1) O documento descreve as práticas alimentares na colônia brasileira, que variavam de acordo com o contexto de colonização em cada região.
2) Em geral, a alimentação era baseada em produtos locais como farinha de mandioca, milho, feijão e carne seca, adaptada ao clima tropical.
3) Apesar da variedade de frutas nativas, o consumo de frutas frescas não era comum, preferindo-se compotas e doces feitos com açúcar.
1. Paula Pinto e Silva
A cozinha
da colônia
U
ma terra que “em que se plantando tudo dá”. Tal é
a máxima das crônicas e dos relatos dos viajantes
estrangeiros, que apresentam as novas terras como
sendo deliciosamente ricas em espécies alimentares, planta-
das, cultivadas, ou mesmo as nativas, nascidas ao léu, ao sa-
bor do vento, da terra farta e do clima propício. Por estar de
certo modo descomprometido com a sociedade que o acolhia,
o olhar do viajante se tornava único no sentido de estranhar e
captar as diferenças, buscando nelas alguma semelhança com
o que já era conhecido e fornecendo uma versão dos fatos.
Sabores do Brasil 15
2. A Assim é que se tem uma
ssim é que se tem uma terra cheia de
pomares, recheados de abacates, açaís,
ananases, cajás, ingás, jacas e marmelos, terra cheia de pomares,
para não falar dos diversos tipos de bananas, la-
recheados de abacates,
ranjas e das mangas espalhadas por todo o terri-
tório. Hortas repletas de cheiros e temperos, como açaís, ananases, cajás,
alho, cebola, cebolinha, salsa, coentro, louro, noz-
ingás, jacas e marmelos,
moscada. As pimentas, amarelas, vermelhas,
verdes, pimenta-castanha, pimenta-cumarim, para não falar dos diversos
pimenta-malagueta, pimenta-fidalga. Verduras e
tipos de bananas, laranjas
legumes, como abóboras, aspargos, maxixes, na-
bos, palmitos, pepinos, quiabos, além das raízes e e das mangas espalhadas
tubérculos nativos, como mandioca, batata doce,
cará, inhame, e dos deliciosos mangaritos que
por todo o território.
alegravam os olhos dos viajantes e deixavam, nos
relatos, uma sensação de água na boca. Uma va- Desde a década de 1530, o litoral das cha-
riedade enorme de peixes, mariscos, crustáceos, madas terras novas é motivo de briga e disputas.
carnes de todos os tipos, insetos comestíveis, aves A região que vai desde a capitania de Pernambu-
em profusão, porcos criados no quintal. co até a de São Vicente recebeu as primeira mu-
Mas, se as possibilidades eram tantas, das de cana e os peritos na fabricação do açúcar.
como explicar as constantes queixas – em car- A despeito das particularidades desse sistema de
tas coletadas por Capistrano de Abreu e Sérgio produção, marcado pela escravidão, foi nas cozi-
Buarque de Holanda –, por parte dos moradores nhas da casa-grande e no seu entorno – as hortas,
que tentavam se acostumar às novas terras, da pomares e quintais – que as senhoras portugue-
falta de alimentos, da carência e da escassez de sas se viram obrigadas a transformar e adequar
comida nesse período? seus hábitos mais íntimos, jogando fora os fogões
A investigação dos alimentos e práticas ali- e chaminés de estilo francês e servindo-se das
mentares na América portuguesa segue os qua- possibilidades indígenas e negras de cozinhar
tro caminhos de colonização e povoamento que fora da casa, sobre o “puxado”, limpando e cor-
podem ser definidos como: a colonização costei- tando a carne no jirau (armação de madeira), e
ra, de Pernambuco e Bahia, principalmente, ca- utilizando os métodos de assá-las ou defumá-las
racterizada pela monocultura de cana-de-açúcar; no moquém (grelha de varas). Pelos documentos,
as frentes de expansão e reconhecimento de terri- enxerga-se a utilização de muitos espaços como
tório, em direção ao norte, acentuando a corrida cozinha, e que mudavam conforme o tempo e o
pelas chamadas “drogas do sertão”; a coloniza- cardápio, permanecendo, em geral, a “suja”, do
ção para dentro, partindo da Vila de Piratinin- lado de fora, onde se cortava e limpava as car-
ga, São Paulo, chegando à região das Minas; e, nes e onde se preparavam os doces demorados,
finalmente, o surgimento da pecuária no interior como a goiabada e a marmelada, e a de dentro ou
do Brasil. “limpa”, onde se fazia toda sorte de doces finos.
16 Textos do Brasil . Nº 13
3. Moinho de mandioca. Butler. Litografia, 1845.
Com toda a força de trabalho voltada para como boa “munição de boca”, fácil de produzir,
a produção do açúcar, não é difícil confirmar fácil de carregar e fácil de conservar. O melaço –
as constantes queixas de escassez de alimentos, como era conhecido o mel extraído da cana – mis-
pelos menos os seus conhecidos, como o sal, a turado à farinha de mandioca, ou de milho, podia
farinha-do-reino, o azeite doce e o vinho, e ve- tanto servir para tirar o sal da boca dos senhores
rificar que a comida cotidiana dos engenhos era brancos quanto ser o prato principal dos negros
mais simples, monótona e menos saborosa do escravos, que tinham como base de sua alimen-
que pintavam os viajantes. Uma dieta baseada tação o enorme consumo de mandioca cozida ou
em produtos “da terra”, sustentada pela farinha com farinha, o milho pilado, socado, quebrado ou
de mandioca, por peixes e carnes de caça quase feito farinha, feijões e alguns tubérculos nativos,
sempre secos, com exceção da carne de porco, co- além das bananas e laranjas.
zida ou assada, feijões de caldo ralo e tubérculos O consumo dos alimentos nas propriedades
comidos cozidos. de monocultura de cana-de-açúcar estava, portan-
Apesar da enorme quantidade de árvo- to, baseado no que se podia produzir nas brechas
res na região, naturais ou cultivadas, o consumo de um grande sistema subordinado ao mercado
de frutas frescas não era mesmo comum entre a externo, resultando em uma grande quantidade
“gente de bem”. A mistura do produto mais pre- de farinha de mandioca, feijões de diversos tipos,
cioso – o açúcar branco – com abacaxis, abóboras, batata-doce, milho e cará comidos com pouco ri-
laranjas e mamões, em forma de compotas, doces gor, além de uma cultura do doce, cristalizada na
secos ou em calda, revela uma maneira original de mistura das frutas com açúcar refinado e simboli-
conservar as frutas em clima tropical, assim como zada, popularmente, pela rapadura.
introduzir, de modo adocicado, novos sabores a Já na região fronteiriça do território, situ-
um paladar ainda saudoso dos seus doces feitos à ada ao norte, no chamado Grão-Pará, teve um
base de ovos, farinha de trigo, canela e castanhas. destino pouco diferente. Com o mesmo intuito
A rapadura, doce rústico feito de açúcar mascavo, de defender suas terras, colonos portugueses
duro como um tijolo, constituía excelente subs- se infiltraram na região amazônica, aproveitan-
tituto ao doce de açúcar e sobrepunha-se a eles do a ausência dos jesuítas expulsos por Pombal
Sabores do Brasil 17
4. Mercado e feira. Edgar de Cerqueira Falcão. Aquarela.
e usufruindo, inclusive, da infra-estrutura dos tas para o litoral, o núcleo humano que daria início
antigos aldeamentos. Isso implicava a explora- ao desenvolvimento da vila foi empurrado para o
ção do trabalho indígena na busca pelas “drogas planalto, na busca de ouro, índios e pedras precio-
do sertão”, organizada em expedições à procura sas. Ao mesmo tempo, desenvolvia uma lavoura
de cravo, canela, castanhas, salsaparrilha e anis. de subsistência, até então ignorada pelos grande
Também o acesso à floresta e aos seus produtos proprietários de terra do local. Coube a esse tipo
dependia, exclusivamente, do conhecimento in- de agricultura o papel de desbravar e povoar a
dígena. Foi desse modo que os colonos, mais do terra, estabelecendo-se em regiões menos férteis
que em outros lugares, se viram às voltas com e mais interiores do território, tendendo a cons-
um tipo de alimentação baseada na caça e na pes- tante mobilidade. Nesse cenário de espaços im-
ca de espécies pouco conhecidas além do consu- provisados e precários, os estrangeiros adotaram
mo de frutas silvestres. hábitos particulares das populações indígenas,
Foi a região amazônica que proporcionou a seus escravos e com as quais conviviam a maior
uma pequena parcela da população colonial gosto parte do tempo. Pelos sertões, a caça e a pesca
aderente da gordura de tartaruga, o sabor do pei- assadas na brasa ou socadas em farinha guarne-
xe-boi, assado em folhas, do jacaré moqueado, das ciam os exploradores e seus escravos. Para que a
verduras cozidas e das pimentas entorpecentes. subsistência estivesse garantida, eram plantadas
O caso da vila de Piratininga também é nos caminhos de algumas roças de milho, feijão,
muito singular, já que, ao contrário das regiões mandioca, banana, batata-doce e cará, criando as-
litorâneas, voltou-se às formas de abastecimento sim, uma “despensa” própria do sertão, baseada
interno e teve nos produtos agrícolas de subsis- nas lavouras indígenas dos povos de língua tupi-
tência a alavanca econômica de seu progresso. A guarani encontrados no planalto. Assim, comia-
impossibilidade de uma grande lavoura se deu se com as mãos uma mistura constante de farinha
em primeiro lugar devido ao solo, com muitos de milho, feijão sem caldo e, eventualmente, um
mangues e pântanos. Como que voltando as cos- pedaço de carne ou peixes secos.
18 Textos do Brasil . Nº 13
5. Angolana com a enxada (c.1660).
Por último, na qualidade de gênero de sub- Uma comida sem requinte, nem cerimônia,
sistência, está também a carne de gado. A inser- nem ritual, feita para se comer sozinho ou em
ção do homem branco e do mestiço no território grupos formados ao acaso. Um cardápio ordi-
do sertão para o desenvolvimento da atividade nário e comum, composto por farinha de milho,
de pecuária contribuiu para que o consumidor de mandioca, de peixe, um pedaço de carne-seca
final encontrasse uma carne fresca magra e dura, e a mistura toda molhada pelo caldo de feijão,
já quase apodrecida. Secar a carne ao ar e ao sol das favas ou das verduras, constituindo um tripé
em finas mantas, ação facilitada também pela fal- culinário no Brasil colonial.
ta de umidade natural do sertão, fazia com que Há, pois, por trás desse sistema um modo
ela se prestasse mais ao consumo ou mesmo ao particular de se fazer comida e de se comer, que
armazenamento. Assim como as compotas do- fala, mais do que do alimento em si, sobre as ma-
ces, que conservavam as frutas no açúcar, assim neiras originais de conservação nos trópicos, so-
como a transformação dos cereais e raízes em fa- bre os ajustes à subsistência e à sobrevivência, so-
rinha, a carne-seca se firmava como um excelente bre a negociação entre valores como hierarquia,
alimento adaptado ao clima e à necessidade de desigualdade e fome.
mantimentos, numa terra ainda precária em co-
mércio e em excedente de produtos básicos.
Desse farto panorama, salta aos olhos, po- Paula Pinto e Silva
rém, a recorrência de um tipo de alimentação Doutoranda em Antropologia Social pelo
permeável aos diferentes contextos estudados. Departamento de Antropologia da USP e autora do
livro “Farinha, feijão e carne-seca. Um tripé culinário
Trata-se de comida retirada de um modo de pro-
no Brasil colonial.” São Paulo: Editora do Senac, 2005.
dução de subsistência, ajustada ao meio, ao mes-
mo tempo em que adaptada a um paladar mais Artigo originariamente publicado na revista Nossa História,
úmido, como era o português, acostumado às co- Ano 3, nº 29, março, 2006. pp 20-23.
midas cozidas e com caldo.
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