Este documento resume a obra da escritora portuguesa Matilde Rosa Araújo, conhecida como a "fada-madrinha" da literatura infantil portuguesa. Detalha algumas de suas obras mais importantes como O Livro da Tila, O Palhaço Verde e O Sol e o Menino dos Pés Frios. Também discute sua importância para romper estereótipos e trazer maior criatividade para a literatura infantil durante o Estado Novo em Portugal.
1. miúdos
Os livros E
scolher os livros estereótipo e nós fomos atrás.
essenciais de Mais ou menos…”
Matilde Rosa O rapaz em que Matilde
Araújo não é fácil. se inspirou existiu mesmo,
Há sempre mais diz Fátima de Medeiros, que
de Matilde
um que se impõe desenvolve pesquisa sobre esta
acrescentar. A Pública pediu escritora, alguma de grande
ajuda a duas especialistas profundidade: “Era um rapaz
em literatura para a infância, pobre que vendia moinhos de
Fátima Ribeiro de Medeiros e papel na praia.”
Leonor Riscado, e a um escritor, A professora realça a
António Torrado. Todos amigos importância do contributo
de Matilde. Era fácil sê-lo. de Matilde para a literatura:
As crianças foram o centro da sua obra, Não é possível falar da “Estávamos numa fase de
mesmo quando não era para elas que escritora sem falar também de
Maria Keil, “as suas ilustrações
menorização da criança.
Com o Estado Novo, não se
escrevia. Rompeu com os estereótipos são a marca de água das obras
de Matilde”, diz António
podia ter ideias. A censura
queria limitar as ideias dos
impostos pelo Estado Novo e muitos Torrado. E tem razão. Muitos
dos seus livros foram ilustrados
escritores e conduzi-los por um
determinado caminho. Mas,
escritores de literatura para a infância por esta artista plástica e sobretudo na década de 1950,
mesmo a obra que sairá em houve vários escritores que não
seguiram-na nessa ousadia. Novembro terá imagens criadas seguiram a norma. Matilde foi
Chamaram-lhe fada- recentemente por Maria Keil,
já com 95 anos. “Uma dupla
um deles.”
-madrinha. Matilde Rosa fantástica.”
Também não se pode
A criatividade
A autora nunca se coibiu de
Araújo deixou por aí conhecer o trabalho de Matilde
sem se nomear a sua primeira
abordar qualquer tema: “Morte,
sofrimento, alegria, pobreza.
uma varinha de condão. obra dita para crianças: O Livro Tratou-os como se fossem
da Tila, cantigas pequeninas, escritos para adultos. Sempre
E um inédito. (Editorial, 1957). trazendo consigo o sentimento
A abrir, pode ler-se “Quadra poético (mesmo sem ser na
sozinha: Meninos pobres, tão poesia propriamente dita)
Texto Rita Pimenta pobres/ São tão pobres, que ao e os sentimentos universais
Ilustração Maria Keil vê-los/ Meus olhos, que são de
cobre/ Têm a luz das estrelas.”
e intemporais. Como os
clássicos.” Por isso, conclui, “é
Tila era o nome por que a uma escritora incontornável”.
autora era tratada na infância, E não está, de forma alguma,
diminutivo que nem sempre ultrapassada.
lhe agradou, conta Fátima Para Leonor Riscado,
Ribeiro de Medeiros, professora professora na Escola Superior
e investigadora de Literatura de Educação de Coimbra, “a
para a Infância e Juventude, obra literária para a infância
do Instituto de Estudos de e a juventude que Matilde
Literatura Tradicional da criou reflecte não só imenso
Faculdade de Ciências Sociais e amor pelos seus destinatários
Humanas, da Universidade Nova preferenciais, mas também uma
de Lisboa. imaginação viva e inesgotável no
que à capacidade de efabulação
A coragem e à criatividade diz respeito.
Seguiu-se O Palhaço Verde, Matilde é a fonte cristalina
Portugália, 1962 (ainda está de onde brotaram obras
disponível). “Foi uma grande incontornáveis que marcaram a
surpresa para a literatura”, literatura do século XX, quer na
considera António Torrado. poesia, quer no conto” (palavras
“Estava-se num período em retiradas da comunicação
decrescendo da literatura “Matilde Rosa Araújo — A voz
para a infância. Já se tinha nua de uma fada verde”, Viseu,
passado a fase das borboletas 2008).
e passarinhos e não havia nada Mais obras importantes: O
para substituir.” Cantar da Tila, Atlântida, 1967.
É então que, com coragem, O Sol e o Menino dos Pés Frios,
a autora escreve este livro: Ática, 1972 (disponível). As Botas
“A personagem é mais um de Meu Pai, Livros Horizonte,
arlequim do que um palhaço. 1977. As Fadas Verdes,
Com ele, Matilde rompeu o Civilização, 1994 (disponível). c
2. “Florinda e o Pai Natal”
Dezembro. Mês de frio, Mas não era para estranhar. Florinda, timidamente,
muito frio. Dias de chuva e Em Dezembro é sempre assim. aproximou-se do banco.
de gelo. Florinda vinha da E o Sol, nos dias em que Lembrou-se dos conselhos da
escola, atravessava o Jardim brilha, é como se uma mão avó, sempre preocupada:
da Estrela. Jardim tão bonito, amiga nos afagasse. — Florinda, nunca fales com
mesmo no Inverno! Florinda gostava de desconhecidos. Ouviste?
O cachecol enrolado em atravessar o jardim. Às vezes Em silêncio, continuava
volta do pescoço, tapando- vinha acompanhada por a ouvir a avó. Não fales com
lhe um poucochinho o nariz colegas da escola, outras vezes desconhecidos...
vermelho de frio. eles tomavam outro caminho. — Queres comprar-me um
As botas de cabedal — Psht... menina! balão, menina?
(castanho como o tronco das Olhou para o banco de Florinda aproximou-se
árvores) protegian os seus pés jardim, de onde vinha o mais. Ficou parada, hesitante,
de menina. Menina de oito chamamento. Nele estava sem saber o que dizer.
anos, que já sabia ler. E bem. sentado um Pai Natal, vestido — Sabe, menina? —
Qua alegria, quando começou com um balandrau vermelho, confidenciou o Pai Natal.
Excerto do inédito a juntar as letras! Ler. Escutar a mão direita a segurar — Estou cansado. Muito
de Matilde Rosa as letras no papel do caderno, uma dezena de balões. Um cansado. Sentei-me aqui
Araújo que será do livro, na lousa do quadro. verdadeiro arco-íris. Balões de porque já me doíam muito os
publicado em Conversar com elas. todas as cores, agitados com o pés. Não se quer sentar um
Novembro, com Ler alto ou em silêncio. ventinho da tarde. bocadinho?
ilustrações de Maria Afagou a malinha da escola, Ah! O Pai Natal! O Natal está Florinda hesitou. Embora
Keil. Edição da que trazia presa ao ombro. à porta, embora ainda tenha Pai Natal, sempre era um
Calendário de Letras Ah! Mas que frio! escola... desconhecido. (...)
3. miúdos
O Livro António Torrado fala de O Sol E, através do olhar e da voz
da Tila e o Menino dos Pés Frios como inaugurais da sua autora, vamos
Cantigas uma das obras “onde se revela aprender a ‘Saber ler na vida —
Pequeninas, a sua marca neo-realista”, mas folhear honestamente a vida/
Livros Horizonte ressalva que “Matilde não era Apaixonadamente a vida/ Nas
(1.ª edição, uma escritora neo-realista como arcas da noite, nas arenas do
Notícias, 1957) o foram Alves Redol ou Sidónio dia:/ Risos, lágrimas, serenos
Muralha”. rostos aparentes/ Como se
Há várias obras editadas mais abríssemos cada dia a verde lima
recentemente (todas disponíveis), do espanto’.”
embora algumas sejam reedições
de textos antigos com novas A voz
ilustrações e outras contenham Leonor Riscado fala assim do
O Cantar da Tila O Palhaço Verde histórias retiradas de obras convívio próximo com Matilde
Livros Horizonte Livros Horizonte anteriores: Anjos de Pijama (Texto Rosa Araújo: “Era uma senhora
(1.ª edição, (1.ª edição Editores, 2005). A Saquinha da que falava baixinho. E tudo o
Atlântida, 1967) Portugália, 1962) — Flor (Gailivro, 2005). A Boneca que dizia era muito importante.
disponível Palmira (Edições Eterogémeas, Uma figura apagada mas que nos
2007). História de Uma Flor deixava suspensos e presos pelo
(Caminho, 2008). Lucilina e olhar e pela voz.”
Antenor (Calendário de Letras, Um dos traços a que mais
2008). leitores, admiradores e amigos
Se Fátima Ribeiro de Medeiros se referiram nas mensagens
conheceu o “palhaço verde”, de despedida nos dias que se
As Fadas António Torrado conheceu “a seguiram ao da sua morte (6 de
Verdes boneca Palmira”, que serviu de Julho) foi precisamente a voz
Civilização, inspiração à edição do livro com de Matilde. António Torrado
1994 esse nome, ilustrado por Gémeo conta-nos uma história antiga a
(disponível) Luís. “Era preciso pedir licença propósito do efeito das palavras
(e às vezes desculpa) às bonecas ditas pela escritora.
para nos sentarmos nos sofás “Eu e Alice Vieira fomos
da casa da Matilde. E muitas chamados para fazer parte de
Anjos de Pijama vezes ficava-se com elas ao colo. um júri de poemas juvenis.
Lisboa, Texto Foi assim que conheci a boneca Éramos nós os dois, a Matilde
Editores, 2005 Palmira”, conta o escritor, entre e o Mário Castrim. Íamos
(disponível) divertido e comovido. seleccionando o que chegava
Para falar das obras “não para ao jornal e fazíamos encontros
crianças”, de recolha, ensaio, de leitura em voz alta para
contos e poesia, damos voz à escolhermos em conjunto.
professora Leonor Riscado. “As Sempre que era ela a ler os
suas antologias de textos de poemas, iam logo para o monte
autores portugueses, As Crianças, dos escolhidos.”
Todas as Crianças (Livros Até que António Torrado, “na
Horizonte, 1979) e A Infância altura um jovem atrevido”, pediu
Lembrada (Livros Horizonte, para ler um daqueles poemas
1986), constituem tributos a após a leitura de Matilde: “Aquilo
uma infância que se pretende não valia nada. Mas só depois
libertada. No campo do ensaio, de o escutarem lido por mim
A Estrada Fascinante (Livros se apercebiam disso. Ela tinha
Horizonte, 1988) é o exemplo da aquela voz de harpejo e de
‘inteligência do coração’ da sua violino ao mesmo tempo, e lia de
O Sol autora e representa uma lúcida uma tal maneira que os poemas
e o Menino reflexão sobre a literatura para eram todos aprovados.”
História dos Pés Frios a infância, pois Matilde Rosa O autor é um dos que partilham
de Uma Flor Livros Araújo sempre acreditou que do sentimento de orfandade
Editorial Horizonte ser criança é uma promessa e, deixado pela morte de Matilde
Caminho, 2008 (1.ª edição, portanto, ninguém tem o direito Rosa Araújo — que não chegou a
(disponível) Ática, 1972) — de ‘infantilizar a criança’.” ter filhos, mas um colo imenso.
disponível O livro de contos Praia Nova “Devo-lhe a primeira referência
(Editora Lux, 1962) “mostra uma crítica ao meu trabalho, há mais
capacidade única de penetrar de 40 anos. Foi graças a ela que
no íntimo das personagens”. virei para esta área.” Acredita
A Boneca Da obra de poemas Voz Nua no entanto que a “voz sobrevive
Palmira (Livros Horizonte, 1986) diz- à pessoa”. Assim continuem a
Edições nos: “Carregado de humanidade abrir-se os livros para a escutar. a
Eterogémeas, e simbolismo, vai, nos seus
2007 (disponível) versos, ‘tecendo o xaile de Sol’. rpimenta@publico.pt