seja especialmente capaz de dar conta do relativismo, estamos condenados a 
enfrentar as facetas negativas do multiculturalismo e da intolerância com a mesma 
precariedade com que hoje lidamos com furacões. 
Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 26
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Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 
Tolerância Repressiva* 
Por Herbert Marcuse** 
[Tradução: Kathlen Luana de Oliveira***] 
Este ensaio é dedicado a meus estudantes na Universidade de Brandeis. 
Este ensaio examina a idéia de tolerância em nossa sociedade industrial 
avançada. A conclusão alcançada é de que a realização do objetivo da tolerância 
requer intolerância perante as políticas predominantes, atitudes, opiniões, e a 
extensão da tolerância às políticas, atitudes e opiniões que são proscritas ou 
suprimidas. Em outras palavras, hoje a tolerância apresenta-se novamente como o 
que era em suas origens, no começo do período moderno -uma meta partidária, uma 
prática e uma noção libertária subversiva. Contrariamente, o que hoje é proclamado e 
* Texto fornecido por Mark, e convertido em html por Harold Marcuse, em 6 oct. 2004, para Herbert 
Marcuse homepage; tradução alemã; veja também minha página Marcuse Haters page. Disponível 
na Internet: http://www.marcuse.org/herbert/pubs/60spubs/65repressivetolerance.htm. Este 
texto foi originalmente publicado em: WOLFF, Robert Paul; MOORE JR, Barrington e MARCUSE, 
Herbert. A Critique of Pure Tolerance. Boston: Beacon Press, 1969, p. 95-137. Este livro de 123 
páginas foi publicado originalmente em 1965; A presente edição inclui o “Pós-escrito” de Herbert 
Marcuse de 1968. Os conteúdos de A Critique of Pure Tolerance são os seguintes: “Além de 
Tolerância” - Robert Paul WOLFF; “Tolerância e a Perspectiva Científica”- Barrington MOORE JR.; 
“Tolerância Repressiva” - Herbert MARCUSE. 
** Herbert Marcuse nasceu em Berlim em 19/07/1898. Estudou Letras, Filosofia e Economia nas 
Universidades de Berlim e Freiburgo. Concluiu seus estudos de pós-doutoramento na 
Universidade de Freiburgo em 1922. Foi assistente de Martin Heidegger e admirador de seu 
pensamento filosófico. Migrou para os Estados Unidos em 1934 e tornou-se membro do Instituto 
de Pesquisa Social da Universidade de Columbia em Nova Yorque. Em 1940, tornou-se cidadão 
estadunidense. Foi professor de Ciências Políticas na Universidade de Brandeis em Waltham, 
Massachussetts, de 1958 a 1965, e professor na Universidade da Califórnia em San Diego, de 1965 a 
1976. Dentre as suas obras se destacam: Studien über Autorität und Familie (1936), Eros and 
Civilization (1955), One Dimensional Man (1964), Tolerância Repressiva (1965), An Essay on Liberation 
(1969) e The Aesthetic Dimension (1978). 
*** Teóloga brasileira, mestranda no Instituto Ecumênico de Pós-Graduação (IEPG), em São Leopoldo, 
RS, com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Sua 
pesquisa está direcionada à argumentação teológica dos Direitos Humanos na sociedade moderna. 
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praticado como tolerância está, em muitas de suas manifestações mais efetivas, 
servindo a causa da opressão. 
O autor está completamente atento que, no momento, não existe nenhum 
poder, nenhuma autoridade, nenhum governo que traduziria tolerância libertária em 
prática, mas ele acredita que é a tarefa e o dever do intelectual recordar e preservar as 
possibilidades históricas que parecem ter se tornado possibilidades utópicas - que é a 
sua tarefa quebrar a concreticidade da opressão a fim de abrir o espaço mental no 
qual esta sociedade pode ser reconhecida como o que é e faz. 
Tolerância é um fim em si mesmo. A eliminação da violência e a redução da 
supressão ao grau exigido para proteger o ser humano e os animais da crueldade e 
da agressão são as condições prévias para a criação de uma sociedade humanitária. 
Uma sociedade assim ainda não existe; o progresso rumo a ela é talvez mais do que 
aquele antes apreendido pela violência e na supressão numa escala global. Como 
impedimentos contra a guerra nuclear, como ação policial contra a subversão, como 
ajuda técnica na luta contra o imperialismo e o comunismo, como métodos de 
pacificação em massacres neocoloniais, a violência e a supressão são promulgadas, 
praticadas e defendidas igualmente por governos democráticos e autoritários, e as 
pessoas sujeitas a esses governos são educadas a sustentar tais práticas como 
necessárias para a preservação do status quo. A tolerância é estendida às políticas, às 
condições e aos modos de comportamento que não deveriam ser tolerados porque 
eles estão impedindo, se não destruindo, as chances de se criar uma existência sem 
medo e miséria. 
Esse tipo de tolerância fortalece a tirania da maioria contra a qual os liberais 
autênticos protestaram. O locus político da tolerância mudou: enquanto for mais ou 
menos sorrateira e constitucionalmente afastada da oposição, ela é transformada em 
um comportamento compulsório com respeito às políticas estabelecidas. A tolerância 
é alterada de um estado ativo a um estado passivo, de prática em não-prática: laissez- 
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faire das autoridades constituídas. São as pessoas que toleram o governo, o qual em 
troca tolera a oposição dentro da moldura determinada pelas autoridades 
constituídas. 
A tolerância com respeito ao que é radicalmente maldade agora se apresenta 
como bondade, porque serve à coesão do todo em direção à abundância ou à 
superabundância. A toleração do entorpecimento sistemático, semelhante em 
crianças e em adultos por meio da publicidade e da propaganda, a liberação da 
destrutibilidade em condutas agressivas, no recrutamento e no treinamento das 
forças especiais, a tolerância impotente e benevolente perante a completa decepção 
no merchandizing, inútil, e a obsolescência planejada não são distorções e aberrações, 
elas são a essência de um sistema que fortifica a tolerância como um meio para 
perpetuar a luta pela existência e para suprimir as alternativas. As autoridades em 
educação, em valores morais, e em psicologia esbravejam contra o aumento da 
delinqüência juvenil; porém elas são menos vociferantes contra a apresentação 
orgulhosa - em palavras, ações e imagens - de mísseis cada vez mais poderosos, 
foguetes, bombas - a delinqüência madura de uma civilização inteira. 
De acordo com uma proposição dialética, é o todo que determina a verdade - 
não é no sentido que o todo é anterior ou superior a suas partes, mas é no sentido 
que a sua estrutura e função determinam toda a relação e a condição particular. 
Assim, dentro de uma sociedade repressiva, até mesmo os movimentos progressistas 
ameaçam se transformar no seu oposto até o ponto em que eles passam a aceitam as 
regras do jogo. Pode-se considerar um caso mais controverso: o exercício de direitos 
políticos (como votar, escrever carta à imprensa, a senadores, etc., demonstrações de 
protesto com uma renúncia prévia da contra-violência) em uma sociedade com total 
administração serve para fortalecer essa administração através do testemunho da 
existência de liberdades democráticas, as quais, na realidade, mudaram o seu 
conteúdo e perderam a sua eficácia. Nesse caso, a liberdade (de opinião, de 
assembléia, de expressão) se torna um instrumento para absolver a servidão. E ainda 
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(e só aqui a proposição dialética mostra sua plena intenção) a existência e a prática 
dessas liberdades mantêm uma condição prévia para a restauração da sua função de 
oposição original, contanto que o esforço para transcender (freqüentemente 
imposição-própria) suas limitações seja intensificado. Geralmente, a função e o valor 
da tolerância dependem da igualdade predominante na sociedade na qual a 
tolerância é praticada. A tolerância por si mesma estava sujeita a anular critérios: sua 
extensão e seus limites não podem ser definidos nos termos da respectiva sociedade. 
Em outras palavras, a tolerância é um fim em si mesmo somente quando ela é 
verdadeiramente universal, praticada pelos governadores como também pelos 
governados, pelos senhores como também pelos camponeses, pelos xerifes como 
também por suas vítimas. E tal tolerância universal só é possível quando nenhum 
inimigo real ou alegado exigir a educação e o treinamento das pessoas para a 
violência militar e para a destruição no interesse nacional. Tão logo quanto essas 
condições não prevaleçam, as condições da tolerância estão “loaded”: elas são 
determinadas e definidas pela desigualdade institucionalizada (que é certamente 
compatível com a igualdade constitucional), i.e., pela estrutura de classe da 
sociedade. Em uma sociedade assim, a tolerância é de facto limitada no chão dual da 
violência legalizada ou da supressão (polícia, forças armadas, guardas de todos os 
tipos) e da posição privilegiada segurada pelos interesses predominantes e por suas 
“conexões”. 
Essas limitações de fundo da tolerância normalmente são anteriores as 
limitações explícitas e judiciais como as definidas pelos tribunais, pelos costumes, 
pelos governos, etc. (por exemplo, “perigo claro e presente”, ameaça para a 
segurança nacional, heresia). Dentro da moldura de uma estrutura social assim, a 
tolerância pode ser seguramente praticada e proclamada. Ela possui dois tipos: (1) a 
toleração passiva de atitudes e idéias estabelecidas e fortificadas, mesmo se o seu 
efeito prejudicial sobre o ser humano e a natureza sejam evidentes, e (2) a tolerância 
ativa, a tolerância oficial concedida à direita bem como à esquerda, aos movimentos 
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de agressão bem como aos movimentos de paz, os grupos de ódio assim como os 
grupos humanitários. Eu chamo esta tolerância não-partidária de “abstrata” ou 
“pura” já que ela se abstém de tomar partido - mas fazendo assim, na verdade, ela 
protege a máquina já estabelecida de discriminação. 
A tolerância que aumentou o alcance e o conteúdo da liberdade sempre foi 
partidária - intolerante perante os protagonistas do status quo repressivo. O assunto 
era só o estágio e a extensão da intolerância. Na sociedade liberal firmemente 
estabelecida da Inglaterra e dos Estados Unidos, a liberdade de expressão e de 
assembléia foram concedidas até mesmo aos inimigos radicais da sociedade, 
contanto que eles não fizessem a transição da palavra para ação, do discurso para a 
ação. 
Confiando nas efetivas limitações de fundo impostas por sua estrutura de 
classe, a sociedade parecia praticar tolerância genérica. Mas a teoria liberal já tinha 
colocado uma importante condição à tolerância: era “aplicar apenas a seres humanos 
na maturidade das suas faculdades”. John Stuart Mill não só fala de crianças e 
menores; ele elabora: “Liberdade, como um princípio, não tem nenhuma aplicação a 
qualquer estado de coisas anterior à época quando a espécie humana tornou-se capaz 
de ser aprimorada pela discussão livre e igualitária”. Anterior àquele tempo, os seres 
humanos ainda poderiam ser bárbaros, e “o despotismo é um modo legítimo de 
governo que entra em acordo com bárbaros, desde que o fim seja para a melhoria 
deles, e os meios sejam justificados pela real conseqüência daquele fim”. As palavras 
freqüentemente citadas de Mill têm uma implicação menos familiar, da qual depende 
o seu significado: a conexão interna entre liberdade e verdade. Há uma compreensão 
que a verdade é o fim da liberdade, e a liberdade precisa ser definida e limitada pela 
verdade. Agora, por causa da verdade, em que compreensão pode estar a liberdade? 
A liberdade é autodeterminação, autonomia - esta é quase uma tautologia, mas uma 
tautologia que é o resultado de uma série inteira de julgamentos sintéticos. A 
liberdade estipula a habilidade para se determinar a própria vida: para ser capaz de 
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determinar o que fazer e o que não fazer, o que suportar e o que não suportar. Mas o 
conteúdo dessa autonomia nunca é o contingente, o indivíduo particular como o que 
ele realmente é ou é casualmente; mais propriamente, é o indivíduo como ser 
humano que é capaz de ser livre junto com os outros. E o problema de tornar 
possível tal harmonia entre cada liberdade individual e a do outro não é aquilo que é 
encontrado num acordo entre competidores, ou entre liberdade e lei, entre o interesse 
geral e individual, nem entre o bem-estar comum e privado em uma sociedade 
estabelecida, mas é de criar a sociedade na qual o ser humano não é mais escravizado 
por instituições que viciam a sua autodeterminação desde o princípio. Em outras 
palavras, a liberdade ainda será criada até mesmo para a mais livre das sociedades 
existentes. E a direção na qual isso deve ser buscado, e as mudanças institucionais e 
culturais que podem ajudar a atingir a meta são, pelo menos em uma civilização 
desenvolvida, compreensíveis, quer dizer, elas podem ser identificadas e projetadas, 
com base na experiência, através da razão humana. 
Na interação entre teoria e pratica, soluções verdadeiras e falsas tornam-se 
distinguíveis - nunca com a evidência da necessidade, nunca como o positivo, mas 
apenas com a certeza de uma chance debatida e razoável, e com a força persuasiva 
do negativo. Para o verdadeiro positivo está a sociedade do futuro e, 
conseqüentemente, está além da definição e da árida determinação, enquanto que o 
positivo existente é aquilo que deve ser superado. Mas a experiência e o 
entendimento da sociedade existente podem ser bem capazes de identificar o que não 
conduz a uma sociedade livre e racional, o que impede e distorce as possibilidades 
de sua criação. Liberdade é liberação, um processo histórico específico na teoria e na 
prática, e como tal tem o seu certo e o seu errado, a sua verdade e a sua falsidade. 
A incerteza da possibilidade nessa distinção não anula a objetividade 
histórica, mas necessita da liberdade de pensamento e de expressão como condições 
prévias para encontrar o caminho para a liberdade - necessita de tolerância. De 
qualquer forma, essa tolerância não pode ser indiferente e uniforme perante os 
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conteúdos de expressão, nem em palavra nem em ação; ela não pode proteger 
palavras falsas e ações erradas, demonstrando que elas contradizem e contrariam as 
possibilidades de liberação. Tal tolerância indiferente é justificada em debates 
inofensivos, em conversa, em discussão acadêmica; ela é indispensável ao 
empreendimento científico, à religião privada. Mas a sociedade não pode ser 
indiferente, onde a pacificação da existência, onde a liberdade e a felicidade por si 
mesmas estão em jogo: aqui, certas coisas não podem ser ditas, certas idéias não 
podem ser expressas, certas políticas não podem ser propostas, certo comportamento 
não pode ser permitido sem tornar a tolerância um instrumento para a continuidade 
da servidão. 
O perigo da “tolerância destrutiva” (Baudelaire), da “neutralidade 
benevolente” com respeito à arte foi reconhecido: o mercado que absorve igualmente 
bem (embora com freqüentes e súbitas flutuações) arte, anti-arte, e não-arte, todos os 
estilos conflituosos possíveis, escolas, formas, abastece um “receptáculo complacente, 
uma garganta amigável”1, na qual o impacto radical da arte, o protesto da arte contra 
a realidade estabelecida é engolido. De qualquer forma, a censura da arte e da 
literatura é regressiva sob todas as circunstâncias. A oeuvre [obra] autêntica não é e 
não pode ser um suporte da opressão, e a pseudo-arte (que como tal pode ser um 
suporte) não é arte. A arte encontra-se contra a história, porém, ela resiste à história 
que tem sido a história da opressão, pois a arte submete a realidade às leis que são 
diferentes daquelas estabelecidas: as leis da Forma que criam uma realidade 
diferente - negação do estabelecido até mesmo onde a arte descreve a realidade 
estabelecida. Mas em sua luta com a história, a arte se sujeita à história: a história 
entra na definição da arte e entra na distinção entre a arte e a pseudo-arte. Dessa 
maneira, acontece o que uma vez era arte se torna pseudo-arte. Formas prévias, 
estilos e qualidades, modos prévios de protesto e recusa não podem ser recapturados 
dentro ou contra uma sociedade diferente. Há casos onde uma oeuvre autêntica leva 
1 Edgar WIND. Art and Anarchy. London: Faber, 1963. 
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uma mensagem política regressiva - Dostoievski é um caso relevante. Entretanto, a 
mensagem é anulada pela própria oeuvre: o conteúdo político regressivo é absorvido, 
aufgehoben [suprimido] na forma artística: no trabalho como literatura. 
A tolerância à liberdade de expressão é o modo de aperfeiçoamento, de 
progresso na liberação, não porque não há nenhuma verdade objetiva, o 
aperfeiçoamento deve necessariamente ser um acordo entre uma variedade de 
opiniões, mas porque há uma verdade objetiva que pode ser descoberta, averiguada 
apenas no aprendizado e na compreensão daquilo que é e daquilo que pode e 
deveria ser feito por causa do aperfeiçoamento de uma parte da humanidade. Esse 
“dever” comum e histórico não é imediatamente evidente, não está à mão: ele tem 
que ser descoberto ao “cortar completamente”, “dividir”, “quebrar em pedaços” (dis-cutio) 
o material dado - separando o certo e o errado, o bom e o ruim, o correto e o 
incorreto. O sujeito cuja “melhoria” depende de uma prática histórica progressiva é 
cada ser humano enquanto ser humano, e essa universalidade é refletida na 
discussão que, a priori, não exclui nenhum grupo ou indivíduo. Mas até mesmo o 
caráter inclusivo da tolerância liberal era, pelo menos na teoria, baseado na 
proposição de que os seres humanos eram indivíduos (potencialmente) que poderiam 
aprender a ouvir e a ver e poderiam sentir por eles mesmos, desenvolver os seus 
próprios pensamentos, agarrar os seus verdadeiros interesses, direitos e capacidades, 
também contra a opinião e a autoridade estabelecida. Essa era a razão da liberdade 
de expressão e de assembléia. A toleração universal torna-se questionável quando 
sua razão já não prevalece, quando a tolerância é administrada para indivíduos 
manipulados e doutrinados que papagueiam a opinião dos seus mestres como se 
fosse a sua própria, para eles heteronomia se tornou autonomia. 
O telos da tolerância é a verdade. É evidente que a partir do registro histórico, 
os porta-vozes autênticos da tolerância tiveram mais em mente uma e outra verdade 
daquela da lógica proposicional e da teoria acadêmica. John Stuart Mill fala da 
verdade que é perseguida na história e que não triunfa sobre a perseguição em 
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virtude do seu “poder inerente”, que, na realidade, não tem nenhum poder inerente 
“contra o calabouço e a estaca”. E ele enumera as “verdades” que eram cruelmente e 
prosperamente liquidadas nos calabouços e à estaca: a de Arnold de Brescia, de Fra 
Dolcino, de Savonarola, do Albigensians, Waldensians, Lollards, e Hussites. A 
tolerância é a primeira e a principal para a causa dos hereges - o caminho histórico 
rumo a humanitas aparece como heresia: alvo da perseguição pelos poderes que são. 
Contudo, a heresia por si mesma não é símbolo da verdade. 
O critério do progresso na liberdade de acordo com a qual Mill julga esses 
movimentos é a Reforma. A avaliação é ex post, e a sua lista inclui a oposição 
(Savonarola também teria queimado Fra Dolcino). Até mesmo a avaliação ex post é 
contestável sobre sua verdade: a história corrige o julgamento - tarde demais. A 
correção não ajuda às vítimas e não absolve seus executores. Contudo, a lição é clara: 
a intolerância atrasou o progresso e prolongou a matança e a tortura de inocentes por 
centenas de anos. Isso revira o caso da tolerância “pura”, indiferente? Há condições 
históricas nas quais tal a toleração impede a liberação e multiplica as vítimas que são 
sacrificadas ao status quo? A garantia indiscriminada de liberdades e de direitos 
políticos pode ser repressiva? Tal tolerância pode servir para conter a mudança social 
qualitativa? 
Eu discutirei essa pergunta apenas com referência aos movimentos políticos, 
às atitudes, às escolas de pensamento, às filosofias que são “políticas” no sentido 
mais amplo - afetando a sociedade como um todo, transcendendo expressivamente a 
esfera da privacidade. Acima de tudo, eu proponho uma substituição no foco da 
discussão: ela não estará apenas preocupada, e nem fundamentalmente, com a 
tolerância perante os extremos radicais, as minorias, os subversivos, etc., mas antes 
estará preocupada com a tolerância perante as maiorias, perante a opinião pública e 
oficial, perante os protetores estabelecidos da liberdade. Neste caso, a discussão pode 
ter como um quadro de referência apenas uma sociedade democrática na qual as 
pessoas, como indivíduos e como membros de organizações políticas e outras, 
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participam na construção, na sustentação, e na mudança de políticas. Em um sistema 
autoritário, as pessoas não toleram - elas suportam as políticas estabelecidas. 
Sob um sistema constitucionalmente garantido e (geralmente e também sem 
muitas e claras exceções) praticado são tolerados liberdades e direitos civis, a 
oposição e a dissensão, a menos que elas propagem a violência e/ou a exortação para 
a organização da subversão violenta. A hipótese subjacente é de que a sociedade 
estabelecida é livre, e que nenhum aprimoramento, até mesmo uma mudança na 
estrutura e nos valores sociais, ocorreria no curso normal dos eventos, preparados, 
definidos, e testados na discussão livre e igualitária, na feira aberta de idéias e bens2. 
Agora recordando a passagem de John Stuart Mill, eu chamei a atenção a premissa 
escondida nessa suposição: discussão livre e igualitária pode cumprir a função 
atribuída a ela somente se for expressão racional e se for desenvolvimento de 
pensamento independente, livre do doutrinamento, da manipulação, da autoridade 
estranha. A noção de pluralismo e dos poderes contraditórios não é nenhum 
substituto para essa exigência. A pessoa poderia construir um estado em teoria, na 
qual uma multidão de pressões diferentes, interesses, e autoridades compensam um 
ao outro e resultam em um interesse verdadeiramente geral e racional. Todavia, essa 
péssima construção ajusta uma sociedade na qual os poderes são e permanecem 
desiguais e até mesmo aumentam o seu peso desigual quando eles tomam o seu 
próprio curso. Essa construção ajusta até pior quando a variedade de pressões unifica 
e coagula uma totalidade subjugadora, integrando os poderes compensatórios 
particulares em virtude de um padrão crescente de vida e uma concentração 
crescente de poder. Então, o trabalhador cujo real interesse entra em conflito com o 
da administração, o consumidor comum cujo real interesse entra em conflito com o 
do produtor, o intelectual cuja vocação entra em conflito com aquilo que os seus 
2 Eu desejo reiterar para a discussão seguinte que, de fato, a tolerância não é indiferente e “pura” até 
mesmo na sociedade mais democrática. As “limitações de fundo” declaradas na página [2 deste 
livro?] restringem a tolerância antes de ela iniciar o processo. A estrutura antagônica da sociedade 
manipula as regras do jogo. Aqueles que estiverem contra o sistema estabelecido estão a priori em 
uma desvantagem a qual não é removida pela toleração das suas idéias, discursos, e jornais. 
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empregadores constatam por eles mesmos, submetem os intelectuais a um sistema 
contra o qual eles são impotentes e parecem irracionais. A idéia de alternativas 
disponíveis evapora dentro de uma dimensão totalmente utópica onde ela se sente 
em casa, pois uma sociedade livre é de fato irreal e indefinivelmente diferente da 
existente. Sob essas circunstâncias, qualquer melhoria pode acontecer “no curso 
normal dos eventos” e sem a subversão é provável que seja uma melhoria na direção 
determinada pelos interesses particulares que controlam o todo. 
Justamente por isso, essas minorias que se esforçam por uma mudança do 
todo propriamente dito, sob ótimas condições que raramente prevalecem, serão 
deixadas livres para deliberar e discutir, para falar e reunir-se - e serão deixadas 
inofensivas e desamparadas diante da maioria subjugadora que milita contra a 
mudança social qualitativa. Essa maioria é firmemente fundamentada na crescente 
satisfação das necessidades e da co-ordenação mental - e tecnológica – a qual 
testemunha o desamparo geral de grupos radicais em um sistema social que funciona 
- bem. 
Dentro da democracia abundante, prevalece a discussão abundante, e dentro 
da moldura estabelecida, ela é tolerante a uma grande escala. Todos os pontos de 
vista podem ser ouvidos: o Comunista e o Fascista, a Esquerda e a Direita, o branco e 
o Negro, os militantes a favor do armamento e do desarmamento. Além do mais, os 
debates infindavelmente prolongados a respeito da mídia, da opinião estúpida que é 
tratada com o mesmo respeito que a inteligente, dos desinformados que podem falar 
tanto quanto o informado, e da propaganda que anda junto com a educação, a 
verdade com a falsidade. Essa toleração pura do sentido e do absurdo está justificada 
pelo argumento democrático de que ninguém, nem em grupo nem individualmente, 
está em posse da verdade e está capacitado para definir o que é certo e errado, bom e 
ruim. Por essa razão, todas as opiniões competitivas devem ser submetidas “às 
pessoas” para sua deliberação e escolha. Mas eu já sugeri que o argumento 
democrático implica numa condição necessária, a saber, que as pessoas devem ser 
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capazes de deliberar e de escolher com base no conhecimento, que elas têm que ter 
acesso à informação autêntica, e que, nessa base, a avaliação delas deve ser o 
resultado do pensamento autônomo. 
No período contemporâneo, o argumento democrático para a tolerância 
abstrata tende ser invalidado pela invalidação do próprio processo democrático. A 
força libertária da democracia era a possibilidade que ela ofereceu à dissensão 
efetiva, no indivíduo como também na escala social, sua abertura para formas 
qualitativamente diferentes de governo, de cultura, de educação, de trabalho - da 
existência humana em geral. A toleração da discussão livre e do direito igualitário da 
oposição era definir e esclarecer as diferentes formas de dissensão: sua direção, seu 
conteúdo, sua perspectiva. Mas com a concentração do poder econômico e político e 
a integração de opostos em uma sociedade que usa a tecnologia como um 
instrumento de dominação, a dissensão efetiva é bloqueada onde pudesse emergir 
livremente; na formação de opinião, na informação e na comunicação, no discurso e 
na assembléia. Sob o controle da mídia monopolizadora - eles mesmos, os meros 
instrumentos de poder econômico e político - uma mentalidade é criada para a qual o 
certo e o errado, o verdadeiro e o falso são predefinidos onde quer que eles afetem os 
interesses vitais da sociedade. Antes de toda expressão e comunicação, isso é um 
assunto de semântica: o bloqueio da dissensão efetiva, do reconhecimento do que 
não é do sistema governante o qual começa na linguagem que é difundida e 
administrada. O significado das palavras é severamente fixado. A persuasão racional, 
a persuasão para o oposto é tudo, mas é impedida. As avenidas de entrada são 
fechadas ao significado de palavras e a idéias diferentes das estabelecidas - 
estabelecidas pela publicidade dos poderes que existem, e verificado na sua prática. 
Outras palavras podem ser ditas e ouvidas, outras idéias podem ser expressas, mas, à 
proporção volumosa da maioria conservadora (fora de tais enclaves como a 
intelligentsia), elas são imediatamente “avaliadas” (i.e. automaticamente entendidas) 
em termos da linguagem pública - uma linguagem que determina “a priori” a 
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direção na qual se move o processo de pensamento. Assim o processo de reflexão 
finaliza onde começou: nas condições e nas relações determinadas. Autovalidando-se, 
o argumento da discussão repele a contradição, porque a antítese é redefinida nos 
termos da tese. Por exemplo, tese: nós trabalhamos para paz; antítese: nós nos 
preparamos para a guerra (ou até mesmo: nós empreendemos a guerra); unificação 
de opostos; preparar-se para a guerra é trabalhar para a “paz”. A paz é redefinida 
como necessária, na situação predominante, incluindo na preparação para a guerra 
(ou até mesmo a guerra) e nessa forma orwelliana, o significado da palavra “paz” é 
estabilizado. Dessa forma, o vocabulário básico da linguagem orwelliana opera a 
priori como categorias de entendimento: pré-formando todo o conteúdo. Essas 
condições invalidam a lógica da tolerância que envolve o desenvolvimento racional 
do significado e impede o fechamento do significado. Conseqüentemente, a 
persuasão através da discussão e da igual apresentação de opostos (até mesmo onde 
realmente é, igual) facilmente perde a sua força libertária como fatores de 
entendimento e de aprendizado; mais provavelmente eles estão distantes de 
fortalecer a tese estabelecida e de repelir as alternativas. 
A imparcialidade até o extremo, o tratamento igual dos assuntos 
competitivos e conflituosos realmente é uma exigência básica para a tomada de 
decisão no processo democrático - é uma exigência igualmente básica para definir os 
limites da tolerância. Mas em uma democracia com organização totalitária, a 
objetividade pode cumprir uma função muito diferente, a saber, fortalecer uma 
atitude racional que tende a obliterar a diferença entre o verdadeiro e o falso, entre a 
informação e o doutrinamento, entre o certo e o errado. Na realidade, a decisão entre 
opiniões contrárias foi tomada antes que a apresentação e a discussão se colocassem 
a caminho-feito, não por causa de uma conspiração ou de um patrocinador ou de um 
editor, nem por qualquer ditadura, mas antes pelo “curso normal dos eventos” que é 
o curso de eventos administrados e pela mentalidade moldada nesse curso. Também 
aqui, é o todo que determina a verdade. Então a decisão se afirma, sem qualquer 
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violação aberta da objetividade, em tais coisas como a composição de um jornal (com 
o rompimento da informação vital em pedaços permeados por material estranho, 
itens irrelevantes, relegando algumas notícias radicalmente negativas a um lugar 
obscuro), na justaposição de anúncios deslumbrantes com horrores turbulentos, na 
introdução e na interrupção da transmissão dos fatos por comerciais esmagadores. O 
resultado é uma neutralização de opostos, uma neutralização, porém, que toma lugar 
sobre as bases firmes da limitação estrutural da tolerância e dentro de uma 
mentalidade pré-formada. Quando uma revista imprime lado a lado uma 
reportagem negativa e uma positiva do FBI, ela cumpre honestamente as exigências 
da objetividade: todavia, as possibilidades são de que o positivo vença, porque a 
imagem da instituição está gravada profundamente na mente das pessoas. Ou, se um 
repórter informa a tortura e o assassinato de trabalhadores de direitos civis no 
mesmo tom não emotivo que ele usa para descrever a bolsa de valores ou o tempo, 
ou com a mesma grande emoção com que ele anuncia os seus comerciais, então tal 
objetividade é espúria - mais, ela ofende a humanidade e a verdade por estar 
tranqüila onde alguém deveria estar enfurecida, por abster-se da acusação onde a 
acusação está nos próprios fatos. A tolerância expressada em tal imparcialidade serve 
para minimizar ou até mesmo para absolver a supressão e a intolerância 
predominante. Se a objetividade tem qualquer coisa a ver com a verdade, e se 
verdade for mais que um assunto da lógica e da ciência, então este tipo de 
objetividade é falso, e esse tipo de tolerância é desumano. E se é necessário quebrar o 
universo estabelecido do significado (e a prática incluída nesse universo) a fim de 
possibilitar ao ser humano descobrir o que é verdadeiro e falso, essa imparcialidade 
enganosa teria que ser abandonada. As pessoas expostas a essa imparcialidade não 
são nenhuma tabulae rasae, elas são doutrinadas pelas condições sob as quais elas 
vivem e pensam e as quais elas não transcendem. Para permitir a elas tornarem-se 
autônomas, acharem por elas mesmas o que é verdadeiro e o que é falso para os seres 
humanos na sociedade existente, eles teriam que ser libertados do doutrinamento 
predominante (que já não é reconhecido como doutrinamento). Mas isso significa 
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que a tendência teria que ser invertida: eles teriam que adquirir informações 
inclinadas na direção oposta. Porque os fatos nunca são imediatamente dados e 
nunca imediatamente acessíveis; eles são estabelecidos, “mediados” por aqueles que 
os fizeram; a verdade, “a plena verdade” ultrapassa esses fatos e requer a ruptura 
com a sua aparência. Essa ruptura - condição prévia e símbolo de toda a liberdade de 
pensamento e de expressão - não pode ser realizada dentro de uma moldura 
estabelecida da tolerância abstrata e da objetividade espúria, porque essas são 
precisamente os fatores que pré-condicionam a mentalidade contra a ruptura. 
As barreiras reais que a democracia totalitária ergue contra a eficácia da 
dissensão qualitativa são fracas e suficientemente agradáveis comparadas com as 
práticas de uma ditadura que reivindica educar as pessoas na verdade. Com todas as 
suas limitações e distorções, a tolerância democrática está abaixo de todas as 
circunstâncias mais humanitárias do que uma intolerância institucionalizada que 
sacrifica os direitos e as liberdades das gerações vivas por causa das gerações futuras. 
A questão é se essa é a única alternativa. Eu agora tentarei sugerir a direção na qual 
uma resposta pode ser buscada. Em todo caso, o contraste não está entre a 
democracia na teoria e a ditadura na teoria. 
Democracia é uma forma de governo que ajusta tipos muito diferentes de 
sociedade (isso se confirma até mesmo para uma democracia com voto universal e 
igualdade antes da lei), e os custos humanos de uma democracia, sempre e em todos 
lugares, são aqueles extorquidos pela sociedade cujo governo ela é. O seu alcance se 
estende a toda forma de exploração normal, de pobreza, e de insegurança para as 
vítimas de guerras, de ações policiais, de ajuda militar, etc. com as quais a sociedade 
está comprometida - e não só com as vítimas dentro de suas próprias fronteiras. 
Essas considerações nunca podem justificar a extorsão de diferentes sacrifícios e as 
diferentes vítimas em nome de uma melhor sociedade futura, mas elas reconhecem o 
peso dos custos envolvidos na perpetuação de uma sociedade existente contra o risco 
de promover alternativas que ofereçam uma possibilidade razoável de pacificação e 
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liberação. Certamente, de nenhum governo pode ser esperado que fortaleça sua 
própria subversão, mas em uma democracia assim o direito é adquirido pelas 
pessoas (i.e. pela maioria das pessoas). Isso significa que os modos, nos quais uma 
maioria subversiva poderia se desenvolver, não deveriam ser bloqueados sobre os 
quais, e se eles são bloqueados por uma repressão organizada e pelo doutrinamento, 
sua reabertura podem exigir meios aparentemente antidemocráticos. Eles incluiriam 
a retirada da toleração do discurso e da assembléia de grupos e movimentos que 
promovem políticas agressivas, armamento, chauvinismo, discriminação por motivos 
de raça e de religião, ou que se opõem à extensão dos serviços públicos, de 
previdência social, de cuidado médico, etc. Além disso, a restauração da liberdade de 
pensamento pode necessitar restrições novas e rígidas em ensinos e práticas nas 
instituições educacionais que, pelos seus mesmos muitos métodos e conceitos, 
sirvam para incluir a opinião dentro do universo estabelecido de discurso e 
comportamento - impedindo a priori assim uma avaliação racional das alternativas. 
Na condição para a qual a liberdade de pensamento envolve a luta contra a 
desumanidade e a restauração de tal liberdade também implicaria na intolerância 
perante a pesquisa científica no interesse de “impedimentos” mortais de resistência 
humana anormal sob condições desumanas, etc. eu discutirei agora a questão como 
quem vai decidir a distinção entre liberar e reprimir, ensinos e práticas humanos e 
desumanos; Eu já sugeri que essa distinção não é uma questão de preferência de 
valor, mas de critérios racionais. 
Embora a reversão da tendência no empreendimento educacional pudesse, 
pelo menos, ser obrigada concebivelmente pelos estudantes e por seus professores, e 
assim fosse auto-imposta, a retirada sistemática da tolerância perante opiniões e 
movimentos regressivos e repressivos só poderia ser enfrentada como resultados de 
pressão em larga escala que chegaria a um motim. Em outras palavras, isso 
pressuporia aquilo que ainda será realizado: a reversão da tendência. De qualquer 
forma, a resistência em ocasiões particulares, o boicote, a não-participação dos 
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Ano06n1

  • 1. Revista eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo da Escola Superior de Teologia Volume 12 (ano 06, n. 01 ) –– janeiro-abril de 2007 São Leopoldo –– RS Periodicidade Quadrimestral - ISSN 1678-6408 http://www3.est.edu.br/nepp
  • 2. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408
  • 3. Coordenador Geral Prof. Dr. Oneide Bobsin Conselho Editorial Berge Furre - Universidade de Oslo Emil A. Sobottka - PUCRS Adriane Luísa Rodolpho – Escola Superior de Teologia Ricardo W. Rieth – Escola Superior de Teologia/ULBRA Edla Eggert - Unisinos Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 2 ISSN: 1678-6408 Responsável por esta edição Valério Guilherme Schaper e Kathlen Luana de Oliveira Capa desta edição Iuri Andréas Reblin Revisão Iuri Andréas Reblin, Kathlen Luana de Oliveira, Valério Guilherme Schaper. Editoração Eletrônica Iuri Andréas Reblin Esta versão em PDF é uma edição revista da edição original. Link Desta Edição: http://www3.est.edu.br/nepp/revista/012/ano06n1.pdf Protestantismo em Revista é um órgão do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP), que visa ser um canal de socialização de pesquisas de docentes e discentes da área de Teologia, Ciências das Religiões, abrangendo o espectro das Ciências Humanas e das Ciências Sociais Aplicadas, tanto de integrantes da Escola Superior de Teologia (EST) quanto de outras instituições. Protestantismo em Revista está sob a coordenação do Prof. Dr. Oneide Bobsin, titular da Cadeira de Ciências das Religiões da EST. A revista eletrônica Protestantismo em Revista é uma publicação quadrimestral (jan.-abr.; mai.-ago., set.-dez.), sendo que as três edições do ano são tradicionalmente planejadas em duas edições temáticas e uma edição livre. Comumente, a equipe de redação aceita textos até o final do segundo mês do quadrimestre e a publicação acontece normalmente na segunda quinzena do terceiro mês do quadrimestre, salvo exceções. Confira a data estipulada na grade do tópico “edições anteriores” no site da revista. Os trabalhos deverão ser enviados para o correio eletrônico do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo: nepp_iepg@yahoo.com.br. Consulte as normas no site da revista. Demais informações e edições anteriores, acesse o site (http://www3.est.edu.br/nepp)
  • 4. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 Sumário Editorial................................................................................................................................................. 4 Textos: Emblemas da intolerância: Jean Calas, Jean Charles e a tolerância segundo Voltaire ............... 8 Por Valério Guilherme Schaper Fronteiras da Intolerância ................................................................................................................. 20 Por Mario Miranda Filho Tolerância Repressiva........................................................................................................................ 28 Por Herbert Marcuse [Tradução de Kathlen Luana de Oliveira] A Tolerância e a ironia da trajetória protestante: refletindo sobre as intolerâncias na história do protestantismo, a partir de uma leitura da obra Dogmatismo Tolerância de Rubem Alves ............................................................................................................................................................... 59 Por Kathlen Luana de Oliveira O Testemunho Histórico da Intolerância nos Documentos relacionados aos Direitos Humanos ............................................................................................................................................. 80 Por Clemildo Anacleto da Silva Pedagogia da Tolerância ................................................................................................................... 99 Por Thyeles Borcarte Strelhow O X da Questão: Evolução, alteridade e preconceito como desafios à tolerância - uma leitura a partir dos X-Men - ......................................................................................................................... 114 Por Iuri Andréas Reblin Resenhas, Leituras e Prefácios de Obras: Prefácio à edição brasileira de O sentido e o Fim da Religião de Wilfred Cantwell Smith........ 126 Por Oneide Bobsin Como citar esta revista.................................................................................................................... 129 Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 3
  • 5. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 Editorial A pergunta pelo intolerável traça as fronteiras éticas em todas as culturas. Nenhum povo constitui-se com base na total permissividade. É justamente a média entre o tolerável e o intolerável que determina os povos. O Ocidente ousou criar uma nova forma de colocar em relação estes termos essenciais. A história de autoconstituição da cultura ocidental é a história da criação de uma fronteira móvel quanto ao tolerável. Neste novo enfoque, intolerável é somente o que tende a constituir barreiras para o exercício do tolerável. Esta compreensão, que ganhou uma formulação clássica sob o tema da tolerância justamente durante as guerras de religião na Europa, na passagem dos séculos XVII para XVIII, tornou-se objeto de pesquisa de um projeto em curso na Escola Superior de Teologia. Porque móvel, a fronteira do tolerável no Ocidente constitui-se sempre de novo a partir de coordenadas altamente complexas, gerando dinâmicas inesperadas. A pesquisa se faz a partir de interesses éticos e também metodológicos. De um lado, permanece sempre aberta a pergunta pela melhor forma de ler as constituições de sentido que a fronteira móvel do tolerável engendra. De outro lado, a reflexão ética persegue a trilha das possíveis aplicações do saldo desta pesquisa. Aqui está reunida uma mostra das primeiras aproximações ao tema no bojo deste projeto e também através da contribuição de amigos/as cujas pesquisas estão em referência cruzada com a deste projeto. O primeiro texto é de Valério Guilherme Schaper que traz reflexões a partir de Voltaire e seu Tratado sobre a Tolerância. O autor pauta a discussão a partir de dois Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 4
  • 6. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 Jeans: Jean Calas (1762) e Jean Charles de Menezes (2005). Ambas histórias são marcadas por uma cruel intolerância. Com a crítica de Voltaire, o autor aborda o fundamentalismo presente nas religiões. Voltaire aponta para a necessidade da tolerância, “apanágio da natureza” conforme a razão, perguntando pela essência da religião. Tais considerações evocam a tolerância como assunto de discussão para os dias atuais. No texto seguinte, Mário Miranda Filho expõe sua preocupação com a intolerância como manifestação perversa. “Ser intolerante é instituir uma identidade (de Ego, de grupo), com o propósito de negar ao outro sua humanidade, sua dignidade”. O autor retrata a tradição filosófica que edificou a defesa da liberdade e da tolerância, entrecruzada com outras disciplinas, em especial, a história e a religião. O texto traz a tensão entre a realidade e a teoria a partir de duas histórias: a da pensadora Irshad Manji e a da refugiada Ayaan Hirsi Ali, esta última apresentada por Espinosa. Por fim, aponta para a necessidade de valorizar a reflexão teórica capaz de dar conta do relativismo, a fim de tentar “desmontar os mecanismos engenhosos” da “máquina de exclusão” da intolerância. O terceiro texto tem por título Tolerância Repressiva, de autoria de Herbert Marcuse (1898-1979), e foi traduzido para o português a partir da versão inglesa disponibilizada na Internet por Harold Marcuse, o qual cordialmente autorizou a publicação desta tradução nesta revista eletrônica (agradecemos desde já). Situando o contexto do liberalismo, Marcuse coloca em cheque a compreensão de tolerância. O autor afirma que tolerância requer intolerância frente a opiniões e atitudes devido às políticas predominantes. Tolerância apresenta-se como uma “meta partidária, uma prática e uma noção libertária subversiva”, como em suas origens, no começo do período moderno. Dissonante das “coisas bonitas” que a palavra tolerância evoca, tolerância está servindo a causa da opressão. Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 5
  • 7. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 Já Kathlen Luana de Oliveira coloca em discussão os desafios da tolerância dentro da trajetória do protestantismo. Evidencia que o protestantismo surgiu a partir de um espírito profético, mas ironicamente, na história, o ideal libertário se torna uma instituição repressora. A partir de uma leitura da obra de Rubem Alves, Dogmatismo e Tolerância, percebe-se que grande parte dessa ironia se deve a manutenção da reta doutrina como unidade institucional. O espírito profético, especialmente quando crítico e autocrítico, impulsiona uma compreensão de tolerância engajada na luta contra as injustiças. Tolerância evidencia divergências, evidencia a diversidade e não pode compactuar com ideologias repressivas, discriminatórias e exclusivistas. Assim, Rubem Alves aponta para o resgate do espírito profético e para o diálogo com o catolicismo para a edificação da tolerância. O texto seguinte é da autoria de Clemildo Anacleto da Silva e traz uma análise de documentos históricos que colaboraram no desenvolvimento do pensamento relacionado à liberdade e ao exercício da prática religiosa dentro da perspectiva dos Direitos Humanos. O autor destaca artigos e menções que cooperaram tanto para a tolerância quanto para a intolerância religiosa e ressalta a necessidade do reconhecimento e o respeito das diferenças como ato imprescindível para o exercício da tolerância e a obrigação do Estado em garantir através da educação e da legislação um tratamento igualitário e digno a todos os seres humanos. Para o autor, a intolerância é uma “questão de justiça”. Thyeles Borcarte Schleihow realiza uma leitura da obra Pedagogia da Tolerância, uma obra com reflexões e de diálogos de Paulo Freire sobre o respectivo tema. O autor descreve como Paulo Freire combina sua compreensão e sua prática pedagógica com a questão da tolerância e como a presente obra contribui para a construção epistemológica da paz e da tolerância. Para Paulo Freire, a tolerância é virtude da convivência humana. Isso significa conviver com o diferente em uma perspectiva dialógica, em cumplicidade, com vistas à cidadania. Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 6
  • 8. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 O último texto desta edição é da autoria de Iuri Andréas Reblin e aborda o tema da tolerância na trilogia cinematográfica dos super-heróis mutantes conhecidos como X-Men. O autor apresenta os conceitos antropológicos de evolução, alteridade e preconceito como obstáculos para o exercício da tolerância e indica a necessidade de uma interconexão entre as diferentes esferas sociais para a garantia da convivência pacífica entre os seres humanos. Por fim, o texto aponta para a prática do amor, segundo a compreensão do teólogo Søren Kierkegaard, como engrenagem-mestre de uma convivência tolerante e eqüitativa. A todos o nosso muito obrigado. Que a pesquisa avance e que seu produto seja um serviço à defesa da dignidade inalienável do ser humano. São Leopoldo, abril de 2007. Prof. Dr. Valério Guilherme Schaper Kathlen Luana de Oliveira Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 7
  • 9. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 Emblemas da intolerância: Jean Calas, Jean Charles e a tolerância segundo Voltaire Por Valério Guilherme Schaper* Resumo: O texto é uma apresentação do tratamento que Voltaire deu ao tema da intolerância a propósito de um caso que se tornou famoso na França no século XVIII. O caso envolve o julgamento público de um protestante calvinista que foi acusado de ter enforcado o próprio filho que, se supõe, pretendia passar para o catolicismo. A pretexto deste caso, Voltaire empreende uma leitura mordaz e irônica das práticas religiosas, cujo zelo enredam os cristãos em um emaranhado de contradições, que colocam a França numa situação caótica e sob o risco de se desintegrar política e economicamente. A análise ferina de Voltaire é um microscópio que amplia os labirintos insuperáveis do fanatismo no seio das religiões. O texto de Voltaire oportuniza ainda uma interessante reflexão sobre fatos atuais os quais recolocam a pergunta pela tolerância como condição indispensável da vida em sociedade. Palavras-chave: fanatismo, superstição, tolerância, intolerância, religião, Voltaire “[...] tanto é fácil ao fanatismo arrancar a vida à inocência, como é difícil à razão restituir-lhe a justiça”. Voltaire Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 8 Prólogo * Doutor em teologia e professor de teologia sistemática e de ética da Escola Superior de Teologia em São Leopoldo. Membro da Comissão Teológica do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) e da Comissão Bilateral Católico-romana e evangélico-luterana, vem se dedicando no último ano a um projeto de pesquisa voltado para o tema da tolerância.
  • 10. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 A morte de Jean Charles de Menezes1, num metrô de Londres em 2005, converteu-se em um emblema do tipo de “fricções” que as recentes correntes migratórias vêm gerando pelo globo afora2. As grandes migrações que, no passado da humanidade, foram oportunidade para espalhar vida, combinando genes e culturas, converteram-se em ameaça à vida, às culturas. Jean Charles, não obstante o nome quase anglo-galês, entrou num padrão de suspeição étnico-cultural, acirrado pelos embates entre o Ocidente e o Oriente. Vítima do medo, Jean Charles tornou-se mais um personagem na longa história de um drama que ele sequer chegou a atinar ou, mesmo, entender. Presumo que o povo de Gonzaga, cidade onde nasceu Jean Charles, tampouco chegará a entender de fato a amplitude deste evento3. E se quiserem entender, como explicar a derrocada da tolerância num povo que tem como um dos seus pais intelectuais, John Locke, filósofo que contribuiu decisivamente para estabelecer o uso moderno do 1 “A polícia britânica matou ontem o mineiro Jean Charles de Menezes, 27, na estação de Stockwell, no sul de Londres, após tê-lo confundido com terrorista ligado aos ataques da última quinta-feira na capital britânica. Ele era natural de Gonzaga, no interior de Minas Gerais, e vivia há cerca de quatro anos em Londres trabalhando como eletricista. Hoje, a Scotland Yard admitiu o erro e informou que o homem foi atingido cinco vezes na cabeça depois de ter se recusado a obedecer a ordens da polícia de parar dentro de um vagão do metrô.” Érica FRAGA. - Polícia britânica mata brasileiro por engano após confundi-lo com terrorista. Notícia publicada na Folha Online em 23.07.2005. Notícia disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u86015.shtml, acessada em 02.04.07. 2 Gonzaga, MG, vizinha da famigerada cidade de Governador Valadares - a cidade brasileira mais próxima dos EUA - tem nominalmente cerca de 5.482 habitantes. Fernanda MENA, Adriana CHAVES E Deborah GIANNINI. Morte choca cidade de 5.500 habitantes. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft2407200504.htm. Acessado em 28.07.05. Segundo Istoé Dinheiro, cerca de 1.500 jovens de Gonzaga estão espalhados pelos EUA e Europa. No Brasil, esse número quase chega à casa dos 3 milhões de brasileiras/os, que enviaram ao país, em 2004, um total de US$ 3,268 bilhões. Elaine COTTA. Amargo regresso. Disponível em http://www.terra.com.br/istoedinheiro/412/economia/amargo_regresso.htm. Acessado em 28.07.05. 3 Há pessoas da localidade que intuíram o problema, como indica a seguinte frase de uma moradora de 68 anos: “Isso vai continuar acontecendo enquanto a juventude se achar sem condições de crescer financeiramente por aqui mesmo”. Elaine COTTA. Amargo regresso. Disponível em http://www.terra.com.br/istoedinheiro/412/economia/amargo_regresso.htm. Acessado em 28.07.05. Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 9
  • 11. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 conceito? Como explicar o assassinato de um jovem numa sociedade que foi admirada por Voltaire pela capacidade de aceitar a pluralidade da sociedade?4 Voltaire e o caso Jean Calas Foi um equívoco de ordem semelhante5, uma morte sob o manto do cumprimento da justiça e da salvaguarda da sociedade, que motivou o filósofo Voltaire6 a escrever seu “Tratado sobre a Tolerância”. Em Toulouse, França, em 09.03.1762, Jean Calas, cujo primeiro nome também coincide emblemática e ironicamente com o do brasileiro, condenado pela justiça, morreu na “roda do suplício” por ter, assim supôs a justiça francesa, enforcado o próprio filho, Marc-Antoine. A história, no entanto, é complexa. A família Calas, negociante em Toulouse há mais de 40 anos, era protestante (calvinista) num local e numa época pouco favorável para as dissidências religiosas. Um filho havia abjurado do protestantismo. A cozinheira, há muitos anos na família, também era católica-romana. Havia, então, espaço para opção religiosa no seio da família. O filho morto não se ajustava ao 4 VOLTAIRE, Tratado sobre a tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 22. 5 As semelhanças param por aí. Jean Calas, bem ou mal, teve um julgamento e foi supliciado após ter se chegado a um veredicto. Jean Charles foi sumariamente assassinado. Um erro brutal! O julgamento que se seguiu não conseguiu atribuir responsabilidades nem culpas. O fato entrou para a nebulosa área do “acidente lamentável”. Ignora-se, conscientemente ou não, que os mecanismos de suspeição protetivos da sociedade Ocidental diante do Oriente Muçulmano estão disparando os mecanismos irracionais do medo coletivo, o medo como epidemia. Todos, e principalmente os que entrarem no padrão de suspeição étnico-cultural, são culpados até que se prove o contrário. A fronteira nebulosa entre motivações religiosas, políticas e econômicas é, contudo, muito semelhante. 6 François Marie Arouet, mais conhecido pelo pseudônimo Voltaire, nasceu em 1694 e faleceu em 1778. Foi filósofo e homem de letras e sua obra teve grande repercussão, ainda durante a sua vida. Deísta de forte influência empirista, Voltaire é um dos grandes nomes do Iluminismo francês. Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 10
  • 12. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 comércio e aspirava à magistratura, no que foi impedido por não obter os certificados de catolicidade romana. Desesperançado, imagina-se, enforcou-se. A multidão, que afluiu a casa no momento em que o corpo foi encontrado, não interpretou assim. A multidão histérica entendeu que o Pai (auxiliado pela mãe, pelo irmão e por um amigo de visita) matou o filho porque ele pretendia abjurar da sua fé e converter-se ao catolicismo no dia seguinte. No desvario, imaginou-se um complô dos protestantes. Arrastado ao julgamento, Jean Calas foi condenado num julgamento de poucas provas materiais e grande divisão dos magistrados. Dos treze conselheiros, oito votaram a favor da morte. Mesmo com um resultado tão apertado, “[...] era preferível supliciar um velho calvinista inocente a expor oito conselheiros [...] a admitirem que haviam se enganado”7, como se disse na época. Voltaire coloca da seguinte forma o dilema: ou o fanatismo religioso da multidão induziu e coagiu a magistratura a fazer supliciar um inocente, ou o fanatismo religioso do pai (mãe, irmão, amigo) levou-o a estrangular o filho. Num caso ou noutro, o excesso religioso gerou um crime. Voltaire decidiu apresentar ao público suas reflexões sobre a tolerância, “apanágio da natureza” segundo a razão, tendo como tema central uma pergunta acerca da essência da religião: ser bárbara ou caridosa. Por que este remoto incidente deveria nos interessar hoje? Voltaire diz que a desgraça de Calas deveria provocar a “maior impressão”, como se fosse um “trovão irrompendo na serenidade de um belo dia”. As questões que se colocam hoje a partir do caso de Jean Charles, assim como as que se colocavam no caso de Jean Calas, apontam para um amálgama gigantesco de motivações religiosas, étnicas, culturais, econômicas, políticas que se cruzam num 7 VOLTAIRE, 2000, p. 13. Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 11
  • 13. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 mosaico assustador, cuja imagem se nega terminantemente a se entregar a qualquer forma superficial de compreensão. Neste teatro de absurdos, um clamor ora forte, ora frágil, ora racional, ora emotivo, parece convergir para a idéia da tolerância, como uma espécie de “apanágio” residual - celebra Voltaire! - de um mundo que navega sobre incertezas. Tolerância parece circular entre nós como uma espécie de “últimos dos moicanos” conceituais, relicário de valores e direitos inalienáveis. Apresentam-nos a tolerância como “tabu”, novo interdito moral capaz de refundar a civilização, recriar as instituições. Teria a tolerância tanto poder? Afinal em que consiste a tolerância para que dela se possa esperar tanto? Nos fatos narrados acima, ela não se apresenta tão convincente quanto derrotada? Quem pôs e põe a circular este conceito? De onde ele vem? Para onde nos conduz? Trata-se de um tesouro ou mero ouro de tolo? Sem assumir o compromisso de responder pontualmente estas questões, queremos nos deter aqui nas reflexões de Voltaire sobre aquele caso do passado, na esperança de que o presente seja iluminado. Um terreno movediço Para se ter uma breve idéia retrospectiva das belicosas relações entre católicos-romanos e huguenotes (protestantes franceses) na França, basta lembrar que enfretamentos armados com muito derramamento de sangue que atravessaram os séculos XVI e XVII. Os primeiros protestantes aparecem na França em 1520, embora livros de Lutero já circulassem em Paris em 1519. Até que se firmasse o Édito de Saint-Germain (1570), dando direito de culto aos protestantes em duas localidades nos subúrbios de Paris e controle militar sobre 04 cidades, assistiu-se a vários Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 12
  • 14. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 enfrentamentos8 (1562-3, 1567-8, 1568-70). Entretanto, a frágil trégua consagrada pelo Édito de Saint-Germain durou dois anos. Em 1572, a tentativa mal-sucedida de eliminar um dos maiores líderes protestantes, Almirante Coligny, desencadeou, na noite do dia 24 de agosto de 1572, um massacre de protestantes, que passou à história como “Noite de São Bartolomeu”. Novamente os enfretamentos militares voltaram (1573, 1574-6, 1577, 1580). Finalmente, chegou-se ao Édito de Nantes, que previa liberdade religiosa, política e militar para protestantes. Em 1610, Richelieu persegue os protestantes e retira seus direitos políticos e militares, restando a liberdade religiosa. Em 1685, Luís XIV aboliu também a liberdade religiosa dos protestantes, ocasionando uma massiva fuga de protestantes e, obviamente, uma evasão de capitais9. Este cenário todo é amplamente intensificado pela crescente influência do jansenismo10, que apresentava vários pontos de contato doutrinário com o calvinismo. Diferentemente do que ocorria em outros países (Alemanha, Inglaterra, Holanda) na Europa no século XVIII, a França não oferecia muitas possibilidades de interpretação religiosa dentro do cristianismo. A opção real dava-se entre o catolicismo-romano de forte cunho jesuítico e a posição racionalista que crescia e que desaguaria, com os resultados conhecidos, na Revolução Francesa (1789). Neste complexo cenário de enfrentamentos, é preciso situar os fatos imediatos que motivam Voltaire a escrever e os demais eventos da questão religiosa, a maioria deles arrolados na argumentação de Voltaire. 8 O primeiro édito de tolerância de 1562, fruto mais palpável do colóquio de Poissy, durou menos de um mês (janeiro a fevereiro de 1562). LINDBERG, Carter. As reformas na Europa. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 342-5. 9 LINDBERG, 2001, p. 345-54; WALKER, W. História da Igreja Cristã. São Paulo: ASTE, 1981, v.2. p. Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 13 110-20. 10 Tendo iniciado sob a égide do bispo de Ypres, Cornelius Jansen (1585-1638), o jansenismo, de forte influência agostiniana e ênfase na predestinação do ser humano para a salvação e para a perdição, expandiu-se na França graças ao trabalho de Jean Duvergier de Hauranne, abade de Saint-Cyran, Antoine Arnauld e, mais tarde, de Pasquier Quesnel (1634-1719). Blaise Pascal (1623-1662) esteve ligado a este movimento.
  • 15. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 A essência da religião e as razões da tolerância Voltaire inicia sua argumentação mostrando que o espírito faccioso e a perseguição causaram muitos males. Ele sugere que a indulgência e a liberdade de consciência jamais causariam males como aqueles e demonstra, por inúmeros exemplos históricos, que a intolerância causa mais males do que a tolerância. Em suma, ele contesta qualquer possibilidade de fundar a intolerância em algum suposto direito natural ou humano. O princípio universal, argumenta ele, é o de fazer ao outro o que se deseja para si. Com ironia e mordacidade, Voltaire investe contra um suposto direito à intolerância por parte da religião dominante contra os heréticos. Ele demonstra as contradições em que incorre a intolerância, pois afirmá-la supõe condenar os pais da fé cristã e dar razão aos que supliciaram tantos mártires. Deveria uma religião divina reinar pelo ódio? Pergunta Voltaire. Ele afirma que quanto mais divina uma religião, tanto menos compete aos seres humanos comandá-la. Isto cabe a Deus. O suposto direito da intolerância chegaria ao cúmulo de encher o céu de criminosos, pois seria tanto mais santo aquele que mais hereges matasse. Voltaire tem em mente aqui a fatídica noite de São Bartolomeu que, segundo dados aproximados, significou a morte violenta de 20 mil protestantes. A partir de um atento exame da Escritura, Voltaire passa por textos complexos do Antigo Testamento e do Novo Testamento, contestando as leituras que procuravam encontrar ali apoio para as práticas intolerantes. Voltaire assegura que, no Antigo Testamento, se percebe que Deus não somente tolerava outros povos como tinha por eles um cuidado particular. Do exame do Novo Testamento, sobretudo, do ensino de Jesus, Voltaire conclui ali é pregada a doçura, a paciência e a indulgência. Ele aconselha aos que querem imitar Cristo que observem bem, pois aos imitadores cabe mais atitude de mártir do que de algoz. Ele insiste que é preciso ter razões muito mesquinhas para querer encontrar na Escritura fundamento para intolerância. Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 14
  • 16. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 O único acaso em que a intolerância é de direito humano é quando se deve resistir aos intolerantes e sua ações pretensamente bem intencionadas. O autor encerra conclamando todos a uma tolerância universal, pois somos todos filhos/as do mesmo Pai e criaturas do mesmo Deus. As condenações e exclusões mútuas não competem ao ser humano, pois significaria antecipar o juízo de Deus. Para finalizar, ele dirige-se não mais às pessoas, mas ao próprio Deus em oração, clamando por misericórdia pelos erros dos seres humanos e pedindo para que as pessoas ajudem a suportar o fardo da vida e para que se lembrem de que são irmãos/ãs. O fanatismo é uma superstição! Deísta e defensor da razão como norma primeira da vida, Voltaire afirma que é estranho que, em uma época de tantos progressos da razão, o fanatismo tenha prevalecido. Otimista, ele quer crer que estas convulsões súbitas do fanatismo sejam estertores de morte. Ele se debate tanto mais se apercebe de sua condição de prisioneiro condenado a uma morte eminente. Contudo, ele admite a fraqueza da razão e a insuficiência das leis. Por isso mesmo entende que cabe, nesta hora, o uso imparcial da razão para restituir as coisas aos seus lugares, pois, não obstante, fraca, Voltaire crê na força persuasiva da razão e aponta para a necessidade de cultivar os seus frutos, posto ser “impossível impedi-los de nascer”11. Como todo pensador das luzes, Voltaire trava batalha cerrada contra toda forma de obscurantismo. Ele entende que não pode dar trégua a qualquer forma de “superstição”. 11 VOLTAIRE, 2000, p. 115. Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 15
  • 17. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 A religião abusada torna-se superstição: “Quando os homens não têm noções corretas da divindade, as idéias falsas as substituem, assim como nos tempos difíceis trafica-se com moeda ruim, quando não se tem a boa”12. A superstição, diz Voltaire, funciona para a religião como a astrologia para a astronomia, é “a filha muito insensata de uma mãe muito sensata”13. Ambas subjugaram a terra por muito tempo. E o ser humano prefere viver afogado em superstições a viver sem religião. Em certo sentido, admite Voltaire, a religião é até mesmo necessária em qualquer lugar em que haja sociedade, pois, enquanto a lei protege contra crimes conhecidos, a religião protege contra os crimes secretos14. A religião funcionaria como uma espécie de trincheira ética, um tipo de freio moral contra as pulsões interiores. De toda as superstições, a mais perigosa, afirma Voltaire, é a de “odiar o próximo por suas opiniões”15. Voltaire afirma que, no cristianismo, pessoas são mortas por causa de “parágrafos”, “opiniões”, enfim, “crenças”16. Quando isso ocorre, a superstição degenera-se no fanatismo, que supõe ser criminoso todo o que pensa diferente, todo o que não concorda integralmente. No seu entender, o motor gerador da intolerância em toda sua extensão é o fanatismo17. O fanatismo, ensina Voltaire, é inimigo da natureza; a tolerância é o apanágio da natureza, apanágio dos razoáveis, dos não fanáticos18. O fanatismo é irracional. Só os não fanáticos merecem a tolerância, pois todo o fanatismo perturba a sociedade e configura-se como crime passível de punição por parte do estado. Não é possível, então, como dito, tolerar o fanático. Para a superstição do fanatismo, como para todas as outras em geral, vale o princípio da razão iluminista: só há uma forma de reduzir o número de fanáticos, 12 VOLTAIRE, 2000, p. 113. 13 VOLTAIRE, 2000, p. 113. 14 VOLTAIRE, 2000, p. 113. 15 VOLTAIRE, 2000, p. 116. 16 VOLTAIRE, 2000, p. 34; 37. 17 VOLTAIRE, 2000, p. 132. 18 VOLTAIRE, 2000, p. 105; 132. Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 16
  • 18. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 maníacos: “submeter esta doença do espírito ao regime da razão, que esclarece lenta mais infalivelmente, os homens”19. Voltaire não define exatamente o que seria a tolerância. Em alguns momentos, o texto sugere que seja um dispositivo legal para o correto funcionamento do estado de direitos20. Em outros momentos, soa como uma virtude a ser cultivada21. Em outras ocasiões, o texto sugere simplesmente que, por ser um “apanágio da natureza”, cujo corolário é o regime da razão, a tolerância seria um fruto inevitável em termos de saldo civilizatório que deve apenas ser administrado22. Voltaire não menciona os mecanismos educacionais como instrumento para alcançar a tolerância. Theodor Adorno, pensador contemporâneo de influência neo-iluminista, insiste no poder da educação contra a possibilidade de repetição da barbárie, como a de Auschwitz. Ele não crê que a educação impeça o surgimento de mentes fanáticas, facciosas, criminosas, mas pode impedir que pessoas, abaixo deles, estejam suscetíveis a praticar atos que as escravize, destituindo-as de sua dignidade humana23. Como diz o texto em epígrafe, Voltaire está ciente de que é mais fácil ao fanatismo macular a inocência e atacar a vida, do que o mero recurso à razão devolver-lhe justiça. No caso Calas, em 09 de março de 1765, no mesmo dia do suplício de Jean Calas, três anos depois, a justiça reconheceu o equívoco e inocentou a família. Além disso, a família contou ainda com o direito da beneficência e foi indenizada pelo estado. Obviamente, a justiça feita à família Calas não reparou os danos provocados pelo fanatismo. Somente a tolerância pode evitar que a terra seja devastada pelo fanatismo e que os irreparáveis males decorrentes fustigue as consciências e destrua vidas. 19 VOLTAIRE, 2000, p. 30. 20 VOLTAIRE, 2000, p. 105. 21 VOLTAIRE, 2000, p. 13; 127. 22 VOLTAIRE, 2000, p. 30. 23 ADORNO, Theodor. Educação após Auschwitz. In: COHN, Gabriel (Org.). Sociologia. 1986. p. 45. Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 17
  • 19. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 A religião com vórtice Voltaire volta-se contra uma leitura por demais estreita da tradição cristã no âmbito do catolicismo-romano levada a cabo pelos jesuítas. Neste sentido, ele faz coro ao jansenistas em seu combate aos jesuítas. Voltaire advoga a dissolução desta ordem, pois, no seu entender, parte dos males que assolam a França está na intolerância dos jesuítas, no seu fanatismo24. Voltaire percebe que o fanatismo implícito nos dois lados do enfrentamento, mas especialmente criticado por ele na posição jesuíta, estava gerando problemas de outra ordem: econômica25. Assim, ele espalha pelo livro várias considerações de ordem prática que mostram claramente que, em primeiro lugar, a concórdia entre as religiões, tendo como referência a tolerância, era benéfica para a sociedade em termos materiais26. Em segundo lugar, ele indica regiões da França onde a prevalência do luteranismo coincide com a opulência das províncias27. Em terceiro lugar, ele indica que o fim das disputas poderia significar o repatriamento de muitas fortunas que se foram por medo28. Em quarto lugar, ele frisa que até mesmo a mais corriqueira negociação fica impossibilitada de fazer parte do pressuposto de que o outro é réprobo29. Em quinto lugar, ele insiste, que se o cenário não mudar manufaturas francesas que geram muitos empregos e divisas continuarão saindo para a Holanda, de onde não voltarão30. 24 VOLTAIRE, 2000, p. 26. 25 VOLTAIRE, 2000, p. 27. 26 VOLTAIRE, 2000, p. 22, 25. 27 VOLTAIRE, 2000, p. 23. 28 VOLTAIRE, 2000, p. 29-30; 32. 29 VOLTAIRE, 2000, p. 124. 30 VOLTAIRE, 2000, p. 130-1. Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 18
  • 20. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 Pomeau, na introdução ao livro de Voltaire, chama a atenção para o fato de que o conflito religioso permite que tensões de outra ordem se manifestem31. Outros autores chamaram a atenção para as tentativas de descaracterização religiosa destes eventos que se deram na França em torno do protestantismo32. O fato é que, como bem observou, Walker, nos Países Baixos e na França, os elementos políticos e econômicos foram mesclando-se cada vez mais ao religioso, com crescente destaque para este último33. Os argumentos de Voltaire, embora tragam um forte viés filosófico, deixam transparecer os reais benefícios da tolerância para a vida social: a paz e o respeito que permitem o tranqüilo desenvolvimento econômico da sociedade. Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 19 Epílogo A título de encerramento vale citar estas palavras de Voltaire, porque caracterizam o seu enfoque filosófico ao mesmo tempo em que indicam a ocultação das motivações materiais da tolerância: Esse texto sobre a tolerância é uma petição que a humanidade apresenta muito humildemente ao poder e à prudência. Semeio um grão que algum dia poderá produzir uma grande colheita. Esperemos tudo do tempo, da bondade do rei, da sabedoria de seus ministros e do espírito de razão que começa a espalhar por toda parte sua luz.34 31 POMEAU René. Introdução. In: VOLTAIRE, 2000, p. vii. 32 LINDBERG, 2001, p. 349-50. 33 WALKER, 1981, p. 112. 34 VOLTAIRE, 2000, p. 136.
  • 21. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 Fronteiras da Intolerância* Por Mario Miranda Filho** “Se todos nós que viemos do Nietzscheismo, do nihilismo ou do realismo histórico disséssemos em público que estávamos errados e que existem valores morais e que no futuro devemos fazer o que for necessário para implanta-los e ilustra-los, não lhes parece que isto seria o começo de uma esperança?” A. Camus, Cadernos de Notas, 1942-1951. ‘Fronteiras da Intolerância’ é uma designação voluntariamente ampla, como deve ser um título genérico cuja função é abrir espaço para a reflexão e o debate, mas por isso mesmo portadora de algumas ambigüidades. Dentre estas, destaco a mais óbvia: na expressão acima, estaremos designando fatos ou idéias? A questão pode parecer algo escolástica ou especiosa, já que fatos sem idéias são cegos e idéias desvinculadas de fatos nos transformam em nefelibatas, mas, como esperamos justificar a seguir, cremos que terá sua utilidade. Parto do pressuposto de que nosso seminário visa antes um esclarecimento conceitual e, portanto, é nesse sentido que encaminharei minha intervenção. Mas, tendo em vista que não se podem deixar de lado ‘os fenômenos’, procurarei trabalhar os conceitos vinculados a exemplos factuais. * Comunicação apresentada por Mario Miranda Filho no Seminário Interno do LEI, em 24/09/05, na Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 20 USP. ** Mário Miranda Filho é graduado e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1973 e 1986, respectivamente). Atualmente, é Professor-Doutor da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em História da Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: Augusto Conte, filosofia antiga. (Apresentação extraída do CV-Lattes)
  • 22. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 Do ponto de vista empírico, a intolerância é uma manifestação perversa, como cremos, de uma auto-afirmação excludente, particularista, tribalista, que institui fronteiras apenas com o propósito de demarcar o território do mesmo em relação ao outro, do nosso em relação ao deles – ‘os infiéis’ – numa operação em que os segundos são sempre potencial ou realmente excluídos, senão eliminados. Ser intolerante é instituir uma identidade (de Ego, de grupo), com o propósito de negar ao outro sua humanidade, sua dignidade. Diante assim dos fatos brutos, e brutais, da intolerância empírica, como se orienta preliminarmente nosso pensamento? Como opera diante dessa percepção ou mais precisamente: como podemos nos capacitar para, primeiramente, definir a ‘coisa’ e quais os recursos de que dispomos em nossa cultura filosófica para tentar desmontar os mecanismos engenhosos desta máquina de exclusão a serviço da barbárie? Com essa questão, passamos para o plano propriamente conceitual e, ao mesmo tempo, tocamos em cheio no subtema deste seminário: ‘Intolerância e Multidisciplinaridade’, pois todos sabemos que, desde seu início, a filosofia procurou produzir conceitos aptos a cumprir esta dupla tarefa de definição e desmonte. Não podemos, pois, compreender esse antigo exercício filosófico sem recorrer antes a outra disciplina: a História. Mas há mais: quando estudamos a filosofia em seu berço, na Grécia, os historiadores mostram que ela nasce numa civilização constituída de Poleis (cidades-estado). Não vou repetir aqui o que já tive ocasião de expor em outros seminários do LEI, lembro apenas de Fustel de Coulanges, citando Tito-Lívio: “Não há um lugar nesta cidade que não esteja impregnado de religião...os deuses habitam nela”. Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 21
  • 23. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 Assim, define a cidade antiga: “Toda cidade era um santuário... podia ser chamada de cidade santa”1. E acrescenta: “É portanto um erro singular, entre todos os erros humanos acreditar que nas cidades antigas o homem gozava de liberdade. Não tinha sequer a mais ligeira idéia dela. Não julgava que pudesse existir direito em frente da cidade e dos seus deuses”2. Os historiadores nos asseguram, assim, de que a pátria da filosofia é uma comunidade marcada por uma mentalidade eminentemente religiosa, que restringe ou exclui a liberdade individual. Em outros termos: a filosofia nasce numa ‘sociedade fechada’, para empregarmos um conceito moderno. Estamos, então, operando no entrecruzamento de três disciplinas: filosofia, história e religião. Nesse sentido, refletindo sobre as dificuldades com que se defrontou a filosofia em seu nascimento, Merleau-Ponty dizia a propósito de um dos primeiros atos de intolerância contra ela que: “Para arrumar na terra um lar para a filosofia foram precisos justamente filósofos como Sócrates”3. Séculos mais tarde, B. Espinosa, no século de ouro da Holanda, reencontraria, mutatis mutandis, o mesmo obstáculo e anotava no seu Tratado Teológico Político que seu propósito era o de obter a liberdade para filosofar. Ambos os filósofos, em épocas diferentes, afirmam a filosofia em confronto com sociedades onde predomina a mentalidade hegemônica da religião. Podemos perceber, então, a existência de um fio, nem sempre muito visível, mas sólido, que vai dos antigos aos modernos, passando pelos medievais, que se caracteriza por ser a marca de uma grande tradição filosófica que podemos designar de Republicana, Liberal, ou Iluminista. (Ela envolve distintas áreas do conhecimento. Alem das três mencionadas mencionemos a Filologia ou a Hermenêutica, prestimosa quando se trata de saber, p. ex., se a palavra árabe, do Alcorão, ‘Hur’ significa 1 COULANGES, F. de. A Cidade Antiga. Lisboa, 1919, v.1. p. 242. 2 COULANGES, 1919, v.1. p. 404. 3 MERLEAU-PONTY, M. Éloge de la Philosophie. Paris: Gallimard, 1960. p. 46. Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 22
  • 24. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 ‘virgens de olhos negros’ ou ‘uvas’, já que ninguém daria sua vida em troca de um além onde receberia apenas uvas). Foi essa mesma tradição que consolidou nos tempos modernos a defesa da liberdade e da tolerância, que precederam até mesmo a instituição dos Direitos Naturais consagrados, como direitos universais do homem, nas nossas constituições republicanas. A História também narra o que ocorre quando defensores da liberdade de pensamento e de discurso se põem a praticá-la em sociedades fechadas. Narra também quanto tempo – e não só tempo, é claro – foi necessário para ‘abrirmos’ nossas sociedades de modo a fazê-las aceitar o pluralismo. Nada disso é novo. Mas, talvez, hoje, a pergunta mais interessante é a que indaga acerca da situação inversa a essa mencionada, ou seja: O que ocorre quando práticas corriqueiras em sociedades fechadas se introduzem, graças às imigrações, em sociedades abertas? Essa questão pode servir para reduzir a ambigüidade presente em nosso tema ‘Fronteiras da Intolerância’, uma vez que ela nos permite visualizar o problema em sua dupla dimensão: teórica e empírica. Para tratar dessa questão, vou recorrer a dois exemplos que, ambos, provêm da história contemporânea, do calor da hora. Ela diz respeito a uma boa parte da humanidade, talvez, até mais do que a metade dela: as mulheres. Nosso primeiro exemplo é o da pensadora Irshad Manji, jornalista, que publicou, em 2003, The Trouble with Islam Today, a muslim call for reform in her faith4. Irshad é de origem Ugandense e sua família se exilou fugindo de Idi Amin Dada para o Canadá em 1972. É negra, assume publicamente sua condição de lésbica e se define como uma Islâmica ‘Refusenik’, empregando o termo usado na extinta URSS para designar os judeus soviéticos que lutavam por sua liberdade contra o totalitarismo. Seu livro, escrito sob forma de depoimento, é a história de sua libertação de um 4 MANJI, I. The Trouble with Islam Today. New York: St. Martins’s Grifin, 2003. Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 23
  • 25. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 sistema teocrático especialmente perverso para as mulheres expostas, entre outras barbáries, à mutilação sexual. Nela vemos a história da transição entre as fronteiras da teoria e da prática, da passagem por uma doutrinação – a que foi submetida na Madrassa Islâmica de Vancouver – para a real educação para a liberdade que ela encontrou nessa mesma cidade, mas agora numa escola de ensino ‘Republicano’, onde aprendeu a “Pensar, pesquisar, falar, trocar, discutir, desafiar e repensar”5, enfim, a conquistar o que I. Kant chamou de maioridade em O que é Ilustração. Sem abandonar sua fé, ela passou a investigar a origem do esclerosado dogmatismo que interditava o pensamento aos Islâmicos e descobriu a existência de uma tradição de livre pensamento independente que era anterior a este fanatismo e que se designa em árabe pelo termo ‘Ijtihad’. Essa tradição, conta-nos, surgiu e se desenvolveu no Islã de 750 a 1250 e se define como uma ‘cultura da tolerância’ entre árabes e judeus na Espanha e no Iraque, sede do império Islâmico, onde Cristãos, Judeus e Muçulmanos traduziram e, assim, devolveram vida aos textos da filosofia grega6. Irshad pôde assim descobrir a idade de ouro islâmica no século XII e a obra de Moses ben Maimônides, filósofo e médico judeu que escrevia em árabe (conta-nos que Ben Gurion aprendeu árabe para lê-lo no original). Cita esta passagem do Guia dos Perplexos: “Está na natureza do homem prezar o que lhe é familiar e os ensinamentos em que foi educado, e temer o que é estrangeiro. A pluralidade das religiões e sua mútua intolerância derivam do fato de que as pessoas permanecem fiéis a educação que receberam”. E cita também o correspondente árabe de Maimônides, o filósofo cordobês Averróes7. 5 MANJI, 2003, p. 19. 6 Sobre as semelhanças entre a situação da filosofia no mundo grego e no mundo islâmico-judeu, v. STRAUSS, Leo. How to begin to study medieval philosophy. In: The Rebirth of Classical Political Rationalism. Chicago, 1989, p. 207-226. 7 Sobre filosofia medieval, v. a seguinte coletânea: LERNER, Ralph, MADHI, Muhsin (Ed.). Medieval Political Philosophy. New York: Cornell Un. Press, 1991. Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 24
  • 26. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 Bem, é ocioso dizer o quanto Irshad sofreu e vem sofrendo todo tipo de perseguição por suas idéias e práticas e o quanto lhe tem sido valioso o encontro desta tradição ‘Ijtihad’, graças à qual a filosofia grega se transmitiu aos autores medievais, como Maimônides e Averróes, que Espinosa tomaria como interlocutores fundamentais em sua obra que lança as bases para o Iluminismo moderno. É Espinosa que nos leva para nosso segundo exemplo. Trata-se também de outra refugiada, proveniente igualmente da África – Somália – e também islâmica, embora tenha se tornado, atualmente, atéia: Ayaan Hirsi Ali. Resumindo muito: Ali fugiu e se asilou na Holanda onde pôde realizar seus estudos na Universidade de Leiden, onde freqüentou cursos de Filosofia Política e publicou, em 2004, The Cage of Virgins. Tornou-se famosa por ter feito um filme – ‘Submissão, parte I’ – juntamente com o cineasta Leo van Gogh, que foi assassinado em novembro de 2004, pelo fundamentalista islâmico, nascido na Holanda, Muhammed Bouyeri, filho de imigrantes marroquinos. Nesse filme, eles apresentam versos do Alcorão projetados sobre os corpos nus de mulheres. Acusada de sensacionalismo, ela retruca que “estes corpos são o motivo de metade da nação da Arábia Saudita não ter permissão para dirigir automóveis”. Ali passou pela mesma doutrinação que Irshad recebera e que ensinava ambas a odiar passionalmente os judeus. Diz Ali: “eu que até meus 16 anos nunca tinha sequer visto um israelita”8. Hoje, já na condição de deputada, seu propósito é o de “desafiar a auto-imagem da elite européia como tolerante, enquanto que sob seu nariz mulheres vivem como escravas”. Por suas posições, ela foi denominada de “fundamentalista do iluminismo” e diz que o Islã precisa de seu próprio Voltaire. De fato, reivindica ser herdeira, em linha direta, do iluminismo Holandês, constatando que, naquela época, a maioria dos filósofos era ‘Allochtonen”9, e não obstante terem 8 Citada por Christopher Caldwell, no artigo “Daughter of Enlightenment”, no New York Times, April 3, 2005 . V. agora de ALI, Ayaan Hirsi. Infidel. New York: Free Press, 2007 e BURUMA, Ian. Murder in Amsterdã. New York: The Penguin Press, 2006. 9 Holandês para imigrantes, o contrário de autóctones. Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 25
  • 27. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 sido odiados, não eram perseguidos, nem assassinados e reconhece em Espinosa sua maior inspiração no Ocidente. É ela que enuncia uma questão com a qual encerro. Diz que, em breve, Amsterdã, uma cidade artística, terá 60% de sua população composta de cidadãos de origem não-ocidental. Quando a municipalidade, nessas condições, tiver que votar sobre a distribuição de recursos, enfrentando dúvidas, tais como, se os fundos devem ser destinados a preservar a arte ou construir mesquitas, esses cidadãos poderiam, talvez, perguntar por que deveriam pagar por esta ‘estúpida pintura’? Ela vê aqui apenas um exemplo das dificuldades de convivência postas numa democracia moderna cujos representantes tendem a se refugiar num pragmatismo que evita o debate sobre valores. O perigo, diz ela, é que a Holanda se veja dividida entre duas extremas direitas: uma islâmica e outra não-islâmica. Nossos dois exemplos ilustram a riqueza de instrumentos de que dispomos no Ocidente, desde os primórdios da nossa história – em particular a doutrina do Direito Natural – para combater as tentativas, em suas várias modalidades, de intolerância, sempre à espreita em nossas sociedades. Cremos que a rememoração deste acervo de direitos, que constitui nossa tradição filosófica iluminista, é tanto mais importante quanto, hoje, a chamada filosofia pós-moderna tem procurado ‘desconstruir’, isto é, desqualificar, essa mesma tradição, acusada de metafísica, universalista, etnocêntrica, logocrática, etc. Em suma, estamos assistindo hoje a um emaranhamento de fronteiras, tanto no sentido literal, geográfico-étnico, quanto no plano teórico, e sabemos bem que, se não dispusermos de uma boa reflexão teórica que seja especialmente capaz de dar conta do relativismo, estamos condenados a enfrentar as facetas negativas do multiculturalismo e da intolerância com a mesma precariedade com que hoje lidamos com furacões. Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 26
  • 28. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 Referências e Literatura Complementar ANASTAPLO, G. (Ed.) Liberty , Equality and Modern Constitutionalism. Newburyport, MA, 1999, 2v. BARRET-DUCRCOQ, F. A Intolerância. Rio de Janeiro, 2000. COULANGES, F. de. A Cidade Antiga. Lisboa, 1919, 2v. CHAUÍ, M. A Nervura do Real: Imanência e Liberdade em Espinosa. São Paulo, 1999. FORTIN, E. L. Classical Christianity and the Political Order. Boston, 1996, 3v. GIERKE, Otto. Natural Law and the Theory of Society. Cambridge, 1950. LERNER, R., MAHDI, M.(Ed.). Medieval Political Philosophy. New York, 1963. MCILWAIN, C. H. Constitutionalism Ancient and Modern. New York, 1940. OSTWALD, M. From Popular Sovereignity to the Sovereignity of Law. California, 1986. PANGLE, T. The Spirit of Modern Republicanism. Chicago, 1988. RAHE, P. Republics Ancient and Modern. New Caroline, 1994, 3v. SHELL, S. M. The Rights of Reason, A Study of Kant's Philosophy and Politics. Toronto, 1980. SMITH, S. B. Spinoza, Liberalism, and the Question of Jewish Identity. Yale, 1997. STRAUSS, L. Natural Right and History. Chicago, 1953. ______. Spinoza's Critique of Religion. New York, 1965. TROELTSCH, E. The Social Teachings of Christian Churches. New York, 1950. UNESCO. Tolérance, J'Écris Ton Nom. Paris, 1995. ZARKA, Y. C. Les Fondements Philosophiques de la Tolérance. Paris, 2002. Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 27
  • 29. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 Tolerância Repressiva* Por Herbert Marcuse** [Tradução: Kathlen Luana de Oliveira***] Este ensaio é dedicado a meus estudantes na Universidade de Brandeis. Este ensaio examina a idéia de tolerância em nossa sociedade industrial avançada. A conclusão alcançada é de que a realização do objetivo da tolerância requer intolerância perante as políticas predominantes, atitudes, opiniões, e a extensão da tolerância às políticas, atitudes e opiniões que são proscritas ou suprimidas. Em outras palavras, hoje a tolerância apresenta-se novamente como o que era em suas origens, no começo do período moderno -uma meta partidária, uma prática e uma noção libertária subversiva. Contrariamente, o que hoje é proclamado e * Texto fornecido por Mark, e convertido em html por Harold Marcuse, em 6 oct. 2004, para Herbert Marcuse homepage; tradução alemã; veja também minha página Marcuse Haters page. Disponível na Internet: http://www.marcuse.org/herbert/pubs/60spubs/65repressivetolerance.htm. Este texto foi originalmente publicado em: WOLFF, Robert Paul; MOORE JR, Barrington e MARCUSE, Herbert. A Critique of Pure Tolerance. Boston: Beacon Press, 1969, p. 95-137. Este livro de 123 páginas foi publicado originalmente em 1965; A presente edição inclui o “Pós-escrito” de Herbert Marcuse de 1968. Os conteúdos de A Critique of Pure Tolerance são os seguintes: “Além de Tolerância” - Robert Paul WOLFF; “Tolerância e a Perspectiva Científica”- Barrington MOORE JR.; “Tolerância Repressiva” - Herbert MARCUSE. ** Herbert Marcuse nasceu em Berlim em 19/07/1898. Estudou Letras, Filosofia e Economia nas Universidades de Berlim e Freiburgo. Concluiu seus estudos de pós-doutoramento na Universidade de Freiburgo em 1922. Foi assistente de Martin Heidegger e admirador de seu pensamento filosófico. Migrou para os Estados Unidos em 1934 e tornou-se membro do Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Columbia em Nova Yorque. Em 1940, tornou-se cidadão estadunidense. Foi professor de Ciências Políticas na Universidade de Brandeis em Waltham, Massachussetts, de 1958 a 1965, e professor na Universidade da Califórnia em San Diego, de 1965 a 1976. Dentre as suas obras se destacam: Studien über Autorität und Familie (1936), Eros and Civilization (1955), One Dimensional Man (1964), Tolerância Repressiva (1965), An Essay on Liberation (1969) e The Aesthetic Dimension (1978). *** Teóloga brasileira, mestranda no Instituto Ecumênico de Pós-Graduação (IEPG), em São Leopoldo, RS, com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Sua pesquisa está direcionada à argumentação teológica dos Direitos Humanos na sociedade moderna. Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 28
  • 30. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 praticado como tolerância está, em muitas de suas manifestações mais efetivas, servindo a causa da opressão. O autor está completamente atento que, no momento, não existe nenhum poder, nenhuma autoridade, nenhum governo que traduziria tolerância libertária em prática, mas ele acredita que é a tarefa e o dever do intelectual recordar e preservar as possibilidades históricas que parecem ter se tornado possibilidades utópicas - que é a sua tarefa quebrar a concreticidade da opressão a fim de abrir o espaço mental no qual esta sociedade pode ser reconhecida como o que é e faz. Tolerância é um fim em si mesmo. A eliminação da violência e a redução da supressão ao grau exigido para proteger o ser humano e os animais da crueldade e da agressão são as condições prévias para a criação de uma sociedade humanitária. Uma sociedade assim ainda não existe; o progresso rumo a ela é talvez mais do que aquele antes apreendido pela violência e na supressão numa escala global. Como impedimentos contra a guerra nuclear, como ação policial contra a subversão, como ajuda técnica na luta contra o imperialismo e o comunismo, como métodos de pacificação em massacres neocoloniais, a violência e a supressão são promulgadas, praticadas e defendidas igualmente por governos democráticos e autoritários, e as pessoas sujeitas a esses governos são educadas a sustentar tais práticas como necessárias para a preservação do status quo. A tolerância é estendida às políticas, às condições e aos modos de comportamento que não deveriam ser tolerados porque eles estão impedindo, se não destruindo, as chances de se criar uma existência sem medo e miséria. Esse tipo de tolerância fortalece a tirania da maioria contra a qual os liberais autênticos protestaram. O locus político da tolerância mudou: enquanto for mais ou menos sorrateira e constitucionalmente afastada da oposição, ela é transformada em um comportamento compulsório com respeito às políticas estabelecidas. A tolerância é alterada de um estado ativo a um estado passivo, de prática em não-prática: laissez- Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 29
  • 31. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 faire das autoridades constituídas. São as pessoas que toleram o governo, o qual em troca tolera a oposição dentro da moldura determinada pelas autoridades constituídas. A tolerância com respeito ao que é radicalmente maldade agora se apresenta como bondade, porque serve à coesão do todo em direção à abundância ou à superabundância. A toleração do entorpecimento sistemático, semelhante em crianças e em adultos por meio da publicidade e da propaganda, a liberação da destrutibilidade em condutas agressivas, no recrutamento e no treinamento das forças especiais, a tolerância impotente e benevolente perante a completa decepção no merchandizing, inútil, e a obsolescência planejada não são distorções e aberrações, elas são a essência de um sistema que fortifica a tolerância como um meio para perpetuar a luta pela existência e para suprimir as alternativas. As autoridades em educação, em valores morais, e em psicologia esbravejam contra o aumento da delinqüência juvenil; porém elas são menos vociferantes contra a apresentação orgulhosa - em palavras, ações e imagens - de mísseis cada vez mais poderosos, foguetes, bombas - a delinqüência madura de uma civilização inteira. De acordo com uma proposição dialética, é o todo que determina a verdade - não é no sentido que o todo é anterior ou superior a suas partes, mas é no sentido que a sua estrutura e função determinam toda a relação e a condição particular. Assim, dentro de uma sociedade repressiva, até mesmo os movimentos progressistas ameaçam se transformar no seu oposto até o ponto em que eles passam a aceitam as regras do jogo. Pode-se considerar um caso mais controverso: o exercício de direitos políticos (como votar, escrever carta à imprensa, a senadores, etc., demonstrações de protesto com uma renúncia prévia da contra-violência) em uma sociedade com total administração serve para fortalecer essa administração através do testemunho da existência de liberdades democráticas, as quais, na realidade, mudaram o seu conteúdo e perderam a sua eficácia. Nesse caso, a liberdade (de opinião, de assembléia, de expressão) se torna um instrumento para absolver a servidão. E ainda Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 30
  • 32. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 (e só aqui a proposição dialética mostra sua plena intenção) a existência e a prática dessas liberdades mantêm uma condição prévia para a restauração da sua função de oposição original, contanto que o esforço para transcender (freqüentemente imposição-própria) suas limitações seja intensificado. Geralmente, a função e o valor da tolerância dependem da igualdade predominante na sociedade na qual a tolerância é praticada. A tolerância por si mesma estava sujeita a anular critérios: sua extensão e seus limites não podem ser definidos nos termos da respectiva sociedade. Em outras palavras, a tolerância é um fim em si mesmo somente quando ela é verdadeiramente universal, praticada pelos governadores como também pelos governados, pelos senhores como também pelos camponeses, pelos xerifes como também por suas vítimas. E tal tolerância universal só é possível quando nenhum inimigo real ou alegado exigir a educação e o treinamento das pessoas para a violência militar e para a destruição no interesse nacional. Tão logo quanto essas condições não prevaleçam, as condições da tolerância estão “loaded”: elas são determinadas e definidas pela desigualdade institucionalizada (que é certamente compatível com a igualdade constitucional), i.e., pela estrutura de classe da sociedade. Em uma sociedade assim, a tolerância é de facto limitada no chão dual da violência legalizada ou da supressão (polícia, forças armadas, guardas de todos os tipos) e da posição privilegiada segurada pelos interesses predominantes e por suas “conexões”. Essas limitações de fundo da tolerância normalmente são anteriores as limitações explícitas e judiciais como as definidas pelos tribunais, pelos costumes, pelos governos, etc. (por exemplo, “perigo claro e presente”, ameaça para a segurança nacional, heresia). Dentro da moldura de uma estrutura social assim, a tolerância pode ser seguramente praticada e proclamada. Ela possui dois tipos: (1) a toleração passiva de atitudes e idéias estabelecidas e fortificadas, mesmo se o seu efeito prejudicial sobre o ser humano e a natureza sejam evidentes, e (2) a tolerância ativa, a tolerância oficial concedida à direita bem como à esquerda, aos movimentos Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 31
  • 33. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 de agressão bem como aos movimentos de paz, os grupos de ódio assim como os grupos humanitários. Eu chamo esta tolerância não-partidária de “abstrata” ou “pura” já que ela se abstém de tomar partido - mas fazendo assim, na verdade, ela protege a máquina já estabelecida de discriminação. A tolerância que aumentou o alcance e o conteúdo da liberdade sempre foi partidária - intolerante perante os protagonistas do status quo repressivo. O assunto era só o estágio e a extensão da intolerância. Na sociedade liberal firmemente estabelecida da Inglaterra e dos Estados Unidos, a liberdade de expressão e de assembléia foram concedidas até mesmo aos inimigos radicais da sociedade, contanto que eles não fizessem a transição da palavra para ação, do discurso para a ação. Confiando nas efetivas limitações de fundo impostas por sua estrutura de classe, a sociedade parecia praticar tolerância genérica. Mas a teoria liberal já tinha colocado uma importante condição à tolerância: era “aplicar apenas a seres humanos na maturidade das suas faculdades”. John Stuart Mill não só fala de crianças e menores; ele elabora: “Liberdade, como um princípio, não tem nenhuma aplicação a qualquer estado de coisas anterior à época quando a espécie humana tornou-se capaz de ser aprimorada pela discussão livre e igualitária”. Anterior àquele tempo, os seres humanos ainda poderiam ser bárbaros, e “o despotismo é um modo legítimo de governo que entra em acordo com bárbaros, desde que o fim seja para a melhoria deles, e os meios sejam justificados pela real conseqüência daquele fim”. As palavras freqüentemente citadas de Mill têm uma implicação menos familiar, da qual depende o seu significado: a conexão interna entre liberdade e verdade. Há uma compreensão que a verdade é o fim da liberdade, e a liberdade precisa ser definida e limitada pela verdade. Agora, por causa da verdade, em que compreensão pode estar a liberdade? A liberdade é autodeterminação, autonomia - esta é quase uma tautologia, mas uma tautologia que é o resultado de uma série inteira de julgamentos sintéticos. A liberdade estipula a habilidade para se determinar a própria vida: para ser capaz de Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 32
  • 34. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 determinar o que fazer e o que não fazer, o que suportar e o que não suportar. Mas o conteúdo dessa autonomia nunca é o contingente, o indivíduo particular como o que ele realmente é ou é casualmente; mais propriamente, é o indivíduo como ser humano que é capaz de ser livre junto com os outros. E o problema de tornar possível tal harmonia entre cada liberdade individual e a do outro não é aquilo que é encontrado num acordo entre competidores, ou entre liberdade e lei, entre o interesse geral e individual, nem entre o bem-estar comum e privado em uma sociedade estabelecida, mas é de criar a sociedade na qual o ser humano não é mais escravizado por instituições que viciam a sua autodeterminação desde o princípio. Em outras palavras, a liberdade ainda será criada até mesmo para a mais livre das sociedades existentes. E a direção na qual isso deve ser buscado, e as mudanças institucionais e culturais que podem ajudar a atingir a meta são, pelo menos em uma civilização desenvolvida, compreensíveis, quer dizer, elas podem ser identificadas e projetadas, com base na experiência, através da razão humana. Na interação entre teoria e pratica, soluções verdadeiras e falsas tornam-se distinguíveis - nunca com a evidência da necessidade, nunca como o positivo, mas apenas com a certeza de uma chance debatida e razoável, e com a força persuasiva do negativo. Para o verdadeiro positivo está a sociedade do futuro e, conseqüentemente, está além da definição e da árida determinação, enquanto que o positivo existente é aquilo que deve ser superado. Mas a experiência e o entendimento da sociedade existente podem ser bem capazes de identificar o que não conduz a uma sociedade livre e racional, o que impede e distorce as possibilidades de sua criação. Liberdade é liberação, um processo histórico específico na teoria e na prática, e como tal tem o seu certo e o seu errado, a sua verdade e a sua falsidade. A incerteza da possibilidade nessa distinção não anula a objetividade histórica, mas necessita da liberdade de pensamento e de expressão como condições prévias para encontrar o caminho para a liberdade - necessita de tolerância. De qualquer forma, essa tolerância não pode ser indiferente e uniforme perante os Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 33
  • 35. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 conteúdos de expressão, nem em palavra nem em ação; ela não pode proteger palavras falsas e ações erradas, demonstrando que elas contradizem e contrariam as possibilidades de liberação. Tal tolerância indiferente é justificada em debates inofensivos, em conversa, em discussão acadêmica; ela é indispensável ao empreendimento científico, à religião privada. Mas a sociedade não pode ser indiferente, onde a pacificação da existência, onde a liberdade e a felicidade por si mesmas estão em jogo: aqui, certas coisas não podem ser ditas, certas idéias não podem ser expressas, certas políticas não podem ser propostas, certo comportamento não pode ser permitido sem tornar a tolerância um instrumento para a continuidade da servidão. O perigo da “tolerância destrutiva” (Baudelaire), da “neutralidade benevolente” com respeito à arte foi reconhecido: o mercado que absorve igualmente bem (embora com freqüentes e súbitas flutuações) arte, anti-arte, e não-arte, todos os estilos conflituosos possíveis, escolas, formas, abastece um “receptáculo complacente, uma garganta amigável”1, na qual o impacto radical da arte, o protesto da arte contra a realidade estabelecida é engolido. De qualquer forma, a censura da arte e da literatura é regressiva sob todas as circunstâncias. A oeuvre [obra] autêntica não é e não pode ser um suporte da opressão, e a pseudo-arte (que como tal pode ser um suporte) não é arte. A arte encontra-se contra a história, porém, ela resiste à história que tem sido a história da opressão, pois a arte submete a realidade às leis que são diferentes daquelas estabelecidas: as leis da Forma que criam uma realidade diferente - negação do estabelecido até mesmo onde a arte descreve a realidade estabelecida. Mas em sua luta com a história, a arte se sujeita à história: a história entra na definição da arte e entra na distinção entre a arte e a pseudo-arte. Dessa maneira, acontece o que uma vez era arte se torna pseudo-arte. Formas prévias, estilos e qualidades, modos prévios de protesto e recusa não podem ser recapturados dentro ou contra uma sociedade diferente. Há casos onde uma oeuvre autêntica leva 1 Edgar WIND. Art and Anarchy. London: Faber, 1963. Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 34
  • 36. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 uma mensagem política regressiva - Dostoievski é um caso relevante. Entretanto, a mensagem é anulada pela própria oeuvre: o conteúdo político regressivo é absorvido, aufgehoben [suprimido] na forma artística: no trabalho como literatura. A tolerância à liberdade de expressão é o modo de aperfeiçoamento, de progresso na liberação, não porque não há nenhuma verdade objetiva, o aperfeiçoamento deve necessariamente ser um acordo entre uma variedade de opiniões, mas porque há uma verdade objetiva que pode ser descoberta, averiguada apenas no aprendizado e na compreensão daquilo que é e daquilo que pode e deveria ser feito por causa do aperfeiçoamento de uma parte da humanidade. Esse “dever” comum e histórico não é imediatamente evidente, não está à mão: ele tem que ser descoberto ao “cortar completamente”, “dividir”, “quebrar em pedaços” (dis-cutio) o material dado - separando o certo e o errado, o bom e o ruim, o correto e o incorreto. O sujeito cuja “melhoria” depende de uma prática histórica progressiva é cada ser humano enquanto ser humano, e essa universalidade é refletida na discussão que, a priori, não exclui nenhum grupo ou indivíduo. Mas até mesmo o caráter inclusivo da tolerância liberal era, pelo menos na teoria, baseado na proposição de que os seres humanos eram indivíduos (potencialmente) que poderiam aprender a ouvir e a ver e poderiam sentir por eles mesmos, desenvolver os seus próprios pensamentos, agarrar os seus verdadeiros interesses, direitos e capacidades, também contra a opinião e a autoridade estabelecida. Essa era a razão da liberdade de expressão e de assembléia. A toleração universal torna-se questionável quando sua razão já não prevalece, quando a tolerância é administrada para indivíduos manipulados e doutrinados que papagueiam a opinião dos seus mestres como se fosse a sua própria, para eles heteronomia se tornou autonomia. O telos da tolerância é a verdade. É evidente que a partir do registro histórico, os porta-vozes autênticos da tolerância tiveram mais em mente uma e outra verdade daquela da lógica proposicional e da teoria acadêmica. John Stuart Mill fala da verdade que é perseguida na história e que não triunfa sobre a perseguição em Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 35
  • 37. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 virtude do seu “poder inerente”, que, na realidade, não tem nenhum poder inerente “contra o calabouço e a estaca”. E ele enumera as “verdades” que eram cruelmente e prosperamente liquidadas nos calabouços e à estaca: a de Arnold de Brescia, de Fra Dolcino, de Savonarola, do Albigensians, Waldensians, Lollards, e Hussites. A tolerância é a primeira e a principal para a causa dos hereges - o caminho histórico rumo a humanitas aparece como heresia: alvo da perseguição pelos poderes que são. Contudo, a heresia por si mesma não é símbolo da verdade. O critério do progresso na liberdade de acordo com a qual Mill julga esses movimentos é a Reforma. A avaliação é ex post, e a sua lista inclui a oposição (Savonarola também teria queimado Fra Dolcino). Até mesmo a avaliação ex post é contestável sobre sua verdade: a história corrige o julgamento - tarde demais. A correção não ajuda às vítimas e não absolve seus executores. Contudo, a lição é clara: a intolerância atrasou o progresso e prolongou a matança e a tortura de inocentes por centenas de anos. Isso revira o caso da tolerância “pura”, indiferente? Há condições históricas nas quais tal a toleração impede a liberação e multiplica as vítimas que são sacrificadas ao status quo? A garantia indiscriminada de liberdades e de direitos políticos pode ser repressiva? Tal tolerância pode servir para conter a mudança social qualitativa? Eu discutirei essa pergunta apenas com referência aos movimentos políticos, às atitudes, às escolas de pensamento, às filosofias que são “políticas” no sentido mais amplo - afetando a sociedade como um todo, transcendendo expressivamente a esfera da privacidade. Acima de tudo, eu proponho uma substituição no foco da discussão: ela não estará apenas preocupada, e nem fundamentalmente, com a tolerância perante os extremos radicais, as minorias, os subversivos, etc., mas antes estará preocupada com a tolerância perante as maiorias, perante a opinião pública e oficial, perante os protetores estabelecidos da liberdade. Neste caso, a discussão pode ter como um quadro de referência apenas uma sociedade democrática na qual as pessoas, como indivíduos e como membros de organizações políticas e outras, Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 36
  • 38. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 participam na construção, na sustentação, e na mudança de políticas. Em um sistema autoritário, as pessoas não toleram - elas suportam as políticas estabelecidas. Sob um sistema constitucionalmente garantido e (geralmente e também sem muitas e claras exceções) praticado são tolerados liberdades e direitos civis, a oposição e a dissensão, a menos que elas propagem a violência e/ou a exortação para a organização da subversão violenta. A hipótese subjacente é de que a sociedade estabelecida é livre, e que nenhum aprimoramento, até mesmo uma mudança na estrutura e nos valores sociais, ocorreria no curso normal dos eventos, preparados, definidos, e testados na discussão livre e igualitária, na feira aberta de idéias e bens2. Agora recordando a passagem de John Stuart Mill, eu chamei a atenção a premissa escondida nessa suposição: discussão livre e igualitária pode cumprir a função atribuída a ela somente se for expressão racional e se for desenvolvimento de pensamento independente, livre do doutrinamento, da manipulação, da autoridade estranha. A noção de pluralismo e dos poderes contraditórios não é nenhum substituto para essa exigência. A pessoa poderia construir um estado em teoria, na qual uma multidão de pressões diferentes, interesses, e autoridades compensam um ao outro e resultam em um interesse verdadeiramente geral e racional. Todavia, essa péssima construção ajusta uma sociedade na qual os poderes são e permanecem desiguais e até mesmo aumentam o seu peso desigual quando eles tomam o seu próprio curso. Essa construção ajusta até pior quando a variedade de pressões unifica e coagula uma totalidade subjugadora, integrando os poderes compensatórios particulares em virtude de um padrão crescente de vida e uma concentração crescente de poder. Então, o trabalhador cujo real interesse entra em conflito com o da administração, o consumidor comum cujo real interesse entra em conflito com o do produtor, o intelectual cuja vocação entra em conflito com aquilo que os seus 2 Eu desejo reiterar para a discussão seguinte que, de fato, a tolerância não é indiferente e “pura” até mesmo na sociedade mais democrática. As “limitações de fundo” declaradas na página [2 deste livro?] restringem a tolerância antes de ela iniciar o processo. A estrutura antagônica da sociedade manipula as regras do jogo. Aqueles que estiverem contra o sistema estabelecido estão a priori em uma desvantagem a qual não é removida pela toleração das suas idéias, discursos, e jornais. Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 37
  • 39. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 empregadores constatam por eles mesmos, submetem os intelectuais a um sistema contra o qual eles são impotentes e parecem irracionais. A idéia de alternativas disponíveis evapora dentro de uma dimensão totalmente utópica onde ela se sente em casa, pois uma sociedade livre é de fato irreal e indefinivelmente diferente da existente. Sob essas circunstâncias, qualquer melhoria pode acontecer “no curso normal dos eventos” e sem a subversão é provável que seja uma melhoria na direção determinada pelos interesses particulares que controlam o todo. Justamente por isso, essas minorias que se esforçam por uma mudança do todo propriamente dito, sob ótimas condições que raramente prevalecem, serão deixadas livres para deliberar e discutir, para falar e reunir-se - e serão deixadas inofensivas e desamparadas diante da maioria subjugadora que milita contra a mudança social qualitativa. Essa maioria é firmemente fundamentada na crescente satisfação das necessidades e da co-ordenação mental - e tecnológica – a qual testemunha o desamparo geral de grupos radicais em um sistema social que funciona - bem. Dentro da democracia abundante, prevalece a discussão abundante, e dentro da moldura estabelecida, ela é tolerante a uma grande escala. Todos os pontos de vista podem ser ouvidos: o Comunista e o Fascista, a Esquerda e a Direita, o branco e o Negro, os militantes a favor do armamento e do desarmamento. Além do mais, os debates infindavelmente prolongados a respeito da mídia, da opinião estúpida que é tratada com o mesmo respeito que a inteligente, dos desinformados que podem falar tanto quanto o informado, e da propaganda que anda junto com a educação, a verdade com a falsidade. Essa toleração pura do sentido e do absurdo está justificada pelo argumento democrático de que ninguém, nem em grupo nem individualmente, está em posse da verdade e está capacitado para definir o que é certo e errado, bom e ruim. Por essa razão, todas as opiniões competitivas devem ser submetidas “às pessoas” para sua deliberação e escolha. Mas eu já sugeri que o argumento democrático implica numa condição necessária, a saber, que as pessoas devem ser Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 38
  • 40. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 capazes de deliberar e de escolher com base no conhecimento, que elas têm que ter acesso à informação autêntica, e que, nessa base, a avaliação delas deve ser o resultado do pensamento autônomo. No período contemporâneo, o argumento democrático para a tolerância abstrata tende ser invalidado pela invalidação do próprio processo democrático. A força libertária da democracia era a possibilidade que ela ofereceu à dissensão efetiva, no indivíduo como também na escala social, sua abertura para formas qualitativamente diferentes de governo, de cultura, de educação, de trabalho - da existência humana em geral. A toleração da discussão livre e do direito igualitário da oposição era definir e esclarecer as diferentes formas de dissensão: sua direção, seu conteúdo, sua perspectiva. Mas com a concentração do poder econômico e político e a integração de opostos em uma sociedade que usa a tecnologia como um instrumento de dominação, a dissensão efetiva é bloqueada onde pudesse emergir livremente; na formação de opinião, na informação e na comunicação, no discurso e na assembléia. Sob o controle da mídia monopolizadora - eles mesmos, os meros instrumentos de poder econômico e político - uma mentalidade é criada para a qual o certo e o errado, o verdadeiro e o falso são predefinidos onde quer que eles afetem os interesses vitais da sociedade. Antes de toda expressão e comunicação, isso é um assunto de semântica: o bloqueio da dissensão efetiva, do reconhecimento do que não é do sistema governante o qual começa na linguagem que é difundida e administrada. O significado das palavras é severamente fixado. A persuasão racional, a persuasão para o oposto é tudo, mas é impedida. As avenidas de entrada são fechadas ao significado de palavras e a idéias diferentes das estabelecidas - estabelecidas pela publicidade dos poderes que existem, e verificado na sua prática. Outras palavras podem ser ditas e ouvidas, outras idéias podem ser expressas, mas, à proporção volumosa da maioria conservadora (fora de tais enclaves como a intelligentsia), elas são imediatamente “avaliadas” (i.e. automaticamente entendidas) em termos da linguagem pública - uma linguagem que determina “a priori” a Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 39
  • 41. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 direção na qual se move o processo de pensamento. Assim o processo de reflexão finaliza onde começou: nas condições e nas relações determinadas. Autovalidando-se, o argumento da discussão repele a contradição, porque a antítese é redefinida nos termos da tese. Por exemplo, tese: nós trabalhamos para paz; antítese: nós nos preparamos para a guerra (ou até mesmo: nós empreendemos a guerra); unificação de opostos; preparar-se para a guerra é trabalhar para a “paz”. A paz é redefinida como necessária, na situação predominante, incluindo na preparação para a guerra (ou até mesmo a guerra) e nessa forma orwelliana, o significado da palavra “paz” é estabilizado. Dessa forma, o vocabulário básico da linguagem orwelliana opera a priori como categorias de entendimento: pré-formando todo o conteúdo. Essas condições invalidam a lógica da tolerância que envolve o desenvolvimento racional do significado e impede o fechamento do significado. Conseqüentemente, a persuasão através da discussão e da igual apresentação de opostos (até mesmo onde realmente é, igual) facilmente perde a sua força libertária como fatores de entendimento e de aprendizado; mais provavelmente eles estão distantes de fortalecer a tese estabelecida e de repelir as alternativas. A imparcialidade até o extremo, o tratamento igual dos assuntos competitivos e conflituosos realmente é uma exigência básica para a tomada de decisão no processo democrático - é uma exigência igualmente básica para definir os limites da tolerância. Mas em uma democracia com organização totalitária, a objetividade pode cumprir uma função muito diferente, a saber, fortalecer uma atitude racional que tende a obliterar a diferença entre o verdadeiro e o falso, entre a informação e o doutrinamento, entre o certo e o errado. Na realidade, a decisão entre opiniões contrárias foi tomada antes que a apresentação e a discussão se colocassem a caminho-feito, não por causa de uma conspiração ou de um patrocinador ou de um editor, nem por qualquer ditadura, mas antes pelo “curso normal dos eventos” que é o curso de eventos administrados e pela mentalidade moldada nesse curso. Também aqui, é o todo que determina a verdade. Então a decisão se afirma, sem qualquer Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 40
  • 42. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 violação aberta da objetividade, em tais coisas como a composição de um jornal (com o rompimento da informação vital em pedaços permeados por material estranho, itens irrelevantes, relegando algumas notícias radicalmente negativas a um lugar obscuro), na justaposição de anúncios deslumbrantes com horrores turbulentos, na introdução e na interrupção da transmissão dos fatos por comerciais esmagadores. O resultado é uma neutralização de opostos, uma neutralização, porém, que toma lugar sobre as bases firmes da limitação estrutural da tolerância e dentro de uma mentalidade pré-formada. Quando uma revista imprime lado a lado uma reportagem negativa e uma positiva do FBI, ela cumpre honestamente as exigências da objetividade: todavia, as possibilidades são de que o positivo vença, porque a imagem da instituição está gravada profundamente na mente das pessoas. Ou, se um repórter informa a tortura e o assassinato de trabalhadores de direitos civis no mesmo tom não emotivo que ele usa para descrever a bolsa de valores ou o tempo, ou com a mesma grande emoção com que ele anuncia os seus comerciais, então tal objetividade é espúria - mais, ela ofende a humanidade e a verdade por estar tranqüila onde alguém deveria estar enfurecida, por abster-se da acusação onde a acusação está nos próprios fatos. A tolerância expressada em tal imparcialidade serve para minimizar ou até mesmo para absolver a supressão e a intolerância predominante. Se a objetividade tem qualquer coisa a ver com a verdade, e se verdade for mais que um assunto da lógica e da ciência, então este tipo de objetividade é falso, e esse tipo de tolerância é desumano. E se é necessário quebrar o universo estabelecido do significado (e a prática incluída nesse universo) a fim de possibilitar ao ser humano descobrir o que é verdadeiro e falso, essa imparcialidade enganosa teria que ser abandonada. As pessoas expostas a essa imparcialidade não são nenhuma tabulae rasae, elas são doutrinadas pelas condições sob as quais elas vivem e pensam e as quais elas não transcendem. Para permitir a elas tornarem-se autônomas, acharem por elas mesmas o que é verdadeiro e o que é falso para os seres humanos na sociedade existente, eles teriam que ser libertados do doutrinamento predominante (que já não é reconhecido como doutrinamento). Mas isso significa Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 41
  • 43. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 que a tendência teria que ser invertida: eles teriam que adquirir informações inclinadas na direção oposta. Porque os fatos nunca são imediatamente dados e nunca imediatamente acessíveis; eles são estabelecidos, “mediados” por aqueles que os fizeram; a verdade, “a plena verdade” ultrapassa esses fatos e requer a ruptura com a sua aparência. Essa ruptura - condição prévia e símbolo de toda a liberdade de pensamento e de expressão - não pode ser realizada dentro de uma moldura estabelecida da tolerância abstrata e da objetividade espúria, porque essas são precisamente os fatores que pré-condicionam a mentalidade contra a ruptura. As barreiras reais que a democracia totalitária ergue contra a eficácia da dissensão qualitativa são fracas e suficientemente agradáveis comparadas com as práticas de uma ditadura que reivindica educar as pessoas na verdade. Com todas as suas limitações e distorções, a tolerância democrática está abaixo de todas as circunstâncias mais humanitárias do que uma intolerância institucionalizada que sacrifica os direitos e as liberdades das gerações vivas por causa das gerações futuras. A questão é se essa é a única alternativa. Eu agora tentarei sugerir a direção na qual uma resposta pode ser buscada. Em todo caso, o contraste não está entre a democracia na teoria e a ditadura na teoria. Democracia é uma forma de governo que ajusta tipos muito diferentes de sociedade (isso se confirma até mesmo para uma democracia com voto universal e igualdade antes da lei), e os custos humanos de uma democracia, sempre e em todos lugares, são aqueles extorquidos pela sociedade cujo governo ela é. O seu alcance se estende a toda forma de exploração normal, de pobreza, e de insegurança para as vítimas de guerras, de ações policiais, de ajuda militar, etc. com as quais a sociedade está comprometida - e não só com as vítimas dentro de suas próprias fronteiras. Essas considerações nunca podem justificar a extorsão de diferentes sacrifícios e as diferentes vítimas em nome de uma melhor sociedade futura, mas elas reconhecem o peso dos custos envolvidos na perpetuação de uma sociedade existente contra o risco de promover alternativas que ofereçam uma possibilidade razoável de pacificação e Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 42
  • 44. Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Protestantismo (NEPP) da Escola Superior de Teologia Volume 12, jan.-abr. de 2007 – ISSN 1678 6408 liberação. Certamente, de nenhum governo pode ser esperado que fortaleça sua própria subversão, mas em uma democracia assim o direito é adquirido pelas pessoas (i.e. pela maioria das pessoas). Isso significa que os modos, nos quais uma maioria subversiva poderia se desenvolver, não deveriam ser bloqueados sobre os quais, e se eles são bloqueados por uma repressão organizada e pelo doutrinamento, sua reabertura podem exigir meios aparentemente antidemocráticos. Eles incluiriam a retirada da toleração do discurso e da assembléia de grupos e movimentos que promovem políticas agressivas, armamento, chauvinismo, discriminação por motivos de raça e de religião, ou que se opõem à extensão dos serviços públicos, de previdência social, de cuidado médico, etc. Além disso, a restauração da liberdade de pensamento pode necessitar restrições novas e rígidas em ensinos e práticas nas instituições educacionais que, pelos seus mesmos muitos métodos e conceitos, sirvam para incluir a opinião dentro do universo estabelecido de discurso e comportamento - impedindo a priori assim uma avaliação racional das alternativas. Na condição para a qual a liberdade de pensamento envolve a luta contra a desumanidade e a restauração de tal liberdade também implicaria na intolerância perante a pesquisa científica no interesse de “impedimentos” mortais de resistência humana anormal sob condições desumanas, etc. eu discutirei agora a questão como quem vai decidir a distinção entre liberar e reprimir, ensinos e práticas humanos e desumanos; Eu já sugeri que essa distinção não é uma questão de preferência de valor, mas de critérios racionais. Embora a reversão da tendência no empreendimento educacional pudesse, pelo menos, ser obrigada concebivelmente pelos estudantes e por seus professores, e assim fosse auto-imposta, a retirada sistemática da tolerância perante opiniões e movimentos regressivos e repressivos só poderia ser enfrentada como resultados de pressão em larga escala que chegaria a um motim. Em outras palavras, isso pressuporia aquilo que ainda será realizado: a reversão da tendência. De qualquer forma, a resistência em ocasiões particulares, o boicote, a não-participação dos Disponível na Internet: http://www3.est.edu.br/nepp 43