I. O documento relata o martírio de Policarpo, bispo de Esmirna, que foi queimado vivo por sua fé cristã. II. Policarpo orou com fervor antes de sua morte e enfrentou corajosamente as ameaças do procônsul de ser jogado às feras ou queimado. III. Ele foi amarrado a uma estaca e queimado, mas o fogo não o consumiu, saindo apenas uma pomba e um jorro de sangue de sua ferida, o que converteu muitos pagãos ao cristianismo.
1. O martírio de Policarpo, bispo de Esmirna (155)
Do Martyrium Polycarpi [Carta da Igreja de Esmirna; o primeiro martirológio]
A Igreja de Deus estabelecida em Esmirna à Igreja de Deus estabelecida em Filomélio e às Igrejas
de todos os lugares que são parte da Igreja santa católica: a misericórdia, a paz e a caridade de
Deus Pai e de Nosso Senhor Jesus Cristo vos sejam concedidas abundantemente.
Escrevemos, irmãos, a respeito dos que testemunharam, em particular o bem-aventurado Policarpo
que, com seu martírio, selou e pôs fim à perseguição. Os acontecimentos que provocaram seu
martírio foram usados pelo Senhor para nos dar uma imagem do martírio segundo o Evangelho.
Policarpo aceitou ver-se traído, como o Senhor, para aprendermos a imitá-lo por nossa vez e a não
olharmos para o próprio interesse, mas para o do próximo, pois o amor autêntico e eficiente
consiste, para cada um, em querer não apenas a própria salvação, mas a de todos os irmãos.
I. Felizes e corajosos foram todos os heróis da fé, conforme a dispensação divina. Atribuímos a Deus,
cujo poder é soberano e universal, os nossos progressos na piedade. Não há quem não se maravilhe
ante a intrepidez, a paciência e o divino amor destes confessores. Foram dilacerados pelos flagelos
até o extremo de ver-se-lhes a estrutura de suas carnes, veias e artérias profundas. Suportaram
firmes, provocando a comiseração dos espectadores. Tinham alcançado tanta elevação espiritual que
não soltavam lamentos nem gemiam. Presenciando seu martírio, compreendíamos que, nesta hora,
as testemunhas de Cristo estavam fora do próprio corpo ou, antes, que o Senhor as assistia com sua
presença.
II. Possuidos pela graça de Cristo, desprezavam os tormentos; no transcurso de uma hora,
ganhavam a eterna vida, O mesmo fogo os refrescava, este fogo dos carrascos; interiormente
pensavam num outro fogo, no fogo inextinguível. A sua alma contemplava os bens reservados aos
que sofrem, que o olho não viu, nem o ouvido ouviu, nem o coração pressentiu. O Senhor mostrava-
lhes estes bens, a eles que, deixando de ser homens, se tinham tornado anjos. Finalmente,
condenados às feras, os confessores tiveram que enfrentar tormentos espantosos. Foram estirados
sobre cavaletes, submetidos a todo gênero de torturas, para que a duração do suplício os
constrangesse a negar sua fé.
III. Não faltaram maquinações dos demônios, mas graças a Deus, nenhum deles foi vencido.
Germânico, corajoso sem par, fortalecia a fraqueza dos outros com o exemplo de sua intrepidez; ele
foi maravilhoso no combate contra as feras. O procônsul o conjurava a que se apiedasse de sua
juventude, mas Germânico, desejoso de sair quanto antes deste mundo injusto e criminoso, atraía
sobré si a fera, batendo nela. O imenso populacho, exacerbado com a coragem e piedade dos
cristãos, prorrompeu em gritos: “Morte aos ateus! Prenda-se a Policarpo!”
IV. Somente um fraquejou: Quinto, um frígio acabado de chegar de sua terra. A visão das feras
infundiu-lhe o pavor. Quinto era, no entanto, quem havia estimulado os irmãos para que se
denunciassem a si próprios espontaneamente e lhes tinha dado o exemplo. O procônsul pôde tanto
com suas insistências que Quinto terminou abjurando e sacrificando. Eis porque, irmãos, não
aprovamos aqueles que se entregam espontaneamente; aliás, este não é o ensino dos Evangelhos.
V. O mais admirável dentre todos os mártires foi Policarpo. Ao ser notificado dos horrores praticados,
não se perturbou, mas insistiu em permanecer na cidade. Acabou, porém, acatando a opinião da
maioria e se afastou para uma pequena fazenda próxima à cidade, aí morando com alguns
companheiros, orando dia e noite por todos os homens e todas as igrejas do mundo, conforme era
seu hábito. Enquanto orava, três dias antes de sua prisão, caiu num arrebatamento espiritual e viu
seu travesseiro ardendo. Voltando-se para seus companheiros, lhes anunciou: “Hei de ser queimado
vivo”.
2. VI. Como os que o andavam procurando não deixassem de persegui-lo, mudou de esconderijo. Nem
bem se tinha retirado, sobrevieram guardas que, não o achando, levaram presos dois jovens
escravos. Um destes, submetido à tortura, falou. Policarpo não mais podia furtar-se, já que os
próprios familiares o traíam, O chefe da polícia,18 que responde ao nome predestinado de Herodes,
almejava levar Policarpo preso ao estádio, onde este terminaria sua peregrinação compartilhando a
sorte de Cristo, enquanto seus delatores compartilhariam o castigo de Judas.
VII. Assim, levando consigo o jovem escravo, numa sexta-feira, na hora da ceia, guardas a pé e
outros montados empreenderam a marcha, armados dos pés à cabeça como se fossem contra
ladrões. Entrada já a noite, chegaram à casa onde se escondia Policarpo. Este, deitado num quarto
do andar superior, teria podido retirar-se para outra fazenda, mas não o quis, declarando apenas:
“Seja feita a vontade de Deus!” Tendo ouvido a voz dos guardas, desceu e entrou em conversação
com eles. Sua avançada idade e calma causaram admiração. Não compreendiam que se fizesse tanto
alarde para prender um homem tão velho. Pplicarpo providenciou-lhes comida e bebida, tanto
quanto desejavam, a despeito da hora avançada. Não solicitou outra recompensa, senão uma hora
para livremente orar, que lhe foi concedida. Começou a orar de pé, como um homem cheio da graça
divina. Durante duas horas, incontivelmente, perseverou orando em voz alta. Todos olhavam para
ele estupefatos. Muitos lamentavam-se por aprisionarem ancião tão divino.
VIII, Terminada sua oração, na qual mencionara a todos, humildes e grandes, ricos e pobres,
familiares e amigos, toda a Igreja universal, a hora de partir chegou. Sentaram-no num asno e
caminharam para a cidade de Esmirna. Era o dia do grande sábado. Encontraram-se com Herodes, o
eirenarque, e seu pai Nicetas, que o fizeram subir à sua carruagem. Sentados a seu lado,
procuravam convence-lo, dizendo: “Ora, que mal há em dizer ‘Senhor César’ e em sacrificar aos
deuses, como de costume, se assim salvas a vida?” A princípio, Policarpo decidiu não contestar. Mas,
como insistissem, declarou-lhes: “Não hei de fazer como me aconselhais”. Seus dois companheiros,
desiludidos, insultaram-no e empurraram- no tão brutalmente para fora da carruagem que caiu e
machucou as pernas. Policarpo não se inquietou. Com passo alegre e veloz, continuou caminhando.
O grupo dirigiu-se para o estádio, onde o tumulto e a vociferação eram tantos que ninguém
conseguia fazer-se ouvir.
IX. Ao entrar no estádio, uma voz celestial retumbou: “Bom ânimo, Policarpo, mostra-te viril”.
Ninguém percebeu quem tinha falado, mas irmãos nossos ouviram a voz. Enquanto avançava
Policarpo, o tumulto atingia o paroxismo: “Está preso Policarpo”. Finalmente, em presença do
procônsul, este lhe perguntou se era Policarpo. E, ouvida a afirmativa, tentou persuadi-lo, com
perguntas e exortações, a deixar sua fé, dizendo: “Considera tua idade” e semelhantes coisas, como
é de praxe nos lábios dos magistrados. Como acrescentasse: “Jura pelo gênio de Cesar, retrata-
te;grita;abaixo os ateus!”, Policarpo, muito gravemente, olhando para os pagãos que enchiam as
escadarias do estádio e acenando para eles , suspirou e exclamou: “Abaixo os ateus!” O proconsul
insistiu:”Jura e te soltarei. Insulta a Cristo.” Policarpo respondeu: Oitenta e seis anos há que sirvo a
Cristo. Cristo nunca me fez mal. Como blasfemaria contra o meu Rei e Salvador?”
X. O proconsul instou: “Jura pela fortuna de César”. O bispo redarguiu: “Andas muito enganado se
espera que jure pelo gênio de César. Já que decides ignorar quem sou, escuta minha declaração: Eu
sou cristão. Se desejas saber o ensino cristão, dá-me um dia e escuta-me”. Disse então o procônsul:
“Persuade ao povo”. Policarpo retrucou. “Na tua presença parecer-me-ia justo explicar-me,
porquanto aprendemos a prestar aos magistrados e autoridade establecidas por Deus a consideração
que lhe é devida, na medida em que não contrariem nossa fé”.
XI. O procônsul disse: “Tenho feras a meu dispor. Se não te retratas entregar-te-ei a elas”. Ao que
respondeu Policarpo: “Ordena. Quando nós cristãos, morremos, não passamos do melhor para o
pior; é nobre passar do mal para a justiça”. Disse ainda o proncônsul: “Se não te retratas, mandarei
que te queimem na fogueira, já que desprezas as feras”. Disse então Poicarpo: “Ameaças-me com o
3. fogo que arde uma hora e se apaga. Conheces tu o fogo da justiça vindoura ? Sabes tu o castigo que
devorará os ímpios? Não demores ! Sentencia teu arbítrio.”
XII. Policarpo deu estas e outras respostas com alegria e firmeza e seu rosto irradiou a divina graça.
O interrogatório pertubou não a ele, mas ao proncôsul. Este acabou mandando seu arauto proclamar
por três vezes, no meio do estádio, que Policarpo se confessa cristão. Então a turba pagã e judia não
mais conteve a sua ira e vociferou: “Eis o doutor da Asia, o pai dos cristãos, o destruidor dos deuses,
que, com seu ensino, afasta os homens dos sacrifícios e da adoração”. Enquanto tumultuavam,
alguém solicitou ao asíaco Filipe que soltasse um leão contra o ancião. Filipe recusou, visto já ter
terminado com os jogos. “Neste caso, ao fogo com ele!” Cumprir-se-ia a visão extática dos dias
precedentes, quando o ancião viu seu travesseiro ardendo e anunciou: “Hei de ser queimado vivo”.
XIII. O desenlace precipitou-se. O povo amontoou lenha e ramos apanhados nas lojas e nos banhos
públicos, no que se destacaram, como de costume, os judeus. Nem bem aprontada a fogueira,
Policarpo despiu suas vestimentas, tirou sua cinta e tentou descalçar-se. Ordinariamente não o fazia,
porquanto os fiéis rivalizavam entre si para o ajudar e tocar seu corpo. Tanta era sua santidade que,
antes do seu martírio, já era objeto de veneração. Arranjou-se, logo, algo para o prender à fogueira.
Os carrascos pretendiam pregar seu membros, mas ele lhes disse: “Deixai-me livre! Aquele que me
deu forças para não temer o fogo, forças me dará para permanecer nele sem a ajuda de vossos
pregos”.
XIV. Não o pregaram; ataram-no simplesmente. Atado aí, mãos para trás, Policarpo parecia uma
ovelha escolhida na grande grei para o sacrifício. Levantando os olhos, exclamou: “Senhor Deus
onipotente, Pai de Jesus Cristo, teu Filho predileto e abençoado, por cujo ministério te conhecemos;
Deus dos anjos e dos poderes; Deus da criação universal e de toda a família dos justos que vivem
em tua presença; eu te louvo porque me julgaste digno deste dia e desta hora; digno de ser contado
entre teus mártires e de compartilhar do cálice de teu Cristo, para ressuscitar à vida eterna da alma
e do corpo na incorruptibilidade do Espírito Santo. Possa eu, hoje, ser recebido na tua presença
como uma oblação preciosa e aceitável, preparada e formada por ti. Tu és fiel às tuas
promessas,Deus fiel e verdadeiro. Por esta graça e por todas as coisas, eu te louvo, bendigo e
glorifico, em nome de Jesus Cristo, eterno e sumo sacerdote, teu Filho amado. Por Ele, que está
contigo, e o Espírito Santo, glória te seja dada agora e nos séculos vindouros. Amém!”
XV. Depois de Policarpo proferir este amém, os carrascos acenderam a fogueira e a chama alçou-se
alta e brilhante. Neste momento, presenciamos um sinal e nossa vida foi poupada , quem sabe para
relatar este milagre... O fogo tomou a forma de uma abóbada ou de uma vela inclinada pelo vento e
rodeou o corpo do confessor. Policarpo estava de pé, não como carne que queima, mas como pão
que se doura ou como ouro ou prata que se purificam. Sentíamos um perfume delicioso, como de
incenso ou de arômatas preciosos.
XVI. Finalmente, os criminosos sem lei, vendo que seu corpo não podia ser destruído pelo fogo,
mandaram um verdugo para o matar com a espada. Da ferida saiu uma pomba e brotou uma
torrente de sangue tal que extinguiu totalmente o fogo. A enorme multidão maravilhava-se da
diferença entre infiéis e eleitos