1) O documento discute a culinária brasileira, descrevendo-a como híbrida e resultante da mistura de culturas portuguesa, indígena, africana e asiática.
2) A culinária portuguesa também é caracterizada como eclética, combinando produtos da Europa, África e Ásia. Os portugueses foram pioneiros na disseminação de alimentos como a mandioca e o coco.
3) A culinária brasileira desenvolveu-se de forma difusa, com participação popular, especialmente de
1. Eddy Stols
A mestiçagem
dos alimentos
Sabores do Brasil 7
2. O
purê de mandioquinha acaba de conseguir somente de origem européia, mas também as ga-
nas mesas parisienses sua consagração gas- linhas-d’angola ou os zebus.
tronômica por chefes estrelados, ao passo A culinária brasileira nasce híbrida e in-
que, em Bruxelas, nas recepções dos tecnocratas tegra nesta mestiçagem contínua não somente
europeus, circulam bandejas de empadinhas de produtos e preparos portugueses e indígenas,
camarão fornecidas por cozinheiras brasileiras mas também africanos e asiáticos. Como tal,
anônimas. Junto com a reedição das obras pio- desenvolve-se muito cedo como uma das mais
neiras de Luís da Câmara Cascudo e Eduardo mundializadas, implicando todas as regiões e ca-
Frieiro e com publicações premiadas internacio- madas sociais, sem entretanto ceder em originali-
nalmente como a série A Formação da Culinária dade às mais reputadas culinárias das Américas,
Brasileira do Senac, não faltam indicações de que a mexicana e a peruana.
a culinária brasileira reivindica seu lugar dentro Sem dúvida, estas ganham maior fama,
da cozinha mundial. por se tratarem de culturas mais estruturadas
Na realidade, já no século XIX, os cardá- e, conseqüentemente, mais bem descritas pelos
pios europeus apresentavam os consommés à la cronistas da conquista. Bernardino de Sahagún e
tapioca (caldos engrossados com bolinhas de Bernal Díaz del Castillo decantam a riqueza dos
farinha de mandioca) e as brésiliennes (tortas ou mercados indígenas e a magnificência dos festins
sorvetes com coberturas de castanhas-do-pará). de Montezuma, com produtos como o chocolate.
Sem falar dos primeiros séculos do período co- Até as tapeçarias flamengas entronizam na de-
lonial, quando as terras brasileiras lideraram a coração prestigiosa o majestoso peru e o lhama,
mundialização dos alimentos, desde que se con- “o cordeiro dos Andes”. Ao mesmo tempo, os
sidere o intercâmbio da América não somente conquistadores espanhóis organizaram mais sis-
com a Europa, mas também com a Ásia e com a tematicamente a transferência de sua agricultura
África. Pelas mãos dos portugueses, a mandioca e criação de gado para o Novo Mundo. O grande
se torna substância de base na África, a castanha banquete organizado em 1538 pelo conquistador
de caju se familiariza nos caris da Índia, a bata- Hernán Cortés na capital da Nova Espanha evi-
ta-doce se implanta na ilha japonesa de Kiushu, dencia esta auto-suficiência. Naquela altura, já
ao mesmo tempo em que as broas do Minho to- funciona lá a primeira taverna de estilo espanhol.
mam a dianteira na substituição dos cereais eu- Pouco depois, grandes conventos femininos ela-
ropeus pela farinha de milho, como na polenta boraram receituários sofisticados para receber
do Veneto. Sobretudo, beneficiam as costas bra- seus visitantes masculinos.
sileiras com coqueiros, bananeiras, mangueiras, Em comparação, a culinária luso-brasileira
jaqueiras, jambeiros, pimentas, dendezeiros e in- faz figura de modesta e rasteira. Se na Espanha
troduzem a criação do gado e a avicultura, não o movimento editorial de livros de cozinha é tão
precoce e abundante como na Itália ou Flandres,
espera-se em Portugal até 1680 a Arte de Cozinha,
1
Espécie de caldo feito de tapioca, uma goma granulosa extra- de Domingos Rodrigues, e até 1780 o Cozinheiro
ída da mandioca. Moderno, de Lucas Rigaud, os dois únicos livros
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Condimento indiano feito de mistura de diversas especiarias,
de culinária publicados durante todo o período
com destaque para o açafrão. Também conhecido pelo nome
inglês curry. colonial. Se o milho merece dos jesuítas espa-
8 Textos do Brasil . Nº 13
3. Frutas. J. B. Debret.
nhóis em pinturas e esculturas um status eucarís- difuso, com menor intervenção das elites e maior
tico de pão divino, a mandioca nunca se presti- participação popular – notadamente feminina e
gia na iconografia e fica relegada como uma raiz africana e até indiana. Em Grandeza e Abastança
quase diabólica para fomentar a preguiça. Quase de Lisboa em 55, João Brandão apresenta sua
desconhecidas ou manuscritas continuam obras cidade como uma imensa praça de alimentação.
gerais, que exploram a comestibilidade das gene- Brandão conta, além dos taverneiros, pasteleiros,
rosas fauna e flora brasileiras como o Tratado Des- carniceiros, confeiteiros, “quinhentos fornos de
critivo do Brasil (1587), de Gabriel Soares de Sou- cozer pão e mil mulheres que vivem de vender
za, ou os Diálogos das Grandezas do Brasil (1618), pão cozido e padejar, por si ou à vendagem”, e
de Ambrósio Fernandes Brandão. mais centenas de cuscuzerias, farteleiras, tripei-
Esse descaso se poderia atribuir à fami- ras. Outras mulheres vendem queijo fresco, man-
gerada política de sigilo, já que não convinha à teiga crua e cozida, aletria, favas e ameixas cozi-
Coroa portuguesa desvendar ainda mais o rico das, postas de peixe frito, patos, lebres e outras
potencial nutritivo das capitanias brasileiras, caças, camarões e caramujos, alféloas, gergilada,
ventilado em publicações de viajantes ou nas pinhoada5, frutas de conserva, marmeladas e la-
cartas jesuíticas. O valor estratégico da mandio- ranjadas às pessoas que vão à Índia e Guiné ou
ca – que providenciava víveres baratos e sadios assam sardinhas na Ribeira. Limpas, ricas, com
tanto para soldados, quanto para escravos – não suas “cadeias ao pescoço, jóias, manilhas nos
devia ser trombeteado aos quatro cantos. Outra braços”, muitas são africanas, escravas ou forras,
explicação possível é que Portugal dava mais anunciando as negras do tabuleiro no Brasil.
atenção às especiarias e frutas das Índias orien- Em tantos pequenos navios saindo dos
tais – permitindo mesmo que se imprimisse em portos do norte de Portugal para as costas africa-
Goa, na Índia, os Colóquios dos simples e drogas da nas ou brasileiras, seus marinheiros improvisam
Índia (1563), de Garcia da Orta. Nada similar sai
do prelo sobre a culinária luso-brasileira.
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Massa de açúcar ou melaço, em ponto grosso, que amassada
com as mãos torna-se branca. É usada para fazer balas.
Essa visibilidade menor decorre em boa
Doce feito com as sementes do gergelim.
parte de sua própria criação: um processo lento e 5
Doce feito com mel e pinhões.
Sabores do Brasil 9
5. aí mesmo boa parte dos mantimentos. Comen- ma carne, destacando-se na matança ritual do
sais estrangeiros, como o veneziano Cadamosto porco e na charcutaria de sarrabulho e chouriços.
(1455) ou o flamengo Eustache Delafosse (1479), Ainda que prezem leitões, cordeiros e cabritos,
contam orgulhosos como experimentaram assim raramente comem bezerros e vitela, talvez por
o vinho de palmeira, os ovos de avestruz, a car- usarem o gado mais para tração e laticínios. No
ne de tartaruga, cortada e salgada como se fosse mar nenhum peixe lhes escapa, do atum até as
toucinho, ou mesmo de elefante, bem menos sa- sardinhas – passando por todos os moluscos.
borosa. Enquanto os marinheiros da Companhia Com esta “gastronomia da água”, são pioneiros
das Índias Orientais comiam em grupos de sete, na substituição dos excessos carnívoros medie-
numa única tina, com alimentos estritamente re- vais pela nova moda piscívora da época moder-
gulados, as naus portuguesas partiam sobrecar- na.
regadas com grande variedade de iguarias, e cada Além do mais, a influência do Oriente Mé-
um cozinhava sua própria refeição ao seu gosto, dio, por meio da presença árabe e judaica, os fa-
se bem que disposto a compartilhar. A bordo, miliariza com o arroz, doce ou frito de panela,
passavam o tempo pescando; em terra, caçando com a massa folhada e a conserva de frutas em
ou coletando. Essa gula – e as frutas cítricas que mel e açúcar, aproveitando produtos quase in-
combatiam o escorbuto – explica a mortalidade sípidos, como cidras e marmelos. A reconquista
menor nos navios portugueses. rápida facilita a circulação interna e as feiras, de
Desde o início dos descobrimentos, a ali- maneira que os portugueses se encontram entre
mentação portuguesa já se caracteriza por um os primeiros mercadores a negociar grandes car-
raro ecletismo, equilibrado entre os produtos gas de comestíveis, em vez de se dedicarem mais
dos mundo atlântico e mediterrâneo. Com terras ao têxteis. No seu comércio com o norte da Eu-
altas e baixas, climas diferentes, muito rios e o ropa, valorizavam suas frutas secas, seus cítricos
mar a curta distância, os portugueses combinam e vinhos, que trocam por arenques secos do Mar
a agricultura, o pastoreio e a pesca com a caça do Norte, toucinhos e queijos flamengos, talvez
e com a coleta. Suas cozinhas alternam cozidos, menos saborosos, mas de boa conserva em lon-
guisados e assados, fornos e grelhas, banha de gas viagens.
porco, azeite, óleos e manteiga. Compensam Por esta gula indiscriminada, os onívoros
os cereais caros com castanhas, leguminosas portugueses estavam mais preparados para se
e raízes mais baratas. Poucas dietas européias aventurar nas incógnitas alimentares dos novos
comportam tantas hortaliças, couves, abóboras, mundos. Para a sobrevivência, mas também por
nabos e cebolas. Seus temperos misturam espe- curiosidade, experimentaram todos os produ-
ciarias preciosas como o açafrão-de-castela e o tos comestíveis e similares, suscetíveis de servir
cravo com alhos, coentros, ervas-doces, cheiros à aplicação de suas técnicas culinárias. Não se
e outras ervas recolhidas no campo. Suas frutas contentaram com os substitutos da comida mais
variam da delicadeza nórdica das maçãs, pêras e apreciada em Portugal, ousaram também provar
cerejas à exuberância meridional dos figos, me- novidades, sem sentimento de culpa por tanta
lões, romãs, amêndoas. Não desprezam nenhu- abundância paradisíaca, quase pecaminosa.
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Ensopado que se prepara refogando os ingredientes. 7
Guisado de miúdos e sangue de carneiro ou porco.
Sabores do Brasil 11
6. Colonos. Di Cavalcanti (1940).
Nem todos apreciavam as iguarias locais. Pior ainda é a bebida: “é uma água suja feita com
O marquês do Lavradio já reclamava, logo ao mel, e certas misturas a que chamam de aluá,
chegar, em 1768, dos alimentos da terra “insu- que faz vezes de limonada para os negros”.
portáveis, pepinos-de-são gregório”. O ilustrado Felizmente não faltam observadores letra-
baiano Vilhena despreza as “viandas tediosas, dos como frei Cristóvão de Lisboa na História dos
como sejam mocotós, isto é, mãos de vaca, caru- animais e árvores do Maranhão (1627), o soldado
rus0, vatapás, mingau, pamonha, canjica, isto é saxônico Zacharias Wagener no seu Zoobiblion,
papas de milho, acaçá, acarajé, bobó, arroz de livro de animais do Brasil (c. 163-161) ou o jesuíta
coco, feijão de coco, angu, pão-de-ló de arroz, o João Daniel no Tesouro Descoberto no máximo Rio
mesmo de milho, roletes de cana, doces de infi- Amazonas (por volta de 1758-1776), que registram
nitas qualidades”, se bem que sua lista desvenda com água na boca essa maestria padeira para ti-
um primeiro inventário da culinária brasileira. rar todos os proveitos da mandioca para farinhas
finas, bolos de carimã e beijus5. Destilam vinhos
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Conhecido também como “pepino-do-diabo”, é uma planta e licores do caju, do abacaxi ou do jenipapo. O
nativa do Mediterrâneo.
suco do maracujá em vinagre acompanha bem
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Qualquer espécie de comida ou quitute.
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Comida afro-baiana à base de quiabo, camarão seco e amen-
doim. 13
Bebida refrigerante feita com abacaxi ou arroz, açúcar e li-
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Tradicional prato da cozinha afro-baiana, com peixe ou crus- mão, vendida comumente pelas negras nas cidades coloniais.
táceos misturados a uma papa de farinha de mandioca, molho 1
Bolo preparado com massa gorda de mandioca, em forma de
de dendê e pimenta. discos achatados, secos ao sol.
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Espécie de bolo de arroz ou de milho, comum na comida afro- 15
Espécie de biscoito de mandioca ou tapioca, assado e enrola-
baiana. do em forma de canudo.
12 Textos do Brasil . Nº 13
7. o peixe, numa receita recuperada quatro séculos torresmos sem inveja dos do porco. Com alguns
mais tarde por chefes pernambucanos. Encon- meses, de um palmo ou pouco mais, com uma
tram pássaros pernaltas de boa carne branca, em brecha no peito para limpar e encher de tempe-
tanta quantidade como os capões e tão fina como ros, vinagre, cebola e assadas são um pasmo”.
as perdizes. Por pouco, o guaiamum seria com- De cada grande tartaruga fazem “sete ou mais
parável ao dazha, um caranguejo exaltado por menestras diversas: primeira o sarapatel, segun-
poetas e pintores chineses. Do peixe-boi, fazem da o sarrabulho, terceira o peito assado, quarta
manteiga da banha, “cada uma de trinta e mais fricassé, quinta o cozido, sexta a sopa, sétima o
potes, e ainda muito azeite da cauda”, e da car- arroz. Isso é o mais usual, que em casa particula-
ne, parecida com a do porco, “se fazem lingüiças, res ainda fazem mais guisados. Se é das maiores,
chouriços e paios, que salpresos têm o gosto dos uma só pode dar de comer a uma comunidade”.
melhores presuntos de Lamego” – esses embuti- Como qualquer português, adora com excesso as
dos de peixe-boi chegam a ser enviados para Por- gemas de ovos e precisamente os ovos de tartaru-
tugal. Frei Cristóvão demonstra ainda um senso gas são “quase tudo gema, com um pequeno cír-
invulgar para distinguir entre as preferências culo de clara, excelentes para fazer ovos moles”.
alimentares de índios e africanos, que conside- Os alimentos brasileiros se valorizam nes-
ra como parceiros confiáveis nestas experiências sas evocações nostálgicas, que parecem louvá-los
gustativas. Os negros, por exemplo, apreciam, o da mesma forma como as palavras de Marcel
yoroti, um tipo de pomba do mato, que, como as Proust celebraram a madeleine da doçaria fran-
pombas do velho continente, mantém fidelidade cesa. Na falta de receituários e livros de cozinha,
ao companheiro para a vida toda. Por causa des- uma abundante documentação colonial pode
se comportamento das aves, os africanos davam- resgatar a história da culinária luso-brasileira.
nas de comer às suas mulheres “para não terem Textos indispensáveis para realçar sua auto-esti-
conversação com outro homem”. ma, que estava baixa demais, sufocada pelo es-
Exilado na sua prisão portuguesa, o jesuíta trangeirismo nos templos paulistas e cariocas da
Daniel sonha com o tacacá, “um pouco de água gastronomia ou culpabilizada sob o ângulo da
engrossada ao fogo com farinha carimã, e com fome e da subnutrição.
seus raios de tucupi e picante da malagueta”, o
açaí, a maniçoba, “melhor que a couve na olha”
e a geléia do maracujá, que engole “como quem Eddy Stols
come ovos quentes”. Nas laranjas brasileiras “as Doutor em História pela Universidade Católica de
maiores da Europa lhe chocalhariam dentro”. Leuven, na Bélgica
As castanhas de caju “assadas dão vaia às cas-
Artigo originariamente publicado na revista
tanhas da Europa”, se misturam aos legumes ou
Nossa História Ano 3/ n° 29 Março de 2006, pp. 14-19
“às amêndoas e confeitos, cobrindo as torradas
de açúcar”. Nas colheitas do sertão, os habitantes 17
Prato feito com sangue e miúdos de porco ou outro animal,
“banqueteiam-se” com as tartarugas pequeninas, condimentado com salsa, louro, cebola, alho, cominho, cravo
que, apenas saídas dos ovos, “assadas são uns e suco de limão.
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Qualquer preparo culinário feito de carne, peixe ou frango
picados, cozidos em fogo brando com cebola, salsa, pimenta,
16
Carnes conservadas em sol. noz-moscada e outros temperos.
Sabores do Brasil 13