1. A fábula do Tigre
(relatada por Zimmer em Filosofias da Índia, a partir de The Gospel of Sri Ramakrishna)
Um filhote de tigre fora criado entre cabras. Prenhe e balofa, sua mãe passara vários
dias à procura de uma presa sem nada conseguir, até que deparou com um rebanho de
cabras selvagens. Estava faminta, o que explica a violência de sua investida. O esforço
do ataque precipitou o parto e ela acabou morrendo de esgotamento. As cabras, que
haviam se dispersado, retornaram ao lugar e lá encontraram um filhote de tigre
choramingando ao lado de sua mãe. Levadas pela compaixão maternal adotaram a
débil criatura; amamentaram-na junto com suas próprias crias e dela cuidaram
ternamente. O animal cresceu e sobreveio a recompensa pelos cuidados dispensados,
pois o pequeno companheiro aprendeu a linguagem das cabras, adaptou sua voz
àquele som suave e mostrou tanto afeto quanto qualquer cabrito. A princípio teve
alguma dificuldade para mastigar com seus dentes pontiagudos as tenras folhas do
pasto, mas logo se acostumou. A dieta vegetariana o mantinha enfraquecido,
conferindo ao seu temperamento uma notável doçura.
Certa noite - quando o órfão, crescido entre as cabras, já havia alcançado a idade da
razão - o rebanho foi atacado, desta vez por um velho e feroz tigre. As cabras se
dispersaram, porém o jovem permaneceu onde estava, sem medo ainda que surpreso.
Achando-se face a face com a terrível criatura da selva, fitou-o estupefato. Passado o
primeiro impacto, começa a tomar consciência de si. Desamparado, berra, arranca
folhas de pasto e se põe a mastigar, ante o olhar perplexo do outro.
De repente, o poderoso intruso pergunta:
_ Que fazes aqui entre as cabras?! Que estás mastigando?!
A resposta foi um berro. O outro, indignado, disse num rugido:
_ Por que emites este som estúpido?!
E antes que o pequeno pudesse responder, apanhou-o pelo cangote e o sacudiu como
se quisesse fazê-lo recobrar a lucidez. O tigre da selva carregou o assustado animal até
um lago próximo, soltando-o na margem e obrigando-o a olhar para a superfície
espelhada da água, então iluminada pela lua.
_ Vê estas duas imagens! Não são semelhantes? Tens a cara típica de um tigre, é
como a minha. Por que te iludes pensando seres um cabrito? Por que berras? Por que
mastigas pasto?!
O tigrezinho, incapaz de responder, continuava a olhar espantado comparando as duas
imagens refletidas. Inquieto, apoiou-se numa e logo noutra pata, e lançou um grito de
aflitiva incerteza. A velha fera novamente o carregou porém agora até seu covil, onde
lhe ofereceu um pedaço de carne crua e sangrenta, sobra de uma refeição anterior.
Ante a inusitada visão, o jovem tremeu de repugnância mas o velho, ignorando o fraco
gesto de protesto, ordenou rudemente:
_ Come! Engole!
2. O outro resistiu, porém a horripilante carne foi forçada a passar entre seus dentes; o
tigre vigiava atentamente seu aprendiz que tentava mastigar e preparava-se para
engolir. Sua não-familiaridade com a consistência da carne causava-lhe certa
dificuldade, e estava prestes a emitir outro débil berro quando começou a
experimentar o gosto do sangue. Excitado, devorou o restante com avidez, sentindo
um prazer incomum à medida que o novo alimento descia-lhe pela garganta e atingia o
estômago. Uma força estranha e quente irradiava de suas entranhas trazendo-lhe uma
sensação eufórica e embriagadora. Estalou a língua, lambeu o focinho satisfeito e,
erguendo-se, deu um largo bocejo como se estivesse despertando de uma longa noite
de sono - uma noite que o manteve sob feitiço por anos e anos. Espreguiçando-se,
arqueou as costas, estendeu e abriu as garras. Sua cauda fustigava o solo e, de súbito,
irrompeu de sua garganta o triunfal e aterrorizente rugido de um tigre.
O inflexível mestre, que estivera observando de perto, sentia-se recompensado. A
transformação, de fato, acontecera. Ao cessar o rugido, perguntou severamente:
_ Agora sabes quem realmente és?
E para completar a iniciação de seu jovem discípulo no saber secreto de sua própria e
verdadeira natureza, acrescentou:
_ Vem! Vamos caçar juntos pela selva.