Como a Mídia Gorda abafou o caso da Camargo Correa
1. A MÍDIA SURRUPIOU OS CRIMES DA CAMARGO CORRÊA
DEPRESSÃO
NA SOCIEDADE DO VAZIO
O QUE FAZER PARA PUNIR
RICOS E PODEROSOS
ano XIII número 146 maio 2009
ENTREVISTA COM MARIA RITA KEHL
BRIZOLA NETO
HERANÇA FORTE NA
LUTA NACIONALISTA
JOSÉ PADILHA
“GARAPA” MOSTRA
A DUREZA DA FOME
GUTO LACAZ MARILENE FELINTO GLAUCO MATTOSO ANA MIRANDA JOSÉ ARBEX JR. GILBERTO VASCONCELLOS MARCOS
BAGNO FERRÉZ JOÃO PEDRO STEDILE RENATO POMPEU TATIANA MERLINO EDUARDO SUPLICY GEORGES BOURDOUKAN
HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA CESAR CARDOSO FREI BETTO GERSHON KNISPEL FIDEL CASTRO EMIR SADER MARCELO SALLES
PLÍNIO TEODORO CAROLINA ROSSETTI FELIPE LARSEN MC LEONARDO ULISSES TAVARES GUILHERME SCALZILLI CLAUDIUS
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INJUSTIÇA ESCANCAR ADA
2. CAROS AMIGOS ANO XIII 146 MAIO 2009
Injustiça escancarada
Nunca o Judiciário brasileiro esteve tão exposto na mídia e na
boca do povo. Quase todos os dias a mídia registra os conflitos en-tre
instâncias, críticas internas e externas a membros da corpora-ção,
contradições de posições, decisões e sentenças. Até bate-boca
entre ministros do Supremo Tribunal Federal são transmitidos ao
vivo pela TV e circulam na Internet para delírio das torcidas, provo-cam
mensagens e abaixo-assinados.
Tudo indica que a questão de fundo é uma só: o bloco monolí-tico
do Poder Judiciário, historicamente a serviço das classes do-minantes,
não consegue mais atuar de forma monolítica. Por isso
mesmo expõe suas contradi-ções
numa sociedade marca-da
pela desiguldade, sofre
com as divergências intesti-nas
e é alvo de outras insti-tuições
mais suscetíveis às
exigências democráticas.
Mesmo que se diga o óbvio,
a crise é positiva, tem a ver com possíveis mudanças de adaptação a
uma realidade que insiste em abandonar vícios do passado oligárqui-co.
Apesar da disciplina hierárquica, florescem as correntes compro-metidas
com a utopia jurídica segundo a qual a lei e a Justiça devem
ser aplicadas igualmente para todos, sem qualquer distinção.
A Caros Amigos apresenta um perfil do Judiciário em transfor-mação,
entrevista juristas, juizes e estudiosos do sistema. Procura
mostrar ao leitor por que a mesma instituição utiliza pesos e medi-das
diferentes para julgar ricos e pobres. Aos pobres aplica a rigidez
da punição – independentemente de ter os seus direitos assegurados.
Aos ricos, em muitos casos, todo o aparato legal leva à impunidade. A
opinião pública percebe que a injustiça é escancarada.
O caso da construtora Camargo Corrêa, também tratado nesta edi-ção,
expressa bem os conflitos e contradições do Judiciário. As inves-tigações
ofereceram indícios fortes dos crimes, a primeira instância
adotou os procedimentos de pra-xe,
inclusive com prisões temporá-rias,
mas a segunda instância cele-remente
decidiu em contrário.
A preciosa entrevista da psica-nalista
Maria Rita Kehl é esclare-cedora
dos sintomas sociais que
apontam para a existência de uma
epidemia de depressão, que tem a
ver com o próprio esvaziamento de
valores e sentidos na sociedade de
consumo. Essas e outras matérias
merecem a atenção e a reflexão de
todos. Boa leitura!
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04 GUTO LACAZ.
06 CAROS LEITORES.
07 MARILENE FELINTO RENDE HOMENAGEM À AMIGA QUERIDA THAÍS S. PEREIRA.
08 GLAUCO MATTOSO PORCA MISÉRIA.
GEORGES BOURDOUKAN CONSIDERA LEGÍTIMA A RESISTÊNCIA CONTRA O ESTADO DE ISRAEL.
09 JOSÉ ARBEX JR. FALA DO GOLPE DA OLIGARQUIA SARNEY CONTRA JACKSON LAGO.
10 GILBERTO VASCONCELLOS RECORRE A DARCY RIBEIRO PARA INTERPRETAR OBAMA.
MARCOS BAGNO FALAR BRASILEIRO.
11 FERRÉZ RETRATA O AGITO NA FAVELA PARA A INSTALAÇÃO DOS RELÓGIOS DE LUZ.
12 RENATO POMPEU E SUAS MEMÓRIAS DE UM JORNALISTA NÃO-INVESTIGATIVO.
JOÃO PEDRO STEDILE INSISTE QUE A CRISE É ESTRUTURAL E PRECISA SER DEBATIDA.
13 TATIANA MERLINO POR QUE A JUSTIÇA NÃO CONSEGUE PUNIR OS RICOS E PODEROSOS.
18 EDUARDO SUPLICY RECORRE AO FILÓSOFO PHILIPPE VAN PARIJS PARA DEFENDER A RENDA.
ANA MIRANDA COMENTA ENSAIO DE VIVEIROS DE CASTRO SOBRE A ALMA INDÍGENA.
19 HAMILTON OCTAVIO DE SOUZA, ENTRELINHAS.
CESAR CARDOSO DISSECA OS VALORES E A REALIDADE DA SOCIEDADE DE CONSUMO.
20 ENTREVISTA COM BRIZOLA NETO A LUTA PARA REGULAR O NIÓBIO NACIONAL.
23 FREI BETTO CRITICA A CEGUEIRA DO G-20 NO TRATO COM A MISÉRIA.
GERSHON KNISPEL LEMBRA OS MONUMENTOS DEDICADOS ÀS VÍTIMAS DAS GUERRAS.
24 ENSAIO FOTOGRÁFICO DANIELA MOREAU.
26 ENTREVISTA COM MARIA RITA KEHL A DEPRESSÃO AUMENTA COMO SINTOMA SOCIAL.
30 FIDEL CASTRO PEDE A BARACK OBAMA MEDIDAS PARA A SUSPENSÃO DO BLOQUEIO.
31 MC LEONARDO DESVENDA A LIGAÇÃO DO JOGADOR ADRIANO COM A FAVELA.
ULISSES TAVARES ACHA QUE CASAMENTO É UMA COISA E AMOR É OUTRO TROÇO.
GUILHERME SCALZILLI DENUNCIA O CARTEL QUE EXTERMINA O FUTEBOL BRASILEIRO.
32 MARCELO SALLES PREFEITURA AUMENTA A REPRESSÃO AOS POBRES NO RIO DE JANEIRO.
34 PLÍNIO TEODORO A MÍDIA GRANDE ABAFOU O CASO DA CAMARGO CORRÊA.
38 CAROLINA ROSSETTI E FELIPE LARSEN CULTURA DEBATE LEI ROUANET E PROFIC.
41 ENTREVISTA COM JOSÉ PADILHA “GARAPA” RELATA A FOME POR QUEM PASSA FOME.
43 EMIR SADER DEFENDE PROPOSTAS CONCRETAS DE SUBSTITUIÇÃO DO MODELO NEOLIBERAL.
44 RENATO POMPEU, IDÉIAS DE BOTEQUIM.
46 CLAUDIUS .
%$)4/2%3 Hamilton /ctavio de Souza, Igor Fuser e *ose Arbex *r %$)4/2!!$*5.4! Tatiana Merlino %$)4/2%30%#)!,2ENATO0OMPEU%$)4/2)!$%!24%Henrique Koblitz Essinger e Ricardo Reis#OORDENADOR %$)4/2$% /4/'2!)!7ALTERIRMO2%0œ24%2%3#amila
-ARTINS
26. Como a mídia grande
abafou o caso da
caros amigos maio 2009 34
Plínio Teodoro
E neste momento, nada melhor que um afago
no bolso da trupe que concentra o oligopólio
da comunicação no Brasil.
Acusados de remeter, de forma ilegal, pelo
menos 20 milhões de dólares aos dutos de la-vagem
de dinheiro no exterior – o valor pode
ultrapassar 200 milhões de dólares, segundo
a Procuradoria da República – executivos da
Camargo Corrêa resolveram presentear os co-legas
que comandam a mídia, em princípio,
com mais de três milhões de reais, gastos em
informes publicitários publicados nas capas
dos principais jornais do país no dia seguinte.
Somente na Folha de S.Paulo, foram gastos
mais de 668 mil reais em um único anúncio.
O informe nada explicava sobre as suspeitas
de evasão de divisas e superfaturamento de
obras públicas pela empreiteira, apenas re-produzia
uma nota, já distribuída aos jorna-listas,
em que a empresa se dizia “perplexa”
com a ação da polícia.
No dia 26, as manchetes já indicavam
como seria a “operação-abafa” que, em uma
semana, tirou das primeiras páginas dos prin-cipais
jornais do país os supostos crimes co-metidos
pela Camargo Corrêa. Em O Estado
de S.Paulo, o excesso de zelo se destacou na
manchete “PF prende executivos de emprei-teira
por fraudes”, que nem mesmo citava o
nome da empresa. Em destaque, logo abai-xo,
o jornal reproduziu frase do advogado da
construtora, Antônio Mariz de Oliveira, que
no dia anterior havia falado com exclusivida-de
ao Jornal Nacional, da Rede Globo, que a
empresa teria o “máximo interesse” em apu-rar
a verdade para “preservar sua imagem”.
Nas reportagens torna-se evidente o con-luio
defi nido entre diretores e assessores da
Camargo Corrêa na reunião realizada no dia
anterior para aquilo que os marqueteiros cos-tumam
chamar de “gerenciamento de crise”.
A Folha, que se vangloria de seu “pioneiris-mo”
nas coberturas midiáticas, também foi
vanguardista na defesa dos interesses da Ca-margo
Corrêa. A manchete “PF prende dire-tores
da Camargo Corrêa” foi, digamos, es-quecida
na abertura da principal reportagem
sobre o caso. Sob o título “PF investiga doa-ções
ilegais da Camargo Corrêa a políticos”,
aparecia, cuidadosamente, um dos crimes co-metidos
pela empreiteira na linha fi na, que di-zia
“Quatro diretores da empresa são presos;
há suspeita de superfaturamento de obras”.
Na reportagem que trata da investigação,
o jornal se volta contra seus alvos prediletos
e tenta ligar os nomes dos presidentes Lula e
Hugo Chávez às irregularidades cometidas pela
empreiteira, da mesma maneira que quis mini-mizar
os efeitos da “ditabranda” brasileira em
relação à “ditadura” chavista.
O Jornal Nacional, que no dia da opera-ção
focou a reportagem nos crimes cometi-dos
pela empreiteira, logo depois se alinhou
à “operação-abafa” e diz que “o Ministério Pú-blico
identifi cou os supostos destinatários e
intermediários das doações a partidos políti-cos
consideradas ilegais”.
Estratégia da defesa
A tática adotada pela empreiteira e pulve-rizada
pela grande mídia fez com que as auto-ridades
que tratam do caso viessem a público
esclarecer que as doações ilegais aos políticos,
por motivos óbvios, não são alvos da investiga-ção
conduzida pela Polícia Federal. Segundo a
própria corporação, as suspeitas surgiram em
interceptações telefônicas dos executivos da
Camargo Corrêa durante a investigação.
Em nota distribuída à imprensa, o juiz
Fausto de Sanctis, que acatou o pedido da
Polícia Federal e decretou a prisão preventi-ve
dos executivos da empreiteira, disse que
as investigações “nunca foram centradas em
ocupantes de cargos públicos ou em quem te-nha
funções políticas”. No comunicado, o ma-gistrado
ressalta que “o que se apura é o su-
São Paulo, 25 de março de 2009. No escri-tório
de uma agência de comunicação localiza-da
na Avenida Paulista, a cúpula da Constru-tora
Camargo Corrêa se reúne com assessores
para defi nir estratégias para abafar mais um
escândalo da série em que a empreiteira se en-volveu
desde quando foi criada, em 1939. Ho-ras
antes, ainda durante a alvorada, a Polícia
Federal havia desencadeado a operação Cas-telo
de Areia que levou à prisão quatro execu-tivos
e duas secretárias da construtora, além
de quatro doleiros, um deles com trânsito fá-cil
entre empresários e políticos representan-tes
da chamada “elite brasileira”.
A acusação, mais uma vez, é grave. Segun-do
a Polícia Federal, os diretores da Camargo
Corrêa estão indiciados por fazer parte de um
grupo criminoso que frauda licitações, super-fatura
obras públicas e envia os recursos des-viados
para contas em paraísos fi scais. Duran-te
as investigações, liderada pelo coordenador
da área de combate ao crime organizado da
Polícia Federal em São Paulo, delegado Alber-to
Legas, foi descoberto ainda que a suposta
quadrilha também pratica a velha tática de ofe-recer
vultosas quantias a politicos, partidos e
membros do poder público em troca de benefí-cios
durante os processos licitatórios.
A reunião é tensa. Entre olhares desconfi a-dos,
mordidas nos lábios e expressões pouco
amigáveis, um dos executivos da construto-ra
revela que a investigação pode levar a Po-lícia
Federal a mares nunca antes navegados
no submundo da corrupção no Brasil. “O pro-blema
é que esta é apenas a ponta do iceberg”,
bradou aos colegas.
A estratégia foi, então, montada e imedia-tamente
desencadeada. O objetivo era desviar
do foco de cobertura da grande mídia os cri-mes
cometidos pela empresa, jogando os ho-lofotes
para as suspeitas de doações ilegais
aos politicos e partidos, de competência de
outra instância de poder, a Justiça Eleitoral.
ILUSTRAÇÃO: GUZ - WWW.FLICKR.COM/OSAMURAI
27. 35 maio 2009 caros amigos
posto cometimento de crimes de pessoas da
iniciativa privada, principalmente lavagem de
dinheiro por parte de organização crimino-sa”
e pede aos jornalistas cautela para “evitar
conclusões precipitadas ou tendenciosas”.
O assunto, no entanto, foi tratado com des-prezo
pela mídia. Em reportagem, a Folha dis-se
que a nota emitida pelo juiz ‘’foi interpreta-da
(sem dizer quem a interpretou) como uma
tentativa de o magistrado não perder o co-mando
da investigação, pois o procedimento
subiria para instâncias superiores se envol-vesse
políticos com foro privilegiado”, igno-rando
o fato de que a parte do inquérito que
trata das doações aos políticos seria enviada
ao órgão competente.
A manobra seria revelada, no entanto, uma
semana depois pelo procurador regional eleito-ral
em São Paulo, Luiz Carlos dos Santos Gon-çalves,
em entrevista sem muito alarde e fora da
contextualização no jornal O Estado de S.Paulo.
Na ocasião, o procurador, que ficou responsá-vel
pela investigação das doações aos políticos,
afirma que envolver a questão nos crimes co-metidos
pela Camargo Corrêa faz parte da es-tratégia
de defesa da empreiteira “para assegu-rar
impunidade”. “Por que querem trazer o caso
para o âmbito eleitoral? Porque sabem que a le-gislação
eleitoral é branda, é fraca”, diz.
De acordo com o procurador, a única medi-da
que poderia ser aplicada, em tese, à Camar-go
Corrêa em um inquérito na justiça eleitoral
seria a imposição de multa que vai de 5 a 10
vezes o valor repassado aos políticos. “Nesse
aspecto é possível chegar a uma punição. Mas
sabe para onde vai esse dinheiro? Para o Fun-do
Partidário. Os envolvidos levam mais uma
vantagem”, afirma.
A semana em que foi desencadeada a ope-ração
Castelo de Areia foi conturbada. Além de
minimizar a prisão dos executivos da Camargo
Corrêa, os jornalões também se ocupavam em
rebater as críticas do presidente Lula, que disse
que a crise teria sido provocada por “brancos de
olhos azuis”, e defender os interesses de outros
integrantes da elite “branca de olhos azuis” tu-piniquim,
como Eliana Tranchesi, dona da Das-lu,
condenada a 94 anos de prisão por fraudar
mais de 600 milhões de reais em impostos.
Eliane Catanhede, colunista da Folha, ini-ciou
o levante contra os “abusos” da Polícia Fe-deral
e de parte do judiciário brasileiro, que
julga sem levar em conta o volume da conta
bancária do réu. Em um emaranhado artigo,
a jornalista envolve na trama o delegado res-ponsável
pela prisão de outro membro da eli-te
corrupta brasileira, o banqueiro Daniel Dan-tas,
condenado a 10 anos de prisão por tentar
corromper um delegado federal. Ao comentar
“as prisões de diretores da Camargo Corrêa e
da dona da Daslu, Eliana Tranchesi”, Catanhe-de
brada: “Se há motivos, que sejam punidos.
Mas que não sejam só bodes expiatórios para a
PF passar por cima da polêmica e dos erros de
Protógenes e voltar à glória e à ribalta”.
A revista Veja, que se especializou em criar
factóides para defender os interesses desta mes-ma
elite, fez coro com a colunista da Folha. No
editorial da edição de 28 de março, Veja defen-de
que a estelionatária dona da Daslu, chama-da
pela revista de “sacerdotisa da moda para os
ricos e poderosos”, não pode ser “demonizada
como o símbolo da desigualdade e da injustiça
social no país”. E prossegue dizendo que “a caça
aos ricos é uma tentação suicida que, como de-monstra
a história, só produz mais miséria mo-ral,
política, econômica e social”.
Na mesma edição, para noticiar a Operação
Castelo de Areia, a publicação segue a receita
elaborada na “operação-abafa”, sem se esquecer
de atacar quem mais causa ojeriza entre seus
leitores. A reportagem diz que os partidos ci-tados
na investigação da Polícia Federal são:
PMDB, PSDB, DEM, PPS, PSB, PDT e PP e iro-niza:
“pois é, faltou o PT. Mas, preocupado com
os desdobramentos da investigação, o presi-dente
Lula convocou o ex-ministro da Justiça
Márcio Thomaz Bastos para acompanhar o as-sunto
e defender... a Camargo Corrêa”.
Papéis invertidos
Já são notórios os casos no Brasil em que se
pune quem investiga ou condena membros da
elite. O caso mais recente é o do delegado Protó-genes
Queiróz, afastado da Polícia Federal após
colocar na cadeia, por duas vezes, o banqueiro
Daniel Dantas, envolto na tramóia que tem iní-cio
no processo de privatização da Telebrás. A
tática é sempre a mesma, as denúncias de “abu-sos”
ganham as páginas dos jornais e ecoam
nos corredores do Congresso Nacional e entre
os defensores de uma certa moralidade, restri-ta
aos endinheirados.
Na edição de domingo, dia 29 de março, a
Folha afirma em editorial que “setores da Po-lícia
Federal, do Ministério Público e do Judi-ciário
acomodam-se, perigosamente, a um mé-todo
de atuação sensacionalista e truculento” e
considera as prisões preventivas “uma concep-ção
vingativa e primitiva de Justiça”. Na man-chete,
o jornal condenava, no entanto, um velho
inimigo, o Movimento Sem Terra, por ter rece-bido
repasses que totalizam 152 milhões de re-ais
– valor que representa um quarto daquilo
que foi sonegado pela Daslu - desde que Lula
assumiu o governo.
No mesmo tom, o Estadão destaca em sua
manchete que a “abusada” Polícia Federal, du-rante
a investigação da Castelo de Areia, che-gou
a monitorar conversas de executivos de
outra empreiteira, a OAS, e do presidente do
conselho administrativo do Banco Bradesco,
Lázaro de Mello Brandão, em conversas com o
doleiro Kurt Paul Pickel, considerado o articu-lador
do esquema de lavagem de dinheiro da
Camargo Corrêa.
O jornal também recorre ao advogado da
própria empreiteira, Antonio Claudio Mariz de
Oliveira, para atacar a decisão do juiz Fausto de
Sanctis, de prender os executivos da constru-tora,
classificada como “panfletária” na repor-tagem.
Na edição de segunda-feira, o mesmo
Mariz de Oliveira ganha espaço na capa da pu-blicação
dizendo que a Polícia Federal cometeu
o “abuso” de realizar buscas no departamento
jurídico da Camargo Corrêa com aval do juiz.
O factóide criado pela defesa da empreitei-ra
em conluio com o jornal chega, então, ao Su-premo
Tribunal Federal. Em nova chamada de
capa, o Estadão diz, sem citar fontes, que os mi-nistros
do STF viram “excessos na investiga-ção”.
Na reportagem, o jornal afirma que “para
os ministros ouvidos, usou-se a mesma meto-dologia
de outras investigações de repercussão,
como a Operação Satiagraha, na qual foi preso
o banqueiro Daniel Dantas”.
Com o circo armado, faltava entrar em cena
o personagem principal, que, por meio de suas
decisões e declarações, vem se destacando
como paladino da moralidade e da ordem social
quando os interesses da elite são colocados em
xeque. Em linguajar peculiar, o presidente do
STF e do Conselho Nacional de Justiça, Gilmar
Mendes, ganha destaque na Folha, dizendo
que a Polícia Federal comete um “dicionário de
abusos”; e no Estadão, onde “acusa o Ministério
Público de ser parceiro de abusos da PF” e diz
que o controle da polícia pela instituição é
lítero-poético-recreativo.
Os crimes cometidos
Uma semana após a operação Castelo de
Areia ser desencadeada – e já com os dez
presos, incluindo os executivos da Camargo
Corrêa, livres e de volta à ativa – as denúncias
de superfaturamento de obras públicas, evasão
de divisas, fraude em licitações e doações
ilegais a políticos e partidos desapareceram do
noticiário nacional. Mais uma vez, a pena foi
imposta aos investigadores e coube à revista
Veja dar o veredicto final.
Na edição que foi às bancas no dia 3 de
abril, Veja lista os “crimes” cometidos pelos
investigadores que ousaram desmoronar o
castelo de areia da Camargo Correa: “1) não
havia a necessidade de a Justiça decretar a
prisão de seis funcionários da empreiteira, já
que a investigação ainda não terminara; 2)
não deveria haver menção a doações políticas
nos relatórios, já que a investigação tratava
de crimes financeiros; e 3) a polícia violou
a Constituição ao revistar, com mandado, o
departamento jurídico da empreiteira”.
A pena aplicada pela revista condenou mais
de 180 milhões de brasileiros que estão fora da
pontinha do iceberg da corrupção a continua-rem
se afogando no mar de lama em que nave-ga
uma parte da classe dominante do país, seja
ela na esfera pública ou privada.
28. As peripécias da empreiteira de
“Don Sebastián”
As supostas irregularidades cometidas
pela Camargo Corrêa que vieram à tona na
Operação Castelo de Areia são apenas um
breve capítulo da história da empreiteira. A
investigação liderada pelo delegado Alberto
Legas, especializado em crimes de lavagem de
dinheiro, foi um desdobramento da Operação
Downtown, realizada em 2008, que prendeu
15 doleiros acusados de lavagem de dinheiro
e distribuição de valores para integrantes da
facção criminosa PCC (Primeiro Comando da
Capital), traficantes nigerianos e comerciantes
chineses da região da rua 25 de Março, região
central de São Paulo.
Segundo a Polícia Federal, as duas quadri-lhas
agiam de forma semelhante na lavagem do
dinheiro obtido de forma ilícita – através do trá-fico
de drogas e mercadorias, no caso da Opera-ção
Downtown, e por meio de licitações fraudu-lentas
e superfaturamento de obras, na Castelo
de Areia. Por meio de doleiros, os grupos cri-minosos
remetiam o dinheiro a paraísos fiscais,
como Ilhas Cayman, Uruguai e Suíça.
As remessas eram feitas através de uma ope-ração
não autorizada pelo Banco Central co-nhecida
EMPREITEIRA É INVESTIGADA PELO SUPERFATURAMENTO
DA OBRA DE CONSTRUÇÃO DE TRECHO DO RODOANEL
como dólar-cabo, que é realizada ele-tronicamente,
através da transferência entre
contas bancárias no Brasil e no exterior. Os
grupos também utilizavam empresas de facha-da,
como o Instituto Pirâmide, que teria sido
responsável pela movimentação de 800 mil dó-lares
da construtora Camargo Corrêa, de acor-do
com as investigações. No endereço identi-ficado
como sede do instituto, localizado no
distrito de Bacaxá, em Saquarema, no litoral
fluminense, funcionam uma escola primária e
um escritório de contabilidade.
Segundo a polícia, o doleiro Kurt Paul Pi-ckel,
suíço naturalizado brasileiro e ex-exe-cutivo
do banco UBS no país europeu, se-ria
o elo entre as quadrilhas e o principal
mentor do esquema na Camargo Corrêa. Ele
agia em parceria com outros três doleiros:
José Diney Mattos, Jadair Fernandes de Al-meida
e Maristela Brunet.
Dentro da empreiteira, os contatos com os
doleiros seriam feitos pelos diretores Fernan-do
Dias Gomes, da auditoria, Dárcio Bruna-to,
da controladoria, e Raggi Badra Neto, da
caros amigos maio 2009 36
divisão de obras públicas. Pietro Bianchi,
que tem cargo de consultor na empresa, se-ria
o responsável pela entrega da “caixinha”
aos políticos e autoridades que beneficias-sem
a empreiteira em licitações e superfatu-ramento
de obras. Duas secretárias da em-preiteira,
Marisa Berti Iaquino e Darcy Flores
Alvarenga, fariam a intermediação dos conta-tos
entre doleiros e executivos.
Todos foram presos na ação da Polícia Fede-ral
e soltos cerca de 72 horas depois, por pedido
de habeas corpus, uma decisão polêmica da de-sembargadora
Cecília Mello, que criticou a sen-tença
de prisão expedida pelo juiz Fausto de
Sanctis, o mesmo que vem sofrendo represálias
do presidente do STF, Gilmar Mendes, e que co-locou
na cadeia, mesmo que por instantes, per-sonagens
como os banqueiros Daniel Dantas e
Edemar Cid Ferreira, políticos como Celso Pit-ta,
além do traficante Juan Carlos Abadía.
As investigações apontam ainda que o es-quema
seria feito com a anuência do principal
controlador da Camargo Corrêa, Fernando Ar-ruda
Botelho, genro do fundador do grupo, Se-bastião
Camargo e que também ocupa a vice-presidência
da Federação das Indústrias de São
Paulo, a Fiesp. Em pelo menos uma das inter-ceptações
telefônicas realizadas com autoriza-ção
judicial pela polícia, Arruda Botelho teria
conversado com Pietro Bianchi sobre atrasos
na liberação de recursos a políticos que atuam
fazendo lobby para a empreiteira no Congres-so
Nacional.
Dinheiro pelos ares
Fernando Arruda Botelho, casado com Ro-sana
Camargo, assumiu os negócios da Camar-go
Corrêa, junto com outros dois concunhados,
após a morte de Sebastião Camargo, em 26 de
agosto de 1994. Discreto no que tange a apari-ções
públicas, Botelho preserva diversos hábi-tos
exóticos do sogro, como caçar – ele nos Al-pes
austríacos e Sebastião Camargo nas selvas
africanas – e cortejar tomadores de decisões,
seja na esfera pública ou privada, visando au-mentar
os rendimentos da empreiteira.
Para isto, ele nem mesmo precisa transitar
pelos escritórios da Avenida Paulista ou pelos
corredores dos poderes, em Brasília. Uma vez
por ano, Arruda Botelho reúne os amigos endi-nheirados
ou influentes em uma festa que tem
como tema a aviação, uma de suas manias pre-feridas,
em uma de suas fazendas na cidade de
Itirapina, no interior paulista. A festa – cance-lada
em 2009 devido à crise financeira, mesmo
com o grupo Camargo Corrêa registrando lu-cro
de 16 bilhões de reais em 2008 – começou
em 2004, no aniversário do empreiteiro.
Numa dessas festas, ele mandou cons-truir
na fazenda, a 200 quilômetros da ca-pital
paulista, uma pista de pouso de 1.200
metros, arquibancadas para 2.500 pessoas,
estacionamento para 1.000 automóveis e
uma praça de alimentação como as de sho-pping
centers. O custo total chegou a 1,5 mi-lhão
de reais. Entre os convidados – muitos
deles chegaram em jatos particulares que pou-saram
na pista – políticos, funcionários públi-cos
do alto escalão, empresários, banqueiros e
até mesmo a dona da boutique de luxo Daslu,
Eliana Tranchesi, condenada por sonegar mais
de 600 milhões de reais em impostos, como re-lata
a revista Veja, em edição do dia 16 de ju-nho
daquele ano.
Ali, como em muitos outros casos se confun-diu
o que era público e o que era privado. Dez
controladores de vôo, cedidos pelo Departa-mento
de Aviação Civil e pagos com recur-sos
da União, cuidaram da orientação dos
aviões sobre a fazenda, antes de uma apre-sentação
particular da Esquadrilha da Fu-maça,
da Força Aérea Brasileira.
Acúmulo de fortuna
Fundado como uma pequena empresa
de construção em 1939 com um capital de
200 contos de réis, o atual grupo Camar-go
Corrêa sempre teve como fim o lucro
dentro da esfera pública, seja utilizando
métodos escusos ou não. De estilo con-servador,
bem aos moldes da antiga TFP
(Tradição, Família e Propriedade), o fun-dador
não admitia homem barbudo, cabelu-do
ou desquitado na firma.
Sebastião Camargo também nunca fez
distinção entre regimes políticos, desde
que fosse agraciado com polpudos con-tratos.
Para isto, se aproximou de figuras
29. 37 maio 2009 caros amigos
controvertidas, como o ditador paraguaio
Alfredo Stroessner. As viagens constan-tes
com Stroessner para empreitadas de
pescaria lhe renderam um peixe gordo na
construção da Usina de Itaipu, uma das
obras da Camargo Corrêa.
Ao ver que o amigo de pescaria não
havia conseguido a licitação para cons-truir
a usina, o ditador paraguaio protes-tou:
“Onde está Don Sebastián?” e amea-çou
melar o negócio, obrigando o governo
brasileiro a contratar a empreiteira.
Simpatia pela ditadura
A construção de Brasília e as diversas obras
contratadas pelo presidente Juscelino Kubits-chek
– como as estradas que levam à capital
federal - alavancaram os negócios do “China”,
apelido pelo qual Camargo era chamado pelos
amigos próximos, em razão dos olhos puxa-dos.
Mas foi durante a ditadura militar que a
empresa começou a amealhar as obras que a
tornariam um império no ramo da engenha-ria
das grandes construções no país.
Condecorado, em 1967, com o título de dou-tor
honoris causa pela Escola Superior de Guer-ra,
a usina ideológica do regime militar, e lis-tada
como um dos financiadores da Operação
Bandeirantes (Oban), o braço repressivo da di-tatura
brasileira, Camargo nunca escondeu sua
simpatia pelo sistema político de então. “Acho
que o grande progresso do Brasil foi no gover-no
militar”, disse em dezembro de 1990, ao jor-nal
Folha de S. Paulo, numa rara entrevista.
Foi nesta época que, em meio a denúncias
de irregularidades de superfaturamento e frau-de
em licitações, a empreiteira assumiu obras
como as usinas hidrelétricas de Itaipu e Tucu-ruí,
a ponte Rio-Niterói, as rodovias Transama-zônica
e Bandeirantes, o Metrô de São Paulo e
a usina nuclear Angra 1.
Na volta à democratização, já sob o comando
dos genros de “Don Sebastián”, a empreiteira
participou de boa parte dos controversos pro-cessos
de concessão de serviços públicos do go-verno
Fernando Henrique Cardoso e assumiu,
entre outras, a administração da Rodovia dos
Bandeirantes e da Ponte Rio-Niterói.
Irregularidades
Os crimes supostamente cometidos pela
Camargo Corrêa investigados pela Operação
Castelo de Areia parecem realmente ser ape-nas
a ponta do iceberg, como bem definiu um
dos executivos da construtora que participou
da reunião para desencadear a “operação-aba-fa”
na mídia gorda. Apenas o Tribunal de Con-tas
da União registra pelo menos 34 proces-sos
contra irregularidades cometidas durante
a condução ou gestão de obras públicas.
Em São Paulo, a empresa é uma das res-ponsáveis
pela construção da linha amarela
do Metrô – junto com as empresas OAS, CBPO
(Odebrecht), Queiroz Galvão e Andrade Gu-tierrez.
Parte da obra desabou em janeiro de
2007, matando 7 pessoas. Laudo do Instituto
de Pesquisas Tecnológicas concluiu que uma
sucessão de erros provocou o acidente, mas
após dois anos ninguém foi condenado.
Em vez de ser punida, a empreiteira foi be-neficiada
na licitação de outra linha do metrô
paulistano, a verde, em agosto de 2008. Em
reportagem no portal Folha Online, do gru-po
Folha, o editor Ricardo Feltrin adiantou
em oito horas o resultado da licitação, que
teve o consórcio liderado pela Camargo Cor-rêa
como vencedor. A suposta irregularidade
está sendo investigada pelo Tribunal de Con-tas
do Estado (TCE).
A empreiteira também é investigada pelo
superfaturamento da obra de construção do
trecho sul do Rodoanel, na capital paulista.
Uma auditoria realizada pelo TCU entre maio
e julho de 2008 aponta que a empresa causou
um prejuízo de mais de 184 milhões de reais
aos cofres públicos.
Na Bahia, a Procuradoria da República in-vestiga
um suposto superfaturamento das
obras do metrô de Salvador, sob responsabili-dade
do consórcio Metrosal, formado por Ca-margo
Corrêa, Andrade Gutierrez e Siemens.
Suspeitas de irregularidades fizeram o
TCU, que fornece informações para o inquéri-to
da Procuradoria da República, determinar
a retenção de parte dos repasses para a obra.
As auditorias do órgão apontaram que o va-lor
de partes da obra foi alterado no contrato
e recebeu aditivos irregulares.
No Rio de Janeiro, três diretores da Ca-margo
Corrêa respondem processo por lava-gem
de dinheiro, evasão de divisas e sonega-ção
fiscal por operações financeiras realizadas
pela Ponte S/A, que administra a Ponte Rio-
Niterói. Entre os réus no processo está Pietro
Francesco Giavina Bianchi, que foi preso na
Operação Castelo de Areia.
Segundo o Ministério Público Federal, os
dirigentes da Ponte S/A, com aval dos direto-res
da Camargo Corrêa, simularam três mo-vimentações
financeiras na contabilidade da
empresa para justificar o envio de 9 milhões
de reais em 1997 para uma conta da conces-sionária
no banco Safra nas Bahamas. Para a
Procuradoria, as operações foram inventadas
para lavagem de dinheiro.
No Distrito Federal, a Procuradoria Fe-deral
moveu ação civil pública para suspen-der
as obras de construção da nova sede do
Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em
Brasília. A obra é um atentado ao princípio
da economicidade, diz o Ministério Público.
Além da União, respondem ao processo a Via
Engenharia (líder do consórcio), OAS e Ca-margo
Corrêa.
Plínio Teodoro é jornalista.