Miguel Horta e Paula Ramos trabalham com programas de leitura em prisões portuguesas. Eles usam livros e histórias para aproximar reclusos e suas famílias e ajudar a criar leitores dentro e fora da prisão. Apesar dos desafios, ambos sentem que vale a pena o esforço por ver o impacto positivo nos participantes.
1. Dar o livro certo
Entram nas prisões para criar leitores e algo mais.
Acreditam nas palavras, nos livros e nas pessoas.
Miguel Horta pertence ao programa Ler sem
Fronteiras e Paula Ramos criou o projecto No Colo
da Minha Mãe. “Vale muito a pena”, diz ele. “Ganhei
mais do que dei”, diz ela. E nunca sentiram medo.
Texto Rita Pimenta
D
ar o livro certo à pessoa certa Em termos práticos, os reclusos nada ga- Verde e tem alguns diálogos em crioulo, com
é o caminho para se criar nham em assistir às sessões. “Não conta para um breve glossário no final.
um leitor. Na prisão ou fora nota, não baixa a pena, não vale para ava- Quando chega à literatura portuguesa, mos-
dela. Pontos de vista elitistas liar o comportamento da prisão”, explica, tra-lhes como cada escritor tem uma canção,
e preconceitos quanto a “mas sabemos como a leitura abre janelas uma musicalidade, uma toada. “E diz-lhes
autores não valem. “Pode em sítios insuspeitos”. E recorda comovido: que o leitor também a tem. O leitor lê com o
ser um Tio Patinhas, uma Margarida Rebelo “No Montijo, depois de a Associação Andante seu ritmo e tem de se encontrar com aquelas
Pinto ou as Lições do Tonecas. O meu papel apresentar um texto, eu começo a trabalhar palavras.”
enquanto mediador do livro e da leitura é o de a poesia. O efeito é multiplicado. Na primeira Pede que lhe enviem livros de poesia, de
fazer uma escada, que o leitor vai subindo”, fila, aqueles homens enormes, tatuados até banda desenhada (“o sucesso que fez o [Milo]
diz Miguel Horta, que trabalha com reclusos lá abaixo… a chorar, o rosto completamente Manara! Mas as pessoas são preconceituosas
há cinco anos. molhado. Acha que não vale a pena?” em relação à BD erótica e humorista”), de
“Já contei o Príncipe com Orelhas de Burro a Por vezes há desistências, mas fica sempre Luandino Vieira, Pepetela, Germano de Al-
homens bem grandes. E uma história do Mon- com um grupo consistente. A tarefa de sedu- meida. Conta como as palavras de António
teiro Lobato, do Sítio do Pica-Pau Amarelo, a ção não se esgota nos primeiros contactos, “é Aleixo, António Gedeão e Agostinho da Silva
um grupo de reclusos brasileiros. Adoraram. um trabalho de todos os dias”. E há uma per- “têm um efeito brutal nas prisões”. Os reclu-
Depois, consegui arranjar um exemplar para gunta que se impõe: “Quem és tu, leitor?” sos já transformaram Gedeão em hip-hop:
lerem. E leram. É um começo como outro “Ele ia adorar!” E exemplifica, sincopadamen-
qualquer”, diz à Pública, no seu atelier, o Imagens e voz te: “Venho da terra assombrada,/ do ventre
“pintor que gosta de palavras e de pessoas”, Miguel Horta dá-nos a conhecer o seu mé- de minha mãe; / não pretendo roubar nada/
como lhe agrada ser identificado. todo de conquista. “Tenho duas estratégias: nem fazer mal a ninguém (…)”
Miguel Horta tem inúmeras histórias para um livro de imagens (para que eles me con- Usa uma técnica chamada “máquina da
contar da sua experiência em estabelecimen- tem a história) e uma situação de oralidade poesia”, que sublinha não ser da sua autoria,
tos prisionais como o de Odemira, Montijo, (um poema que eu sei de cor ou um conto, e que consiste numa tabela, com várias colu-
Setúbal e Lisboa, no programa Ler sem Fron- que pode ser em português ou em crioulo).” nas que se vão preenchendo com palavras de
teiras (da Direcção-Geral do Livro e das Biblio- Quando há cabo-verdianos, “ficam logo a diferentes grupos gramaticais: substantivos
tecas, em parceria com a Direcção-Geral dos gostar”. numa, verbos noutra, adjectivos noutra. De-
Serviços Prisionais). “Depois de dar Paulo Co- Aos brasileiros, pergunta: “Conhece a Cecí- pois fazem-se combinações “lógicas” e vão
elho a uma reclusa de Odemira, apresentei-a a lia Meireles? Já viu que teve de vir a Portugal nascendo poemas. Quando se lhe pergunta se
Hermann Hesse. Leu o Siddharta e disse-me: para conhecer uma poetisa da sua terra? E tem medo de estar com pessoas condenadas,
‘Mas isto é muito mais interessante, profes- digo, por exemplo, O Samba do Peixe-Aranha. responde: “Temos de nos focar na pessoa e
sor’”, conta. E termina a frase estalando os de- Tenho sempre coisas na manga…”, explica não no recluso. Não no que fez, mas no seu
dos e abrindo os olhos numa expressão feliz. divertido. “Para os são-tomenses, Olinda Be- percurso (que caminho fizeste?) e inundar
Tradução: tinha ganho mais uma leitora. ja. Para os de Angola, Ondjaki.” O livro deste os olhos de humanidade. Tenho medo, sim,
Este tipo de acção nas cadeias “é um tra- autor Os da Minha Rua (Caminho) tem tido mas de me deprimir, de não levar para casa
balho de mediação do livro e da leitura, mas grande aceitação junto dos reclusos angola- guardado da forma correcta o que se pas-
é mais do que isso: é comunicação, maté- nos. “Tive uma felicidade enorme ao ouvir sa ali. Mas quem tem mais medo da vida é
ria humana, intervenção social”. E admite: as gargalhadas do Gabriel, responsável da bi- quem lá está. Por isso decidem fazer leitu-
“Curiosidade também, mas não voyeurismo. blioteca de Setúbal, a ler o Ondjaki. Porque é ras e escrever. Este binómio leitura-escrita é
É impossível estar-se vivo e não se ficar es- a infância dele em Angola. Aquilo é igual.” muito importante. A escrita é extremamente
pantado com coisas novas, como o João sem Se os níveis de literacia são baixos, recorre projectiva.” E nunca quis saber os crimes
Medo [de José Gomes Ferreira]. Tinha espan- a um livro para crianças da sua autoria, Pinok de que são acusados. “Mas as suas histórias
to de viver, não é?” e Baleote (Grácio Editor). É passado em Cabo acabaram por vir ter comigo.” c
2. capa
Miguel Horta lamenta que o programa de mexerem, como Galope, de Rufus Butler Se- Paula Ramos,
educação não formal nas cadeias esteja em der (Booksmile). educadora
risco: “Somos poucos, com pouco dinheiro. Paula Ramos apercebeu-se da falta de con- de infância,
Isto é um trabalho de entrega e generosidade. tacto físico entre as mães e os miúdos, pelo da Fundação
Quem não gosta de trabalhar com pessoas que recorreu a algumas “brincadeiras” que Gonçalves Júnior,
faça o favor de não aparecer.” E recorda o incentivassem essa prática: “Lá vai o bichi- criou um projecto
que o seu irmão Rui Horta, coreógrafo, disse nho por cima do osso comer o menino até ao de leitura para
recentemente a meio de uma discussão: “A pescoço.” Sugere-se que se percorra com os crianças em
cultura é cara? Esperem para ver o preço da dedos o braço da criança ou bebé até ao pes- estabelecimentos
ignorância.” coço. Desta forma, “obrigava-as” a tocar nas prisionais,
Um dia, um recluso, depois de participar crianças. “Muitas nunca tiveram uma relação realizado em Tires
nas suas aulas, disse: “Quando sair daqui, vou corpo a corpo enquanto filhas. Vieram de
ser bibliotecário.” E foi mesmo. Está agora bairros complicados, andavam na rua só de
numa biblioteca de uma Junta de Freguesia da fralda e usaram chucha até aos 12 anos.”
Margem Sul. “Vale ou não vale a pena?” Eram evidentes os sentimentos contradi-
tórios, “culpabilizavam-se por os miúdos es-
Precisar de colo tarem ali e ora davam mimo a mais ora não
Quem também não tem dúvidas de que valeu tinham o mínimo de paciência”. A educadora
a pena o projecto No Colo da Minha Mãe — sugeria jogos com pares de sapatos (“tirá-los
Leitura para crianças em estabelecimentos todos das gavetas e pedir que descobrissem
prisionais é a educadora de infância Pau- o par”) ou com as tampas das garrafas de
la Ramos, especializada em educação pela água de cores diferentes (“ajudá-los a per-
arte. Objectivo: usar os livros e as palavras ceber a que garrafa pertenciam”). Para ten-
para aproximar as mães dos filhos. Durante tar estimulá-los com os poucos objectos que
dois meses, foi o que fez no Estabelecimento existiam dentro das celas. “Mas havia uma
Prisional de Tires, junto de 12 reclusas entre grande inércia da parte delas. Os livros aju-
os 25 e os 40 anos, na Casa das Mães. daram muito.” Algumas gostaram tanto de Miguel Horta, do
Há crianças que o único espaço que co- lengalengas que diziam: “Traga mais porque programa Ler
nhecem até aos três anos é a prisão. Nunca o meu filho gostou e ficou tão quieto que que- sem Fronteiras,
pisaram a areia da praia, não andaram de ro repetir.” Perceberam o efeito nos miúdos, faz mediação da
carrossel nem puderam espantar-se com um aderiram e repetiram. leitura e do livro
céu estrelado numa noite de Verão. E há mães Só falavam da pena se quisessem. “Não nas cadeias de
reclusas que não conseguem vincular-se aos me interessava. Acabei por ir sabendo que Setúbal e Montijo
bebés. “A culpa, a indiferença, a apatia fá-las a maior parte tinha sido usada como correio
rejeitar os filhos, não os acarinhar nem esti- de droga, não eram violentas. Muitas eram
mular numa fase essencial do seu desenvol- africanas, iam de Cabo Verde até à Holanda
vimento”, explica a educadora, actualmente e cá, assim que chegavam ao aeroporto, en-
a trabalhar na Fundação Gonçalves Júnior, travam directamente na carrinha para Tires,
em Alcochete. nem conheciam Lisboa.”
“É uma população em que se investe pou- Os miúdos mais limitados são os filhos das
co. Vai lá muita gente por caridade e oferece estrangeiras, porque nunca saem da prisão.
o que quer que seja, sem olhar ao que as re- Os outros podem ir passar o fim-de-semana
clusas precisam. Podem dar um brinquedo a casa com o pai ou os avós. “As estrangeiras
caro, quando, por exemplo, a uma mãe afri- não têm a quem entregar os miúdos, que fi-
cana, fazia mais falta um simples pano para cam os três primeiros anos de vida confinados
pôr o miúdo atado às costas, como é da sua àquele espaço e àquela rotina. Não vão à rua.”
tradição”, exemplifica. Durante o dia estão no jardim-de-infância,
Os livros são preciosos para a aproximação que é no mesmo edifício, e, ao fim do dia,
entre mães e filhos. “É algo que se pode pegar atravessam o pátio, jantam no refeitório e,
e partilhar, enquanto se tem o miúdo ao colo. às 19h, entram nas celas com as mães. No
Um meio acessível de as levar a uma vincula- Verão, ainda o sol não se pôs.
ção mais forte. Muitas não sabiam mesmo o No final de No Colo da Minha Mãe, foram
que fazer com os miúdos. Estavam convenci- deixados às mães vários livros, “para que elas
das de que eram hiperactivos, simplesmente próprias fossem continuando o caminho que
porque corriam no corredor em frente às ce- iniciámos em conjunto”, conta a educadora.
las. Único espaço livre para se movimentarem “Solicitei-os a instituições e a particulares e
à vontade.” houve uma adesão muito grande.” Comove-
Método de sedução para a leitura: “Tentei se ao reler os inquéritos a que responderam
saber se tinham escutado histórias, se se quando terminou o projecto. “Ganhei mais
lembravam de contos das avós ou das mães. do que dei”, diz a educadora.
Cedo percebi que muitas nunca tinham ou- Nunca teve medo. “Havia uma reclusa que
vido uma história, nunca se tinham sentado estava sempre muito tensa. Um dia propus
no colo da mãe ou da avó. Comecei eu a uma actividade para todas fazerem, mas ela
contar e a dar-lhes esse prazer de escutar, não quis participar. ‘Não lhe apetece?’, per-
para mais tarde o reproduzirem juntos dos guntei. Resposta: ‘O que me apetece hoje
filhos.” é matar alguém’.” No final da sessão, Pau-
Por isso os livros que levou para o projecto la Ramos pediu para ficar sozinha com ela.
estavam divididos em três momentos, diga- “Começou a falar comigo, a chorar e a desa-
mos assim: primeiro, dirigidos às mães, como bafar. Desfez-se ali à minha frente e acabou
A Árvore Generosa, de Shel Silverstein (Bruaá); por fazer o trabalho. Queria alguém só para
depois, um conjunto de livros de lengalengas ela.” Precisava de colo. a
e trava-línguas, de vários autores portugue-
ses; por último, livros para as crianças verem, rpimenta@publico.pt
3. Um dia, um recluso
disse a Miguel Horta:
“Quando sair daqui,
vou ser bibliotecário.”
E foi mesmo