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RAFAEL ORTEGA CARVALHO
“De Seu Madruga e louco,
todo mundo tem um pouco”
Ensaio fenomenológico-existencial
acerca da popularidade do seriado
‘Chaves’
Faculdade de Psicologia
Pontifícia Universidade Católica
São Paulo
2007
RAFAEL ORTEGA CARVALHO
“De Seu Madruga e louco, todo mundo tem um pouco...”
Ensaio fenomenológico-existencial acerca da popularidade do
seriado ‘Chaves’
Trabalho de conclusão de
curso como exigência parcial para
graduação no curso de Psicologia,
sob orientação do Prof. Carlos
Eduardo de Carvalho Freire.
Faculdade de Psicologia
Pontifícia Universidade Católica
São Paulo
2007
“Aí vem o Chaves, Chaves, Chaves,
Todos atentos olhando pra TV.
Aí vem o Chaves, Chaves, Chaves,
Com uma historinha bem gostosa de se ver.
Aí vem o Chaves, Chaves, Chaves,
Todos atentos olhando pra TV.
Aí vem o Chaves, Chaves, Chaves,
Com uma historinha bem gostosa de se ver.
A Chiquinha é uma gracinha,
Relincha tanto quando vai chorar.
E Seu Madruga, sempre muito calado,
Não abre a boca só pra não brigar
O Professor Girafales e a Dona Florinda,
Se gostam tanto mas casório, nada ainda.
E tem o Quico com a bochecha toda inchada,
E é claro o Chaves, o rei da palhaçada,
E é claro o Chaves, o rei da palhaçada.
Aí vem o Chaves, Chaves, Chaves,
Tô chegando!
Aí vem o Chaves, Chaves, Chaves.*
”
“Ninguém me presenteou nada e sou muito afortunado, porque
conto com o tesouro maior que qualquer artista sonha em ter: o
carinho do público, que sabe muito bem quem sou.”
Roberto Gómez Bolaños em recente entrevista**
ao ser
questionado acerca de seu suposto envolvimento com membros
do narcotráfico.
*
Música tema da abertura do programa no Brasil (Aí vem o Chaves – SBT).
**
Criador de Chaves e Chapolin nega suposta relação com o narcotráfico. In: UOL Diversão e Arte.
Disponível em: <http://diversao.uol.com.br/ultnot/efe/2007/09/18/ult1817u6970.jhtm> Acesso em: 2
nov. 2007.
Agradecimentos
Agradeço a meu orientador Edu, Carlos Eduardo de Carvalho Freire. Meus
amigos, aqueles que estiveram presentes e me apoiaram e ajudaram. Aos meus irmãos e
meus brothers. Ao meu pai que, apesar de não compreender meus caminhos, esteve
sempre ao meu lado me apoiando. Pelo apoio e presença das minhas quatro mães: a mãe
do dia-a-dia de casa, Odete; a mãe-terapeuta e professora, das confissões, lutas e
vitórias, Ana Silvia; a mãe-acadêmica, presente e acolhedora em todos os anos da
faculdade, desde a primeira aula, Flavia; e finalmente, a mãe-herói, mãe-ídolo, mãe-
exemplo pessoalmente e profissionalmente, a mãe mesmo, de verdade, Paula Ortega.
Muito obrigado!
Rafael Ortega Carvalho: “De Seu Madruga e louco, todo mundo tem um pouco...”:
Ensaio fenomenológico-existencial acerca da popularidade de ‘Chaves’, 2007.
Orientador: Prof. Carlos Eduardo de Carvalho Freire
Palavras-chave: fenomenologia-existencial, ser-no-mundo, Bolaños.
Área do conhecimento (segundo CNPq): Psicologia (7.07.00.00-1)
Resumo
O presente trabalho pretende investigar o sucesso e a popularidade do seriado Chaves
no Brasil. O seriado, criado no México em 1970, é reprisado por aqui até hoje e, junto
com seu “irmão” Chapolin, atinge níveis de audiência invejáveis pelas emissoras
concorrentes do SBT, que detém seus direitos de veiculação no Brasil desde a chegada
em 1985. O autor e protagonista Bolaños escreveu um livro onde conta a história do
garoto Chaves antes de sua chegada à vila conhecida pelos milhões de telespectadores,
além de desmentir alguns dos boatos acerca deste. O garoto órfão, abandonado, pobre e
ingênuo passa por dificuldades, sozinho na cidade grande até chegar à vila, sua última
morada conhecida. Lá acontecem as divertidas trapalhadas de Chaves e sua turma. Na
escola e no pátio da vila é que Chaves aprende muita coisa, brinca com os amigos
Chiquinha, Quico e Nhonho, além de conseguir sempre aprontar alguma com os adultos
rabugentos Dona Florinda, Seu Madruga, Sr. Barriga, etc. Assim ele acaba tomando uns
cascudos. Mas tudo bem, no final eles sempre o perdoam e acolhem. Para chegar ao
sentido da popularidade desse seriado e desse humor, recorremos às dimensões da
existência humana expostas por Martin Heidegger. Ser-no-mundo, ser-com-os-outros, a
cotidianidade e a condição fundamental da angústia guiarão a análise aqui feita para
compreender o seriado aos olhos de um espectador. A análise mostra que o humor do
seriado carrega consigo uma certa nostalgia da infância que, assim como o humor do
próprio personagem, nos lança a um mundo menos ameaçador e angustiante. A
ingenuidade de Chaves cativa seus espectadores mostrando que podemos habitar
também um mundo de formas amigáveis mesmo vivendo numa grande metrópole ou
tendo poucos recursos financeiros, enfim, tendo que ser quem somos.
Sumário
I. Introdução .......................................................................1
II. Método .............................................................................4
III. O seriado (Generalidades) .....………............................................6
IV. Análise Existencial (ser-no-mundo, ser-com-os-outros e cotidiano) .….….....16
V. Análise e Discussão ........................................................23
VI. Considerações Finais .........................................…..........31
VII. Referências Bibliográficas ..................................….........33
I. Introdução
O fenômeno a ser estudado neste trabalho é o seriado de televisão chamado no
Brasil de “Chaves”. Este seriado está no ar há mais de vinte anos em nosso país e foi
produzido originalmente no México na década de 70. Apesar da grande popularidade do
seriado em toda a América Latina e de seus mais de 30 anos de existência, pouco se
pesquisou academicamente, entre nós, acerca deste programa. Sua grande popularidade,
apesar da paupérrima produção, as incansáveis reprises e os temas abordados em alguns
episódios levantam diversas questões a serem investigadas. A vida de um pobre garoto
em uma grande cidade de um país em desenvolvimento tratada em um clima de humor,
ingenuidade e doçura serão o principal tema de nosso trabalho. Além disso, tratar-se-á
aqui de alguns dos diversos fatos e curiosidades que envolvem esta série humorística,
fazendo parte de um sucesso da televisão muito popular e querido, mesmo após 30 anos
de permanência no ar e apesar de sua precária produção.
Neste trabalho daremos especial atenção ao personagem principal, o garoto
Chaves, protagonizado pelo criador da série, Roberto Gómez Bolaños, porém sem
deixar de lado seu companheiro na grade horária televisiva do SBT, o herói atrapalhado
Chapolin Colorado, além dos demais personagens que convivem com Chaves na vila.
Chapolin chegou junto com Chaves ao Brasil e por muito tempo foram
“companheiros” na grade horária de emissora que os transmite até hoje por aqui, ou
seja, eram exibidos um após o outro. Sendo assim, no Brasil, os dois personagens,
através de seus programas independentes sempre foram tidos como muito próximos;
algumas pessoas chegam a confundir os dois seriados. Natural, já que ambos são fruto
da criação do humor de Bolaños, além de terem sido criados na mesma época.
“As duas séries tiveram várias alterações de horário ao longo dos anos, mas
sempre há um público novo descobrindo as cômicas aventuras de seus personagens.
Estes jovens espectadores se juntam aos nostálgicos adultos e aos fãs incondicionais de
sempre.”2
Ambos também se assemelham no que diz respeito à qualidade do cenário e da
produção técnica como um todo, além da especificidade do humor de Bolaños, retratada
nas “trapalhadas” de ambos os protagonistas. Aqui se discutirá alguns aspectos da
popularidade destes personagens a partir da fenomenologia de Martin Heidegger
apresentada em Ser e Tempo (2006). Temas como a condição humana de ser-no-mundo,
2
LUGO, Omar. Popularidade de "Chaves" atravessa décadas no Brasil e vira livro. 2007. Disponível em:
<http://diversao.uol.com.br/ultnot/efe/2007/03/19/ult1817u6051.jhtm> Acesso em: 19/03/2007.
impessoalidade, queda, angústia, entre outros, orientarão nossas considerações. A
principal pergunta a ser respondida fica definida como: o que há de especificamente
característico nestes seriados de Bolaños que os fazem ser populares e risíveis ainda
hoje, mesmo tendo sido produzido precariamente há mais de 30 anos e sendo apenas
reprisados desde então?
Ou seja, o que faz com que este seriado tenha peculiar popularidade entre nós
brasileiros e como se dá essa proximidade que crianças, jovens e adultos têm com os
personagens das séries. Tudo isso levando em conta a idade da produção e suas
condições desfavoráveis no sentido tecnicamente televisivo. A questão é a proximidade
entre o mundo de Chaves e aspectos do mundo de brasileiros. Ou seja, como e por que
esta popularidade se deu (e se dá...)?
Iremos dialogar com tais dimensões expostas em Ser e Tempo pois este seriado
permeia a vida de diversas pessoas não só brasileiras em diversos âmbitos. Um deles, o
que pretendo investigar, é o humor de Chaves que faz parte da realidade de muitas
crianças e adultos no Brasil e na América Latina de maneira generalizada. Isso se
mostra principalmente a partir do fim da década de 1990, entre os jovens. Nota-se que
alguns dos bordões e trocadilhos presentes nos seriados, característica marcante do
humor de Bolaños, estão presentes constantemente no quotidiano destes jovens,
reconhecidamente. Além disso, Chaves tem um lado que diz respeito a todos nós.
O fato de estar no ar há tantos anos no Brasil, de possuir um cenário tão tosco,
de ser tão precariamente produzido, de ser tão popular no Brasil a ponto de termos
alguns de seus bordões e trocadilhos como referência quotidiana, de ser popular
atingindo público das mais diversas idades (ao menos no Brasil) são as questões que
instigam nossa pesquisa.
“No Brasil, "Chavesmaníacos" de todas as idades participam de fã-clubes e
freqüentemente organizam encontros, atualmente facilitados pela internet. Em várias
cidades do país, costumam reunir-se para rever capítulos, trocar peças de coleção ou
simplesmente cultuar a infância que já se foi.”3
Legiões de fãs e produtos, licenciados ou não, com imagens dos personagens e
até mesmo sátiras, demonstram a enorme popularidade e o apelo comercial que o
seriado assumiu ultimamente, no início do século 21, ao completar 30 anos no ar.
Eventos reunindo atores e até mesmo os dubladores da versão brasileira atraíram
centenas de “Chavesmaníacos”. Nossa questão é refletir sobre este fenômeno.
3
Idem.
Além disso, outro fator que chama atenção no seriado é seu tipo de humor,
simples e ingênuo. As piadas, reprisadas há vinte anos, ainda geram gargalhadas e, o
mais incrível, soam como se fosse a primeira vez. As piadas de Chaves têm uma
característica muito importante no humor que é o fato de trazer o óbvio de forma
inesperada.
II. Método
Esta pesquisa terá o enfoque fenomenológico como método de investigação.
Haverá dois movimentos principais durante o processo desta pesquisa, a aproximação
teórica buscando alguns aspectos da existência humana tratados por Martin Heidegger
em Ser e Tempo (2006), o outro é a análise das próprias impressões deste pesquisador
sobre o seriado e suas reverberações. Portanto, leva-se em conta que a experiência
pessoal do pesquisador é o que “recorta” esta investigação.
Assim, com o olhar fenomenológico na análise deste material, tratar-se-á o tema
aqui abordado como fenômeno, e, na proximidade e no contato íntimo com este se
buscará a compreensão do problema que esta pesquisa pretende responder, a pergunta já
citada acima.
Acerca desta concepção:
“O interrogador faz parte do que ele quer saber e do que ele pode ver. Ele é
elemento constituinte desse olhar em que tudo o que é tem sua chance de aparecer,
mesmo que como mera testemunha.
(...) Este olhar do interrogador ou interrogador, por sua vez, é jamais um olhar
dele mesmo, isolado, mas um olhar plural do qual fazem parte todos aqueles com quem
ele mesmo é-no-mundo. Mas é também um olhar exclusivo, no qual se expõe toda sua
singularidade. Esse olhar do interrogador também deve ser interrogado
fenomenologicamente, em busca de seu sentido.”(Critelli, 2006, p. 149)
O que se busca com este método é esclarecer o sentido de um acontecimento.
Mas o que é sentido? Sentido, como podemos ver em Ser e Tempo:
“(…) é o contexto no qual se mantém a possibilidade de compreender algum
coisa, sem que ele mesmo seja explicitado ou, tematicamente, visualizado. Sentido
significa a perspectiva do projeto primordial a partir do qual alguma coisa pode ser
concebida em sua possibilidade como aquilo que ela é.” (Heidegger, 2006, p. 408)
“Sentido é aquilo em que se sustenta a compreensibilidade de alguma coisa” (p.
212)
Levando em consideração a prévia compreensão do método fenomenológico e o
modo próprio da fenomenologia de produzir conhecimento, ou seja, a partir de um
pensamento que questiona o sentido do ser de algo assim mantendo-se sempre à cerca
deste em um movimento circular, é que se buscará, no caso desta pesquisa o sentido da
popularidade do seriado tido aqui como objeto principal e foco, Chaves.
“A reconstrução da arquitetura do texto toma então uma forma circular, que faz
dialogar partes e todo; a atribuição de diferentes graus de importância a certos aspectos
é feita por meio de conjeturas. Como uma totalidade singular, o texto pode ser abordado
de várias faces, mas não de todas simultaneamente. Assim, ao reconstruí-lo sempre o
fazemos de uma perspectiva.
Os textos são lidos como um todo para conjeturar o seu sentido mais geral.
Certos temas são aprofundados à luz do sentido mais global e emergem interpretações
mais prováveis do que outras, o que não significa serem mais verdadeiras, mas
validadas em uma lógica da incerteza, pela argumentação;
A interpretação explicita então a compreensão do fenômeno em um processo
concebido como um arco hermenêutico. Encontramo-nos com um texto munidos de
uma pré-compreensão, que dá um sentido para a sua totalidade. Feita a análise, com o
foco na interconexão de suas partes, o texto impede uma expressão completa da
subjetividade do leitor e quanto mais se avança no sentido do texto, mais essa
subjetividade é impedida de expressar-se.
A referência por trás do texto vai sendo suspensa e as proposições apontam para
um horizonte que abre um mundo, por meio de suas referências não ostensivas. Emerge
uma zona de significados que nos permite compreender o texto de uma forma
diferente.” (Kublikowski, 2007)
Partindo dessas orientações é que este trabalho será conduzido. Contudo, é claro,
pretende-se ir além de meras impressões pessoais e alcançar o sentido deste seriado.
III. O Seriado (Generalidades)
O objeto de estudo deste trabalho será o seriado de televisão chamado, no Brasil,
de Chaves. Trata-se de um seriado humorístico de caráter infantil que após ser
produzido no México na década de 70, tornou-se popular também entre jovens e adultos
brasileiros após 1984. O seriado trata da vida de um garoto pobre de supostos oito anos
de idade, chamado pelos outros de Chaves. Este, além de ser o protagonista que dá
nome ao seriado, será abordado aqui – enquanto personagem – como principal foco de
estudo. Ele passa seus dias em uma vila pobre de uma cidade grande, onde também
moram outras pessoas igualmente simples, mas, nenhuma delas tão pobre quanto ele.
Seus melhores amigos são Quico e Chiquinha. Quico mora em uma das casas da
vila com sua mãe, uma viúva brava que o protege como seu tesouro, chamada Dona
Florinda. Chiquinha mora com seu pai, tido por muitos como vagabundo por não
conseguir emprego e nunca pagar o aluguel, o rabugento Seu Madruga. Em uma outra
casa da vila mora a temida Bruxa do 71, uma senhora velha que ganhou este apelido das
crianças que morrem de medo dela, seu nome verdadeiro é Dona Clotilde. O dono de
toda a vila e responsável pela cobrança dos aluguéis é o Sr. Barriga que é sempre
recebido na vila com uma pancada de Chaves, mas é sempre "sem querer, querendo".
Seu filho Nhonho também costuma brincar com as crianças da vila, sempre se gabando
de ter muito dinheiro e poder comprar quanta comida quiser, o que mais decepciona
Chaves.
Há alguns outros personagens como o Carteiro Jaiminho, as outras crianças que
freqüentam a escola, etc. Estes têm menor evidência e importância no enredo e
aparecem com freqüência distinta durante os episódios, inclusive durante as diversas
fases de produção e mudanças de elenco pelas quais passou o seriado.
Alguns dos episódios se passam na escola da vizinhança onde Chaves, seus
amigos e alguns outros personagens têm aulas em um ambiente muito parecido ao da
“Escolinha do Professor Raimundo” do humorista brasileiro Chico Anísio. Na escolinha
mexicana o professor Girafales (Chamado pelas crianças por diversos apelidos – o
preferido: Professor Lingüiça) faz perguntas às crianças, indagando fatos históricos,
nomes de animais e outras coisas, sempre dando espaço para alguma piada ou trocadilho
por parte dos alunos; é assim, inclusive, que se dá o humor da cena.
É na escola que Chaves mais sofre com as brincadeiras dos amigos, já que não
teve muita oportunidade de estudo quando mais novo. Além disso, através de um misto
de ingenuidade e malícia, acaba respondendo às perguntas com respostas espontâneas e
“autênticas”, contudo infelizmente incorretas e por isso mesmo, risíveis.
Um das mais significativas “tiradas” de Chaves, ou seja, que explicita melhor
seu mundo, aparece em episódio em que há uma aula sobre os animais. Esta passagem,
além de mostrar o típico gênero humorístico do seriado, mostra também um pouco da
relação de Chaves com a pobreza e a fome:
“Hoy nuevamente seguimos estudiando a los animales.
El Professor Jirafales nos explico que los animales que comen carne son
carnívoros; los que comen fruta son frutívoros; los que comen insectos son
insectívoros, y asi.
Entonces Quico dijo que los que comen enchiladas son enchiladívoros y los que
comen gordas pellizcadas son gordaspellizcadívoros.
Pero el Professor Jirafales regaño a Quico por haber dicho eso.
Luego preguntó que cuáles eran los animales que comian de todo, y yo
respondi que los que comían de todo eran los ricos.” (Bolaños, 2000, p. 40)
Quando Chaves sente-se aborrecido, entra no barril que fica num canto da vila
perto dos tanques de lavar roupa e lá fica chorando e pensando na vida. Seus amigos já
sabem disso e quando não o encontram no pátio, é lá que o procuram. Muitas pessoas
pensam que Chaves mora neste barril, mas lá é apenas seu refúgio para estas horas
tristes e difíceis. Por ser órfão Chaves é cuidado pelas pessoas da vizinhança, ganha
comida ou esmola ao fazer favores para as pessoas da vila, na maioria das vezes para
Dona Florinda. Já chegou até mesmo a engraxar sapatos e fazer malabares em sinal de
trânsito, algo muito comum entre os garotos de rua aqui no Brasil.
Apesar da pobreza, Chaves é geralmente bem humorado e brincalhão, é também
um pouco ingênuo, o que o faz parecer bobo quando Chiquinha ou Quico o enganam
para conseguir vantagem sobre ele nas brincadeiras. Talvez esteja neste seu jeito de ser
uma das razões pelas quais o seriado é tão cativante e popular.
O Diário De Chaves (A Pré-História Do Garoto)
Bolaños publicou um livro chamado originalmente de El Diário de el Chavo del
Ocho (em português “O diário do Chaves”) no qual o autor revela a biografia do garoto
antes de chegar à vila onde apronta suas trapalhadas na televisão. Este livro foi lançado
em 2000, ou seja, após o término das gravações do seriado. Neste livro Bolaños relata a
história da infância do personagem (que conta sua biografia em primeira pessoa)
inclusive descrevendo como foi sua chagada à vila. Além disso, esta narrativa dá conta
de satisfazer algumas curiosidades que ao longo da duração do seriado se tornaram
controversos, como a história do barril, o nome de Chaves, etc.
No livro, Bolaños relata que Chaves é um garoto pobre que tem, no momento do
relato (Bolaños, 2000, p. 6), pouco menos de oito anos. Veste-se com roupas sujas e
velhas e um sapato que parece ter pertencido a um adulto. Também usa um gorro, que
no inverno deve ter-lhe sido bastante útil; apesar disso, usava-o em pleno verão. Chaves
nem mesmo tem um nome. “Chavo del Ocho” é um apelido que lhe deram quando ele
chegou à vila em que passou uma boa parte de seus dias. Foi lá onde conheceu vários de
seus amigos e muitas pessoas que lhe ajudavam dando moradia e comida.
Sua infância foi muito parecida com a de muitos outros garotos pobres das
cidades grandes (principalmente na América Latina). Chaves foi abandonado pelos pais.
Na infância, sua mãe o levava a uma creche, onde ele passou sua primeira infância. Lá
ela voltava ao final de cada dia, cansada do trabalho, e levava seu filho para casa. O
problema é que ela nem sempre levava o mesmo garoto. “O sea, que lo más seguro es
que yo no sea yo.” (Bolaños, 2000, p. 9)
Depois de certo tempo, levaram-no a um orfanato. Lá, ele conviveu com outras
crianças em situações semelhantes à sua e teve seu primeiro contato com a morte, seu
melhor amigo se foi. Chaves se sentia muito sozinho e com muito medo. Nesse orfanato
ele era mal tratado e repreendido, o que o levou a fugir.
Vagando pelas ruas, Chaves se deu conta de que passava fome:
“Porque en esta vida lo más importante es comer. Por eso me metí al mercado, donde
habia muchisisísimas cosas de comer. Lo malo era que yo no tenía dinero para
comprarlas. Entonces pensé robarme algo, pero recordé que era pecado robarse las
cosas; sobre todo cuando el dueño es otro. Por eso lo que hice fue pedir que me
regalaran algo.” (Bolaños, 2000, p. 19)
Chaves é um garoto doce, terno, conquista as pessoas com simplicidade. Passava
os dias vagando pelas ruas, até que em algum momento lhe dava muito medo e vontade
de fugir, correr por aí. Numa dessas ocasiões, conheceu um grupo de garotos que faziam
malabares em um semáforo em troca de esmola. Lá Chaves viu que esses garotos
costumavam fumar e cheirar algo dentro de uma sacola. Um dia um dos garotos foi
atropelado no semáforo. Chaves viu a cena, viu outro garoto chorando. Novamente
sentiu muito medo e correu. Desta vez ele chegou ao seu último destino conhecido, a
vila.
Nesta passagem do livro, Bolaños explica uma das maiores curiosidades sobre o
seriado, a questão do numero 8 (Chavo Del Ocho). Também envolve o barril, um
refúgio/moradia do garoto. Os rumores, antes do livro, dizem que Chaves tem oito anos,
ou que o personagem tem este apelido por ser transmitido, no início, no canal 8, no
México. A verdade vem a seguir.
Na vila, Chaves foi acolhido por uma senhora que morava na casa de número
oito. Esta senhora lhe cedeu moradia e comida. Logo, esta senhora também morreu.
Chaves ficou lá até que chegasse um novo morador, aí ganhou seu apelido em espanhol,
“Chavo del Ocho” , cuja tradução seria algo como ‘Moleque do oito’. Após a chegada
de novos moradores para aquela casa, Chaves acabou ficando pela vila. Seus amigos lhe
cediam suas casas para passar as noites. Alguns dizem que ele mora no barril, mas ele
desmente:
“Porque no es cierto esto que yo vivo dentro de un barril, como han dicho algunos. Lo
que pasa es que yo me meto al barril cuando no quiero que los demás se den cuenta de
que estoy llorando. Y también cuando tengo muchas cosas en que pensar.” (Bolaños,
2000, p. 25)
Na vizinhança Chaves conheceu diversas crianças, seus amigos, e alguns
adultos, os moradores da vila. Lá teve a oportunidade de estudar, junto com seus
amigos. Na vila ele brinca e passa seu tempo junto com seus amigos, apesar de às vezes
eles fazerem-no de bobo. Ou às vezes, ele mesmo é quem se faz de bobo.
Chaves é uma criança muito espontânea e diz as coisas como pensa, o que às
vezes acaba lhe custando algumas broncas do professor ou pancadas do seu vizinho seu
Madruga (‘Don Ramon’). Inclusive, o modo como fala (escreve, no diário) enquadra-se
na fase do desenvolvimento chamada ‘pensamento pré-operatório’. Isto se mostra
quando compreende as coisas ao “pé-da-letra”, de forma imediata (crua?) ou raciocina
por justaposição, etc. Exatamente por isso, é determinado o caráter risível de diversas de
suas falas4
também presentes no seriado e características marcantes do tipo de humor
4
Alguns exemplos:
“Los animales que comem carne se llaman carnívoros; los que comen frutas, frutívoros; los animales que comen de todo se llaman
ricos.” (Bolaños, 2000, p. 40)
“El señor Barriga tiene tantisisísimo dinero, que le alcanza para comprar toda la comida que quiera. Y por eso mismo también es
el señor más gordo del mundo.” (Bolaños, 2000, p. 33)
“El professor Jirafales nos explicó que la palavra ‘epidemia’ quiere decir que mucha gente está enferma de la misma enfermidad.
O sea que la enfermidad es mucha y está muy repartida. Por eso pienso que cuando el señor Barriga se enferma del estómago, es
como si toda la epidemia fuera para él solito.” (Bolaños, 2000, p. 33)
“La diferencia que hay entre los animales e las cosas es que los animales son seres vivos (Menos quando ya están muertos).”
(Bolaños, 2000, p. 37)
“(…) Lo malo fue que entonces me preguntó que cuándo me lavé las manos, pero ni tuviera yo tanta memoria. Finalmente me
preguntó que cuándo me bañé por última vez, pero francamente yo todavía no me baño por última vez. Eso se lo deben preguntar a
los que ya se murrieran, porque los que estamos vivos no podemos saber cuándo será la última vez que nos bañemos.” (Bolaños,
2000, p. 42)
presente em ambos os seriados.
É notável como este garoto que passou por condições completamente inóspitas e
adversas, teve resiliência e manteve-se inocente, ingênuo e terno. O caminho comum ou
provável seria juntar-se aos outros garotos que encontrou na rua, assim, possivelmente,
tornando-se um delinqüente infantil ou um criminoso ou envolvido com drogas. A
pergunta que fazemos é: como pôde este garoto manter-se longe deste caminho? O que
o manteve longe disso? Por que não lhe foi atraente o caminho mais “provável” ou mais
“comum”? O mérito do garoto do barril foi o de ter conseguido passar por tais situações,
evitando-as de forma serena.
História Da Produção Do Seriado (Origens)
Chaves é um seriado da televisão Mexicana que chegou ao Brasil em 1984, aqui
fez muito sucesso e rende índices de audiência notáveis até hoje. O texto a seguir
esclarece o histórico do seriado, assim poderemos compreender o contexto em que
surgiu este programa.
Por volta de 1968, o humorista Roberto Gómez Bolaños, autor e protagonista do
seriado Chaves, ainda escrevia roteiros de humorísticos mexicanos. À medida que
aumentava seu sucesso, passava a escrever para outros humoristas. Assim, pouco tempo
depois, teve a oportunidade de também atuar além de continuar escrevendo. Bolaños
recebeu uma proposta para criar dois pequenos quadros humorísticos, estes com duração
de algo como dez minutos cada: “Los supergenios de la mesa cuadrada” e “El
ciudadano Gómez”. Em 1970, a emissora resolve aumentar o tempo de Bolaños para
uma hora, assim, o humorista teria um programa somente seu. Nasce aí o programa
“Chesperito”, apelido de Bolaños, fazendo alusão a Shakespeare. Este era um programa
constituído de diversos quadros humorísticos que passava às segundas-feiras,
transmitido no horário nobre mexicano.
Um desses quadros era o “Chapolin Colorado” (originalmente Chapulín
Colorado) que foi ao ar um ano antes de Chaves. Este seriado tratava de um herói, ou
anti-herói, trapalhão e medroso que era chamado para resolver situações das mais
diversas. Lidava com piratas, ladrões, pistoleiros, até mesmo lutadores de karatê. Assim
“Lo que pasa con la História es que los professores hacen trampas, pues te preguntan cosas que pasaron cuando uno ni siquiera
había nacido. (…) cada vez hace más difícil estudiar, porque siempre siguen pasando cosas. (…) para los adultos fue muy fácil,
pues cuando ellos estudiaron casi no habia pasado nada.” (Bolaños, 2000, p. 48)
…entre muitos outros!
resolvendo as situações às quais era chamado sempre da maneira mais inusitada
possível.
Chapolin foi produzido no México de 1970 a 1979; houve uma breve
interrupção, até 1980, quando foi retomado até 1993, sempre como quadro dentro do
programa de Chesperito. No Brasil, chegou junto com Chaves e o acompanhou na grade
horária do SBT por muitas vezes.
Um ano mais tarde, em 20 de junho de 1971, foi ao ar o primeiro episódio de "El
Chavo del Ocho” ainda como um esquete no programa Chesperito. No início o esquete
mostrava crianças em um parque público, apenas para preencher espaços no programa.
À medida que foi recebendo elogios, Chaves foi ganhando mais espaço e tomando a
forma que acabou tornando-se mais popular. Foram adicionados personagens pouco a
pouco, assim constituindo o pequeno mundo de Chaves. Desta forma, as histórias de
Chaves passaram a ter como cenário uma simples vila do subúrbio da Cidade do
México.
Seu nome em espanhol, a língua original, é El Chavo del Ocho, que significa
algo como “O moleque do oito” (da casa número oito – da vila). Chavo é uma gíria de
origem mexicana que designa garoto. No Brasil diríamos moleque, pivete, piá, guri,
algo próximo disso. O número oito é um dos diversos aspectos do programa que acabou
se tornando misterioso. Diversas histórias e aspectos do programa acabaram tendo este
lado obscuro. Oito é o número da casa onde Chaves ficou por algum tempo logo que
chegou à vila. É também sua suposta idade, já que nem ele mesmo sabe ao certo, tanto
quanto seu nome (por isso assumiu o nome “Chavo del ocho” como o chamam na vila).
Este também é número do canal da primeira emissora a passar Chaves no México, atual
Televisa, uma das maiores emissoras de televisão no México. Alguns dos críticos vêm
essa questão do número oito como algum tipo de jogada de marketing. De qualquer
forma, depois de algum tempo, o seriado passou para o canal dois, que também pertence
à mesma emissora, Televisa.
Em pouco tempo, Chaves e Chapolin transformaram-se em seriados
independentes devido à sua grande popularidade no país de origem. Em 1973 já eram
líderes de audiência em vários países da América Latina. Ainda nesta época os
personagens estavam sendo agregados ao seriado e ganhando cada um as características
e personalidade que vemos no seriado após seu amadurecimento. Ainda assim, o cenário
continua tão precário quanto no início do programa, quando era apenas um esquete
dentro de Chesperito. O cenário da vila foi feito de madeira e papelão e o barril onde
Chaves costuma se esconder fica perto da escada. Lá se passam os enredos mais
diversos da turma, além da escola e do restaurante, que marcam outras fases específicas
do seriado quando o elenco sofria modificações.
O ano de 1975 foi o que marcou o auge do programa no México, inclusive por
uma melhora significativa na qualidade da imagem. Nos dois anos seguintes melhorou o
cenário, então, começaram a ser gravados remakes e músicas. Estas, que se tornaram
rapidamente populares, são lembradas até hoje, inclusive com versões em português.
Nesta época os integrantes do grupo já eram celebridades famosas em grande
parte da América Latina. Em 1978 foram gravados episódios memoráveis como os de
Acapulco5
e o especial de Natal. Então, o elenco já fazia turnês pela América Latina,
apresentando-se em shows lotados. No ano seguinte, saíram do programa alguns dos
atores, o que marca o fim da “independência” do programa, e em 1980 Chaves volta a
fazer parte do programa Chesperito. Bolaños não gostava da idéia de contratar novos
atores para os personagens já consagrados, então adaptou o seriado incluindo novos
personagens e novos cenários como o restaurante da Dona Florinda. Em 1981 o ator
Ramón Valdés, cujo papel é um dos mais famosos e carismáticos do seriado, o Seu
Madruga (Don Ramón – chamado por Chaves de “Ron Damón”), retorna à turma. As
gravações desta primeira fase do seriado pararam no ano de 1983, quando Bolaños
decidiu que já era hora de parar. Seu personagem, o protagonista Chaves, era um garoto
de supostos oito anos interpretado por ele que já tinha, à época, 54 anos.
Foi neste período que a emissora muda de estratégia e começa a tentar vender
pacotes com episódios dos programas de Chesperito aos países que ainda não haviam
comprado, entre eles o Brasil. Nos pacotes de novelas mexicanas eram incluídos alguns
episódios da dupla Chaves e Chapolin.
Nesta mesma época, o elenco excursionou por diversos países, em sua maioria
na América Latina, fazendo apresentações dos personagens da vila (do seriado Chaves)
e de Chapolin. Em 1988, após a morte de Ramón Valdés (Seu Madruga) e o
afastamento de Carlos Villagrán (Quico – outro personagem dos mais carismáticos), o
elenco perdeu força. Ainda assim, Chaves voltou a ser produzido, novamente como
parte do programa Chesperito, desta vez com novos personagens e alguns dos antigos,
substituídos.
5
Nesta série de episódios os personagens da vila vão passar um feriado em um hotel na cidade de Acapulco. Na dublagem de um
destes episódios, chama-se o lugar de Guarujá, em um outro, Acapulco. Todos os personagens foram juntos para o hotel, já que
alguns haviam ganhado a estadia em uma promoção e outros foram acompanhá-los. Chaves teve sua viajem paga pelo bondoso dono
da vila, o Sr. Barriga. O hotel onde foram gravados estes episódios, na própria cidade turística de Acapulco, no México, recebe
ainda hoje muitos fãs do seriado que procuram o hotel para hospedarem-se onde Chaves hospedou-se.
Na “segunda fase” de gravações do seriado, os atores já estavam mais velhos e
sem o vigor da década de 1970. Assim, as cenas perderam um pouco da plasticidade e
do movimento e o humor ficou mais focado no verbal. Além disso, alguns dos
personagens já tinham sofrido adaptações em suas características e personalidade. Isto
fez com que esta segunda “fase”, que consistia em sua maioria de regravações, tivesse
sucesso aquém do imaginado. As gravações desta segunda “fase” duraram até 1992,
quando houve a morte de mais dois integrantes do elenco (Raul Padilla – O carteiro
Jaiminho e Angelines Fernández – A Dona Clotilde ou “Bruxa do 71”).
O programa Chesperito também saiu do ar em 1995. Chaves ou El Chavo del
Ocho ainda é exibido hoje em dia em diversos países da América Latina. Foi dublado
em mais de dez idiomas e já foi exibido para mais de oitenta países. Sobre a
popularidade do seriado, em seu estudo de mercado acerca das preferências de
personagens entre crianças de toda América Latina, as pesquisadoras Urich e La Madrid
(2002) afirmam:
“Mexico has El Chavo, mentioned spontaneously by 22% of the children as one
of their three favorite programs. The televised episodes are pre-1995 re-runs and have
a relatively simple production, not very probable characters – adults acting as children
– and some clearly surreal situations, such as a homeless child that lives in a barrel.
But the program presents a direct sense of humor, an array of loveable and convincing
characters not because of their physical appearance but because of their performance,
the feelings they manifest and the relationships established among them (clear
indicators of an in-depth study of children). The dubbed version of El Chavo, Chaves,
ranks fifth in Brazil.”
“There are other characters that lack any kind of marketing or merchandising
and are extremely successful. They are not fashionable characters; they are characters
that appeal to children and that children love. It is the already mentioned case of El
Chavo.”
No Brasil
Por aqui, o programa foi ao ar no ano de 1984, logo nos primeiros anos da
emissora que detém os direitos até hoje, o SBT, então TVS. Na época, a emissora
procurava preencher sua grade horária com atrações baratas e que proporcionassem
grande audiência. Assim, recorreu à dramaturgia Mexicana, conhecida pelos
“dramalhões” e clichês de baixo custo. Num dos pacotes de programas enviados pela
Televisa, estava um lote de episódios de Chaves e Chapolin, que na época já tinham 13
anos.
Em princípio a diretoria da emissora brasileira vetou o seriado mexicano, porém,
o proprietário da emissora, Silvio Santos, optou por apostar na simplicidade do
enlatado. A direção da emissora brasileira resolveu dublar alguns dos episódios para
testar a audiência e o primeiro deles foi ao ar no programa do Bozo (outro personagem
“importado”) em agosto de 1984. Na época, Chaves passava três dias por semana
durante o programa do palhaço (que então ocupava 8 horas diárias na grade da
emissora). Após sua estréia, Chaves já começou a provar seu “valor” e alavancou os
índices de audiência no SBT. No total existem 150 episódios do seriado no Brasil, o
total de episódios produzidos no México é de aproximadamente 500.
Desde sua estréia, o seriado passou por diversos horários e com diversas
freqüências. Enquanto isso, ao longo dos anos a emissora foi comprando outros lotes de
Chaves e Chapolin. A média de audiência na década de 90 é de 13 pontos (o que
representa quase 700 mil domicílios na Grande São Paulo)6
. Nas vezes em que a
emissora tirou o programa do ar, por poucos dias, os fãs protestavam insistentemente, a
cada vez que isso acontecia, “choviam” e-mails, cartas e telefonemas ao SBT pedindo a
volta do programa. O poder do Ibope de Chaves alavancou a audiência do SBT até
mesmo superando a poderosa Rede Globo de Televisão em alguns dos horários pelos
quais passou durante os mais de vinte anos de exibição no Brasil.
Existem diversos produtos envolvendo o seriado. Na década de 90, a editora
Globo publicou gibis contendo histórias da turma da vila e também do herói atrapalhado
Chapolin. Alguns produtos licenciados como álbuns de figurinha, etc também foram
vendidos nesta época. Além disso há outros produtos como bonecos, camisetas, bottons,
etc. que fazem referência aos personagens da turma.
Algumas bandas, tanto no Brasil como em outros países fazem referência ao
seriado, tanto nos nomes das bandas como em letras de suas musicas.
O famoso desenho animado norte-americano, Simpsons, que trata de uma típica
família de classe média daquele país, também tem um personagem inspirado no
Chapolin. O bumble-bee man (homem abelha) um homem vestido de abelha que
participa de um programa de televisão do palhaço Crusty no “channel ocho” (canal
6
Um ponto de audiência corresponde a 1% do universo de pessoas ou domicílios que estavam sintonizados em um canal ou
assistindo a um programa específico. Dessa maneira, temos que diferenciar dois tipos de audiência: a individual e a domiciliar.
Na audiência individual, 1 ponto quer dizer que 1% dos telespectadores estava assistindo a determinado programa. Por outro lado,
na audiência domiciliar, 1 ponto refere-se a 1% das casas que estavam assistindo a um determinado programa. Como o universo da
pesquisa varia, um ponto de audiência em uma praça X não equivale ao mesmo número de telespectadores representados por um
ponto de audiência em uma praça Y.
Referência:
Um ponto de audiência equivale a quantos telespectadores? In: Dúvidas FreqüentesTV Aberta - IBOPE . Disponível em:
<http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=6&proj=PortalIBOPE&pub=T&db=caldb&comp=duvidas
_frequentes_leitura&nivel=D%FAvidas%20Freq%FCentesTV%20Aberta&docid=E651DCBF758BBEA183256EB60069C181>
Acesso em: 20 out. 2007.
oito).
El Chavo Del Ocho foi dublado em diversas línguas e transmitido em vários
países, sendo, na América Latina famoso e popular até hoje onde está a maioria dos
países onde é transmitido e ainda reprisado. O programa já foi ao ar em cerca de 90
países, e tem atualmente 300 milhões de espectadores no mundo7
.
No próximo capítulo vamos expor e discutir algumas dimensões da existência
humana cotidiana. Traremos da análise existencial, alguns elementos para pensarmos
sobre o sucesso do seriado. Esta abordagem servirá de apoio e embasamento para a
seguinte discussão acerca de algumas condições e dimensões do homem em contato
com apontamentos acerca do seriado até aqui descrito. Sendo assim, o tema abordado a
seguir diz respeito à análise existencial desenvolvida em Ser e Tempo (2006) e servirá
de pano de fundo para discutirmos o seriado em busca de seu sentido.
7
MATTOS, Laura e RODRIGUES, Lúcia V. Os segredos de Chaves. Folha de São Paulo. São Paulo, 29, mar. 2006.
IV. Análise Do Dasein (ser-no-mundo, ser-com-os-outros e
cotidiano)
A reformulação da questão do ser feita por Heidegger (2006) leva em conta sua
relação com o tempo e nos conduz a uma reflexão sobre o ser humano. O homem é
constituído historicamente, sendo assim, a temporalidade é um de seus existenciais8
,
uma de suas dimensões.
Partindo do modo mais comum da existência do homem, Heidegger investiga a
“cotidianidade”, ou seja, o modo de existir mais corriqueiro ou “médio”. Assim assume-
se que o ser do homem se encontra em disposição de diversas possibilidades. Então,
pretende-se não menosprezar nenhuma delas num estudo que se origina nesta
“cotidianidade”.
A partir daí, o homem é visto como “poder ser”, enquanto referido ao próprio
ser. Desta forma diferencia-se dos entes que simplesmente são. O homem pode ser, ou
seja, sua característica mais própria é “existir”. Ser é sua tarefa, ele tem de ser. Assim,
diz-se que o que define o homem é exatamente a não-definição, o não fechamento de
possibilidades, pois ele tem que ser quem é. O ser do homem é possível, pleno de
possibilidade. Desta forma, nota-se que o homem não tem essência ou natureza (no
sentido de algo fixo e delimitado que o distingue dos outros entes). Sua característica
não se limita desta forma. O homem não é algo acabado e pronto. Isto diz que o homem
tem a responsabilidade de seu próprio ser.
A etimologia da palavra existência nos mostra uma noção de “ser-para-fora” ou
“ser-em-direção-a”, sendo assim, ser transcendente. O homem existe, as outras “coisas”
são.
As dimensões da existência do homem chamam-se, a partir daí, “existenciais”. A
essência do homem como sendo a existência (estar lançado) contrapõe-se a noção
metafísica que compreende o homem como sujeito (não-objeto).
Após isso, coloca-se que o existir do homem se dá no mundo, ou seja, junto com
as coisas e os outros (pessoas). Isto quer dizer que a existência se dá junto e em relação
com estas coisas e pessoas. Para compreender esta concepção (ser-no-mundo) precisa-se
8
Em Ser e Tempo, Heidegger chama de existenciais as dimensões da existência de Dasein, algumas delas são: corpo, mundo,
tempo, etc. “Existencial remete às estruturas que compõem o ser do homem a partir da existência em seus desdobramentos advindos
da presença” (Heidegger, 2006, p. 563 [N5]).
A edição utilizada aqui (Heidegger, Ser e Tempo, 2006) traduz o termo alemão ‘Dasein’ como ‘presença’. Neste caso, leia-se como
sinônimos, quando usados aqui, ‘presença’, ‘ser-aí’ ou ‘Dasein’. Todos dizem respeito ao característico modo da existência humana
explorado por Martin Heidegger em ‘Ser e Tempo’.
recorrer a uma noção esclarecida de “mundo”.
O mundo é um existencial, isto é, uma das características ou dimensões de
Dasein (“Ser-aí” – a existência humana). Sendo assim, constitui uma dimensão da
existência do homem.
Para desenvolver o conceito de mundo, Heidegger recorre primeiramente à
noção de instrumento. Este é o modo como as coisas aparecem para nós, enquanto
instrumentalidade. As coisas que se nos mostram são dotadas de significado e passam a
fazer parte de nossa existência (projeto) enquanto instrumentos. Desta forma, não são as
coisas objetos alheios com os quais nos relacionamos, mas sim como dotados de
significação. Assim, as coisas já nos estão referidas, não são simples ‘presenças’ ante os
olhos, seres simplesmente dados.
Ainda mantendo o mesmo raciocínio, nota-se que o instrumento nunca se dá
isolado, ele é instrumento para, ou seja, é referido a algo.
O mundo não é uma mera soma de todas as coisas que nos cercam. Ele é
condição para que as coisas sejam, é uma totalidade de instrumentos. Assim, para que
os instrumentos tenham sentido de ser, é necessário que haja alguém que os empregue,
ou seja, que os compreenda enquanto instrumentos. Então, não há mundo se não há
Dasein. Por outro lado, Dasein não existe sem mundo. Assim, o mundo é característica
de Dasein. Ser-no-mundo é ter familiaridade com uma totalidade de significados.
Outro âmbito da existência humana a ser esclarecido é o ser-com-os-outros. Esta
dimensão humana fala da co-existência, ou seja, a relação de Dasein junto com os
demais. Somos também referidos aos outros. Então ser-no-mundo é ser-com-os-outros.
Heidegger chama esta relação de preocupação (Fürsorge). Assim é marcada a noção de
que a existência não se dá isoladamente.
Este específico modo-de-ser se diferencia da nossa relação com os manuais pois,
neste caso, se trata de outros existentes, outros Dasein. Todavia, da mesma forma que
com os entes simplesmente dados, na primeira aproximação já compreendemos os
demais. Isto significa que já temos nossa existência referida aos outros, esta já está “sob
a tutela dos outros” (Heidegger, 2006, p. 183) na forma da preocupação. Heidegger diz
que mesmo quando agimos de forma indiferente ao outro, este é um modo de lidar com
outro, levando-o em consideração, da mesma forma, é preocupação.
O autor costuma colocar-se a partir da seguinte frase “numa primeira
aproximação e na maior parte das vezes”. Quando usa este enunciado está querendo
dizer que trata do modo cotidiano de ser-no-mundo, do modo mais comum e corriqueiro
de nossa existência junto às coisas e os outros no mundo, a cotidianidade.
Neste mundo compartilhado, lançado à cotidianidade, Dasein vive
impessoalmente. Este estar lançado em uma convivência cotidiana de maneira
impessoal é chamado de queda. Na impessoalidade “cada um é como o outro. Este
conviver dissolve inteiramente a própria presença no modo de ser dos ‘outros’”
(Heidegger, 2006, p. 184). Neste modo-se-ser Dasein, de certa forma, deixa de lado sua
tarefa de ser referenciado à própria existência e “cai” na impropriedade. Apesar desta
isenção dada à existência no impessoal, seu caráter público também fala de uma
familiaridade. Na cotidianidade pública Dasein faz as coisas como se faz
cotidianamente, impessoalmente, ou seja, do modo mais comum e corriqueiro.
É preciso ressaltar que apesar de ser este o modo mais comum da existência, não
é fixo e, sendo assim, não é o único. O ser-si-mesmo também pode ser propriamente
vivido. Este acontecimento, que implica em um “separar-se” do impessoal, também não
caracteriza um movimento definitivo. A propriedade não é final e a impessoalidade não
é inferior. Devemos lembrar que, segundo Martin Heidegger, a queda e o impessoal são
determinações que constituem o ser-aí humano sempre.
Este estar lançado na publicidade possui três características. Todas elas são
referidas ao caráter quotidiano e impessoal de Dasein. A primeira delas (§35 de Ser e
Tempo) é chamada de “falação” (ou falatório, que também se dá na comunicação escrita
– “escrivinhação”) e diz respeito ao “modo de ser do compreender e da interpretação da
presença cotidiana” (Heidegger, 2006, p. 231). Heidegger diz que, em se tratando de
linguagem, “ao pronunciar-se, o compreender e a interpretação já se dão” (Heidegger,
2006, p. 231). Desta forma no mostra que uma compreensão já é dada quando Dasein
pronuncia algo. A falação é comunicação e seu pronunciamento implica em uma
“abertura de mundo” e em interlocutores, os outros. “A tendência ontológica da
comunicação é fazer o ouvinte participar do ser que se abriu para o sobre que se fala”
(Heidegger, 2006, p. 232). Ou seja, quando se fala, há a tentativa de compartilhar
mundo. Isto quer dizer que a comunicação em sua maneira essencial cumpre o objetivo
de fazer do ouvinte um participante, ele faz parte do mundo que se abre na
comunicação. Quando você fala, é a partir de seu mundo, seu horizonte. Em geral, na
cotidianidade, esta compreensão da qual falamos se dá de forma mediana. Em outras
palavras, podemos dizer que esta compreensão é pública, é de todos nós e, neste sentido,
impessoal.
“O falado na falação arrasta consigo círculos cada vez mais amplos, assumindo
caráter autoritário. As coisas são assim como são porque é assim que delas
(impessoalmente) se fala. Repetindo e passando adiante a fala, potencia-se a falta de
solidez” (Heidegger, 2006, p. 232). Ou seja, a falação esvazia o ser das coisas. Na
falação pode-se compreender tudo sem ter se apropriado daquilo que se fala, ou seja,
compreender o discurso deixando de lado o ente referido. O ente passa ao largo, o
importante é repetir o falado.
A característica seguinte (§36 de Ser e Tempo) é a chamada “curiosidade” (ou
avidez por novidades). Este modo-de-ser é guiado pela visão em diversos sentidos. “A
visão foi concebida na perspectiva do modo fundamental de abertura própria à presença,
ou seja, do compreender no sentido de uma apropriação genuína dos entes com os quais
a presença pode relacionar-se e assumir uma atitude segundo suas possibilidades de ser
essenciais” (Heidegger, 2006, p. 234). Assim que o encontra, aquilo já se torna
conhecido e ocioso e a busca pelo novo se eterniza. A busca é pela novidade.
Aqui não se trata de ver para conhecer, se deter no ente. Trata-se de ver para ter
visto e, assim, cumprir com mais uma obrigação determinada pela “ditadura do
impessoal”. “Este modo de ser-no-mundo desvela um novo modo de ser da presença
cotidiana em que ela se encontra constantemente desenraizada” (Heidegger, 2006, p.
237). Nesta disposição, Dasein, guiado pela falação, procura tudo o que há de novo.
Então, “um modo arrasta o outro consigo. A curiosidade, que nada perde, e a falação,
que tudo compreende, dão à presença, que assim existe, a garantia de ‘uma vida cheia
de vida’, pretensamente autêntica” (Heidegger, 2006, p. 237). Também, esta
curiosidade, não se trata do espanto que admira os entes, o “taumazein” (_________) de
Aristóteles, pois ela não quer compreender o ser dos entes através da admiração e do
espanto como foi dito acima.
O terceiro modo-de-ser na cotidianidade (§37 de Ser e Tempo) é chamado de
“ambigüidade”. A ambigüidade fala justamente da aparente compreensão por parte
destes dois últimos modos-de-ser, quando, propriamente não acontece de fato.
Assim, “já não mais se poderá distinguir, na compreensão autêntica, o que se
abre do que não se abre. Essa ambigüidade não se estende apenas ao mundo mas,
também, à convivência como tal e até mesmo ao ser da presença para consigo mesma”
(Heidegger, 2006, p. 237).
A ambigüidade é justamente quem torna o que “todos” desejam em lugar
comum, o que “todos” falam em já sabido.
O que Heidegger pretende falar da ambigüidade pode ser exemplificado através
do fenômeno em que todas as pessoas falam de algo como se isso fosse amplamente
conhecido e compreendido, quando no fundo não foi.
A idéia de Heidegger é que “se” vive dentro de uma atmosfera em que tudo é
tido como evidente e claro. Ora, o que o autor salienta é que esta clareza possível diz
respeito a algo que poderíamos denominar de “periferia do ente”, no sentido de sua
superfície mais exposta. “Essa atitude de estar na pista e, na verdade, a partir do ouvir
dizer – quem autenticamente ‘está na pista’ não fala sobre isso – é o modo mais
traiçoeiro em que a ambigüidade propicia á presença possibilidades, a fim de sufocá-la
em sua força” (Heidegger, 2006, p. 238).
Outro aspecto ambíguo é que “a falação não está sequer empenhada em que o
que ela pressente e constantemente requer aconteça realmente. Pois, com isso, ser-lhe-ia
arrancada a oportunidade de continuar pressentindo” (Heidegger, 2006, p. 238). Esta
afirmação significa que a consumação daquilo que a falação aponta não precisa
acontecer, já que o importante é simplesmente o falar. Na medida em que o
acontecimento se dá, a falação perderia seu sentido de continuar apontando para outras
novidades.
“Em sua ambigüidade, a falação e a curiosidade cuidam para que aquilo que se
criou de autenticamente novo já chegue envelhecido quando se torna público”
(Heidegger, 2006, p. 239). Assim, mais uma vez, o modo-de-ser na cotidianidade
mostra-se esvaziando o ser das coisas e retirando-lhes sua autenticidade. O novo,
desejado, já chega velho, sabido e vazio.
O nexo entre esses três modos-de-ser se dá no modo da decadência e do estar-
lançado (§38 de Ser e Tempo). Estes caracterizam o modo do Dasein na cotidianidade,
então, constituem seu ser nesta circunstancia. O modo fundamental, ou seja, que indica
o nexo entre estes anteriores é a decadência do Dasein.
O termo não tem uma conotação negativa. Quer dizer que na maior parte das
vezes, Dasein está lançado na cotidianidade, ou seja, junto às ocupações. Isto indica um
caráter de estar “perdido” na publicidade do impessoal. Esta queda na impessoalidade
cotidiana é o modo com o qual Dasein conta para suportar sua condição. É inclusive o
modo mais autêntico.
Decair mostra-se então como um empenho de Dasein para manter-se na
convivência, absorvido pelo “mundo” em sua co-presença e instrumentalidade. Este é o
modo no qual Dasein se mantém na maioria das vezes.
A queda acontece devido à nossa condição mais originária, a angústia (§37 de
Ser e Tempo).
Esta camada mais imediatamente perceptível do ser-aí humano, a queda no
impessoal, possui como sentido encobrir a adversidade originária do existir, ou seja, a
angústia. Heidegger pensa que “a angústia se angustia com o ser-no-mundo ele mesmo”
(Heidegger, 2006, p. 254). Isto significa que no fundo de nosso ser encontramos
motivos para nos angustiarmos pois o abrir-se originário de nossa condição mais própria
é ameaçador. Trata-se de uma ameaça indeterminada, uma vez que é a própria
indeterminação da condição humana que irá nos angustiar e sustentar nossa queda no
mundo. “O ser-no-mundo tranqüilizado e familiarizado é um modo da estranheza da
presença e não o contrário. O não sentir-se em casa deve ser compreendido,
existencialmente e ontologicamente, como o fenômeno mais originário” (Heidegger,
2006, p. 256). A queda sustenta-se sobre isto, encobre isto.
Por causa da angústia, sentimo-nos tentados a decair, e esta tentação acontece
por que a cotidianidade e a impessoalidade nos parece mais tranqüila. Quanto mais
tranqüilamente tentados, mais decaídos somos. Assim, a decadência assume também um
caráter alienante e “faz com que a presença se aprisione em si mesma” (Heidegger,
2006, p. 243).
É importante notar que o estar lançado não é um estado fixo e irremissível.
Trata-se de um modo-de-ser cujo “pano-de-fundo” é a angústia, esta pode ser vivida
também de forma própria e autêntica. Este fenômeno, a angústia, raramente ocorre
propriamente já que nós, na cotidianidade, estamos constantemente “fugindo” de nossa
condição, da angústia. Na impessoalidade, lidamos com nossa existência de forma
impessoal, ou seja, ignorando nossa condição. A angústia refere-se à condição
primordial da existência humana, o ser-para-a-morte. É a partir desta noção que pode-se
pensar na angústia existencial como pano-de-fundo da existência humana, do qual
Dasein lança-se na cotidianidade.
“Ser-para-a-morte em sentido próprio não pode escapar da possibilidade mais
própria e irremissível e, nessa fuga, encobri-la e alterar o seu sentido em favor da
compreensão do impessoal. O projeto existencial de um ser-para-a-morte em sentido
próprio deve, portanto, elaborar os momentos desse ser que o constituem como
compreensão da morte, no sentido de um ser para a possibilidade caracterizada, que
nem foge e nem encobre” (Heidegger, 2006, p. 337).
No pensamento de Martin Heidegger, a morte é compreendida como
possibilidade. Na cotidianidade impessoal, o Dasein vive um ser-para-a-morte
impróprio, em direção ao fim, “ao” nada. Assim, ocupa-se da realização desta
possibilidade primordial, o fim.
“Como possibilidade a proximidade mais próxima do ser-para-a-morte se acha,
face ao real, tão distante quanto possível. Quanto mais se compreender e desvelar essa
possibilidade como a possibilidade da impossibilidade da existência” (Heidegger, 2006,
p. 339). Ao ter a morte como possibilidade, Dasein antecipa esta possibilidade. Nesta
possibilidade, a mais própria de Dasein, está em jogo seu ser.
“A angústia, porém, é a disposição que permite que se mantenha aberta a
ameaça absoluta e insistente de si mesmo, que emerge do ser mais próprio e singular
da presença. Na angústia, a presença dispõe-se frente ao nada da possível
impossibilidade de sua existência. A angústia se angustia pelo poder ser daquele ente
assim determinado, abrindo-lhe a possibilidade mais extrema”
“Pode-se resumir a caracterização de ser que, existencialmente, se projeta para a
morte em sentido próprio, da seguinte forma: o antecipar desvela para a presença a
perdição no impessoalmente-si-mesmo e, embora não sustentada primariamente na
preocupação das ocupações, a coloca diante da possibilidade de ser ela própria: mas
isso na liberdade para a morte que, apaixonada, fática, certa de si mesma e
desembaraçada das ilusões do impessoal, se angustia.” (Heidegger, 2006, p. 343).
No próximo capítulo iremos abordar o seriado através das noções que foram
aqui expostas. Será feita uma análise do seriado levando em consideração as noções
aqui expostas e a prévia descrição do seriado. Faremos uma discussão enriquecida,
inclusive, com outras referências acerca do sentido do seriado e de sua popularidade
pela América Latina, principalmente no Brasil, mesmo sendo material televisivo antigo
e precariamente produzido. Então, mais adiante, serão feitas as considerações finais a
respeito do mesmo.
V. Análise e Discussão
Até aqui foi feita a descrição do seriado, seu histórico e sua contextualização
nacional. Foram explicitados alguns fatos curiosos que envolvem a popularidade do
seriado que tem audiência grande de pessoas de diversas idades e de variados extratos
sociais mesmo sendo reprisado constantemente após 30 anos de sua produção inicial.
Neste capítulo foram levantadas questões acerca desta mesma popularidade e da
possível identificação dos telespectadores com alguns dos personagens, em especial
Chaves, Quico, Seu Madruga e Chapolin, os mais carismáticos.
Além disso foram expostas algumas dimensões da existência humana tratadas
por Martin Heidegger em Ser e Tempo (2006). Estas dimensões falam de modos-de-ser
da cotidianidade humana que, apesar de serem idéias vindas do âmbito da filosofia,
foram e ainda são utilizadas por pensadores da psicologia, em especial psico-terapeutas
como Medard Boss.
Esta presente pesquisa serve de exigência para graduação no curso de psicologia
e, a partir daí, surge mais uma questão: o que Chaves tem a ver com as dimensões
expostas da fenomenologia de Martin Heidegger?
Anteriormente, no breve capítulo acerca da metodologia fenomenológica, ficou
claro que o viés dado à pesquisa é o do peculiar e particular olhar deste pesquisador.
Sendo assim, as impressões e reverberações que serão aqui descritas dizem respeito às
impressões do pesquisador enquanto telespectador do seriado aqui tratado, ou seja,
Dasein telespectador de Chaves. Contudo, é claro, pretende-se ir além de meras
impressões pessoais e alcançar o sentido deste seriado.
Então, levando em consideração a fenomenologia de Martin Heidegger e o
prévio conhecimento do seriado e dos personagens, levantaremos algumas outras
questões. O que torna Chaves, o personagem, tão atraente? Como Chaves se mostra e o
que este personagem nos mostra? Tanto quanto vemos ou lemos centenas de vezes o
mesmo conto-de-fada ou estória infantil e não nos cansamos, o mesmo acontece com o
seriado. O que há nele que o torna tão fascinante? Numa vila cotidiana, um ser se abre
para o humor, reflexão e questionamento do cotidiano. Relaciona-se com as coisas que
se lhe apresentam de maneira criativa, bem-humorada e doce.
Chaves é um garoto pobre em uma cidade grande da América Latina, ou seja, é
alguém com quem nós, moradores de uma destas cidades, estamos habituados a
conviver. Chaves faz parte de nosso mundo, não só o personagem, para quem assiste,
mas o garoto, para quem o vê pelas ruas da cidade.
Neste caso, o interessante é notar que Chaves convive com sua condição de
maneira diferente da qual vemos os garotos das ruas de nossas cidades. Chaves brinca.
Foi acolhido por uma vila, pelos moradores dela, não só por caridade a um garoto pobre,
ele de alguma forma os cativou. Na ocasião do lançamento do livro, o próprio autor foi
questionado se Chaves havia sido inspirado em algum garoto em especial. Sua resposta
foi a seguinte:
“Não houve um, por que me dei conta de que esse garoto pobre existia em
muitos lugares, não só na América Latina. Todos eles têm a esperança que queria
comunicar com Chaves, que, apesar de não ter brinquedos, café da manhã e muitos
amigos, brincava com entusiasmo, e o futuro o acompanhava.”
Quem assiste ao seriado percebe que o garoto é interpretado por um adulto.
Mesmo assim, apesar do talento do ator, Chaves é uma criança, age como criança, fala
como criança e brinca como criança. Isto é, inclusive, um dos mais imediatos indícios
da popularidade de Chaves entre os telespectadores tanto adultos como jovens. Chaves é
um adulto que sabe ser criança.
Chaves encara um mundo potencialmente ameaçador e violento com doçura e
bom-humor. Ele mostra ao telespectador que isto é possível.
Quando assistimos ao programa sentimos um tipo de familiaridade com aquela
vila, sentimo-nos em casa. Chaves nos mostra um pouco do que somos. Enquanto
“caídos” no mundo, somos lançados a um modo-de-ser que ameniza a inospitabilidade
do mundo, encobre, de certa forma, nossa condição primordial. Afinal, ele tem que
continuar sendo Chaves.
No artigo ‘O Humor’ (in Freud, 1969 - Obras Completas Vol. XXI), Freud
mostra – retomando seu próprio ‘Os chistes e sua relação com o inconsciente’ (Freud,
1969 Obras Completas Vol. VIII) – como surge a produção do prazer humorístico. O
autor mostra que o humor propicia prazer, tanto em quem adota a atitude humorística
quanto ao não participante, assistente, como o ouvinte de uma piada. O autor ilustra tal
processo da seguinte forma:
“O ouvinte vê esse outro numa situação que o leva a esperar que ele produza os
sinais de um afeto, que fique zangado, se queixe, expresse sofrimento, fique assustado
ou horrorizado ou, talvez, até mesmo desesperado; e o assistente ou ouvinte está
preparado para acompanhar sua direção e evocar os mesmos impulsos emocionais em si
mesmo. Contudo, essa expectativa emocional é desapontada; a outra pessoa não
expressa afeto, mas faz uma pilhéria. O gasto de sentimento, que é assim economizado,
se transforma em prazer humorístico no ouvinte.”
Sendo assim, o humor funciona como um tipo de fuga da situação hostil à qual
havia iminência de se chegar, afirmando a vitoriosa “invulnerabilidade do ego”, assim
se dá o “triunfo do narcisismo”. A realidade hostil é suprimida. Então, evita-se o
sofrimento.
Desta forma, “o superego tenta, através do humor, consolar o ego e protegê-lo
do sofrimento”. Com sua linguagem e utilizando-se das instâncias específicas à
psicanálise, Freud também mostra que a atitude humorística é uma forma de lidar com
um mundo potencialmente hostil e inóspito.
Aquele mundo onde os adultos continuam sendo crianças, um tipo de Peter-Pan,
dá a impressão de que aquela juventude estará sempre presente, que a morte nunca
chega. O próprio Bolaños desistiu de interpretar o garoto quando percebeu que estava
velho de mais para apresentar-se como alguém de oito anos. Um das canções mais
famosas9
entre os fãs brasileiros fala dessa pretensão:
“
Se você é jovem ainda, jovem ainda, jovem ainda!
Amanhã velho será, velho será, velho será!
A menos que o coração, que o coração sustente,
A juventude que nunca morrerá!
Existem jovens de oitenta e tantos anos,
E também velhos de apenas vinte e seis.
Porque velhice, não significa nada!
E a juventude volta sempre outra vez!
Se você é jovem ainda, jovem ainda, jovem ainda!
Amanhã velho será, velho será, velho será!
A menos que o coração, que o coração sustente,
A juventude que nunca morrerá!
E você é tão jovem quanto sente,
Pode apostar é jovem pra valer!
E velho é quem perde a pureza.
E também é quem deixa de aprende.
Se você é jovem ainda, jovem ainda, jovem ainda!
Amanhã velho será, velho será, velho será!
A menos que o coração, que o coração sustente,
9
Se Você é Jovem Ainda – SBT. Adaptação do original: Se tu Eres Joven Aún.
A juventude que nunca morrerá!
Não diga não à vida que te espera,
Pra festejar a alegria de viver.
Pra agradecer a luz do seu caminho,
E você vai tudo isso entender!
Se você é jovem ainda, jovem ainda, jovem ainda!
Amanhã velho será, velho será, velho será!
A menos que o coração, que o coração sustente,
A juventude que nunca morrerá!
- Olha, olha turma! O Dr. Chapatim, é o velho mais jovem que eu conheço!
- Eu não sou velho ouviu! eu sou só uma pessoa vivida!
- Dr. Chapatim, quantos anos o senhor tem?
- Eu? Todos! Mas isso não te interessa, ouviu...
Se você é jovem ainda, jovem ainda, jovem ainda!
Amanhã velho será, velho será, velho será!
A menos que o coração, que o coração sustente,
A juventude que nunca morrerá!
”
Na vila, todas as crianças são, na verdade, interpretadas por adultos, e os adultos
são em geral rabugentos e mal-humorados, exceto nos momentos e paquera entre os
adultos, como entre Dona Florinda e Professor Girafales, também entre Dona Clotilde e
Seu Madruga – por mais que ele não aprecie muito a beleza da “Bruxa do 71”. Mesmo
assim,. O seriado é “assexuado”, as paqueras são apenas insinuadas e todas as crianças
têm pelo menos um de seus pais ausente. Isto mostra mais um lado da ingenuidade do
mundo de Chaves. Não apenas por não saber “de onde vêm os bebês”, mas porque na
vila todos são seus pais, todas são suas mães. Eles o acolheram e é lá que ele mora,
come e brinca. Esta é a casa de uma criança.
Além disso, ele é irmão das crianças da vila, que na realidade são – todos eles –
filhos únicos. Já que os pais de seus amigos são seus pais, ele torna-se irmão dos
amigos. Chaves eventualmente divide o quarto com eles, janta na mesa da família, etc.
Como não poderia deixar de ser, o garoto tem também seus momentos solitários. Como
ele mesmo “diz” em seu diário, entra no barril quando precisa pensar em algo ou
quando sente muita vontade de chorar, o que não é raro. Ele sabe muito bem que foi
abandonado pelos pais e rejeitado pela diretora do orfanato. Não deve ser fácil para uma
criança de tão pouca idade superar tais rejeições tão violentas. Mesmo assim, ele supera,
ele corre, sem destino, tentando deixar o medo para trás e sem saber o que vem à frente.
Pior não deve ser. Chaves continua com abertura para se relacionar com o que aparece,
ao invés de ficar só chorando dentro do barril.
Bem, acabamos de nos dar conta de que Chaves fala do impessoal. Chaves
também é lançado no cotidiano, claro, como não poderia. Existe uma música10
que faz
uma sátira a um outro personagem, também um dos mais queridos, que fala dessa
mesma característica.
“
O sol pela janela
Veio me avisar
Já passou do meio dia
É hora de acordar
Quer saber de uma coisa?
Hoje eu não vou levantar
Não fazer nada me cansa
Acho que vou descansar
De Seu Madruga e louco
Todo mundo tem um pouco!
Desempregado, endividado
Já tô com a corda no pescoço
Um xaveco na vizinha
É o que garante o meu almoço
Se a campainha toca
É alguém que veio me cobrar
Eu já falei, não adianta
Não tenho como pagar
De Seu Madruga e louco
Todo mundo tem um pouco!
Nem lembro a cor do dinheiro
Conheço cobrador pelo cheiro
Uma tia me deu uns trocados por dó
Mas eu perdi tudo jogando dominó
Triste é passar pelo bar
Já fui avisado: - Fiado nem pensar!
E aos poucos o dia já vai terminando
O sol já tá se pondo, que sono isso tá me dando
De Seu Madruga e louco
10
Os Thompsons - De Seu Madruga e Louco (Radiola Records / Estrondo - 2001)
Todo mundo tem um pouco!
”
Quem conhece o seriado sabe que o Seu Madruga está devendo 14 meses de
aluguel. Toda vez que o Sr. Barriga vem cobrá-lo – inclusive sempre recebido por uma
pancada (“sem querer querendo”) do Chaves – o Seu Madruga dá um jeito de se
esconder ou “driblar” o Sr. Barriga. Na verdade o Sr. Barriga também acaba perdoando
e deixando pra cobrar na semana seguinte. O Seu Madruga nunca tem dinheiro, afinal
ele não trabalha, inclusive, ele tem muita preguiça de trabalhar, apesar de viver se
gabando das coisas que fez na sua juventude. Já foi boxeador, toureiro, violonista, etc.
Essas histórias que ele conta para as crianças acabam dando vazão para as
brincadeiras que eles fazem pelo pátio da vila. Então, o pátio vira arena de touros, ou
ringue de boxe, assim por diante. No meio dessas brincadeiras acaba sempre
acontecendo alguma confusão e alguém sempre toma uma pancada, novamente “sem
querer querendo”, fazer o que? “É que me escapuliu”.
Muitos dos fãs do seriado se identificam com este velho rabugento, pobre e
preguiçoso que sempre desconta suas decepções em forma de “cascudo” nas crianças. O
que será que este outro personagem tem de carismático? Bom, como muitos, ele tem
que se esquivar e fazer “bicos” ou “biscates” de todo tipo para conseguir algum sustento
para si e para sua filha Chiquinha.
Ambos os personagens mostram modos de lidar com as dificuldades do mundo
de forma criativa. Usam sua sagacidade e astúcia para resolver situações que
corriqueiramente poderiam ser obstáculos. Até mesmo o herói atrapalhado Chapolin
(“Não contavam com minha astúcia!”) com seus modos desajeitados consegue fazer as
vezes de um verdadeiro super-herói e resolver aos “trancos e barrancos” as situações
para as quais é chamado (“Oh, e agora, quem poderá nos defender?”).
Esse tipo de narrativa onde alguém de origem pobre tenta se “dar bem” na vida,
conseguindo as coisas através da esperteza (às vezes de forma duvidosa), chama-se
Novela Picaresca. A Novela Picaresca (ou Romance Picaresco) é um gênero literário
cujos primeiros representantes provém da Espanha medieval. O gênero surgiu como um
modo de contrapor as então populares novelas de cavalaria, onde heróis virtuosos
aventurando-se por belas damas, dentro de um contexto idealizado da aristocracia
feudal. Os primeiros textos clássicos da Novela Picaresca surgem por volta do séc. XVI
e caracterizam-se por uma narração do próprio protagonista, o Pícaro, que conta a
história de sua vida e de como consegue as coisas por meio de trapaças em uma
sociedade corrompida onde se nota que o importante mais do que ser era parecer ser. De
forma rapsódica, o Pícaro narra sua origem, geralmente pobre, sua sobrevivência
vagabunda ou subempregada, assim matando sua fome (tema central do Pícaro)
utilizando sua astúcia, atingindo muitas vezes a delinqüência. Então, o Pícaro
caracteriza-se por ser um anti-herói, contrapondo os Cavaleiros das novelas anteriores.
A trajetória do Pícaro é marcada por uma sátira da sociedade medieval corrompida.
No Brasil, nota-se muita semelhança com tal gênero em obras como 'Memórias
de um sargento de milícias' ou 'Macunaíma' as quais poderiam ser chamadas, neste caso,
de neo-pícarescas. Nestas obras e em outras mais recentes, tem-se a figura clara do anti-
herói, também dito malandro, que consegue sobreviver por astúcia, criticando a
sociedade vigente, assim guardando semelhanças intimas com a Picaresca clássica.
Nota-se além destas duas obras especificamente brasileiras, outras de igual
semelhança no resto da América Latina, até mesmo nas atuais novelas de televisão e
seriados. É claro que para este trabalho, os personagens que tem especial intimidade
com a Picaresca clássica são os de Bolaños, não só Chaves como os outros moradores
da vila e o próprio Chapolin Colorado (a imagem mais clara de anti-herói).
A diferença crucial entre Chaves e os Pícaros clássicos é o fato de que mesmo
agindo de forma astuta e trapaceira para matar sua fome, Chaves o faz com notável
inocência. Esta é uma característica primordial de seu caráter e, ao meu ver (então, na
óptica deste mesmo trabalho) a característica fundamental que diferencia seu tipo de
humor. Chaves não é um garoto delinqüente ou um ladrão.
Além disso, algumas das características picarescas são notáveis em outros dos
personagens da vila. Seu Madruga sempre consegue burlar o pagamento do aluguel.
Dona Florinda tenta aparentar-se sendo de classe social ou econômica superior, mas
mora na mesma vila e tem os mesmo costumes e hábitos que a “gentalha”.
O seriado, mesmo tendo condições precárias de produção, atrai ainda, após 30
anos, muitos olhares atentos. Tudo lá é velho e sabido, as piadas e trapalhadas advindas
da tradição circense de muitos dos atores nunca impressionou, tanto por qualidade
técnica como por repetição. Na vila tudo já é previsível e sabido. Todos sabem que ao
entrar na vila, o Sr. Barriga receberá uma pancada do Chaves. Todos já perceberam que
Chaves irá tropeçar no balde que está no meio do pátio. Todos sabem que Quico irá
tentar enganar Chaves e iludi-lo com a proposta de dá-lo um sanduíche de presunto, e
isso acabará numa perseguição em correria pelos pátios onde, provavelmente mais
alguém será envolvido, infelizmente tomando uma pancada de um dos dois.
Isto tudo aparentemente se contrapõe à noção Heideggeriana de curiosidade.
Naquele caso, a busca é interminável pelo novo. Quem assiste Chaves já sabe que não ai
ver nada de novo, inclusive por estar assistindo a uma reprise da década de 70 ou 80.
Mesmo assim, o telespectador, ou fã (talvez seja a palavra mais adequada) continua
assistindo vidrado na televisão e rindo novamente. A impressão que isto passa é de um
tipo de saudade ou nostalgia daquilo. A seguir serão feitas considerações acerca da
popularidade do seriado, principalmente envolvendo questões que ainda intrigam este
pesquisador e que não foram o enfoque principal do caminho deste trabalho.
VI. Considerações Finais
Vimos até aqui que o grande sucesso do seriado se explica principalmente pelo
fato de vermos naquela vila um pouco de nosso mundo. Aquelas crianças, aquele
cenário, aquilo tudo é muito parecido, se não igual, ao que vivemos em grandes cidades
como São Paulo. Boa parte disso é reflexo da semelhante desigualdade social em nosso
país, também verificada na maioria dos países da América Latina. Aquilo que se mostra
na vila de Chaves é nosso mundo. O objetivo do seriado não é fazer um documentário
ou mostrar a “realidade” da pobreza no continente, mesmo assim o faz. Apesar disso, é
um programa de humor, em princípio destinado ao público infantil, ainda assim, pessoas
de todas as idades o assistem, e de novo, e de novo…
O que se vê no programa não é uma coletânea de momentos pobres, sujos e
moralmente excluídos. Chaves, mesmo tendo esse potencial, nos mostra nosso próprio
mundo com um humor ingênuo, simples e sem apelo comercial ou mesmo sexual, o que
normalmente se usa para conseguir audiência.
Chapolin por sua vez, é o autêntico anti-herói latino-americano, assim como o
Quixote contrapôs as novelas de cavalaria, o também conhecido como “Polegar
Vermelho” é fraco, atrapalhado e debochado, opondo-se aos super-heróis dos
contemporâneos gibis e desenhos animados. Chapolin é o “Macunaíma mexicano”. Se
Sérgio Buarque de Hollanda estiver correto, nós brasileiros sabemos muito bem o que é
essa maneira debochada, “preguiçosa” e “sem caráter” de ser.
O número de web-sites sobre os seriados cresce a cada dia, grupos de discussão,
fóruns e espaços para trocas de arquivos de vídeo ou música dos programas são as
preferências dos fãs. Organizam-se em eventos que celebram os bons momentos do
seriado, assim como foi feito na própria vila, o “festival da boa vizinhança”. A cada vez
que a emissora tira os poucos episódios do ar, toda essa massa se empenha em pedidos
para que volte ao ar. Ultimamente, com as versões originais (em espanhol) em DVD, os
fãs têm acesso a episódios inéditos no Brasil em melhor qualidade do que a vista na TV.
Como não podia deixar de ser, são também estes vendidos em sua versão “pirata” nas
ruas da cidade, pois é, esta é a América Latina e não poderia deixar de ser.
Principalmente entre os jovens percebe-se presente o humor atrapalhado dos
seriados, os trocadilhos clássicos e até mesmo novos, com o mesmo tipo de “sacada”.
Sabem cantar as músicas do seriado, usam camisetas com imagens dos personagens ou a
clássica camiseta vermelha com o coração e as letras CH (presentes na maioria dos
trabalhos de Bolaños), o uniforme do Chapolin. Quem diria que um seriado tão mal
produzido poderia ter um apelo comercial tão grande? O SBT acaba usando-o como
coringa na programação. Será que era esta a pretensão de Bolaños?
Aqui aparece novamente o lado cotidiano de Chaves. Os fãs são ávidos por
novidades, movidos pelo falatório da internet. Querem ter visto todos os episódios.
Querem saber todas as músicas. Querem desvendar todos os mistérios e boatos. Querem
ter os bonecos dos personagens. Chaves nos lança no cotidiano. Ele nos mostra nosso
mundo. A América Latina é aquela pequena vila refugiada e escondida no meio de uma
cidade enorme e ameaçadora.
Nós nos identificamos com aquilo que reverbera em nosso ser, aquilo que
constitui nosso mundo. Quando assistimos aos seriados de Bolaños vemos uma
realidade que reverbera em nosso ser. Aquilo nos diz respeito, fala de nós e para nós
mesmos.
O seriado fez sucesso por todo o continente e por aqui, mesmo sendo dublado e
perdendo alguns efeitos humorísticos ou alguns trocadilhos pelo idioma diferente, o
sucesso foi igual. Mesmo tendo sofrido alterações e falhas durante a dublagem dos
poucos episódios que vieram para o Brasil, o seriado cativa milhões de espectadores.
Aliás, nada mais condizente com o espírito tosco e mal produzido de Chaves do que
uma pequena falha aqui e acolá. Talvez seja isso mesmo o que atrai os olhos atentos dos
fãs.
O que ainda se mostra passível de investigação mais aprofundada é como um
programa consegue manter-se no ar sendo reprisado exaustivamente há 25 anos (no
Brasil). Além disso, o fato de alguns personagens serem especialmente cativantes, cada
um com suas características especificamente marcantes.
VII. Referências Bibliográficas
• BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre o significado do cômico. Rio de Janeiro,
Guanabara, 1987.
• BOLAÑOS, Roberto G. El Diario de El Chavo del Ocho. Madrid, Laberinto, 2001.
• CRITELLI, Dulce M. Analítica do sentido: uma aproximação e interpretação do real de
orientação fenomenológica. São Paulo, Brasiliense, 2006.
• FREUD, Sigmund. (1905) Os chistes e sua relação com o inconsciente. In Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. VIII. Rio de Janeiro, Imago, 1969.
• FREUD, Sigmund. (1927-1931) ‘O Humor’ In: O futuro de uma ilusão, O mal estar na
civilização e outros trabalhos. In Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud, Vol. XXI. Rio de Janeiro, Imago, 1969.
• GONZÁLEZ, Mario M. O romance picaresco. São Paulo, Ática, 1988.
• HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis, Vozes; Bragança Paulista, Ed.
Universitária São Francisco, 2006.
• JOLY, Luís; THULER, Fernando e FRANCO, Paulo. Chaves: Foi sem querer querendo?
São Paulo, Matrix, 2005.
• KUBLIKOWSKI, Ida. Análise Qualitativa (2007) Material didático produzido para a
disciplina “Seminário de Dissertação” do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Psicologia Clínica da PUC-SP. [Texto não publicado]
• MATTOS, Laura e RODRIGUES, Lúcia V. Os segredos de Chaves. Folha de São Paulo.
São Paulo, 29, mar. 2006.
• LA MADRID, Mónica e URICH, Telma. The universal and the singular, the permanent
and the ephemeral. Character preferences of children. In: ESOMAR Latin American
Conference, 2002, São Paulo. p. 261-288. Versão eletrônica disponível em:
<http://www.kiddos.com.ar/docs/downloads/characterpreferences.pdf> Acesso em: 20 out.
2007.
• LUGO, Omar. Popularidade de "Chaves" atravessa décadas no Brasil e vira livro. 2007.
Disponível em: <http://diversao.uol.com.br/ultnot/efe/2007/03/19/ult1817u6051.jhtm>
Acesso em: 20 out. 2007.
• Criador de Chaves e Chapolin nega suposta relação com o narcotráfico. In: UOL Diversão
e Arte. Disponível em:
<http://diversao.uol.com.br/ultnot/efe/2007/09/18/ult1817u6970.jhtm> Acesso em: 20 out.
2007.
• Um ponto de audiência equivale a quantos telespectadores? In: Dúvidas FreqüentesTV
Aberta - IBOPE . Disponível em:
<http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=6&proj=PortalIBO
PE&pub=T&db=caldb&comp=duvidas_frequentes_leitura&nivel=D%FAvidas%20Freq%F
CentesTV%20Aberta&docid=E651DCBF758BBEA183256EB60069C181> Acesso em: 20
out. 2007.

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"De Seu Madruga e louco, todo mundo tem um pouco."

  • 1. RAFAEL ORTEGA CARVALHO “De Seu Madruga e louco, todo mundo tem um pouco” Ensaio fenomenológico-existencial acerca da popularidade do seriado ‘Chaves’ Faculdade de Psicologia Pontifícia Universidade Católica São Paulo 2007
  • 2. RAFAEL ORTEGA CARVALHO “De Seu Madruga e louco, todo mundo tem um pouco...” Ensaio fenomenológico-existencial acerca da popularidade do seriado ‘Chaves’ Trabalho de conclusão de curso como exigência parcial para graduação no curso de Psicologia, sob orientação do Prof. Carlos Eduardo de Carvalho Freire. Faculdade de Psicologia Pontifícia Universidade Católica São Paulo 2007
  • 3. “Aí vem o Chaves, Chaves, Chaves, Todos atentos olhando pra TV. Aí vem o Chaves, Chaves, Chaves, Com uma historinha bem gostosa de se ver. Aí vem o Chaves, Chaves, Chaves, Todos atentos olhando pra TV. Aí vem o Chaves, Chaves, Chaves, Com uma historinha bem gostosa de se ver. A Chiquinha é uma gracinha, Relincha tanto quando vai chorar. E Seu Madruga, sempre muito calado, Não abre a boca só pra não brigar O Professor Girafales e a Dona Florinda, Se gostam tanto mas casório, nada ainda. E tem o Quico com a bochecha toda inchada, E é claro o Chaves, o rei da palhaçada, E é claro o Chaves, o rei da palhaçada. Aí vem o Chaves, Chaves, Chaves, Tô chegando! Aí vem o Chaves, Chaves, Chaves.* ” “Ninguém me presenteou nada e sou muito afortunado, porque conto com o tesouro maior que qualquer artista sonha em ter: o carinho do público, que sabe muito bem quem sou.” Roberto Gómez Bolaños em recente entrevista** ao ser questionado acerca de seu suposto envolvimento com membros do narcotráfico. * Música tema da abertura do programa no Brasil (Aí vem o Chaves – SBT). ** Criador de Chaves e Chapolin nega suposta relação com o narcotráfico. In: UOL Diversão e Arte. Disponível em: <http://diversao.uol.com.br/ultnot/efe/2007/09/18/ult1817u6970.jhtm> Acesso em: 2 nov. 2007.
  • 4. Agradecimentos Agradeço a meu orientador Edu, Carlos Eduardo de Carvalho Freire. Meus amigos, aqueles que estiveram presentes e me apoiaram e ajudaram. Aos meus irmãos e meus brothers. Ao meu pai que, apesar de não compreender meus caminhos, esteve sempre ao meu lado me apoiando. Pelo apoio e presença das minhas quatro mães: a mãe do dia-a-dia de casa, Odete; a mãe-terapeuta e professora, das confissões, lutas e vitórias, Ana Silvia; a mãe-acadêmica, presente e acolhedora em todos os anos da faculdade, desde a primeira aula, Flavia; e finalmente, a mãe-herói, mãe-ídolo, mãe- exemplo pessoalmente e profissionalmente, a mãe mesmo, de verdade, Paula Ortega. Muito obrigado!
  • 5. Rafael Ortega Carvalho: “De Seu Madruga e louco, todo mundo tem um pouco...”: Ensaio fenomenológico-existencial acerca da popularidade de ‘Chaves’, 2007. Orientador: Prof. Carlos Eduardo de Carvalho Freire Palavras-chave: fenomenologia-existencial, ser-no-mundo, Bolaños. Área do conhecimento (segundo CNPq): Psicologia (7.07.00.00-1) Resumo O presente trabalho pretende investigar o sucesso e a popularidade do seriado Chaves no Brasil. O seriado, criado no México em 1970, é reprisado por aqui até hoje e, junto com seu “irmão” Chapolin, atinge níveis de audiência invejáveis pelas emissoras concorrentes do SBT, que detém seus direitos de veiculação no Brasil desde a chegada em 1985. O autor e protagonista Bolaños escreveu um livro onde conta a história do garoto Chaves antes de sua chegada à vila conhecida pelos milhões de telespectadores, além de desmentir alguns dos boatos acerca deste. O garoto órfão, abandonado, pobre e ingênuo passa por dificuldades, sozinho na cidade grande até chegar à vila, sua última morada conhecida. Lá acontecem as divertidas trapalhadas de Chaves e sua turma. Na escola e no pátio da vila é que Chaves aprende muita coisa, brinca com os amigos Chiquinha, Quico e Nhonho, além de conseguir sempre aprontar alguma com os adultos rabugentos Dona Florinda, Seu Madruga, Sr. Barriga, etc. Assim ele acaba tomando uns cascudos. Mas tudo bem, no final eles sempre o perdoam e acolhem. Para chegar ao sentido da popularidade desse seriado e desse humor, recorremos às dimensões da existência humana expostas por Martin Heidegger. Ser-no-mundo, ser-com-os-outros, a cotidianidade e a condição fundamental da angústia guiarão a análise aqui feita para compreender o seriado aos olhos de um espectador. A análise mostra que o humor do seriado carrega consigo uma certa nostalgia da infância que, assim como o humor do próprio personagem, nos lança a um mundo menos ameaçador e angustiante. A ingenuidade de Chaves cativa seus espectadores mostrando que podemos habitar também um mundo de formas amigáveis mesmo vivendo numa grande metrópole ou tendo poucos recursos financeiros, enfim, tendo que ser quem somos.
  • 6. Sumário I. Introdução .......................................................................1 II. Método .............................................................................4 III. O seriado (Generalidades) .....………............................................6 IV. Análise Existencial (ser-no-mundo, ser-com-os-outros e cotidiano) .….….....16 V. Análise e Discussão ........................................................23 VI. Considerações Finais .........................................…..........31 VII. Referências Bibliográficas ..................................….........33
  • 7. I. Introdução O fenômeno a ser estudado neste trabalho é o seriado de televisão chamado no Brasil de “Chaves”. Este seriado está no ar há mais de vinte anos em nosso país e foi produzido originalmente no México na década de 70. Apesar da grande popularidade do seriado em toda a América Latina e de seus mais de 30 anos de existência, pouco se pesquisou academicamente, entre nós, acerca deste programa. Sua grande popularidade, apesar da paupérrima produção, as incansáveis reprises e os temas abordados em alguns episódios levantam diversas questões a serem investigadas. A vida de um pobre garoto em uma grande cidade de um país em desenvolvimento tratada em um clima de humor, ingenuidade e doçura serão o principal tema de nosso trabalho. Além disso, tratar-se-á aqui de alguns dos diversos fatos e curiosidades que envolvem esta série humorística, fazendo parte de um sucesso da televisão muito popular e querido, mesmo após 30 anos de permanência no ar e apesar de sua precária produção. Neste trabalho daremos especial atenção ao personagem principal, o garoto Chaves, protagonizado pelo criador da série, Roberto Gómez Bolaños, porém sem deixar de lado seu companheiro na grade horária televisiva do SBT, o herói atrapalhado Chapolin Colorado, além dos demais personagens que convivem com Chaves na vila. Chapolin chegou junto com Chaves ao Brasil e por muito tempo foram “companheiros” na grade horária de emissora que os transmite até hoje por aqui, ou seja, eram exibidos um após o outro. Sendo assim, no Brasil, os dois personagens, através de seus programas independentes sempre foram tidos como muito próximos; algumas pessoas chegam a confundir os dois seriados. Natural, já que ambos são fruto da criação do humor de Bolaños, além de terem sido criados na mesma época. “As duas séries tiveram várias alterações de horário ao longo dos anos, mas sempre há um público novo descobrindo as cômicas aventuras de seus personagens. Estes jovens espectadores se juntam aos nostálgicos adultos e aos fãs incondicionais de sempre.”2 Ambos também se assemelham no que diz respeito à qualidade do cenário e da produção técnica como um todo, além da especificidade do humor de Bolaños, retratada nas “trapalhadas” de ambos os protagonistas. Aqui se discutirá alguns aspectos da popularidade destes personagens a partir da fenomenologia de Martin Heidegger apresentada em Ser e Tempo (2006). Temas como a condição humana de ser-no-mundo, 2 LUGO, Omar. Popularidade de "Chaves" atravessa décadas no Brasil e vira livro. 2007. Disponível em: <http://diversao.uol.com.br/ultnot/efe/2007/03/19/ult1817u6051.jhtm> Acesso em: 19/03/2007.
  • 8. impessoalidade, queda, angústia, entre outros, orientarão nossas considerações. A principal pergunta a ser respondida fica definida como: o que há de especificamente característico nestes seriados de Bolaños que os fazem ser populares e risíveis ainda hoje, mesmo tendo sido produzido precariamente há mais de 30 anos e sendo apenas reprisados desde então? Ou seja, o que faz com que este seriado tenha peculiar popularidade entre nós brasileiros e como se dá essa proximidade que crianças, jovens e adultos têm com os personagens das séries. Tudo isso levando em conta a idade da produção e suas condições desfavoráveis no sentido tecnicamente televisivo. A questão é a proximidade entre o mundo de Chaves e aspectos do mundo de brasileiros. Ou seja, como e por que esta popularidade se deu (e se dá...)? Iremos dialogar com tais dimensões expostas em Ser e Tempo pois este seriado permeia a vida de diversas pessoas não só brasileiras em diversos âmbitos. Um deles, o que pretendo investigar, é o humor de Chaves que faz parte da realidade de muitas crianças e adultos no Brasil e na América Latina de maneira generalizada. Isso se mostra principalmente a partir do fim da década de 1990, entre os jovens. Nota-se que alguns dos bordões e trocadilhos presentes nos seriados, característica marcante do humor de Bolaños, estão presentes constantemente no quotidiano destes jovens, reconhecidamente. Além disso, Chaves tem um lado que diz respeito a todos nós. O fato de estar no ar há tantos anos no Brasil, de possuir um cenário tão tosco, de ser tão precariamente produzido, de ser tão popular no Brasil a ponto de termos alguns de seus bordões e trocadilhos como referência quotidiana, de ser popular atingindo público das mais diversas idades (ao menos no Brasil) são as questões que instigam nossa pesquisa. “No Brasil, "Chavesmaníacos" de todas as idades participam de fã-clubes e freqüentemente organizam encontros, atualmente facilitados pela internet. Em várias cidades do país, costumam reunir-se para rever capítulos, trocar peças de coleção ou simplesmente cultuar a infância que já se foi.”3 Legiões de fãs e produtos, licenciados ou não, com imagens dos personagens e até mesmo sátiras, demonstram a enorme popularidade e o apelo comercial que o seriado assumiu ultimamente, no início do século 21, ao completar 30 anos no ar. Eventos reunindo atores e até mesmo os dubladores da versão brasileira atraíram centenas de “Chavesmaníacos”. Nossa questão é refletir sobre este fenômeno. 3 Idem.
  • 9. Além disso, outro fator que chama atenção no seriado é seu tipo de humor, simples e ingênuo. As piadas, reprisadas há vinte anos, ainda geram gargalhadas e, o mais incrível, soam como se fosse a primeira vez. As piadas de Chaves têm uma característica muito importante no humor que é o fato de trazer o óbvio de forma inesperada.
  • 10. II. Método Esta pesquisa terá o enfoque fenomenológico como método de investigação. Haverá dois movimentos principais durante o processo desta pesquisa, a aproximação teórica buscando alguns aspectos da existência humana tratados por Martin Heidegger em Ser e Tempo (2006), o outro é a análise das próprias impressões deste pesquisador sobre o seriado e suas reverberações. Portanto, leva-se em conta que a experiência pessoal do pesquisador é o que “recorta” esta investigação. Assim, com o olhar fenomenológico na análise deste material, tratar-se-á o tema aqui abordado como fenômeno, e, na proximidade e no contato íntimo com este se buscará a compreensão do problema que esta pesquisa pretende responder, a pergunta já citada acima. Acerca desta concepção: “O interrogador faz parte do que ele quer saber e do que ele pode ver. Ele é elemento constituinte desse olhar em que tudo o que é tem sua chance de aparecer, mesmo que como mera testemunha. (...) Este olhar do interrogador ou interrogador, por sua vez, é jamais um olhar dele mesmo, isolado, mas um olhar plural do qual fazem parte todos aqueles com quem ele mesmo é-no-mundo. Mas é também um olhar exclusivo, no qual se expõe toda sua singularidade. Esse olhar do interrogador também deve ser interrogado fenomenologicamente, em busca de seu sentido.”(Critelli, 2006, p. 149) O que se busca com este método é esclarecer o sentido de um acontecimento. Mas o que é sentido? Sentido, como podemos ver em Ser e Tempo: “(…) é o contexto no qual se mantém a possibilidade de compreender algum coisa, sem que ele mesmo seja explicitado ou, tematicamente, visualizado. Sentido significa a perspectiva do projeto primordial a partir do qual alguma coisa pode ser concebida em sua possibilidade como aquilo que ela é.” (Heidegger, 2006, p. 408) “Sentido é aquilo em que se sustenta a compreensibilidade de alguma coisa” (p. 212) Levando em consideração a prévia compreensão do método fenomenológico e o modo próprio da fenomenologia de produzir conhecimento, ou seja, a partir de um pensamento que questiona o sentido do ser de algo assim mantendo-se sempre à cerca deste em um movimento circular, é que se buscará, no caso desta pesquisa o sentido da popularidade do seriado tido aqui como objeto principal e foco, Chaves. “A reconstrução da arquitetura do texto toma então uma forma circular, que faz dialogar partes e todo; a atribuição de diferentes graus de importância a certos aspectos é feita por meio de conjeturas. Como uma totalidade singular, o texto pode ser abordado de várias faces, mas não de todas simultaneamente. Assim, ao reconstruí-lo sempre o fazemos de uma perspectiva.
  • 11. Os textos são lidos como um todo para conjeturar o seu sentido mais geral. Certos temas são aprofundados à luz do sentido mais global e emergem interpretações mais prováveis do que outras, o que não significa serem mais verdadeiras, mas validadas em uma lógica da incerteza, pela argumentação; A interpretação explicita então a compreensão do fenômeno em um processo concebido como um arco hermenêutico. Encontramo-nos com um texto munidos de uma pré-compreensão, que dá um sentido para a sua totalidade. Feita a análise, com o foco na interconexão de suas partes, o texto impede uma expressão completa da subjetividade do leitor e quanto mais se avança no sentido do texto, mais essa subjetividade é impedida de expressar-se. A referência por trás do texto vai sendo suspensa e as proposições apontam para um horizonte que abre um mundo, por meio de suas referências não ostensivas. Emerge uma zona de significados que nos permite compreender o texto de uma forma diferente.” (Kublikowski, 2007) Partindo dessas orientações é que este trabalho será conduzido. Contudo, é claro, pretende-se ir além de meras impressões pessoais e alcançar o sentido deste seriado.
  • 12. III. O Seriado (Generalidades) O objeto de estudo deste trabalho será o seriado de televisão chamado, no Brasil, de Chaves. Trata-se de um seriado humorístico de caráter infantil que após ser produzido no México na década de 70, tornou-se popular também entre jovens e adultos brasileiros após 1984. O seriado trata da vida de um garoto pobre de supostos oito anos de idade, chamado pelos outros de Chaves. Este, além de ser o protagonista que dá nome ao seriado, será abordado aqui – enquanto personagem – como principal foco de estudo. Ele passa seus dias em uma vila pobre de uma cidade grande, onde também moram outras pessoas igualmente simples, mas, nenhuma delas tão pobre quanto ele. Seus melhores amigos são Quico e Chiquinha. Quico mora em uma das casas da vila com sua mãe, uma viúva brava que o protege como seu tesouro, chamada Dona Florinda. Chiquinha mora com seu pai, tido por muitos como vagabundo por não conseguir emprego e nunca pagar o aluguel, o rabugento Seu Madruga. Em uma outra casa da vila mora a temida Bruxa do 71, uma senhora velha que ganhou este apelido das crianças que morrem de medo dela, seu nome verdadeiro é Dona Clotilde. O dono de toda a vila e responsável pela cobrança dos aluguéis é o Sr. Barriga que é sempre recebido na vila com uma pancada de Chaves, mas é sempre "sem querer, querendo". Seu filho Nhonho também costuma brincar com as crianças da vila, sempre se gabando de ter muito dinheiro e poder comprar quanta comida quiser, o que mais decepciona Chaves. Há alguns outros personagens como o Carteiro Jaiminho, as outras crianças que freqüentam a escola, etc. Estes têm menor evidência e importância no enredo e aparecem com freqüência distinta durante os episódios, inclusive durante as diversas fases de produção e mudanças de elenco pelas quais passou o seriado. Alguns dos episódios se passam na escola da vizinhança onde Chaves, seus amigos e alguns outros personagens têm aulas em um ambiente muito parecido ao da “Escolinha do Professor Raimundo” do humorista brasileiro Chico Anísio. Na escolinha mexicana o professor Girafales (Chamado pelas crianças por diversos apelidos – o preferido: Professor Lingüiça) faz perguntas às crianças, indagando fatos históricos, nomes de animais e outras coisas, sempre dando espaço para alguma piada ou trocadilho por parte dos alunos; é assim, inclusive, que se dá o humor da cena. É na escola que Chaves mais sofre com as brincadeiras dos amigos, já que não teve muita oportunidade de estudo quando mais novo. Além disso, através de um misto
  • 13. de ingenuidade e malícia, acaba respondendo às perguntas com respostas espontâneas e “autênticas”, contudo infelizmente incorretas e por isso mesmo, risíveis. Um das mais significativas “tiradas” de Chaves, ou seja, que explicita melhor seu mundo, aparece em episódio em que há uma aula sobre os animais. Esta passagem, além de mostrar o típico gênero humorístico do seriado, mostra também um pouco da relação de Chaves com a pobreza e a fome: “Hoy nuevamente seguimos estudiando a los animales. El Professor Jirafales nos explico que los animales que comen carne son carnívoros; los que comen fruta son frutívoros; los que comen insectos son insectívoros, y asi. Entonces Quico dijo que los que comen enchiladas son enchiladívoros y los que comen gordas pellizcadas son gordaspellizcadívoros. Pero el Professor Jirafales regaño a Quico por haber dicho eso. Luego preguntó que cuáles eran los animales que comian de todo, y yo respondi que los que comían de todo eran los ricos.” (Bolaños, 2000, p. 40) Quando Chaves sente-se aborrecido, entra no barril que fica num canto da vila perto dos tanques de lavar roupa e lá fica chorando e pensando na vida. Seus amigos já sabem disso e quando não o encontram no pátio, é lá que o procuram. Muitas pessoas pensam que Chaves mora neste barril, mas lá é apenas seu refúgio para estas horas tristes e difíceis. Por ser órfão Chaves é cuidado pelas pessoas da vizinhança, ganha comida ou esmola ao fazer favores para as pessoas da vila, na maioria das vezes para Dona Florinda. Já chegou até mesmo a engraxar sapatos e fazer malabares em sinal de trânsito, algo muito comum entre os garotos de rua aqui no Brasil. Apesar da pobreza, Chaves é geralmente bem humorado e brincalhão, é também um pouco ingênuo, o que o faz parecer bobo quando Chiquinha ou Quico o enganam para conseguir vantagem sobre ele nas brincadeiras. Talvez esteja neste seu jeito de ser uma das razões pelas quais o seriado é tão cativante e popular. O Diário De Chaves (A Pré-História Do Garoto) Bolaños publicou um livro chamado originalmente de El Diário de el Chavo del Ocho (em português “O diário do Chaves”) no qual o autor revela a biografia do garoto antes de chegar à vila onde apronta suas trapalhadas na televisão. Este livro foi lançado em 2000, ou seja, após o término das gravações do seriado. Neste livro Bolaños relata a história da infância do personagem (que conta sua biografia em primeira pessoa) inclusive descrevendo como foi sua chagada à vila. Além disso, esta narrativa dá conta
  • 14. de satisfazer algumas curiosidades que ao longo da duração do seriado se tornaram controversos, como a história do barril, o nome de Chaves, etc. No livro, Bolaños relata que Chaves é um garoto pobre que tem, no momento do relato (Bolaños, 2000, p. 6), pouco menos de oito anos. Veste-se com roupas sujas e velhas e um sapato que parece ter pertencido a um adulto. Também usa um gorro, que no inverno deve ter-lhe sido bastante útil; apesar disso, usava-o em pleno verão. Chaves nem mesmo tem um nome. “Chavo del Ocho” é um apelido que lhe deram quando ele chegou à vila em que passou uma boa parte de seus dias. Foi lá onde conheceu vários de seus amigos e muitas pessoas que lhe ajudavam dando moradia e comida. Sua infância foi muito parecida com a de muitos outros garotos pobres das cidades grandes (principalmente na América Latina). Chaves foi abandonado pelos pais. Na infância, sua mãe o levava a uma creche, onde ele passou sua primeira infância. Lá ela voltava ao final de cada dia, cansada do trabalho, e levava seu filho para casa. O problema é que ela nem sempre levava o mesmo garoto. “O sea, que lo más seguro es que yo no sea yo.” (Bolaños, 2000, p. 9) Depois de certo tempo, levaram-no a um orfanato. Lá, ele conviveu com outras crianças em situações semelhantes à sua e teve seu primeiro contato com a morte, seu melhor amigo se foi. Chaves se sentia muito sozinho e com muito medo. Nesse orfanato ele era mal tratado e repreendido, o que o levou a fugir. Vagando pelas ruas, Chaves se deu conta de que passava fome: “Porque en esta vida lo más importante es comer. Por eso me metí al mercado, donde habia muchisisísimas cosas de comer. Lo malo era que yo no tenía dinero para comprarlas. Entonces pensé robarme algo, pero recordé que era pecado robarse las cosas; sobre todo cuando el dueño es otro. Por eso lo que hice fue pedir que me regalaran algo.” (Bolaños, 2000, p. 19) Chaves é um garoto doce, terno, conquista as pessoas com simplicidade. Passava os dias vagando pelas ruas, até que em algum momento lhe dava muito medo e vontade de fugir, correr por aí. Numa dessas ocasiões, conheceu um grupo de garotos que faziam malabares em um semáforo em troca de esmola. Lá Chaves viu que esses garotos costumavam fumar e cheirar algo dentro de uma sacola. Um dia um dos garotos foi atropelado no semáforo. Chaves viu a cena, viu outro garoto chorando. Novamente sentiu muito medo e correu. Desta vez ele chegou ao seu último destino conhecido, a vila.
  • 15. Nesta passagem do livro, Bolaños explica uma das maiores curiosidades sobre o seriado, a questão do numero 8 (Chavo Del Ocho). Também envolve o barril, um refúgio/moradia do garoto. Os rumores, antes do livro, dizem que Chaves tem oito anos, ou que o personagem tem este apelido por ser transmitido, no início, no canal 8, no México. A verdade vem a seguir. Na vila, Chaves foi acolhido por uma senhora que morava na casa de número oito. Esta senhora lhe cedeu moradia e comida. Logo, esta senhora também morreu. Chaves ficou lá até que chegasse um novo morador, aí ganhou seu apelido em espanhol, “Chavo del Ocho” , cuja tradução seria algo como ‘Moleque do oito’. Após a chegada de novos moradores para aquela casa, Chaves acabou ficando pela vila. Seus amigos lhe cediam suas casas para passar as noites. Alguns dizem que ele mora no barril, mas ele desmente: “Porque no es cierto esto que yo vivo dentro de un barril, como han dicho algunos. Lo que pasa es que yo me meto al barril cuando no quiero que los demás se den cuenta de que estoy llorando. Y también cuando tengo muchas cosas en que pensar.” (Bolaños, 2000, p. 25) Na vizinhança Chaves conheceu diversas crianças, seus amigos, e alguns adultos, os moradores da vila. Lá teve a oportunidade de estudar, junto com seus amigos. Na vila ele brinca e passa seu tempo junto com seus amigos, apesar de às vezes eles fazerem-no de bobo. Ou às vezes, ele mesmo é quem se faz de bobo. Chaves é uma criança muito espontânea e diz as coisas como pensa, o que às vezes acaba lhe custando algumas broncas do professor ou pancadas do seu vizinho seu Madruga (‘Don Ramon’). Inclusive, o modo como fala (escreve, no diário) enquadra-se na fase do desenvolvimento chamada ‘pensamento pré-operatório’. Isto se mostra quando compreende as coisas ao “pé-da-letra”, de forma imediata (crua?) ou raciocina por justaposição, etc. Exatamente por isso, é determinado o caráter risível de diversas de suas falas4 também presentes no seriado e características marcantes do tipo de humor 4 Alguns exemplos: “Los animales que comem carne se llaman carnívoros; los que comen frutas, frutívoros; los animales que comen de todo se llaman ricos.” (Bolaños, 2000, p. 40) “El señor Barriga tiene tantisisísimo dinero, que le alcanza para comprar toda la comida que quiera. Y por eso mismo también es el señor más gordo del mundo.” (Bolaños, 2000, p. 33) “El professor Jirafales nos explicó que la palavra ‘epidemia’ quiere decir que mucha gente está enferma de la misma enfermidad. O sea que la enfermidad es mucha y está muy repartida. Por eso pienso que cuando el señor Barriga se enferma del estómago, es como si toda la epidemia fuera para él solito.” (Bolaños, 2000, p. 33) “La diferencia que hay entre los animales e las cosas es que los animales son seres vivos (Menos quando ya están muertos).” (Bolaños, 2000, p. 37) “(…) Lo malo fue que entonces me preguntó que cuándo me lavé las manos, pero ni tuviera yo tanta memoria. Finalmente me preguntó que cuándo me bañé por última vez, pero francamente yo todavía no me baño por última vez. Eso se lo deben preguntar a los que ya se murrieran, porque los que estamos vivos no podemos saber cuándo será la última vez que nos bañemos.” (Bolaños, 2000, p. 42)
  • 16. presente em ambos os seriados. É notável como este garoto que passou por condições completamente inóspitas e adversas, teve resiliência e manteve-se inocente, ingênuo e terno. O caminho comum ou provável seria juntar-se aos outros garotos que encontrou na rua, assim, possivelmente, tornando-se um delinqüente infantil ou um criminoso ou envolvido com drogas. A pergunta que fazemos é: como pôde este garoto manter-se longe deste caminho? O que o manteve longe disso? Por que não lhe foi atraente o caminho mais “provável” ou mais “comum”? O mérito do garoto do barril foi o de ter conseguido passar por tais situações, evitando-as de forma serena. História Da Produção Do Seriado (Origens) Chaves é um seriado da televisão Mexicana que chegou ao Brasil em 1984, aqui fez muito sucesso e rende índices de audiência notáveis até hoje. O texto a seguir esclarece o histórico do seriado, assim poderemos compreender o contexto em que surgiu este programa. Por volta de 1968, o humorista Roberto Gómez Bolaños, autor e protagonista do seriado Chaves, ainda escrevia roteiros de humorísticos mexicanos. À medida que aumentava seu sucesso, passava a escrever para outros humoristas. Assim, pouco tempo depois, teve a oportunidade de também atuar além de continuar escrevendo. Bolaños recebeu uma proposta para criar dois pequenos quadros humorísticos, estes com duração de algo como dez minutos cada: “Los supergenios de la mesa cuadrada” e “El ciudadano Gómez”. Em 1970, a emissora resolve aumentar o tempo de Bolaños para uma hora, assim, o humorista teria um programa somente seu. Nasce aí o programa “Chesperito”, apelido de Bolaños, fazendo alusão a Shakespeare. Este era um programa constituído de diversos quadros humorísticos que passava às segundas-feiras, transmitido no horário nobre mexicano. Um desses quadros era o “Chapolin Colorado” (originalmente Chapulín Colorado) que foi ao ar um ano antes de Chaves. Este seriado tratava de um herói, ou anti-herói, trapalhão e medroso que era chamado para resolver situações das mais diversas. Lidava com piratas, ladrões, pistoleiros, até mesmo lutadores de karatê. Assim “Lo que pasa con la História es que los professores hacen trampas, pues te preguntan cosas que pasaron cuando uno ni siquiera había nacido. (…) cada vez hace más difícil estudiar, porque siempre siguen pasando cosas. (…) para los adultos fue muy fácil, pues cuando ellos estudiaron casi no habia pasado nada.” (Bolaños, 2000, p. 48) …entre muitos outros!
  • 17. resolvendo as situações às quais era chamado sempre da maneira mais inusitada possível. Chapolin foi produzido no México de 1970 a 1979; houve uma breve interrupção, até 1980, quando foi retomado até 1993, sempre como quadro dentro do programa de Chesperito. No Brasil, chegou junto com Chaves e o acompanhou na grade horária do SBT por muitas vezes. Um ano mais tarde, em 20 de junho de 1971, foi ao ar o primeiro episódio de "El Chavo del Ocho” ainda como um esquete no programa Chesperito. No início o esquete mostrava crianças em um parque público, apenas para preencher espaços no programa. À medida que foi recebendo elogios, Chaves foi ganhando mais espaço e tomando a forma que acabou tornando-se mais popular. Foram adicionados personagens pouco a pouco, assim constituindo o pequeno mundo de Chaves. Desta forma, as histórias de Chaves passaram a ter como cenário uma simples vila do subúrbio da Cidade do México. Seu nome em espanhol, a língua original, é El Chavo del Ocho, que significa algo como “O moleque do oito” (da casa número oito – da vila). Chavo é uma gíria de origem mexicana que designa garoto. No Brasil diríamos moleque, pivete, piá, guri, algo próximo disso. O número oito é um dos diversos aspectos do programa que acabou se tornando misterioso. Diversas histórias e aspectos do programa acabaram tendo este lado obscuro. Oito é o número da casa onde Chaves ficou por algum tempo logo que chegou à vila. É também sua suposta idade, já que nem ele mesmo sabe ao certo, tanto quanto seu nome (por isso assumiu o nome “Chavo del ocho” como o chamam na vila). Este também é número do canal da primeira emissora a passar Chaves no México, atual Televisa, uma das maiores emissoras de televisão no México. Alguns dos críticos vêm essa questão do número oito como algum tipo de jogada de marketing. De qualquer forma, depois de algum tempo, o seriado passou para o canal dois, que também pertence à mesma emissora, Televisa. Em pouco tempo, Chaves e Chapolin transformaram-se em seriados independentes devido à sua grande popularidade no país de origem. Em 1973 já eram líderes de audiência em vários países da América Latina. Ainda nesta época os personagens estavam sendo agregados ao seriado e ganhando cada um as características e personalidade que vemos no seriado após seu amadurecimento. Ainda assim, o cenário continua tão precário quanto no início do programa, quando era apenas um esquete dentro de Chesperito. O cenário da vila foi feito de madeira e papelão e o barril onde
  • 18. Chaves costuma se esconder fica perto da escada. Lá se passam os enredos mais diversos da turma, além da escola e do restaurante, que marcam outras fases específicas do seriado quando o elenco sofria modificações. O ano de 1975 foi o que marcou o auge do programa no México, inclusive por uma melhora significativa na qualidade da imagem. Nos dois anos seguintes melhorou o cenário, então, começaram a ser gravados remakes e músicas. Estas, que se tornaram rapidamente populares, são lembradas até hoje, inclusive com versões em português. Nesta época os integrantes do grupo já eram celebridades famosas em grande parte da América Latina. Em 1978 foram gravados episódios memoráveis como os de Acapulco5 e o especial de Natal. Então, o elenco já fazia turnês pela América Latina, apresentando-se em shows lotados. No ano seguinte, saíram do programa alguns dos atores, o que marca o fim da “independência” do programa, e em 1980 Chaves volta a fazer parte do programa Chesperito. Bolaños não gostava da idéia de contratar novos atores para os personagens já consagrados, então adaptou o seriado incluindo novos personagens e novos cenários como o restaurante da Dona Florinda. Em 1981 o ator Ramón Valdés, cujo papel é um dos mais famosos e carismáticos do seriado, o Seu Madruga (Don Ramón – chamado por Chaves de “Ron Damón”), retorna à turma. As gravações desta primeira fase do seriado pararam no ano de 1983, quando Bolaños decidiu que já era hora de parar. Seu personagem, o protagonista Chaves, era um garoto de supostos oito anos interpretado por ele que já tinha, à época, 54 anos. Foi neste período que a emissora muda de estratégia e começa a tentar vender pacotes com episódios dos programas de Chesperito aos países que ainda não haviam comprado, entre eles o Brasil. Nos pacotes de novelas mexicanas eram incluídos alguns episódios da dupla Chaves e Chapolin. Nesta mesma época, o elenco excursionou por diversos países, em sua maioria na América Latina, fazendo apresentações dos personagens da vila (do seriado Chaves) e de Chapolin. Em 1988, após a morte de Ramón Valdés (Seu Madruga) e o afastamento de Carlos Villagrán (Quico – outro personagem dos mais carismáticos), o elenco perdeu força. Ainda assim, Chaves voltou a ser produzido, novamente como parte do programa Chesperito, desta vez com novos personagens e alguns dos antigos, substituídos. 5 Nesta série de episódios os personagens da vila vão passar um feriado em um hotel na cidade de Acapulco. Na dublagem de um destes episódios, chama-se o lugar de Guarujá, em um outro, Acapulco. Todos os personagens foram juntos para o hotel, já que alguns haviam ganhado a estadia em uma promoção e outros foram acompanhá-los. Chaves teve sua viajem paga pelo bondoso dono da vila, o Sr. Barriga. O hotel onde foram gravados estes episódios, na própria cidade turística de Acapulco, no México, recebe ainda hoje muitos fãs do seriado que procuram o hotel para hospedarem-se onde Chaves hospedou-se.
  • 19. Na “segunda fase” de gravações do seriado, os atores já estavam mais velhos e sem o vigor da década de 1970. Assim, as cenas perderam um pouco da plasticidade e do movimento e o humor ficou mais focado no verbal. Além disso, alguns dos personagens já tinham sofrido adaptações em suas características e personalidade. Isto fez com que esta segunda “fase”, que consistia em sua maioria de regravações, tivesse sucesso aquém do imaginado. As gravações desta segunda “fase” duraram até 1992, quando houve a morte de mais dois integrantes do elenco (Raul Padilla – O carteiro Jaiminho e Angelines Fernández – A Dona Clotilde ou “Bruxa do 71”). O programa Chesperito também saiu do ar em 1995. Chaves ou El Chavo del Ocho ainda é exibido hoje em dia em diversos países da América Latina. Foi dublado em mais de dez idiomas e já foi exibido para mais de oitenta países. Sobre a popularidade do seriado, em seu estudo de mercado acerca das preferências de personagens entre crianças de toda América Latina, as pesquisadoras Urich e La Madrid (2002) afirmam: “Mexico has El Chavo, mentioned spontaneously by 22% of the children as one of their three favorite programs. The televised episodes are pre-1995 re-runs and have a relatively simple production, not very probable characters – adults acting as children – and some clearly surreal situations, such as a homeless child that lives in a barrel. But the program presents a direct sense of humor, an array of loveable and convincing characters not because of their physical appearance but because of their performance, the feelings they manifest and the relationships established among them (clear indicators of an in-depth study of children). The dubbed version of El Chavo, Chaves, ranks fifth in Brazil.” “There are other characters that lack any kind of marketing or merchandising and are extremely successful. They are not fashionable characters; they are characters that appeal to children and that children love. It is the already mentioned case of El Chavo.” No Brasil Por aqui, o programa foi ao ar no ano de 1984, logo nos primeiros anos da emissora que detém os direitos até hoje, o SBT, então TVS. Na época, a emissora procurava preencher sua grade horária com atrações baratas e que proporcionassem grande audiência. Assim, recorreu à dramaturgia Mexicana, conhecida pelos “dramalhões” e clichês de baixo custo. Num dos pacotes de programas enviados pela Televisa, estava um lote de episódios de Chaves e Chapolin, que na época já tinham 13 anos. Em princípio a diretoria da emissora brasileira vetou o seriado mexicano, porém, o proprietário da emissora, Silvio Santos, optou por apostar na simplicidade do
  • 20. enlatado. A direção da emissora brasileira resolveu dublar alguns dos episódios para testar a audiência e o primeiro deles foi ao ar no programa do Bozo (outro personagem “importado”) em agosto de 1984. Na época, Chaves passava três dias por semana durante o programa do palhaço (que então ocupava 8 horas diárias na grade da emissora). Após sua estréia, Chaves já começou a provar seu “valor” e alavancou os índices de audiência no SBT. No total existem 150 episódios do seriado no Brasil, o total de episódios produzidos no México é de aproximadamente 500. Desde sua estréia, o seriado passou por diversos horários e com diversas freqüências. Enquanto isso, ao longo dos anos a emissora foi comprando outros lotes de Chaves e Chapolin. A média de audiência na década de 90 é de 13 pontos (o que representa quase 700 mil domicílios na Grande São Paulo)6 . Nas vezes em que a emissora tirou o programa do ar, por poucos dias, os fãs protestavam insistentemente, a cada vez que isso acontecia, “choviam” e-mails, cartas e telefonemas ao SBT pedindo a volta do programa. O poder do Ibope de Chaves alavancou a audiência do SBT até mesmo superando a poderosa Rede Globo de Televisão em alguns dos horários pelos quais passou durante os mais de vinte anos de exibição no Brasil. Existem diversos produtos envolvendo o seriado. Na década de 90, a editora Globo publicou gibis contendo histórias da turma da vila e também do herói atrapalhado Chapolin. Alguns produtos licenciados como álbuns de figurinha, etc também foram vendidos nesta época. Além disso há outros produtos como bonecos, camisetas, bottons, etc. que fazem referência aos personagens da turma. Algumas bandas, tanto no Brasil como em outros países fazem referência ao seriado, tanto nos nomes das bandas como em letras de suas musicas. O famoso desenho animado norte-americano, Simpsons, que trata de uma típica família de classe média daquele país, também tem um personagem inspirado no Chapolin. O bumble-bee man (homem abelha) um homem vestido de abelha que participa de um programa de televisão do palhaço Crusty no “channel ocho” (canal 6 Um ponto de audiência corresponde a 1% do universo de pessoas ou domicílios que estavam sintonizados em um canal ou assistindo a um programa específico. Dessa maneira, temos que diferenciar dois tipos de audiência: a individual e a domiciliar. Na audiência individual, 1 ponto quer dizer que 1% dos telespectadores estava assistindo a determinado programa. Por outro lado, na audiência domiciliar, 1 ponto refere-se a 1% das casas que estavam assistindo a um determinado programa. Como o universo da pesquisa varia, um ponto de audiência em uma praça X não equivale ao mesmo número de telespectadores representados por um ponto de audiência em uma praça Y. Referência: Um ponto de audiência equivale a quantos telespectadores? In: Dúvidas FreqüentesTV Aberta - IBOPE . Disponível em: <http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=6&proj=PortalIBOPE&pub=T&db=caldb&comp=duvidas _frequentes_leitura&nivel=D%FAvidas%20Freq%FCentesTV%20Aberta&docid=E651DCBF758BBEA183256EB60069C181> Acesso em: 20 out. 2007.
  • 21. oito). El Chavo Del Ocho foi dublado em diversas línguas e transmitido em vários países, sendo, na América Latina famoso e popular até hoje onde está a maioria dos países onde é transmitido e ainda reprisado. O programa já foi ao ar em cerca de 90 países, e tem atualmente 300 milhões de espectadores no mundo7 . No próximo capítulo vamos expor e discutir algumas dimensões da existência humana cotidiana. Traremos da análise existencial, alguns elementos para pensarmos sobre o sucesso do seriado. Esta abordagem servirá de apoio e embasamento para a seguinte discussão acerca de algumas condições e dimensões do homem em contato com apontamentos acerca do seriado até aqui descrito. Sendo assim, o tema abordado a seguir diz respeito à análise existencial desenvolvida em Ser e Tempo (2006) e servirá de pano de fundo para discutirmos o seriado em busca de seu sentido. 7 MATTOS, Laura e RODRIGUES, Lúcia V. Os segredos de Chaves. Folha de São Paulo. São Paulo, 29, mar. 2006.
  • 22. IV. Análise Do Dasein (ser-no-mundo, ser-com-os-outros e cotidiano) A reformulação da questão do ser feita por Heidegger (2006) leva em conta sua relação com o tempo e nos conduz a uma reflexão sobre o ser humano. O homem é constituído historicamente, sendo assim, a temporalidade é um de seus existenciais8 , uma de suas dimensões. Partindo do modo mais comum da existência do homem, Heidegger investiga a “cotidianidade”, ou seja, o modo de existir mais corriqueiro ou “médio”. Assim assume- se que o ser do homem se encontra em disposição de diversas possibilidades. Então, pretende-se não menosprezar nenhuma delas num estudo que se origina nesta “cotidianidade”. A partir daí, o homem é visto como “poder ser”, enquanto referido ao próprio ser. Desta forma diferencia-se dos entes que simplesmente são. O homem pode ser, ou seja, sua característica mais própria é “existir”. Ser é sua tarefa, ele tem de ser. Assim, diz-se que o que define o homem é exatamente a não-definição, o não fechamento de possibilidades, pois ele tem que ser quem é. O ser do homem é possível, pleno de possibilidade. Desta forma, nota-se que o homem não tem essência ou natureza (no sentido de algo fixo e delimitado que o distingue dos outros entes). Sua característica não se limita desta forma. O homem não é algo acabado e pronto. Isto diz que o homem tem a responsabilidade de seu próprio ser. A etimologia da palavra existência nos mostra uma noção de “ser-para-fora” ou “ser-em-direção-a”, sendo assim, ser transcendente. O homem existe, as outras “coisas” são. As dimensões da existência do homem chamam-se, a partir daí, “existenciais”. A essência do homem como sendo a existência (estar lançado) contrapõe-se a noção metafísica que compreende o homem como sujeito (não-objeto). Após isso, coloca-se que o existir do homem se dá no mundo, ou seja, junto com as coisas e os outros (pessoas). Isto quer dizer que a existência se dá junto e em relação com estas coisas e pessoas. Para compreender esta concepção (ser-no-mundo) precisa-se 8 Em Ser e Tempo, Heidegger chama de existenciais as dimensões da existência de Dasein, algumas delas são: corpo, mundo, tempo, etc. “Existencial remete às estruturas que compõem o ser do homem a partir da existência em seus desdobramentos advindos da presença” (Heidegger, 2006, p. 563 [N5]). A edição utilizada aqui (Heidegger, Ser e Tempo, 2006) traduz o termo alemão ‘Dasein’ como ‘presença’. Neste caso, leia-se como sinônimos, quando usados aqui, ‘presença’, ‘ser-aí’ ou ‘Dasein’. Todos dizem respeito ao característico modo da existência humana explorado por Martin Heidegger em ‘Ser e Tempo’.
  • 23. recorrer a uma noção esclarecida de “mundo”. O mundo é um existencial, isto é, uma das características ou dimensões de Dasein (“Ser-aí” – a existência humana). Sendo assim, constitui uma dimensão da existência do homem. Para desenvolver o conceito de mundo, Heidegger recorre primeiramente à noção de instrumento. Este é o modo como as coisas aparecem para nós, enquanto instrumentalidade. As coisas que se nos mostram são dotadas de significado e passam a fazer parte de nossa existência (projeto) enquanto instrumentos. Desta forma, não são as coisas objetos alheios com os quais nos relacionamos, mas sim como dotados de significação. Assim, as coisas já nos estão referidas, não são simples ‘presenças’ ante os olhos, seres simplesmente dados. Ainda mantendo o mesmo raciocínio, nota-se que o instrumento nunca se dá isolado, ele é instrumento para, ou seja, é referido a algo. O mundo não é uma mera soma de todas as coisas que nos cercam. Ele é condição para que as coisas sejam, é uma totalidade de instrumentos. Assim, para que os instrumentos tenham sentido de ser, é necessário que haja alguém que os empregue, ou seja, que os compreenda enquanto instrumentos. Então, não há mundo se não há Dasein. Por outro lado, Dasein não existe sem mundo. Assim, o mundo é característica de Dasein. Ser-no-mundo é ter familiaridade com uma totalidade de significados. Outro âmbito da existência humana a ser esclarecido é o ser-com-os-outros. Esta dimensão humana fala da co-existência, ou seja, a relação de Dasein junto com os demais. Somos também referidos aos outros. Então ser-no-mundo é ser-com-os-outros. Heidegger chama esta relação de preocupação (Fürsorge). Assim é marcada a noção de que a existência não se dá isoladamente. Este específico modo-de-ser se diferencia da nossa relação com os manuais pois, neste caso, se trata de outros existentes, outros Dasein. Todavia, da mesma forma que com os entes simplesmente dados, na primeira aproximação já compreendemos os demais. Isto significa que já temos nossa existência referida aos outros, esta já está “sob a tutela dos outros” (Heidegger, 2006, p. 183) na forma da preocupação. Heidegger diz que mesmo quando agimos de forma indiferente ao outro, este é um modo de lidar com outro, levando-o em consideração, da mesma forma, é preocupação. O autor costuma colocar-se a partir da seguinte frase “numa primeira aproximação e na maior parte das vezes”. Quando usa este enunciado está querendo dizer que trata do modo cotidiano de ser-no-mundo, do modo mais comum e corriqueiro
  • 24. de nossa existência junto às coisas e os outros no mundo, a cotidianidade. Neste mundo compartilhado, lançado à cotidianidade, Dasein vive impessoalmente. Este estar lançado em uma convivência cotidiana de maneira impessoal é chamado de queda. Na impessoalidade “cada um é como o outro. Este conviver dissolve inteiramente a própria presença no modo de ser dos ‘outros’” (Heidegger, 2006, p. 184). Neste modo-se-ser Dasein, de certa forma, deixa de lado sua tarefa de ser referenciado à própria existência e “cai” na impropriedade. Apesar desta isenção dada à existência no impessoal, seu caráter público também fala de uma familiaridade. Na cotidianidade pública Dasein faz as coisas como se faz cotidianamente, impessoalmente, ou seja, do modo mais comum e corriqueiro. É preciso ressaltar que apesar de ser este o modo mais comum da existência, não é fixo e, sendo assim, não é o único. O ser-si-mesmo também pode ser propriamente vivido. Este acontecimento, que implica em um “separar-se” do impessoal, também não caracteriza um movimento definitivo. A propriedade não é final e a impessoalidade não é inferior. Devemos lembrar que, segundo Martin Heidegger, a queda e o impessoal são determinações que constituem o ser-aí humano sempre. Este estar lançado na publicidade possui três características. Todas elas são referidas ao caráter quotidiano e impessoal de Dasein. A primeira delas (§35 de Ser e Tempo) é chamada de “falação” (ou falatório, que também se dá na comunicação escrita – “escrivinhação”) e diz respeito ao “modo de ser do compreender e da interpretação da presença cotidiana” (Heidegger, 2006, p. 231). Heidegger diz que, em se tratando de linguagem, “ao pronunciar-se, o compreender e a interpretação já se dão” (Heidegger, 2006, p. 231). Desta forma no mostra que uma compreensão já é dada quando Dasein pronuncia algo. A falação é comunicação e seu pronunciamento implica em uma “abertura de mundo” e em interlocutores, os outros. “A tendência ontológica da comunicação é fazer o ouvinte participar do ser que se abriu para o sobre que se fala” (Heidegger, 2006, p. 232). Ou seja, quando se fala, há a tentativa de compartilhar mundo. Isto quer dizer que a comunicação em sua maneira essencial cumpre o objetivo de fazer do ouvinte um participante, ele faz parte do mundo que se abre na comunicação. Quando você fala, é a partir de seu mundo, seu horizonte. Em geral, na cotidianidade, esta compreensão da qual falamos se dá de forma mediana. Em outras palavras, podemos dizer que esta compreensão é pública, é de todos nós e, neste sentido, impessoal. “O falado na falação arrasta consigo círculos cada vez mais amplos, assumindo
  • 25. caráter autoritário. As coisas são assim como são porque é assim que delas (impessoalmente) se fala. Repetindo e passando adiante a fala, potencia-se a falta de solidez” (Heidegger, 2006, p. 232). Ou seja, a falação esvazia o ser das coisas. Na falação pode-se compreender tudo sem ter se apropriado daquilo que se fala, ou seja, compreender o discurso deixando de lado o ente referido. O ente passa ao largo, o importante é repetir o falado. A característica seguinte (§36 de Ser e Tempo) é a chamada “curiosidade” (ou avidez por novidades). Este modo-de-ser é guiado pela visão em diversos sentidos. “A visão foi concebida na perspectiva do modo fundamental de abertura própria à presença, ou seja, do compreender no sentido de uma apropriação genuína dos entes com os quais a presença pode relacionar-se e assumir uma atitude segundo suas possibilidades de ser essenciais” (Heidegger, 2006, p. 234). Assim que o encontra, aquilo já se torna conhecido e ocioso e a busca pelo novo se eterniza. A busca é pela novidade. Aqui não se trata de ver para conhecer, se deter no ente. Trata-se de ver para ter visto e, assim, cumprir com mais uma obrigação determinada pela “ditadura do impessoal”. “Este modo de ser-no-mundo desvela um novo modo de ser da presença cotidiana em que ela se encontra constantemente desenraizada” (Heidegger, 2006, p. 237). Nesta disposição, Dasein, guiado pela falação, procura tudo o que há de novo. Então, “um modo arrasta o outro consigo. A curiosidade, que nada perde, e a falação, que tudo compreende, dão à presença, que assim existe, a garantia de ‘uma vida cheia de vida’, pretensamente autêntica” (Heidegger, 2006, p. 237). Também, esta curiosidade, não se trata do espanto que admira os entes, o “taumazein” (_________) de Aristóteles, pois ela não quer compreender o ser dos entes através da admiração e do espanto como foi dito acima. O terceiro modo-de-ser na cotidianidade (§37 de Ser e Tempo) é chamado de “ambigüidade”. A ambigüidade fala justamente da aparente compreensão por parte destes dois últimos modos-de-ser, quando, propriamente não acontece de fato. Assim, “já não mais se poderá distinguir, na compreensão autêntica, o que se abre do que não se abre. Essa ambigüidade não se estende apenas ao mundo mas, também, à convivência como tal e até mesmo ao ser da presença para consigo mesma” (Heidegger, 2006, p. 237). A ambigüidade é justamente quem torna o que “todos” desejam em lugar comum, o que “todos” falam em já sabido. O que Heidegger pretende falar da ambigüidade pode ser exemplificado através
  • 26. do fenômeno em que todas as pessoas falam de algo como se isso fosse amplamente conhecido e compreendido, quando no fundo não foi. A idéia de Heidegger é que “se” vive dentro de uma atmosfera em que tudo é tido como evidente e claro. Ora, o que o autor salienta é que esta clareza possível diz respeito a algo que poderíamos denominar de “periferia do ente”, no sentido de sua superfície mais exposta. “Essa atitude de estar na pista e, na verdade, a partir do ouvir dizer – quem autenticamente ‘está na pista’ não fala sobre isso – é o modo mais traiçoeiro em que a ambigüidade propicia á presença possibilidades, a fim de sufocá-la em sua força” (Heidegger, 2006, p. 238). Outro aspecto ambíguo é que “a falação não está sequer empenhada em que o que ela pressente e constantemente requer aconteça realmente. Pois, com isso, ser-lhe-ia arrancada a oportunidade de continuar pressentindo” (Heidegger, 2006, p. 238). Esta afirmação significa que a consumação daquilo que a falação aponta não precisa acontecer, já que o importante é simplesmente o falar. Na medida em que o acontecimento se dá, a falação perderia seu sentido de continuar apontando para outras novidades. “Em sua ambigüidade, a falação e a curiosidade cuidam para que aquilo que se criou de autenticamente novo já chegue envelhecido quando se torna público” (Heidegger, 2006, p. 239). Assim, mais uma vez, o modo-de-ser na cotidianidade mostra-se esvaziando o ser das coisas e retirando-lhes sua autenticidade. O novo, desejado, já chega velho, sabido e vazio. O nexo entre esses três modos-de-ser se dá no modo da decadência e do estar- lançado (§38 de Ser e Tempo). Estes caracterizam o modo do Dasein na cotidianidade, então, constituem seu ser nesta circunstancia. O modo fundamental, ou seja, que indica o nexo entre estes anteriores é a decadência do Dasein. O termo não tem uma conotação negativa. Quer dizer que na maior parte das vezes, Dasein está lançado na cotidianidade, ou seja, junto às ocupações. Isto indica um caráter de estar “perdido” na publicidade do impessoal. Esta queda na impessoalidade cotidiana é o modo com o qual Dasein conta para suportar sua condição. É inclusive o modo mais autêntico. Decair mostra-se então como um empenho de Dasein para manter-se na convivência, absorvido pelo “mundo” em sua co-presença e instrumentalidade. Este é o modo no qual Dasein se mantém na maioria das vezes. A queda acontece devido à nossa condição mais originária, a angústia (§37 de
  • 27. Ser e Tempo). Esta camada mais imediatamente perceptível do ser-aí humano, a queda no impessoal, possui como sentido encobrir a adversidade originária do existir, ou seja, a angústia. Heidegger pensa que “a angústia se angustia com o ser-no-mundo ele mesmo” (Heidegger, 2006, p. 254). Isto significa que no fundo de nosso ser encontramos motivos para nos angustiarmos pois o abrir-se originário de nossa condição mais própria é ameaçador. Trata-se de uma ameaça indeterminada, uma vez que é a própria indeterminação da condição humana que irá nos angustiar e sustentar nossa queda no mundo. “O ser-no-mundo tranqüilizado e familiarizado é um modo da estranheza da presença e não o contrário. O não sentir-se em casa deve ser compreendido, existencialmente e ontologicamente, como o fenômeno mais originário” (Heidegger, 2006, p. 256). A queda sustenta-se sobre isto, encobre isto. Por causa da angústia, sentimo-nos tentados a decair, e esta tentação acontece por que a cotidianidade e a impessoalidade nos parece mais tranqüila. Quanto mais tranqüilamente tentados, mais decaídos somos. Assim, a decadência assume também um caráter alienante e “faz com que a presença se aprisione em si mesma” (Heidegger, 2006, p. 243). É importante notar que o estar lançado não é um estado fixo e irremissível. Trata-se de um modo-de-ser cujo “pano-de-fundo” é a angústia, esta pode ser vivida também de forma própria e autêntica. Este fenômeno, a angústia, raramente ocorre propriamente já que nós, na cotidianidade, estamos constantemente “fugindo” de nossa condição, da angústia. Na impessoalidade, lidamos com nossa existência de forma impessoal, ou seja, ignorando nossa condição. A angústia refere-se à condição primordial da existência humana, o ser-para-a-morte. É a partir desta noção que pode-se pensar na angústia existencial como pano-de-fundo da existência humana, do qual Dasein lança-se na cotidianidade. “Ser-para-a-morte em sentido próprio não pode escapar da possibilidade mais própria e irremissível e, nessa fuga, encobri-la e alterar o seu sentido em favor da compreensão do impessoal. O projeto existencial de um ser-para-a-morte em sentido próprio deve, portanto, elaborar os momentos desse ser que o constituem como compreensão da morte, no sentido de um ser para a possibilidade caracterizada, que nem foge e nem encobre” (Heidegger, 2006, p. 337). No pensamento de Martin Heidegger, a morte é compreendida como possibilidade. Na cotidianidade impessoal, o Dasein vive um ser-para-a-morte
  • 28. impróprio, em direção ao fim, “ao” nada. Assim, ocupa-se da realização desta possibilidade primordial, o fim. “Como possibilidade a proximidade mais próxima do ser-para-a-morte se acha, face ao real, tão distante quanto possível. Quanto mais se compreender e desvelar essa possibilidade como a possibilidade da impossibilidade da existência” (Heidegger, 2006, p. 339). Ao ter a morte como possibilidade, Dasein antecipa esta possibilidade. Nesta possibilidade, a mais própria de Dasein, está em jogo seu ser. “A angústia, porém, é a disposição que permite que se mantenha aberta a ameaça absoluta e insistente de si mesmo, que emerge do ser mais próprio e singular da presença. Na angústia, a presença dispõe-se frente ao nada da possível impossibilidade de sua existência. A angústia se angustia pelo poder ser daquele ente assim determinado, abrindo-lhe a possibilidade mais extrema” “Pode-se resumir a caracterização de ser que, existencialmente, se projeta para a morte em sentido próprio, da seguinte forma: o antecipar desvela para a presença a perdição no impessoalmente-si-mesmo e, embora não sustentada primariamente na preocupação das ocupações, a coloca diante da possibilidade de ser ela própria: mas isso na liberdade para a morte que, apaixonada, fática, certa de si mesma e desembaraçada das ilusões do impessoal, se angustia.” (Heidegger, 2006, p. 343). No próximo capítulo iremos abordar o seriado através das noções que foram aqui expostas. Será feita uma análise do seriado levando em consideração as noções aqui expostas e a prévia descrição do seriado. Faremos uma discussão enriquecida, inclusive, com outras referências acerca do sentido do seriado e de sua popularidade pela América Latina, principalmente no Brasil, mesmo sendo material televisivo antigo e precariamente produzido. Então, mais adiante, serão feitas as considerações finais a respeito do mesmo.
  • 29. V. Análise e Discussão Até aqui foi feita a descrição do seriado, seu histórico e sua contextualização nacional. Foram explicitados alguns fatos curiosos que envolvem a popularidade do seriado que tem audiência grande de pessoas de diversas idades e de variados extratos sociais mesmo sendo reprisado constantemente após 30 anos de sua produção inicial. Neste capítulo foram levantadas questões acerca desta mesma popularidade e da possível identificação dos telespectadores com alguns dos personagens, em especial Chaves, Quico, Seu Madruga e Chapolin, os mais carismáticos. Além disso foram expostas algumas dimensões da existência humana tratadas por Martin Heidegger em Ser e Tempo (2006). Estas dimensões falam de modos-de-ser da cotidianidade humana que, apesar de serem idéias vindas do âmbito da filosofia, foram e ainda são utilizadas por pensadores da psicologia, em especial psico-terapeutas como Medard Boss. Esta presente pesquisa serve de exigência para graduação no curso de psicologia e, a partir daí, surge mais uma questão: o que Chaves tem a ver com as dimensões expostas da fenomenologia de Martin Heidegger? Anteriormente, no breve capítulo acerca da metodologia fenomenológica, ficou claro que o viés dado à pesquisa é o do peculiar e particular olhar deste pesquisador. Sendo assim, as impressões e reverberações que serão aqui descritas dizem respeito às impressões do pesquisador enquanto telespectador do seriado aqui tratado, ou seja, Dasein telespectador de Chaves. Contudo, é claro, pretende-se ir além de meras impressões pessoais e alcançar o sentido deste seriado. Então, levando em consideração a fenomenologia de Martin Heidegger e o prévio conhecimento do seriado e dos personagens, levantaremos algumas outras questões. O que torna Chaves, o personagem, tão atraente? Como Chaves se mostra e o que este personagem nos mostra? Tanto quanto vemos ou lemos centenas de vezes o mesmo conto-de-fada ou estória infantil e não nos cansamos, o mesmo acontece com o seriado. O que há nele que o torna tão fascinante? Numa vila cotidiana, um ser se abre para o humor, reflexão e questionamento do cotidiano. Relaciona-se com as coisas que se lhe apresentam de maneira criativa, bem-humorada e doce. Chaves é um garoto pobre em uma cidade grande da América Latina, ou seja, é alguém com quem nós, moradores de uma destas cidades, estamos habituados a
  • 30. conviver. Chaves faz parte de nosso mundo, não só o personagem, para quem assiste, mas o garoto, para quem o vê pelas ruas da cidade. Neste caso, o interessante é notar que Chaves convive com sua condição de maneira diferente da qual vemos os garotos das ruas de nossas cidades. Chaves brinca. Foi acolhido por uma vila, pelos moradores dela, não só por caridade a um garoto pobre, ele de alguma forma os cativou. Na ocasião do lançamento do livro, o próprio autor foi questionado se Chaves havia sido inspirado em algum garoto em especial. Sua resposta foi a seguinte: “Não houve um, por que me dei conta de que esse garoto pobre existia em muitos lugares, não só na América Latina. Todos eles têm a esperança que queria comunicar com Chaves, que, apesar de não ter brinquedos, café da manhã e muitos amigos, brincava com entusiasmo, e o futuro o acompanhava.” Quem assiste ao seriado percebe que o garoto é interpretado por um adulto. Mesmo assim, apesar do talento do ator, Chaves é uma criança, age como criança, fala como criança e brinca como criança. Isto é, inclusive, um dos mais imediatos indícios da popularidade de Chaves entre os telespectadores tanto adultos como jovens. Chaves é um adulto que sabe ser criança. Chaves encara um mundo potencialmente ameaçador e violento com doçura e bom-humor. Ele mostra ao telespectador que isto é possível. Quando assistimos ao programa sentimos um tipo de familiaridade com aquela vila, sentimo-nos em casa. Chaves nos mostra um pouco do que somos. Enquanto “caídos” no mundo, somos lançados a um modo-de-ser que ameniza a inospitabilidade do mundo, encobre, de certa forma, nossa condição primordial. Afinal, ele tem que continuar sendo Chaves. No artigo ‘O Humor’ (in Freud, 1969 - Obras Completas Vol. XXI), Freud mostra – retomando seu próprio ‘Os chistes e sua relação com o inconsciente’ (Freud, 1969 Obras Completas Vol. VIII) – como surge a produção do prazer humorístico. O autor mostra que o humor propicia prazer, tanto em quem adota a atitude humorística quanto ao não participante, assistente, como o ouvinte de uma piada. O autor ilustra tal processo da seguinte forma: “O ouvinte vê esse outro numa situação que o leva a esperar que ele produza os sinais de um afeto, que fique zangado, se queixe, expresse sofrimento, fique assustado ou horrorizado ou, talvez, até mesmo desesperado; e o assistente ou ouvinte está preparado para acompanhar sua direção e evocar os mesmos impulsos emocionais em si mesmo. Contudo, essa expectativa emocional é desapontada; a outra pessoa não expressa afeto, mas faz uma pilhéria. O gasto de sentimento, que é assim economizado, se transforma em prazer humorístico no ouvinte.”
  • 31. Sendo assim, o humor funciona como um tipo de fuga da situação hostil à qual havia iminência de se chegar, afirmando a vitoriosa “invulnerabilidade do ego”, assim se dá o “triunfo do narcisismo”. A realidade hostil é suprimida. Então, evita-se o sofrimento. Desta forma, “o superego tenta, através do humor, consolar o ego e protegê-lo do sofrimento”. Com sua linguagem e utilizando-se das instâncias específicas à psicanálise, Freud também mostra que a atitude humorística é uma forma de lidar com um mundo potencialmente hostil e inóspito. Aquele mundo onde os adultos continuam sendo crianças, um tipo de Peter-Pan, dá a impressão de que aquela juventude estará sempre presente, que a morte nunca chega. O próprio Bolaños desistiu de interpretar o garoto quando percebeu que estava velho de mais para apresentar-se como alguém de oito anos. Um das canções mais famosas9 entre os fãs brasileiros fala dessa pretensão: “ Se você é jovem ainda, jovem ainda, jovem ainda! Amanhã velho será, velho será, velho será! A menos que o coração, que o coração sustente, A juventude que nunca morrerá! Existem jovens de oitenta e tantos anos, E também velhos de apenas vinte e seis. Porque velhice, não significa nada! E a juventude volta sempre outra vez! Se você é jovem ainda, jovem ainda, jovem ainda! Amanhã velho será, velho será, velho será! A menos que o coração, que o coração sustente, A juventude que nunca morrerá! E você é tão jovem quanto sente, Pode apostar é jovem pra valer! E velho é quem perde a pureza. E também é quem deixa de aprende. Se você é jovem ainda, jovem ainda, jovem ainda! Amanhã velho será, velho será, velho será! A menos que o coração, que o coração sustente, 9 Se Você é Jovem Ainda – SBT. Adaptação do original: Se tu Eres Joven Aún.
  • 32. A juventude que nunca morrerá! Não diga não à vida que te espera, Pra festejar a alegria de viver. Pra agradecer a luz do seu caminho, E você vai tudo isso entender! Se você é jovem ainda, jovem ainda, jovem ainda! Amanhã velho será, velho será, velho será! A menos que o coração, que o coração sustente, A juventude que nunca morrerá! - Olha, olha turma! O Dr. Chapatim, é o velho mais jovem que eu conheço! - Eu não sou velho ouviu! eu sou só uma pessoa vivida! - Dr. Chapatim, quantos anos o senhor tem? - Eu? Todos! Mas isso não te interessa, ouviu... Se você é jovem ainda, jovem ainda, jovem ainda! Amanhã velho será, velho será, velho será! A menos que o coração, que o coração sustente, A juventude que nunca morrerá! ” Na vila, todas as crianças são, na verdade, interpretadas por adultos, e os adultos são em geral rabugentos e mal-humorados, exceto nos momentos e paquera entre os adultos, como entre Dona Florinda e Professor Girafales, também entre Dona Clotilde e Seu Madruga – por mais que ele não aprecie muito a beleza da “Bruxa do 71”. Mesmo assim,. O seriado é “assexuado”, as paqueras são apenas insinuadas e todas as crianças têm pelo menos um de seus pais ausente. Isto mostra mais um lado da ingenuidade do mundo de Chaves. Não apenas por não saber “de onde vêm os bebês”, mas porque na vila todos são seus pais, todas são suas mães. Eles o acolheram e é lá que ele mora, come e brinca. Esta é a casa de uma criança. Além disso, ele é irmão das crianças da vila, que na realidade são – todos eles – filhos únicos. Já que os pais de seus amigos são seus pais, ele torna-se irmão dos amigos. Chaves eventualmente divide o quarto com eles, janta na mesa da família, etc. Como não poderia deixar de ser, o garoto tem também seus momentos solitários. Como ele mesmo “diz” em seu diário, entra no barril quando precisa pensar em algo ou quando sente muita vontade de chorar, o que não é raro. Ele sabe muito bem que foi abandonado pelos pais e rejeitado pela diretora do orfanato. Não deve ser fácil para uma criança de tão pouca idade superar tais rejeições tão violentas. Mesmo assim, ele supera, ele corre, sem destino, tentando deixar o medo para trás e sem saber o que vem à frente.
  • 33. Pior não deve ser. Chaves continua com abertura para se relacionar com o que aparece, ao invés de ficar só chorando dentro do barril. Bem, acabamos de nos dar conta de que Chaves fala do impessoal. Chaves também é lançado no cotidiano, claro, como não poderia. Existe uma música10 que faz uma sátira a um outro personagem, também um dos mais queridos, que fala dessa mesma característica. “ O sol pela janela Veio me avisar Já passou do meio dia É hora de acordar Quer saber de uma coisa? Hoje eu não vou levantar Não fazer nada me cansa Acho que vou descansar De Seu Madruga e louco Todo mundo tem um pouco! Desempregado, endividado Já tô com a corda no pescoço Um xaveco na vizinha É o que garante o meu almoço Se a campainha toca É alguém que veio me cobrar Eu já falei, não adianta Não tenho como pagar De Seu Madruga e louco Todo mundo tem um pouco! Nem lembro a cor do dinheiro Conheço cobrador pelo cheiro Uma tia me deu uns trocados por dó Mas eu perdi tudo jogando dominó Triste é passar pelo bar Já fui avisado: - Fiado nem pensar! E aos poucos o dia já vai terminando O sol já tá se pondo, que sono isso tá me dando De Seu Madruga e louco 10 Os Thompsons - De Seu Madruga e Louco (Radiola Records / Estrondo - 2001)
  • 34. Todo mundo tem um pouco! ” Quem conhece o seriado sabe que o Seu Madruga está devendo 14 meses de aluguel. Toda vez que o Sr. Barriga vem cobrá-lo – inclusive sempre recebido por uma pancada (“sem querer querendo”) do Chaves – o Seu Madruga dá um jeito de se esconder ou “driblar” o Sr. Barriga. Na verdade o Sr. Barriga também acaba perdoando e deixando pra cobrar na semana seguinte. O Seu Madruga nunca tem dinheiro, afinal ele não trabalha, inclusive, ele tem muita preguiça de trabalhar, apesar de viver se gabando das coisas que fez na sua juventude. Já foi boxeador, toureiro, violonista, etc. Essas histórias que ele conta para as crianças acabam dando vazão para as brincadeiras que eles fazem pelo pátio da vila. Então, o pátio vira arena de touros, ou ringue de boxe, assim por diante. No meio dessas brincadeiras acaba sempre acontecendo alguma confusão e alguém sempre toma uma pancada, novamente “sem querer querendo”, fazer o que? “É que me escapuliu”. Muitos dos fãs do seriado se identificam com este velho rabugento, pobre e preguiçoso que sempre desconta suas decepções em forma de “cascudo” nas crianças. O que será que este outro personagem tem de carismático? Bom, como muitos, ele tem que se esquivar e fazer “bicos” ou “biscates” de todo tipo para conseguir algum sustento para si e para sua filha Chiquinha. Ambos os personagens mostram modos de lidar com as dificuldades do mundo de forma criativa. Usam sua sagacidade e astúcia para resolver situações que corriqueiramente poderiam ser obstáculos. Até mesmo o herói atrapalhado Chapolin (“Não contavam com minha astúcia!”) com seus modos desajeitados consegue fazer as vezes de um verdadeiro super-herói e resolver aos “trancos e barrancos” as situações para as quais é chamado (“Oh, e agora, quem poderá nos defender?”). Esse tipo de narrativa onde alguém de origem pobre tenta se “dar bem” na vida, conseguindo as coisas através da esperteza (às vezes de forma duvidosa), chama-se Novela Picaresca. A Novela Picaresca (ou Romance Picaresco) é um gênero literário cujos primeiros representantes provém da Espanha medieval. O gênero surgiu como um modo de contrapor as então populares novelas de cavalaria, onde heróis virtuosos aventurando-se por belas damas, dentro de um contexto idealizado da aristocracia feudal. Os primeiros textos clássicos da Novela Picaresca surgem por volta do séc. XVI e caracterizam-se por uma narração do próprio protagonista, o Pícaro, que conta a
  • 35. história de sua vida e de como consegue as coisas por meio de trapaças em uma sociedade corrompida onde se nota que o importante mais do que ser era parecer ser. De forma rapsódica, o Pícaro narra sua origem, geralmente pobre, sua sobrevivência vagabunda ou subempregada, assim matando sua fome (tema central do Pícaro) utilizando sua astúcia, atingindo muitas vezes a delinqüência. Então, o Pícaro caracteriza-se por ser um anti-herói, contrapondo os Cavaleiros das novelas anteriores. A trajetória do Pícaro é marcada por uma sátira da sociedade medieval corrompida. No Brasil, nota-se muita semelhança com tal gênero em obras como 'Memórias de um sargento de milícias' ou 'Macunaíma' as quais poderiam ser chamadas, neste caso, de neo-pícarescas. Nestas obras e em outras mais recentes, tem-se a figura clara do anti- herói, também dito malandro, que consegue sobreviver por astúcia, criticando a sociedade vigente, assim guardando semelhanças intimas com a Picaresca clássica. Nota-se além destas duas obras especificamente brasileiras, outras de igual semelhança no resto da América Latina, até mesmo nas atuais novelas de televisão e seriados. É claro que para este trabalho, os personagens que tem especial intimidade com a Picaresca clássica são os de Bolaños, não só Chaves como os outros moradores da vila e o próprio Chapolin Colorado (a imagem mais clara de anti-herói). A diferença crucial entre Chaves e os Pícaros clássicos é o fato de que mesmo agindo de forma astuta e trapaceira para matar sua fome, Chaves o faz com notável inocência. Esta é uma característica primordial de seu caráter e, ao meu ver (então, na óptica deste mesmo trabalho) a característica fundamental que diferencia seu tipo de humor. Chaves não é um garoto delinqüente ou um ladrão. Além disso, algumas das características picarescas são notáveis em outros dos personagens da vila. Seu Madruga sempre consegue burlar o pagamento do aluguel. Dona Florinda tenta aparentar-se sendo de classe social ou econômica superior, mas mora na mesma vila e tem os mesmo costumes e hábitos que a “gentalha”. O seriado, mesmo tendo condições precárias de produção, atrai ainda, após 30 anos, muitos olhares atentos. Tudo lá é velho e sabido, as piadas e trapalhadas advindas da tradição circense de muitos dos atores nunca impressionou, tanto por qualidade técnica como por repetição. Na vila tudo já é previsível e sabido. Todos sabem que ao entrar na vila, o Sr. Barriga receberá uma pancada do Chaves. Todos já perceberam que Chaves irá tropeçar no balde que está no meio do pátio. Todos sabem que Quico irá tentar enganar Chaves e iludi-lo com a proposta de dá-lo um sanduíche de presunto, e isso acabará numa perseguição em correria pelos pátios onde, provavelmente mais
  • 36. alguém será envolvido, infelizmente tomando uma pancada de um dos dois. Isto tudo aparentemente se contrapõe à noção Heideggeriana de curiosidade. Naquele caso, a busca é interminável pelo novo. Quem assiste Chaves já sabe que não ai ver nada de novo, inclusive por estar assistindo a uma reprise da década de 70 ou 80. Mesmo assim, o telespectador, ou fã (talvez seja a palavra mais adequada) continua assistindo vidrado na televisão e rindo novamente. A impressão que isto passa é de um tipo de saudade ou nostalgia daquilo. A seguir serão feitas considerações acerca da popularidade do seriado, principalmente envolvendo questões que ainda intrigam este pesquisador e que não foram o enfoque principal do caminho deste trabalho.
  • 37. VI. Considerações Finais Vimos até aqui que o grande sucesso do seriado se explica principalmente pelo fato de vermos naquela vila um pouco de nosso mundo. Aquelas crianças, aquele cenário, aquilo tudo é muito parecido, se não igual, ao que vivemos em grandes cidades como São Paulo. Boa parte disso é reflexo da semelhante desigualdade social em nosso país, também verificada na maioria dos países da América Latina. Aquilo que se mostra na vila de Chaves é nosso mundo. O objetivo do seriado não é fazer um documentário ou mostrar a “realidade” da pobreza no continente, mesmo assim o faz. Apesar disso, é um programa de humor, em princípio destinado ao público infantil, ainda assim, pessoas de todas as idades o assistem, e de novo, e de novo… O que se vê no programa não é uma coletânea de momentos pobres, sujos e moralmente excluídos. Chaves, mesmo tendo esse potencial, nos mostra nosso próprio mundo com um humor ingênuo, simples e sem apelo comercial ou mesmo sexual, o que normalmente se usa para conseguir audiência. Chapolin por sua vez, é o autêntico anti-herói latino-americano, assim como o Quixote contrapôs as novelas de cavalaria, o também conhecido como “Polegar Vermelho” é fraco, atrapalhado e debochado, opondo-se aos super-heróis dos contemporâneos gibis e desenhos animados. Chapolin é o “Macunaíma mexicano”. Se Sérgio Buarque de Hollanda estiver correto, nós brasileiros sabemos muito bem o que é essa maneira debochada, “preguiçosa” e “sem caráter” de ser. O número de web-sites sobre os seriados cresce a cada dia, grupos de discussão, fóruns e espaços para trocas de arquivos de vídeo ou música dos programas são as preferências dos fãs. Organizam-se em eventos que celebram os bons momentos do seriado, assim como foi feito na própria vila, o “festival da boa vizinhança”. A cada vez que a emissora tira os poucos episódios do ar, toda essa massa se empenha em pedidos para que volte ao ar. Ultimamente, com as versões originais (em espanhol) em DVD, os fãs têm acesso a episódios inéditos no Brasil em melhor qualidade do que a vista na TV. Como não podia deixar de ser, são também estes vendidos em sua versão “pirata” nas ruas da cidade, pois é, esta é a América Latina e não poderia deixar de ser. Principalmente entre os jovens percebe-se presente o humor atrapalhado dos seriados, os trocadilhos clássicos e até mesmo novos, com o mesmo tipo de “sacada”. Sabem cantar as músicas do seriado, usam camisetas com imagens dos personagens ou a clássica camiseta vermelha com o coração e as letras CH (presentes na maioria dos
  • 38. trabalhos de Bolaños), o uniforme do Chapolin. Quem diria que um seriado tão mal produzido poderia ter um apelo comercial tão grande? O SBT acaba usando-o como coringa na programação. Será que era esta a pretensão de Bolaños? Aqui aparece novamente o lado cotidiano de Chaves. Os fãs são ávidos por novidades, movidos pelo falatório da internet. Querem ter visto todos os episódios. Querem saber todas as músicas. Querem desvendar todos os mistérios e boatos. Querem ter os bonecos dos personagens. Chaves nos lança no cotidiano. Ele nos mostra nosso mundo. A América Latina é aquela pequena vila refugiada e escondida no meio de uma cidade enorme e ameaçadora. Nós nos identificamos com aquilo que reverbera em nosso ser, aquilo que constitui nosso mundo. Quando assistimos aos seriados de Bolaños vemos uma realidade que reverbera em nosso ser. Aquilo nos diz respeito, fala de nós e para nós mesmos. O seriado fez sucesso por todo o continente e por aqui, mesmo sendo dublado e perdendo alguns efeitos humorísticos ou alguns trocadilhos pelo idioma diferente, o sucesso foi igual. Mesmo tendo sofrido alterações e falhas durante a dublagem dos poucos episódios que vieram para o Brasil, o seriado cativa milhões de espectadores. Aliás, nada mais condizente com o espírito tosco e mal produzido de Chaves do que uma pequena falha aqui e acolá. Talvez seja isso mesmo o que atrai os olhos atentos dos fãs. O que ainda se mostra passível de investigação mais aprofundada é como um programa consegue manter-se no ar sendo reprisado exaustivamente há 25 anos (no Brasil). Além disso, o fato de alguns personagens serem especialmente cativantes, cada um com suas características especificamente marcantes.
  • 39. VII. Referências Bibliográficas • BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre o significado do cômico. Rio de Janeiro, Guanabara, 1987. • BOLAÑOS, Roberto G. El Diario de El Chavo del Ocho. Madrid, Laberinto, 2001. • CRITELLI, Dulce M. Analítica do sentido: uma aproximação e interpretação do real de orientação fenomenológica. São Paulo, Brasiliense, 2006. • FREUD, Sigmund. (1905) Os chistes e sua relação com o inconsciente. In Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. VIII. Rio de Janeiro, Imago, 1969. • FREUD, Sigmund. (1927-1931) ‘O Humor’ In: O futuro de uma ilusão, O mal estar na civilização e outros trabalhos. In Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XXI. Rio de Janeiro, Imago, 1969. • GONZÁLEZ, Mario M. O romance picaresco. São Paulo, Ática, 1988. • HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis, Vozes; Bragança Paulista, Ed. Universitária São Francisco, 2006. • JOLY, Luís; THULER, Fernando e FRANCO, Paulo. Chaves: Foi sem querer querendo? São Paulo, Matrix, 2005. • KUBLIKOWSKI, Ida. Análise Qualitativa (2007) Material didático produzido para a disciplina “Seminário de Dissertação” do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. [Texto não publicado] • MATTOS, Laura e RODRIGUES, Lúcia V. Os segredos de Chaves. Folha de São Paulo. São Paulo, 29, mar. 2006. • LA MADRID, Mónica e URICH, Telma. The universal and the singular, the permanent and the ephemeral. Character preferences of children. In: ESOMAR Latin American Conference, 2002, São Paulo. p. 261-288. Versão eletrônica disponível em: <http://www.kiddos.com.ar/docs/downloads/characterpreferences.pdf> Acesso em: 20 out. 2007. • LUGO, Omar. Popularidade de "Chaves" atravessa décadas no Brasil e vira livro. 2007. Disponível em: <http://diversao.uol.com.br/ultnot/efe/2007/03/19/ult1817u6051.jhtm> Acesso em: 20 out. 2007. • Criador de Chaves e Chapolin nega suposta relação com o narcotráfico. In: UOL Diversão e Arte. Disponível em: <http://diversao.uol.com.br/ultnot/efe/2007/09/18/ult1817u6970.jhtm> Acesso em: 20 out. 2007. • Um ponto de audiência equivale a quantos telespectadores? In: Dúvidas FreqüentesTV Aberta - IBOPE . Disponível em: <http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=6&proj=PortalIBO PE&pub=T&db=caldb&comp=duvidas_frequentes_leitura&nivel=D%FAvidas%20Freq%F CentesTV%20Aberta&docid=E651DCBF758BBEA183256EB60069C181> Acesso em: 20 out. 2007.