1. P O R T A A BE R T A
Motrivivência Ano XX, Nº 31, P. 293-300 Dez./2008
Para que Filosofia da Educação Física
Escolar? Para além de uma paráfrase das
Teses de Hans-Georg Flickinger
Márcia Morschbacher1
Leandra Costa da Costa1
Miriam Preissler de Oliveira1
Wenceslau Leães Filho2
Resumo Abstract
Neste artigo construímos, a partir This present work, from the Flickinger
do texto de Flickinger (2004), (2004), we reflect on the possibility
uma tentativa de refletir acerca da of building a Philosophy of Physical
relevância da Filosofia da Educação Education Classes in which subjects
à prática pedagógica da Educação adopt a stance reflected and reasoned
Física Escolar. A partir da necessidade actions critically. Thus, we present
de que a Filosofia da Educação se eight thesis with the aim of stimulat-
faça presente na condição de subsídio ing discussion related to this subject.
aos sujeitos a uma postura refletida e We believe that the pedagogical prac-
a ações criticamente fundamentadas, tice of Physical Education Classes is
apresentamos oito teses com o intuito able to transcend constraints that limit
de suscitar o debate relacionado the act of teaching a curriculum com-
a esta temática. Consideramos, ponent in school and build a Philoso-
portanto, que a prática pedagógica phy of Physical Education Classes.
da Educação Física Escolar, atenta à
sua especificidade, permeada pela Keywords: Philosophy. Education.
Filosofia da Educação, seja capaz Physical Education Classes.
de transcender condicionantes que
limitam o agir pedagógico deste
1 Acadêmicas do curso de Especialização em Educação Física Escolar: CEFD/ UFSM
2 Orientador do trabalho e Professor Assistente do DDI/CEFD/UFSM
2. 294
componente curricular na escola, Filosofia da Educação Física Escolar
bem como construir uma Filosofia da que contribua para incentivar o
Educação Física Escolar. debate em torno da identificação
dos paradigmas autênticos da prá-
Palavras-Chave: Filosofia; Educação; tica pedagógica da Educação Física
Educação Física Escolar.
Escolar.
Assim, neste trabalho re-
fletimos acerca desta temática elen-
Introdução cando algumas teses que considera-
mos eminentes no cenário atual da
Através da leitura do texto Educação Física Escolar, suscitadas
de Hans-Georg Flickinger “Para que a partir dos debates oriundos do
filosofia da educação? Onze teses”, componente curricular “Filosofia
publicado no ano de 2004 no livro da Educação e da Educação Física
“Sobre Filosofia e Educação: subje- Escolar” do curso de Especialização
tividade-intersubjetividade na fun- em Educação Física Escolar da Uni-
damentação da práxis pedagógica”3, versidade Federal de Santa Maria.
podemos visualizar importantes
contribuições bem como reflexões Para que filosofia da educa-
referentes à filosofia e às teorias da
educação, ao agir pedagógico e à ção?
sua fundamentação teórica. Neste
artigo desenvolvemos análises Flickinger (2004) apresen-
que, fundamentadas em Flickinger ta em seu texto instigantes perspecti-
(2004), ressaltam a necessidade da vas acerca da relevância da Filosofia
tomada de consciência com relação da Educação ao agir pedagógico
a uma postura refletida no agir peda- docente. A partir de algumas teses,
gógico para esclarecer problemas, o autor reflete sobre a função da
impasses e equívocos como tam- reflexão filosófica no âmbito educa-
bém, qualificar a ação docente. cional, compreendida na condição
Diante deste contexto, de subsídio à postura refletida dos
urge a necessidade dos educadores sujeitos da educação.
repensarem sobre a importância Esta postura, concebida
da Filosofia da Educação e a pos- como elemento constitutivo do agir
sibilidade da construção de uma pedagógico, possibilitaria, no enten-
3 DALBOSCO, Claudio; TROMBETTA Gerson Luís; LONGHI, Solange Maria. Sobre filosofia e
educação: subjetividade-intersubjetividade na fundamentação da práxis pedagógica. Passo Fundo:
UPF Editora, 2004.
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dimento do autor, a compreensão teses. Estas servem de referência às
dos elementos que permeiam a prá- análises engendradas com a fina-
tica pedagógica para além de uma lidade de legitimar a necessidade
racionalidade oculta pretensamente e a importância da construção de
constituída, que se manifesta ante a uma Filosofia da Educação Física
insuficiente e/ou ausente reflexão Escolar, principalmente no que se
referente à educação. refere ao processo formativo dos
Deste modo, a partir de professores que atuam/atuarão com
onze teses, Flickinger (2004) amplia o componente curricular Educação
o escopo da Filosofia da Educação Física na escola.
situando-a como elemento imprescin- Hodiernamente, amal-
dível à criticidade do agir pedagógico. gamou-se certa concepção prove-
Neste viés, o autor cogita sobre a niente de um senso comum pre-
possibilidade de que a Filosofia da tensamente configurado em torno
Educação pudesse tornar-se elemento de qualquer ação relacionada à
inerente à formação docente e ao pró- Filosofia (seja ela referida à Edu-
prio agir pedagógico, o que tornaria cação, à Educação Física, ou outra
supérflua a sua inclusão ao currículo instância): um teorizar desgastante
formativo. Portanto, neste entendi- e sem significação aos sujeitos, pau-
tado principalmente, pelo maçante
mento, a requerida postura refletida
e mecânico estudo do pensamento
estaria presente em todo o processo
filosófico de diferentes sujeitos em
formativo docente e não restrito a
distintos períodos históricos.
uma exígua carga horária. Ainda,
Compreendemos que a
“filosofar-se-ia” cotidianamente e não
Filosofia pode se constituir enquanto
somente na aula de Filosofia (Geral,
dimensão à compreensão da estrutu-
da Educação ou outra nuance possí- ração das ações humanas em cada
vel) como pré-requisito à aprovação época e mesmo, contemporaneamen-
nesta (s) cadeira (s) universitária (s). te, considerando-se que os sujeitos
não foram constituídos (e constituem-
As teses de Flickinger acerca se) de modo dissociado em relação
da filosofia da educação: te- aos demais. Todavia, a permanência
cendo reflexões nesta perspectiva limita, consideravel-
mente, a consolidação de incumbên-
cias outras que a supracitada – porque
Preliminarmente, tecemos outros componentes curriculares o
alguns comentários acerca das fariam de modo efetivo.
razões pelas quais Hans-Georg Fli- Esclarecemos que não
ckinger desenvolveu as suas onze se trata de compreender e inter-
4. 296
pretar em um processo insosso e sentar algumas teses elaboradas a
descomprometido, mas que, de partir do contexto atual da Educação
outro modo, desencadeiem-se ini- Física Escolar, as quais emergem
ciativas críticas e emancipadas aos do conhecimento produzido no
sujeitos, possibilitando superar as componente curricular Filosofia
amarras pretensamente impostas. da Educação e da Educação Física
Postulamos que a Filosofia coloca- Escolar do Curso de Especialização
se enquanto possibilidade de auto- em Educação Física Escolar da Uni-
reflexão/reflexão; o que, ademais, versidade Federal de Santa Maria.
propicia importantes conseqüências
aos sujeitos em seu ser, estar e agir, 1a. TESE
a partir do desenvolvimento das
condições demandadas a níveis de Uma filosofia da Educação
consciência crítico-reflexiva em re- Física Escolar contribuiria para uma
lação a si mesmos e ao mundo. postura crítica do contexto sócio-his-
É notória a carga de in- tórico desta, levando a conhecer as
fluxos aos quais os sujeitos estão influências da cultura e da sociedade
expostos e que, tacitamente, lhes que incidem sobre ela. Haveria por
tolhe a sua capacidade autônoma da parte dos professores uma reflexão
criticidade. A Filosofia, dessa forma constante do fazer pedagógico, onde
se tornou conformada em função repensando sua prática, conseqüen-
das expectativas sociais impostas a temente, levaria a considerar os di-
esta, seguramente, em sentido opos- ferentes contextos de sua inserção e
to ao seu potencial emancipatório. o “se movimentar” estaria carregado
Contudo, assim como Flickinger de significados para os sujeitos en-
(2004), consideramos necessário volvidos nessa prática.
que a Filosofia transcenda estes con-
dicionantes e (re) tome para si a sua 2a. TESE
condição à adoção, por parte dos
sujeitos, de uma postura refletida,
A postura crítica levaria
consciente das ações humanas e dos
aos professores repensar suas ações
aspectos que as perpassam.
pedagógicas e verificar que a partir
das constantes mudanças do mun-
Para que filosofia da educa- do. Há a necessidade de uma forma-
ção física escolar? ção contínua, para poder entender
o contexto sócio-histórico-cultural,
Tentamos aqui, a partir problematizando o real, o local
do texto de Flickinger (2004), apre- como elemento do processo de en-
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sino-aprendizagem e assim, qualifi- e na técnica esportiva pressupõem o
car sua prática docente. Formação educando como uma “tábula rasa”,
esta, que traga um conhecimento que aprende a partir da repetição de
não fragmentado, não específico, movimentos sem sentido para ele,
mas um conhecimento de “partes” algo externo, imposto. Partindo de
que levam ao entendimento de um uma reflexão filosófica, os professo-
todo. Perceber-se-ia o ser humano res de Educação Física Escolar esta-
enquanto sujeito em constante riam em constantes adaptações de
“trans-formação” e ao mesmo tem- suas práticas pedagógicas de acordo
po que ensina, aprende. com o contexto vivido, reavaliando
e qualificando-as, para que dessa
3ª. TESE forma as ações tenham sentido para
os sujeitos em formação, levando
Outro aspecto passível é a apontar a importância que a
a possibilidade de que tal postura educação física tem ao estar inse-
refletida possibilite que os sujeitos rida no contexto escolar. Há aqui
pensem acerca do real papel da a intencionalidade e a concepção
Educação Física Escolar e da pró- de mundo e sujeito do professor e,
pria instituição escolar ante a so- estas, devem estar coerentes com
ciedade que se desenvolve a vastos seu fazer pedagógico. Nos velhos
passos. Partindo do pressuposto de e repetidos modelos há uma limi-
que a prática pedagógica é perme- tação do conhecimento, pois os
ada pela consciência política e que movimentos já estão pré-definidos
abster-se de tal debate denota certa e as aulas são fechadas.
postura, considera-se relevante o
posicionamento e consequente 5a. TESE
agir pedagógico em consonância
com determinadas concepções A padronização dos movi-
(ou “temas fundamentais” (KUNZ, mentos e das técnicas comumente
1998; 2004)) cujas perspectivas utilizadas pelos professores em
coadunam com um projeto social suas aulas exclui àqueles que não
outro que este posto. conseguem executá-las de forma
“correta”. A reflexão levaria a estes
4a. TESE profissionais perceber o sentido
que a educação física tem ao estar
A influência dos modelos inserida no contexto escolar. Leva-
tradicionais de ensino, baseados ria também a considerar a subjeti-
nos métodos higienistas, militaristas vidade dos sujeitos e que estes “tais
6. 298
padrões” não tem sentido neste con- da, ampliaria os conteúdos desen-
texto. A escola não tem a intenção volvidos, aprofundando discussões
de formar atletas, por esta razão o e aprendizagens, propiciando a
movimento deve ser ativo, criativo criticidade nos sujeitos sobre suas
e pensante e não algo externo ao práticas corporais.
corpo. O movimento adapta-se aos
sujeitos e não ao contrário. 7a. TESE
As possibilidades do se-
movimentar humano compreen- A dualidade corpo/mente
didas como elementos da cultura tão arraigada às concepções e ações
de movimento ampliam a prática dos professores, leva a uma frag-
pedagógica da Educação Física mentação do ser humano. Existem
Escolar para incumbências outras disciplinas escolares para a mente
do que a mera e pretensa instru- e a Educação Física Escolar para o
corpo e esta forma posta é percebi-
mentalização motora. Conceber as
da claramente no contexto escolar,
diversas manifestações do se-movi-
pois “o lugar do corpo é no pátio
mentar humano sob a perspectiva
da escola”. A reflexão rebateria
da cultura de movimento permite
este sentido da dualidade, pois
tanto compreendê-las na condição
não existe corpo sem mente, ou ao
de construções sociais e históricas
contrário. Existem mecanismos pen-
quanto ressignificá-las em conso- sados que levam ao se-movimentar,
nância com os sujeitos que a partir toda a ação é consciente, pensada.
delas se expressam. A “hiperatividade” dos alunos nas
tais “disciplinas mentais” se dá a
6a. TESE partir de um “silenciamento” de
seus corpos.
A Educação Física Escolar
compreendida como componente 8a. TESE
curricular, cuja incumbência peda-
gógica é a tematização da cultura de A sociedade adapta-se ao
movimento, tem a função de “situar sistema econômico e de regulação
o corpo no contexto sócio-históri- ao qual estamos atrelados e este
co”. Isso remete a uma quebra do padroniza conceitos e ações dos
paradigma da “esportivização” da indivíduos. A reflexão possibilitaria
educação física, que está fortemente um questionamento dessa idéia de
atrelado aos currículos escolares. O corpo enquanto mercadoria ou bem
professor, com uma postura refleti- de consumo.
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Conclusão Alijada de tal exercício crí-
tico-reflexivo, a prática pedagógica
Conforme explicitamos da Educação Física Escolar e, preci-
anteriormente, consideramos que a puamente, os seus autores docentes
construção de uma Filosofia da Edu- tendem a ficar presos a uma racio-
cação Física Escolar possa permear a nalidade acrítica e suplantadora que
prática pedagógica desta, implicando não lhes é própria (racionalidade
em transcender a concepção usual meramente instrumental).
constituída em torno do que vem a ser Outro aspecto a ser men-
Filosofia e suas incumbências, situan- cionado refere-se à necessidade
do os sujeitos diante da necessidade de que os sujeitos desprendam-se
de uma postura refletida em relação às progressivamente de algumas de
práticas educativas deste componente suas convicções e adotem uma
curricular e ao seu “sendo” enquanto postura de constante auto-reflexão,
sujeitos multidimensionais4. permitindo-lhes afastarem-se de
A reflexão acerca dos as- si mesmos para reavaliar as suas
pectos microestruturais5 (cotidiano de ações, arriscando os seus pontos de
uma aula de Educação Física Escolar) vista arraigados, dialogando e ques-
e também macroestruturais6 (condi-
tionando perspectivas de outrem e
cionantes políticos e econômicos) se
as suas. O que acarreta significativas
relacionam intimamente às diversas
mudanças e evoluções à consti-
teorias educacionais e propostas pe-
tuição da Educação Física Escolar
dagógicas que coexistem no espaço
escolar, não somente neste compo- enquanto componente curricular e
nente curricular, em específico. No da prática pedagógica docente.
âmbito das práticas pedagógicas e de
suas intenções formativo-educacio-
nais, tal postura possibilita relevantes Referências
influxos às práticas educativas no
sentido de transformá-las em conso- BRACHT, Valter et al. Pesquisa em
nância com os princípios oriundos ação: educação física na escola.
desta reflexão docente. 2. ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005.
4 Toma-se esta expressão de Edgar Morin (2000) que, a exemplo de outros autores, criticam a
insuficiência do conceito de unidimensionalidade do ser humano, ou a supremacia de uma
dimensão em detrimento de outra (s). Para tanto, os sujeitos são seres biológicos, culturais,
sociais, históricos (dentre outras dimensões em que, insistentemente, ousam dividi-los) de modo
indissociado e complexo.
5 Termo e conceito retirados de Bracht et al. (2005).
6 Termo e conceito retirados de Bracht et al. (2005).
8. 300
FLICKINGER, Hans-Georg. Para FUNÇÕES, TENDÊNCIAS
que filosofia da educação? Onze E PROPOSTAS PARA A
teses. In: DALBOSCO, Cláudio EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR,
Almir; TROMBETTA, Gerson 1998, Santa Maria. Anais... Santa
Luís; LONGHI, Solange Maria. Maria: CEFD-UFSM, 1998. p.
Sobre filosofia e educação: 114-119.
subjetividade-intersubjetividade MORIN, Edgar. Os sete saberes
na fundamentação da práxis necessários à educação do
pedagógica. Passo Fundo: UPF futuro. Tradução de Catarina
Editora, 2004. Eleonora F. da Silva e Jeanne
KUNZ, Elenor. Educação Física: Sawaya; revisão de Edgard de
ensino & mudanças. 3. ed. Ijuí: Assis Carvalho. 2. Ed. São Paulo:
Ed. Unijuí, 2004. Cortez; Brasília, DF: UNESCO,
KUNZ, Elenor. Educação física 2000.
escolar: seu desenvolvimento,
problemas e propostas. In:
SEMINÁRIO BRASILEIRO EM Recebido: 05/fevereiro/2010.
PEDAGOGIA DO ESPORTE: Aprovado: 09/abril/2010.