1) O documento discute as noções de gênero, parentesco e identidade no sertão nordestino, especificamente na região do Cariri.
2) Questiona como conceitos como "família patriarcal" e "parentesco" podem ocidentalizar as relações sociais estudadas.
3) Defende que a antropologia deve ir além dos conceitos para captar as múltiplas formas de subjetividade e relações sociais.
1. Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS
A DERIVA DO PARENTESCO: GÊNERO, JUVENTUDE E MIGRAÇÃO NO
NORDESTE CONTEMPORÂNEO
Roberto Marques ∗
Em várias oportunidades em que tenho falado e ouvido falar sobre Narrativas,
Memórias, Identidades e temas afins, assusta-me o formato que temos assumido em nossa
escrita independente do local ou sujeitos sobre os quais falamos. Sobretudo no que diz
respeito a dois aspectos: 1) as fronteiras entre “nossos” sujeitos e aqueles em oposição ao
qual eles se identificam parecem espessas demais, evidentes demais, tornando o conceito de
sociabilidade dado não questionado, em torno do qual se constroem identidades em bloco.
2) Não menos evidente é a idéia de indivíduo como modelo organizador da noção de
pessoa, independente da comunidade que se esteja pensando. A noção de indivíduo
ocidental se mundializa em nossas falas, torna-se uma entidade a-temporal. Parece que
assumimos sem restrições a idéia de Thompson (1992) de dar voz aos sujeitos através de
suas narrativas que recolhemos e interpretamos. Essa voz vem inelutavelmente de um
sujeito com direitos e deveres, de uma sociedade que, se não o é, deveria ser igualitária. Por
vezes é simplesmente essa ausência de eqüidade que estamos denunciando. Em uma
palavra: prenunciamos um lugar para o sujeito e a sociedade, ocidentalizando seus lugares a
partir de nosso modelo de sociedade e de pessoa. E se assumíssemos que tais lugares não
são dados pré-existentes, mas constructos alinhavados em nossas pesquisas na relação com
os sujeitos? E se estivéssemos dispostos a perceber não o que a fala denuncia, mas como a
narrativa constrói sujeitos e noções de pessoas distintos daqueles sujeitos ideais cuja fala
seria a marca racional que reclama uma identidade e um lugar social? E se esse lugar social
fosse híbrido e posicional? Tentaremos tomar tais questões como desafios para esse texto,
utilizando a noção de gênero, as contribuições da antropologia na construção da noção de
pessoa e uma situação de campo que tem se demonstrado rica nas possibilidades não de um
sujeito, mas de múltiplos sujeitos, todos igualmente verdadeiros, como também
absolutamente contextuais.
Para falarmos do Nordeste, trataremos aqui de uma região chamada Cariri, região ao
sul do Ceará composta por 28 municípios, que faz fronteira com Piauí, Pernambuco e
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Paraíba. Há diversas maneiras de delimitar a região, seja por sua formação histórica, por
suposta unidade natural, ou de forma político-administrativa, como fizemos acima. Em
geral, os trabalhos desenvolvidos na região consideram o Triângulo formado pelos
municípios de Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha o centro administrativo, político,
econômico e cultural da Região. Em trabalhos anteriores, questões aparentemente opostas
se colocavam como pistas para uma investigação acerca do feminino na região: a
supostamente recém adquirida diversidade do feminino, em um espaço marcado pela idéia
de tradição como signo identitário e, mais recentemente, nesse mesmo espaço, o assassinato
violento de mulheres e suas formas de apreensão pelos jornais locais. Ambos corpus
refletiam relativa independência, quem sabe, uma transformação nas relações de parentesco
do mundo rural contemporâneo. Ainda que analisada de forma tateante, tanto temporal
como metodologicamente, a questão da marcação da diferença masculino-feminino já se
adivinhava como aspecto central para a reflexão sobre a região. De acordo com
Albuquerque Jr. (2003:20):
Na historiografia e sociologia regionais, na literatura popular e erudita, na música, no teatro, nas
declarações públicas de suas autoridades, o nordestino é produzido com uma figura de atributos
masculinos. Mesmo em seus defeitos, é com o universo masculino de imagens, símbolos e códigos
que definem a masculinidade, em nossa sociedade, que ele se relaciona.
O Nordestino é uma figura “em que se cruza uma identidade regional e uma
identidade de gênero”. Mas se para o historiador importa saber que relações de força
constituíram essa confluência de identidade espacial e gênero presentificadas pelos
atributos ocidentais masculinos de rudeza, prontidão e atividade na figura do Nordestino,
não nos parece menos importante perceber que essa personagem se constitui a partir de
relações que reiteram e presentificam tais signos, ainda que, ocasionalmente, estas relações
se organizem a partir desses atributos. Corrêa (1982), por exemplo, chama a atenção que a
organização de tal identidade não se daria se não fossem expedientes constantes de
suspensão da diferença. Para a autora, é exemplar desses jogos de esquecimento a
confluência da reflexão sobre família no Brasil a partir do modelo e relações presentes na
família patriarcal. Tal modelo se modernizaria natural e inexoravelmente dando espaço ao
modelo de família nuclear. Para Corrêa, essa narrativa linear escamotearia a existência de
diversas formas de organização e conseqüentemente a existência de outras relações sociais,
que ora teórica, ora empiricamente são pensadas como “outro” da família patriarcal,
ocupando, portanto, um lugar marginal em relação a esta.
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Mas seria uma estratégia útil questionar a existência da família patriarcal como
conceito?
Para Albuquerque Jr. (2003: 135- 148) tal crítica supõe que um conceito possa dar
conta de todas as práticas concretas do sublunar. Para o autor, não se trataria de
“desmistificar o conceito”, já que esse é também engenho humano; potencializador de
relações, mas de historicizá-lo, percebendo “que relações históricas possibilitaram a
emergência dele, que funcionamento ele teve, e a que relações de poder esteve ligado, num
dado momento histórico”.
Nesse debate interessa-nos a perspectiva empregada por Albuquerque Jr. de apontar
a instituição do Patriarcalismo como conceito possível para a reflexão sobre a família
brasileira, como viés instituinte de uma confluência entre identidade espacial e de gênero na
figura do Nordestino. As relações descritas por Gilberto Freyre; José Lins do Rego; Raquel
de Queiroz e outros impõem-se como conceito, organizam a percepção , produzindo falas,
gestos e corpos masculinos e as relações por eles engendradas. Embora reconheça a
existência de “uma brecha entre o dizer e o fazer, que inventa um cotidiano diferente
daqueles que os discursos enunciavam”, tal abordagem prioriza a formatação do sensível
pela linguagem aproximando percepção, classificação e institucionalização.
Como poderia a Antropologia contribuir com tal discussão?
Para essa “ciência social do observado” importa a tentativa de apreensão do sensível
a partir de suas bordas, a produção de um discurso sobre o outro no momento do embate
com a alteridade, produzindo e multiplicando o fulgor e fugacidade dos sujeitos, onde antes
havia a opacidade dos conceitos.
Possivelmente nenhum outro conceito em antropologia atrele e defina tanto os
sujeitos a partir de suas posições em dada relação social como o de Parentesco. Como tal
confluência interessa a alguns dos pontos levantados nesse estudo, pensemos, ainda que de
forma esboçada e breve, os caminhos e limites desse conceito. Limitarei, no entanto,
minhas observações àquilo que parece ser instrumental para a pesquisa.
Como ressaltamos, ao tempo que o conceito institui-se como dispositivo de
construção de sensibilidade e institucionalização de sujeitos, a antropologia pode constituir-
se no entre conceitos e práticas; na ambigüidade possível daquele que se entrega à
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construção do outro em si. Esse entre-lugares distancia-se bastante daquilo que o campo
erigiu como noção privilegiada de Parentesco.
Para Heritier, o estudo das relações de parentesco contrasta a diferença e o
equilíbrio de “conjuntos diferentes do nosso” que “encontram intelectualmente justificação
(...) através da própria harmonia da sua adequação a todos os domínios da atividade social,
econômica, política, natural e simbólica (1997: 29)”.O termo se aproximaria daquilo que
Mauss classificou como fato social total. A partir do instante que se expressa pelos sistemas
de designação, regras de filiação, aliança e residência, bem como evidencia os interditos
que obrigam a formação dessas alianças, o parentesco seria a formulação sintética de tudo
aquilo que é durável em cada agrupamento humano, princípio onipresente da sociabilidade
e definição, no grupo, daquilo que é humano/semelhante e o que não é.
Como dissemos, em que pese a importância do instrumental acima referido na
construção do campo da antropologia, a definição de um objeto com fronteiras tão rígidas
possivelmente atenue a importância da produção de novas formas de legitimação entre
grupos, a possibilidade da produção da diferença pelo sujeito amparado por essas redes
simbólicas, ou mesmo, a importância do discurso antropológico na construção NOS
sujeitos desse conceito. A este respeito, alguns teóricos parecem potencializar as brechas do
conceito, tencionando seu destino e multiplicando usos.
Strathern (1995:306) define Parentesco como a maneira como “os euro-americanos
pensam sobre a formação de relacionamentos íntimos baseados na procriação”. Em alguns
artigos, utiliza a tensão nos papéis de pai e mãe característicos das novas tecnologias
reprodutivas para pensar o trânsito nas formas de parentalidade, possivelmente distintos das
figuras atuais do feminino e masculino, ao tempo que reflete sobre como somos acessados,
como antropólogos e como euro-americanos a partir dessas figuras de gênero. Assim, ao
invés do dado onipresente, o Parentesco aparece aqui como produção de relações que
desencadeiam deslocamentos de significação, trânsitos e produção do humano.
O “culturalmente pensável” é, portanto, fruto de uma triangulação entre práticas,
discurso nativo e sua descrição pela comunidade de antropólogos que o produz.
Ainda assim, no que diz respeito a formas de parentesco descrito e reescrito pela
atividade intelectual, tudo aquilo que está à sua margem é tomado como anti-norma,
fímbria, inominável. Faz-se necessário uma pergunta: Estamos incluídos nessa forma de
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parentesco descrita por Schneider ou Strathern? Se não estamos incluídos, não estamos
propriamente excluídos. Não somos o outro do parentesco. Aliemos, portanto à pergunta
anterior uma outra: O que se faz no Cariri quando não se está fazendo comunidade ou
parentesco? O que nos leva mais uma vez a buscar os fenômenos invisíveis, o resto, mas
nem por isso, como veremos, fenômenos menos ruidosos.
Luciana não é do Cariri. Como tantas outras jovens chegou ao Crato a fim de
assumir um cargo de funcionária pública. Tinha, então, cerca de 30 anos. Ao caracterizar o
momento de sua chegada ali, Luciana dizia que “era um momento muito rico para o Cariri,
quando representantes comerciais dos estados da Paraíba, Pernambuco e Piauí cruzavam
constantemente a região”. Ela, então, divertia-se em bares de forma pouco convencional:
ensaiava performances em casa, cantava e dançava como se estivesse em um show
particular, sendo ela mesma a performer e o Cariri, seu público. Entre as performances
relatadas gostaria de citar um momento em que Luciana contratara um dançarino com quem
ensaiara por algumas semanas, ao final das quais apresentou-se em um Bar, em Frente à
Praça da Igreja Matriz. Em outra oportunidade, enviara, para ela mesma, um ramalhete de
flores, entregue ao final de uma de suas apresentações. No dia seguinte, não tendo bebido
durante a noite um gole de álcool, Luciana retornava à instituição em que trabalhava, onde
lhe eram confiados cerca de 300 adolescentes por semestre.
Darão essas noites algum sentido ao Cariri? Ajudará tal descrição uma compreensão
da Região? Talvez se colarmos à descrição desse evento uma outra observação, realizada
durante a exposição agropecuária.
Às noites, durante a exposição[agropecuária], os jovens vestem-se e vão à “Festa”.
No ano de 2007, a “Festa” compunha-se majoritariamente de bandas de forró. No entanto,
opondo-se a interpretações recentes do forró no Nordeste como algo imutável em oposição
ao forró universitário das metrópoles do país, onde este teria se transformado, as bandas
não correspondem ao estereótipo de imutabilidade. Vejamos as notas de campo de minha
primeira noite na exposição:
Aproximando-me do show, poucas pessoas dançam. Um rapaz moreno, pequeno, com roupas
bastante simples é o cantor. Ele canta “Adultério”. A letra é uma paródia sobre a música Tédio,
sucesso dos anos 80, na voz do grupo Biquíni Cavadão. Uma amiga comentou que Mr. Katra,
cantor de funk tipo “proibidão” cantava essa música no show. Ao final da seqüência: Sua mina só
reclama/ e tira a sua paz/ (ela é chata demais!)/ procura a profissional que ela sabe o que faz/ é
uma coisa louca: quica/ quica em cima de mim/ assim!, assim!/ Antes, durante e depois/ Até o fim!
Sentada no meu colo, agente zoa, gata que delícia! Boa!/ O Negócio ta sério/ vai rolar um adultério/
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- o cantor repete diversas vezes: “E eu acho é bom! E eu acho é bom....Enquanto ele canta, 4
dançarinas fazem coreografias no palco.
(...) [embora a platéia esteja cheia], poucas pessoas dançam. Ficam olhando o palco (...) Saio dali
e vou para a tenda eletrônica. Lá está tocando funk e a freqüência me parece ser de um público bem
jovem. A tenda seria uma programação paralela à exposição.A contrário das bandas de forró, a
música na tenda seria moderna, dançantes, urbanas (...).
Será possível perceber um sentido nisso? Estarão esses jovens fazendo comunidade
nesse momento? Poderá esse momento existir OU ele deve ser decantado para que se possa
perceber um verdadeiro “sentido da vida tribal?”.
Compreendi melhor essa noite quando viajei, alguns dias depois, para o município
de Campos Sales, a 03 horas da cidade do Crato, para uma festa de município. Ali, o
investimento realizado na festa não permitia eventos paralelos, então cada fase da
programação era anunciada, ás vezes em diferentes palcos a algumas dezenas de metros de
distância um do outro, permitindo que tudo fosse visto por todos os moradores, visitantes e
antropólogos presentes. Farei aqui apenas um relato da programação da festa no Município:
A programação iniciou em torno das 19 h. com apresentação do artista paraense Vivinho
dos Teclados. Na apresentação, o cantor interpretou os últimos sucessos das rádios: Um
duo de Eros Ramazoti e Tina Turner, em que interpretava alternadamente ambos os
cantores, em seguida, um sucesso de Alessandro Sanz, um pagode e um sucesso da dupla
Bruno e Marrone. Terminada a apresentação, o mestre de cerimônias chamou a atenção
para a tenda eletrônica. Aproximando-me, vi jovens musculosos dançando como se
estivessem em um show de streap-tease, uma senhora de cerca de 60 anos balançava os
braços, que mantinha à altura da cintura a 90 º , e punhos cerrados. Seu corpo balançava
inteiro para cima e para baixo, em um movimento infantil, como se estivesse quicando no
mesmo ritmo da música. Ao microfone da tenda eletrônica, um D.J. dizia que logo mais se
apresentaria um D.J. de Fortaleza. O centro da atenção da festa volta-se, então, ao palco
onde a orquestra municipal de Campos Sales toca música dos Beatles, Luiz Gonzaga e
repertório variado acompanhada de guitarras. Um novo momento na tenda eletrônica, agora
bem mais cheia de gente, é seguida então por três bandas de forró. A partir das 22 horas,
não seria exagero dizer que toda a cidade estava na praça, presente, é verdade, em
diferentes locais, a diferentes distâncias e vínculos em cada momento da programação. Mas
não seria menos verdadeiro dizer que aquele convívio possibilitava a circulação em
ambientes diferentes e a produção de um público diverso a informações diversas. O rapaz
bombado, uma outra senhora de 70 anos dançando ritmadamente ao lado do D.J. de
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Fortaleza, os adolescentes negros e mestiços se espremendo na pista da tenda eletrônica às
moças que acabaram de sair do salão de beleza atestam que aquele evento é produzido na
comunidade e a partir de informações migrantes. Que guarda vínculos com as noites na
exposição e que esse circuito cria uma territorialidade, se não uma territorialidade perene,
ao menos algo que produz , e estanca, gestos, possibilidades e significados.
Se o território é definido por critérios de parentesco e descendência (Woortmann,
1995), as situações de campo até agora descritas parecem valorizar TAMBÉM o trânsito, a
possibilidade de deslocamento, o entre-lugares como característica desse espaço.Tal análise
faz-me retomar uma frase de um entrevistado sobre os encontros entre conhecidos durante
as noites da exposição agropecuária:
Se um conhecido seu lhe encontra em frente ao palco [lugar mais exposto a um público geral], ele fala
com você de uma determinada maneira; se encontra com você na tenda [eletrônica], fala de outra
maneira, se encontra você em um outro lugar, durante a mesma festa, já falará de outra.
Provavelmente, ao comunicar-se de maneiras distintas, os conhecidos estão
agenciando socialidades, manifestadas pelos gestos possíveis em lugares distintos;
sinalizações percebidas entre eles e diluídas alguns passos além. Essa fala também lança
luzes sobre uma comunidade em que as relações face-a –face não se opõem a relações de
anonimato. Ao contrário, elas complexificam formas de socialidade, criando zonas de
sombra e densidades distintas ao tempo em que, como veremos adiante, é dependente
também de eventos unificadores.
Eventos como este são chamados simplesmente “Festa”. Para meus sujeitos,
“Festas” eram os shows realizados em casas de eventos ou em praças públicas onde
invariavelmente se ouvia forró eletrônico, com bandas, torres de som, dançarinos dançando
coreografias em roupas de malha esvoaçantes.
Em uma noite de Festa, encontrei uma ex-aluna com o namorado. Provavelmente
suspeitando da minha falta de afinidade com a música que se tocava ali, Antonia, minha
aluna, começou a ironizar as canções, o apelo sexual das letras através de repetição de
palavras e gestos. Perguntei então: Qual o motivo de vocês saírem de casa para esse show?-
Ouvi em resposta: - “É tão chato ficar em casa!” -.
Em outras noites de trabalho de campo, percebi que a dança a dois não era a única
forma de encontro durante as “festas”. O caráter de espetáculo, os dançarinos no palco, os
efeitos de luzes e os watts de potência presentes em todas as apresentações possibilita que
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as pessoas estejam ali apenas para ver o forró. Por outro lado, em uma domingueira, vi uma
jovem dançando absolutamente sozinha. Em sua dança, levantava a perna esquerda à altura
da cintura, dava três passos para um lado e alternava para o outro. Quando parava, jogava
os ombros alternadamente. Enfim, a moça repetia os gestos das dançarinas. Acompanhava a
dança como se ela mesma fizesse parte do espetáculo. Uma outra possibilidade foi revelada
por um casal de adolescentes durante a exposição. Transcrevo aqui, então, minhas
anotações de campo:
Observo dois casais de adolescentes. O rapaz chega com um amigo e o apresenta a duas moças. Em
segundos, o rapaz com maior intimidade com as moças, aproxima-se de uma delas e faz menção de
dançar. Eles não dançam. Ela está com um copo na mão, ele também. Não se esforçam por seguir o
ritmo da música. Ficam estancados, próximos. Peito com peito. Não é uma dança, mas uma forma
de aproximação.
Vale salientar também que em conversas entre casais ou mesmo deambulando, as
pessoas dublavam as músicas. Hábito facilitado pelo fato de várias bandas tocarem as
mesmas músicas durante a festa. Por vezes, uma só música é tocada várias vezes pela
mesma banda e inúmeras vezes durante a noite.
Provavelmente, a forma mais impactante de estar na “Festa” foi performada por
Márcio. Na parte interna do salão, Márcio alternava alvos de aproximação: ora passava a
mão na parte inferior das nádegas de qualquer moça que estivesse passando, ora esbarrava
com força nos corpos dos homens. Quando o homem se voltava para ele, tomando
satisfação, Márcio oferecia o seu copo para que o outro bebesse, bebia do copo do iminente
oponente e assim se irmanavam. Em um quarto de hora, Márcio passou a mão em pelo
menos 07 moças e esbarrou em no mínimo 05 homens. Ao final, desolado, comentava: -
“Aqui não se arranja mulher não!”
As citações permitem-nos algumas direções: Em princípio por se opor a uma certa
imobilidade de um dançar nordestino em oposição ao jeito de dançar em transformação do
forró universitário. Uma imagem provisória, porém bastante forte dessa mobilidade são as
centenas de motocicletas estacionadas ao redor dos locais de “festas”. Os estacionamentos
lotados de motos ou as dezenas de moto-taxistas parados em frente às portas dos clubes ou
do Parque de Exposição, parecem confirmar que tudo que ali acontece é provisório; que
cada veículo desenhará um destino. Um corpo sobre um veículo em mil trajetórias, pelos
seus mil veículos com um ou dois ocupantes sobre duas rodas.
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A este respeito, aproximamo-nos das intenções de Jean Rouch ao voltar sua câmera
não para as estruturas ou repetições de um África ancestral, mas buscando rituais que
atualizem esses lugares, as materialidades e gestos produzidos nesses encontros. Como nos
diz Predal (1996: 14) : “Ele é o cineasta dos contatos, das mutações que se agenciam
hoje”.Tais contatos não conferem estatuto de verdade a nada que não seja visível, o
etnografável, que guarda ali, no momento de sua expressão, a potência de produzir efeitos.
Dessa forma, as mediações necessárias para se produzir os gestos, os sons, os vestuários ali
presentes são suspensos em nome de sua potência produtiva. Nada é explicado, tudo se
explica pela sua capacidade de agenciamento e produção. Para Gonçalves (2008):
A contemporaneidade operada a partir do registro da globalização institui uma conceituação de
localidade ao atribuir uma nova semântica que desterritorializa e deslocaliza o local (...) Agora, a
localidade se conecta diretamente ao global sem as antigas e necessárias intermediações e as
imagens (...) são emblemáticas destas conexões cada vez mais rápidas e diretas, acenando uma
transição de comunidades transnacionais não imaginadas pelas imagens digitais.
Tal reflexão impõe algumas palavras sobre os marcadores espaciais embalados por
esse ritmo. Se aceitarmos no jogo de oposições estabelecidos entre um Nordeste da
Tradição e um ritmo que ultrapassa os limites daquela região (Vieira, 2000) e se faz ritmo
nacional a partir de redes diferenciadas e múltiplas apropriações, como localizar tais festas?
Como refletir sobre tais apropriações neste recanto sertanejo? Como se pode perceber a
partir do público particularmente indistinto que freqüenta tais festas, o tecno-forró é um
evento de massa particularmente desterritorializado. A temática do “Nordeste”,
pretensamente uma aglutinadora do ritmo forró está quase ou totalmente ausente da
fórmula. Um efeito particularmente visível disto é que tais eventos não contam com o valor
agregado da idéia de tradição.É antes uma fórmula que agencia e reterritorializa relações,
particularmente as de gênero, sem arranhar a idéia de Nordeste como tema privilegiado.
A ausência de uma matriz cultural homogênea, visível e onipresente há muito
deixou de ser novidade para a antropologia. Como nos diz Gonçalvez (2007: 35)
A antropologia contemporânea tem se ocupado sobremaneira com a denúncia do inautêntico,
produzindo assim um estranho paradoxo: somente a partir de sua denúncia enquanto um objeto
inautêntico é que se pode elege-lo enquanto um objeto possível e justificado de investigação,
empregando-o, assim, de ‘ autenticidade’ não mais nativa senão antropológica.
No entanto, se tudo é híbrido e indistinto qual o alcance prático dessa indistinção
para o refinamento dos problemas, objetos e práticas desse campo? Em confluência a essa
duvidosa potencialidade do fluido para descrever um possível objeto para a antropologia,
nosso campo, o Cariri pode ser caracterizado por uma produtiva relação com as noções de
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deslocamento, mudança ou migração. Ao invés de tais noções porem em dúvida uma
suposta identidade regional, constituem-se como pilares de construção da região.
Aproximamo-nos, portanto, na nossa percepção da relação do Cariri como híbrido,
da proposta de Canclini(1993)de etnografar ao invés de museus, vagas de garagem e
aeroportos, lugares onde um objeto é aproveitado de uma nova maneira, a partir de um
contexto em que se faz útil e produtivo. A “Festa” aparece, portanto, como espaço de
deriva, salvo dos clichês narrativos que compõem o Cariri: ambientes em que sujeitos
dublam letras de música, ensaiam formas diversas de aproximação e, rapidamente, se
dispersam. Ao mesmo tempo a variedade de sujeitos põe em xeque uma suposta unidade de
vivências para os sujeitos FORA daquele espaço. Aos poucos, percebi que a suposta
unidade é composta por uma variedade de público que precisa ser mapeado.A diversidade
de público, a quase virtualidade do ambiente de festa desafiam a narrativa do forró como
um ritmo que viria “debaixo do barro do chão” podendo instaurar-se agora a partir de redes
de impulsos elétricos e sonoros, com guitarras e lantejoulas, acontecendo aqui e ali, de
acordo com a programação das bandas divulgadas em sites da internet, por carros de som
pela cidade e boca-a-boca pelas redes de socialidade.
A “Festa”, portanto, parece um ambiente pródigo na produção de gestos, ações e
representações que, embora não se possa dizer que sejam característicos do Cariri são fruto
de um jogo de forças presente nesse espaço de mutações. Um jogo de forças que se
modifica a partir das posições dos sujeitos, e ao tempo que depende de eventos
unificadores, de mapas identitários, tais eventos possibilitam também um transe dos
sujeitos, por eles envolvidos e acessados, mas nem sempre com eles comprometidos.
Como esperamos ter deixado claro acima, todos os espaços são complexos, não
apenas as metrópoles, sobretudo se não nos deixamos levar pelos mapas pré-existentes que
o formataram e observamos as ações presentes e produzidas nesse espaço.Os sujeitos aqui
descritos são jovens produtores dessa complexidade. Possivelmente as linhas tecidas por
suas vivências possam estancar, sem jamais darem relevo a este ou aquele signo de
identificação para o homem, a mulher ou a região que habitam. Ainda assim, em sua deriva
há uma potência produtiva que instiga a construção do presente artigo.
ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz de. Nordestino. Uma Invenção do Falo. Maceió:
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Professor da URCA, Doutorando pelo IFCS/UFRJ, Bolsista da FUNCAP.
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