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José de Alencar
AS MINAS DE PRATA (ROMANCE)
PRIMEIRA PARTE
Em que se faz conhecimento com dois mancebos de boas prendas.
Raiava o ano de 1609.
A primeira manhã de janeiro, esfolhando a luz serena pelos horizontes puros e diáfanos,
dourava o cabeço dos montes que cingem a linda Bahia do Salvador, e desenhava sobre
o matiz de opala e púrpura o soberbo panorama da antiga capital do Brasil.
A cidade nascente apenas, mas louçã e gentil, elevando aos ares as grimpas de suas
torres, olhando o mar que se alisava a seus pés como uma alcatifa de veludo, era então,
pelo direito da beleza e pela razão da progenitura, a rainha do império selvagem que
dormia ainda no seio das virgens florestas.
A natureza preparara no grupo de outeiros apinhados um trono de relva sobre o qual a
linda cidade dominava o oceano, sorrindo ao nauta que da extrema do horizonte a
saudava com um olhar amigo, para dar-lhe o bom-dia se chegava, e enviar-lhe o último
adeus quando se partia.
Despertando com os primeiros raios da alvorada, a população baiana recobrava a
atividade depois do repouso. As casas se abriam para receber o ar e a luz da manhã; a
pouco e pouco os mil rumores do dia, que são a voz das cidades, iam enchendo o espaço
antes ocupado pelo silêncio e pelas trevas.
Os mesteirais e vilãos já percorriam as ruas, não com a calma e regularidade de homens
que vão ao trabalho ou ao cumprimento da obrigação diária, mas com a agitação doce e a
jovial sofreguidão de quem busca o prazer e corre após uma alegre esperança.
Vestidos com maior apuro do que punham nos trajes domingueiros, homens e mulheres
saudavam-se entre si com tal efusão, desejando as boas saídas e estreias de ano;
apertavam as mãos com tamanha cordialidade, que percebia-se na disposição geral dos
ânimos a doce influência de um motivo qualquer de regozijo público.
Com efeito não era a festa do Ano-Bom a causa única da jovial expansão; outra havia.
Aquele dia estava marcado para os festejos com que a Bahia desejava solenizar a
chegada do novo Governador-Geral do Estado do Brasil, D. Diogo de Menezes e
Siqueira, que depois de haver permanecido um ano na Capitania de Pernambuco para
dispor sobre coisas da administração, aportara finalmente à capital no dia 17 de
dezembro de 1608.
Não havia exemplo de semelhantes demonstrações em uma cidade onde os
governadores e capitães-generais, revestidos de poderes absolutos, eram recebidos com
desconfiança, e muitas vezes despedidos com alegria. Mas D. Diogo de Menezes, depois
Conde da Ericeira, e um dos abalizados varões que governaram o Estado do Brasil,
merecia pelo seu nobre caráter e espírito superior uma demonstração especial da parte
dos baianos.
Contudo, essa única circunstância não bastara para excitar na classe rica o desejo de
receber o novo governador com festas públicas, se o interesse, primeira lei das ações
humanas, não inspirasse o mesmo pensamento como um hábil expediente de política
colonial.
Durante o tempo que se demorara em Pernambuco, D. Diogo de Menezes tinha revelado
sua força de vontade, e mostrara o firme propósito de repelir a intervenção que o Bispo D.
Constantino Barradas e a Companhia de Jesus exerciam anteriormente sobre o governo
temporal. A luta se travara com uma questão de etiqueta e precedência, a que dera lugar
a procissão do Corpo de Deus celebrada em Olinda.
Justamente nessa época os senhores de engenho, que formavam a classe nobre e rica
da Bahia, sustentavam contra os jesuítas a grande questão da servidão dos índios, e
compreendiam a vantagem de ter de seu lado um homem como D. Diogo de Menezes,
cujo voto autorizado devia pesar nas decisões do Conselho da Índia e no ânimo de El-Rei
D. Filipe III.
Por isso, chegado que foi o governador, se concertaram para fazer-lhe uma recepção
brilhante. Em quatorze dias estavam concluídos todos os preparativos e aprestos
necessários para solenizar com a entrada do ano os benefícios do novo governo.
O programa do festejo primava pela variedade e boa escolha. Depois da missa cantada,
seguida de Te Deum, havia alardo da gente de guerra e companhias de ordenanças em
frente aos paços; à tarde devia correr-se no Terreiro do Colégio uma luzida cavalhada
com a qual se dariam jogos, torneios e alcanzias; à noite danças pelas ruas e arcos de
luminárias concertados com palmeiras ou festões de flores na Praça do Governador.
Não era preciso tanto para excitar a imaginação viva da mocidade baiana e fazer girar
como corrupios todas as comadres devotas e mexeriqueiras, de que a metrópole
brasileira já naquele tempo estava abundantemente provida.
A Bahia não passava então de uma pequena cidade habitada por cerca de mil e
quinhentas almas; mas seus vizinhos eram abastados e gostavam do luxo; havia muitos
colonos ricos de fazendas de raiz, peças de prata e ouro, jaezes de cavalo e alfaias de
casa; alguns tinham o melhor de cinco mil cruzados de renda, e diz Gabriel Soares,
“tratavam suas pessoas mui honradamente com muitos cavalos, criados e escravos”.
Esses cabedais que atualmente parecem mesquinhos, eram naquele tempo avultados; a
facilidade com que se adquiriam e o gênio natural da população inclinada ao fausto e
prodigalidade alimentavam na Bahia e Pernambuco um luxo superior ao de Lisboa, e
entretinham o gosto pelas festas e divertimentos.
Não há pois admirar se a Capital do Brasil despertou quinta-feira, 1.º de janeiro de 1609,
possuída do alvoroto agradável que produz uma esperança prestes a realizar-se, e
precede a satisfação de um desejo afagado de nossa alma.
Às seis horas o sino pequeno da Sé, tangido rapidamente, soltou os alegres repiques, que
pelo som argentino parecem as vozes travessas dos anjos do Senhor, chamando os fiéis;
os ecos vibrando no ar foram apressar as palpitações de muito coração que os esperava
com impaciência.
Quase ao mesmo tempo o carrilhão do Colégio dos Jesuítas retroando pelo espaço
acompanhava o canto matutino da torre episcopal; suas notas graves, sombrias e
plangentes, unindo-se aos repiques das outras igrejas, formavam o concerto majestoso
com que a religião da luz e da verdade saúda o nascimento do dia.
Apenas a primeira badalada do sino repercutiu nos ares e a larga portada da Sé abriu de
par em par, o grupo de velhas beatas, que tinham amanhecido no adro da igreja, envoltas
em longas mantilhas de rebuço, esgueirou-se pela teia das naves e lá foi tomar lugar no
cruzeiro.
Em pouco as lájeas do vasto pavimento se iam cobrindo daquelas trouxas negras ou
pardas de seda e burel, que nem longes tinham de vulto humano; da massa enorme
elevou-se um sussurro, a princípio imperceptível, e foi crescendo, como se um enxame de
vespas esvoaçasse pelo âmbito da igreja.
Nesse momento invadiu o altar uma corporação, que hoje tem perdido muito da sua
primitiva importância social, mas que no século XVII representava um papel distinto em
todas as carolices e galhofas da época; doze meninos do coro, metidos em sacos de lã
vermelha, espalharam-se pelo corpo da igreja armados do competente acendedor.
Foi um rebuliço: os rapazes travessos, rindo como perdidos, pisavam de propósito os
vestidos das velhas devotas, que se conchegavam resmoneando uma ladainha de
imprecações; a mocidade imprudente não respeitava a velhice; os ânimos se
exacerbavam, o sangue fervia; afinal, esgotado de parte a parte o rosário das injúrias
consagradas pelo estilo, os dois campos lançaram mutuamente o último e o mais terrível
dos insultos.
Os rapazes soltaram a palavra infamante de barata, a que as velhas retorquiram com o
epíteto não menos afrontoso de formigão: e depois disso, como não havia despique
possível de tão grande provocação, a não serem as vias de fato que o respeito do lugar
impedia, cada uma das duas hostes inimigas retraiu-se e voltou silenciosamente a suas
ocupações.
Era tempo; porque a igreja enchia-se de fiéis, e no adro viam-se já as cadeirinhas e
palanquins que traziam à missa as donas e filhas dos ricos senhores da Bahia.
Tinham parado na calçada dois moços, ambos na flor da idade, ambos elegantes e bem
parecidos, mas tão dessemelhantes no trajar, como no molde da beleza varonil.
O mais velho, que teria vinte e dois anos, era moreno. A fisionomia franca e aberta, as
cores frescas e rosadas, o porte firme e direito sobre uma estatura regular, mostravam
compleição vigorosa; mas sua expressão ressumbrava tanta graça, o sorriso que lhe
brincava nos lábios era tão faceiro, havia tal donaire nos seus movimentos, que a força
muscular desaparecia sob a flor da feliz organização, como a robustez do tronco sob a
virente folha.
Vestia gibão de gorgorão cor de pérola guarnecido na orla por delgado fio de ouro com
que eram igualmente tecidos os passamanes, e calção de veludo turqui debruado nas
costuras por fino cairel de prata. Torçal de seda escarlate suspendia-lhe ao flanco
esquerdo o florete; o boné de veludo azul com um broche de rubi cingia os anéis dos
cabelos negros; a meia cor de pinhão debuxava a perna bem contornada, e o sapato raso
com espora afilada calçava um pé fino e aristocrático.
Naquele tempo em que a profusão de cores vivas e bordados era o toque da louçania,
não se encontrara decerto um cavalheiro trajado com mais gentileza e primor; a riqueza
apenas se mostrava, para não ofuscar o bom gosto na combinação artística das lindas
cores, nem o esmero do corte e piques das roupas.
Também na Bahia não havia mancebo casquilho como Cristóvão de Garcia de Ávila,
senhor de fazenda passante de cinquenta mil cruzados, e descendente de uma das
famílias nobres que tinham vindo do Reino com Tomé de Sousa, em 1549.
Nesse momento, voltado para a Praça do Governador, ele enfiava o olhar pela rua que
desembocava no Largo da Sé, e pela qual esperava despontasse alguma coisa, que
visivelmente o interessava.
O outro moço contava apenas dezenove anos. Trajava tudo negro, de simplicidade
extrema, mas de esquisita elegância. Um aljôfar isolado brilhava na touca de veludo preto;
as preguilhas da mais fina lençaria de alvas deslumbravam; a espora ligeira que mordia o
salto do borzeguim e a cruz da espada eram de aço, mas tão bem polido que cintilava
como custosas pedrarias.
O cetim negro das vestes dava muito realce à sua bela cabeça erguida com meneio altivo,
e à alvura rosada de sua tez. Os grandes olhos pardos tinham os raios profundos e
reflexivos que desfere a inteligência nos momentos de repouso; o lábio superior, coberto
pelo buço de seda que pungia, arqueava graciosamente com expressão grave; era de alta
estatura, e tinha como seu companheiro o talhe esbelto, mão e pé de supremo esmero.
Mas o que especialmente o caracterizava, era uma sombra imperceptível, que às vezes
deslizando pela fronte alta e inteligente, carregava ligeiramente as linhas do perfil e
imprimia-lhe na fisionomia o cunho da vontade tenaz; nestes momentos sentia-se que a
razão calma, firme, inflexível, dominaria, se preciso fosse, as expansões da mocidade.
Os dois cavalheiros continuavam a conversa começada quando se encontraram no adro
da igreja.
— Perdes teu tempo, dizia Cristóvão de Ávila sem tirar os olhos do seu alvo predileto.
— Não sei em que melhor o possa empregar do que em praticar com um amigo,
respondeu o cavalheiro sorrindo.
— Mal vais com disfarces que dalgo não servem, que de mais descobrir a verdade. Digo
que perdes teu tempo, quando teimas que entre tantas damas gentis não haja uma por
quem desejes esta tarde tirar uma argolinha, ou correr um passe d'armas.
— E para ti há alguma? perguntou o outro desviando de si a alusão.
— Bem sabes que sim. Não sou de segredos; tão santa coisa é o amor que Deus nos pôs
n'alma, que não me peja de trazê-lo no rosto e à face de todos.
— Assim deve ser para quem é nobre e rico, e não teme repulsa; mas outros há que não
têm direito de erguer a vista, embora mais alto que ela tragam o coração.
As últimas palavras foram pronunciadas com ligeiro assomo de orgulho ofendido, que
imediatamente sufocado esvaeceu em sorriso melancólico.
— À fé que não te compreendo, Estácio. Tão nobre és, como os melhores, e rico; porque
a ninguém mais que a ti, devem de pertencer as terras que teu avô Diogo Álvares
conquistou ao gentio para El-Rei, de quem as houvemos nós e nossos pais.
O moço ia replicar, quando uma cadeirinha de cúpula dourada, que vinha das bandas do
Terreiro do Colégio, carregada por dois negros vestidos à mourisca, com aljubas de lã
escarlate, excitou vivamente sua atenção.
Cristóvão simulou não perceber o estremecimento de prazer que teve seu companheiro, e
voltou o rosto sorrindo.
Nem um nem outro reparou em certa dama que nesse instante e acerca deles passava
para a igreja, acompanhada por uma velha aia. Estava ela completamente velada com o
espesso crepe da mantilha, de modo que era impossível distinguir feições. Vendo o gesto
de Estácio, lançou rápido e furtivo olhar para descobrir a causa de sua emoção, e entrou
na Sé murmurando consigo:
— É já rendido de amores!
II - Como outrora rezavam na missa duas beatinhas baianas.
Apenas a cadeirinha parou no adro da igreja, as cortinas de damasco verde franjadas
abriram-se, e a ponta do escarpim de veludo que escondia um pé de menina pousou de
leve na calçada, como a asa de uma gaivota quando roça a flor d’água no voo rápido.
Um homem de meia idade e compleição robusta, que acompanhava a cadeirinha,
estendeu o braço para receber a mão afilada e transparente, que apenas tocou o veludo
da manga, como se receasse magoar-se ao contato da macia pelúcia.
Logo assomou o vulto delicado de uma moça vestida com o faceiro e gracioso traje das
andaluzas; vasquinha de seda azul bastante curta para mostrar a nascente da perna
divina, e véu bastante longo para ocultar o rosto e seio, deixando apenas ver a cor de leite
e a luz de dois olhos, que brilhavam mais que os diamantes do colar.
O cavalheiro que trajava vestes pretas tirou o gorro e corando inclinou-se, quando a moça
passava diante dele para entrar na igreja. Recebeu em troca um olhar rápido e profundo,
dos que vêm do íntimo e se desprendem, como chispas d'alma.
— Bem certo é o anexim, que o mal e o bem à face vêm; disse Cristóvão gracejando.
— Nem sempre!
— Segredos são escravos rebeldes, que mais amiúde se tornam senhores; por mais
fundos que os tragas, eles sobem à tona quando mal pensas; se lhes cerras os lábios,
falam pelos olhos.
— Aos olhos de um amigo.
— De todos. Mais val não os ter; e com isso dou-me às maravilhas.
— Se tivesses de lutar com a fortuna que é inconstante e com os homens que são maus,
respondeu o moço gravemente, terias outro falar, Cristóvão.
— Digo-te que não.
— Tu vês o mundo como bom e jovial companheiro, de quem não hás mister ocultar teus
sonhos de prazer; aqueles que têm nele um inimigo, esses nunca lhe esconderão demais
sua alma.
Nisto, um mancebo que trazia com certo garbo vaidoso as luzidas galas de suas roupas
de veludo e seda carmesim, aproximou-se e cortejou risonho os dois mancebos.
— Trajais de negro em dia como estes, Senhor Estácio Correia? disse ele com
volubilidade.
— Trago luto por meu pai e por minha mãe, respondeu o cavalheiro com certo vexame.
— Vai para quatro anos que morreu uma, e o outro deixou-vos no berço. Não cuidei que
levásseis a piedade tão longe.
— Desavisado fui, Senhor D. Fernando de Ataíde, em não consultar vosso calendário
para saber que tempo duraria meu sentimento; quando vier à estampa vossa pragmática,
regularei por ela meu traje. Até lá a cada um seu gosto e modo de viver.
Estácio acompanhou o dito com um sorriso de ironia.
— Pesa-me que vos enfadasse tão inocente reparo; não foi mais que simples curiosidade.
Ouvi dizer algures que pretendíeis abraçar a vida eclesiástica e entrar na Companhia de
Jesus, razão por que conjeturei que a gravidade do futuro estado vos obrigava já a trazer
vestes sombrias.
Uma faísca cintilou no olhar de Estácio; pareceu-lhe que a desculpa de Fernando ocultava
um motejo; mas a expressão de bonomia que viu no semblante do moço conteve a
palavra provocadora que os lábios iam soltar.
— Enganou-vos quem tal disse, respondeu friamente.
— Oh! Aí chega D. Elvira de Paiva e sua mãe! Já me não admira ver-vos tão apurado,
Senhor D. Cristóvão d’Ávila!
Esta exclamação jovial partiu dos lábios de um cavalheiro que se acercara do grupo; era
homem que orçava pelos vinte e cinco anos, de mediana estatura e com certo desplante
militar no porte arrogante; o rosto, cuja alvura primitiva desaparecera sob os raios do sol
tropical que lhe queimara a tez, apresentava fisionomia espanhola, a que dava realce o
bigode retorcido e a pera afilada.
O gibão e as calças de tufos eram amarelos golpeados sobre veludo preto; uma capa
negra forrada de seda da mesma cor das roupas caía-lhe sobre o ombro esquerdo,
mostrando no canto as armas de Portugal bordadas a retrós, o que indicava que o
cavalheiro pertencia à milícia; tinha um chapéu de feltro branco, e meias botas de couro
alourado com rendas no canhão.
Cristóvão durante a conversa distraíra-se em seguir com os olhos uma liteira que passava
pela frente da Santa Casa da Misericórdia; ao ouvir a exclamação voltou-se para o
cavalheiro sorrindo:
— Achais que mal empregue meu cuidado, senhor alferes? perguntou o moço com
afabilidade.
— Por Deus, que não! Tão formosa dama não pisou ainda esta terra de gentio. Aposto
cinquenta cruzados em um lanço de dados, que não me mostram, nem mais airosa, nem
mais prendada.
— Esqueceis vossa irmã, D. José! retrucou Fernando de Ataíde.
— Oh! não vos tinha visto, Dom Paladino! exclamou o alferes rindo; mas se com isso vos
ofendi, estou pronto a aceitar-vos a requesta.
Dizendo estas palavras, D. José apertou amistosamente a mão de Fernando; e cortejou
com um modo frio e soberbo a Estácio. Este empalidecera ouvindo as últimas frases e
desviou-se do grupo.
Um quinto mancebo, que trajava também à milícia, batera familiarmente no ombro do
alferes.
— Aceito a aposta, contanto que sejais vós mesmo o árbitro, D. José!
— Oh! Padilha!... Por quem parais então, amigo?
— Por uns maganos d'olhos negros que luzem através de certa rótula de sobrado na Rua
da Palma!
— Olhem o taful!...
— Ah! ah!... Então o nosso alferes também adora as sotas de carne e osso! exclamou
Cristóvão rindo.
— Caluda, senhores! acudiu D. José com um sério-cômico; isto por enquanto está em
segredo. Não espantemos a caça, que é arisca!
E os mancebos a rir, como se ri nessa idade feliz.
A liteira tinha parado; vinham nela duas senhoras.
Uma teria quarenta anos de idade; bela ruína em que o tempo, deixando impressa a sua
passagem, respeitara a obra primitiva da natureza. Os cabelos haviam embranquecido, a
tez perdera os toques rosados e murchara ao fogo do sangue que a escaldava outrora; o
frescor dos traços desaparecera com o sopro ardente dos prazeres; mas aquele busto
descorado debuxava ainda sob a máscara da velhice prematura as formas de um belo
tipo da raça hebraica – Judite ou Madalena.
A boca, embora crestada na flor dos lábios, dizia quanta paixão e quanto amor devia ter
ela desfolhado nas carícias lascivas, nos sorrisos sedutores e nas palavras ardentes, que
semeara pelo caminho da vida; o seio branco, como o mármore de um túmulo, frio como
ele, servia de urna às cinzas do coração que outrora o fizera arfar com os ímpetos de
desejos irresistíveis; os olhos, esses brilhavam como nos dias da juventude, e pareciam o
clarão da chama interna que consumira lentamente a seiva daquele corpo, como o óleo
de uma lâmpada.
Ao seu aspecto adivinhava-se que essa mulher devia ter amado muito na sua vida e
abandonado ao prazer uma alma ardente e insaciável. Agora, que a beleza fugira e os
sentidos se acalmavam, tinha ela necessidade ainda de algum sentimento profundo e
veemente que desse expansão às energias da natureza criada para a paixão.
Esse sentimento era a religião; todas as faculdades que outrora o amor absorvera,
voltavam-se para a nova preocupação, e se entregavam a ela com igual ardor e afã: a
mulher apaixonada e voluptuosa transformara-se na devota fanática; em face de Deus,
como diante dos homens, foi sempre a mesma: foi o verbo das almas cujo destino na
terra se resume em uma só palavra – amar – sublime encarnação do anjo feito mulher.
A moça que a acompanhava era sua imagem, mas perfumada pela mocidade, iluminada
pelos raios da vida que desponta, colorida pelos reflexos de sangue tépido e puro que
circula sob a cútis transparente, animada pela doce confiança que naquela idade abre os
límpidos horizontes da existência e solta o voo à imaginação ávida.
O mesmo fogo da paixão, a mesma voluptuosidade do prazer, que deixara uma sombra
de suas erupções no rosto envelhecido da mãe, brilhava nos olhos pretos e fúlgidos, no
sorriso lânguido e no requebro gracioso da filha; mas a inocência e pureza d'alma
vendavam ainda essas irradiações com a expressão modesta e ingênua, que as tornava
mais perigosas.
D. Luísa de Paiva e sua filha desceram do palanquim, e recebendo as saudações dos
cavalheiros que estavam parados no adro, dirigiram-se à capela-mor onde já estavam as
almofadas de veludo roxo, que então as damas faziam conduzir à igreja por pajens
escravos.
Chegada à porta que abria da sacristia para a capela, Elvira lançou um olhar em volta do
pavimento já quase inteiramente ocupado pelas damas, e viu a sua almofada colocada no
centro ao pé de uma menina que tinha o véu descido, a mesma que poucos antes tanto
havia excitado a atenção de Estácio Correia.
Imediatamente a moça, roçagando a vasquinha curta, deu um passo para tomar o seu
lugar.
— Fiquemos ali, disse D. Luísa mostrando o estrado.
— Tenho a minha almofada perto de Inesita, respondeu Elvira voltando-se.
— Bem; não te esqueças!...
— Oh! não; tenho-a de cor, disse a moça com um sorriso malicioso.
E atravessando por entre as outras damas, foi ajoelhar-se ao lado de Inesita, que
embebida na sua oração tinha os olhos baixos e as pálpebras descidas.
— Por quem roga a minha santinha com tanta devoção? perguntou Elvira baixinho.
A menina sobressaltando-se corou através do véu; depois sorriu à sua amiga.
— Vieste tão tarde! disse ela em tom de queixa.
— É que não tinha alguém que me esperasse com seu olhar todo melancólico.
— Cala-te; estão nos olhando, balbuciou a moça.
— Se nos olham, menina, é que nos querem, respondeu a amiga sorrindo.
Estácio e Cristóvão tinham entrado pouco havia; colocados junto à grade que dividia a
capela do corpo da igreja, não perdiam nenhum dos movimentos das duas meninas.
— Tua mãe?... perguntou Inesita.
— Não a vês na frente, bem próxima ao altar? Dela não há susto, continuou a moça
gracejando; enquanto não desfiar a última conta do rosário e não recitar todas as orações
do livro dominical, não dá por coisa alguma.
— Pois desce o véu, não te voltes, e podemos conversar enquanto não principia a missa;
pensarão, vendo-nos falar, que dizemos nossas rezas.
— Sonsinha que és!... exclamou Elvira com um sorriso. Não queres que me volte para
não ver onde vão presos esses olhos.
— Vão a Deus.
— A Deus no céu, e a ele na terra.
— Minha tentação, queres sossegar?
— Não me deixeis cair em tentação!... continuou Elvira com ar de malícia e fingindo que
orava.
— Com as palavras sagradas não se brinca!... É pecado! disse Inesita séria.
— A quem o dizes? A mim que sei todas as rezas! Minha mãe tem tido o cuidado de mas
ensinar; ainda hoje, sabes a penitência que me deu? De recitar uma ladainha maior do
que a Rua dos Mercadores!
— E foi isto que te demorou?
— Não, Inesita, respondeu a moça perdendo de repente o seu ar faceiro e entristecendo,
foi coisa pior... Oh! muito pior!
— O quê?
— Chorei toda a noite.
— Ele te...
— Ele não, mas por causa dele. Minha mãe não quer ir hoje à festa.
Inesita teve um triste sobressalto, e emudeceu buscando no espírito um meio de amparar
a amiga:
— Se pedir-lhe eu?
— É escusado; quando lhe metem alguma coisa de religião na cabeça, não há volta;
disseram-lhe que não está bem a uma dama devota ver folguedos do mundo.
— E tu perdes tão lindas coisas?
— Hão de estar galantes as corridas, não é verdade? Depois me contarás?
— Sem faltar nada. Mas ninguém dirá, ao ver-te tão prazenteira, que hajas chorado toda a
noite.
— Que queres? Quando cheguei esqueci tudo, para só me lembrar que estava perto de ti.
— De ti!... disse Inesita inclinando imperceptivelmente a cabeça para o lado da grade,
sem contudo erguer os olhos.
Elvira reparou no movimento da amiga e quis tirar sua desforra.
— Bem sei, respondeu ela travessamente, que estar perto de uma é estar perto do outro;
a sombra acompanha o corpo.
— Vamos rezar, menina, acudiu Inesita meio enfadada.
— Vamos. Sabes tu as Obras de Misericórdia?
— Que pergunta!
— Não as sabes, não; porque elas mandam consolar os aflitos; e ali está uma alma
penando por tua causa à espera de um só olhar teu.
Inesita corou inclinando ainda mais a fronte; porém os cílios de seda, que roçavam as
faces, se ergueram e cerraram logo, deixando coar um olhar doce e aveludado, que foi
tremulando embeber-se no rosto de Estácio.
— Agora sim cumpriste tua devoção!
— Elvira!... Cuidas que também eu não reparo no que fazes?
As duas meninas continuaram o alegre colóquio, cujo matiz gracioso não se pode
desenhar; porque há gestos feiticeiros e inflexões harmoniosas, que só os lábios e a
gentileza de uma mulher sabem dar às palavras mais simples.
Naquele tempo, como hoje, como sempre, duas moças amigas que se encontravam,
tinham tanto que dizer entre si, e estavam tão cheias de segredos e confidências, que o
lábio rosado não emudecia, enquanto não destilava todo o mel que havia nos favos
delicados do coração, toda a fragrância que respiravam as rosas d'alma em botão.
A mulher é sempre mulher; mudam os usos, as modas, os costumes e as línguas; mudam
os tempos e com eles nós os homens, porém o anjo frágil e delicado que Deus prendeu à
terra é a fênix moral, que renovando-se em todos os séculos e em todas as eras, remoça
a humanidade, e a purifica.
Assim, quem ouvisse aquelas duas beatinhas dos começos do século dezessete,
conversando tão travessa e profanamente sob a aparência do mais profundo
recolhimento, esquecendo o traje e o lugar, julgaria escutar as falas de duas moças dos
nossos dias, trocando no seu jardim as confidências de uma véspera de baile.
D. Luísa às vezes lançava à filha uma vista rápida e severa, que retirava satisfeita para
fitá-la de novo no resplendor das imagens; de feito Elvira e Inesita com o véu baixo, as
mãos cruzadas, as frontes inclinadas e os lábios a moverem frouxamente, tinham um tal
ar de compunção, que ninguém suspeitaria o mais leve pecadilho sob aquele beático
recolho.
Entretanto elas ainda falavam de mil coisas; não tinham dito nem metade da mútua
confissão.
III - Em que mestre Bartolomeu revela seus dotes para a solfa cantada.
A igreja estava apinhada.
A nave sepultada em meia obscuridade servia de moldura ao retábulo da capela, a qual
cintilava com a luz dos círios e os reflexos metálicos das alfaias e galas que cobriam os
altares.
No centro da esfera luminosa, nublada pela fumaça do incenso, que exalava da caçoula
de prata lentamente embalançada pelo turiferário, destacava a cruz negra do martírio, de
onde a imagem do Cristo dominava a multidão curvada e respeitosa.
Eram sete horas e meia quando soaram os atabales do terço postado no largo.
Chegava o Governador D. Diogo de Menezes, conduzido debaixo de pálio pelos juízes e
vereadores do conselho, e acompanhado por D. Diogo de Campos, sargento-mor do
Estado do Brasil, pelo Alcaide-Mor da Bahia, Álvaro de Carvalho, provedor da fazenda, o
Desembargador Baltasar Ferraz, ouvidor, escrivão dos contos e mais gente do serviço de
El-Rei.
O cabido saiu fora a recebê-lo com as etiquetas do formulário, e o conduziu ao setial
colocado do lado do evangelho; no mesmo plano estava o assento forrado de damasco
branco dos oficiais da Câmara; vinham depois o ouvidor, alcaide, provedor e os outros
ministros.
Do outro lado via-se a poltrona episcopal, vaga pela ausência de D. Constantino
Barradas, que se achava de visita na Capitania de Pernambuco; seguiam-se as
dignidades da Sé e o coro dos cônegos; no fim havia um banco de veludo roxo que devia
ser ocupado pelo provincial dos jesuítas à direita do dom abade de São Bento e do
custódio dos franciscanos.
D. Diogo de Menezes era um verdadeiro fidalgo no porte senhoril como no caráter
egrégio; achava-se então no vigor da idade, no período de transição dos quarenta para os
cinquenta anos, em que então os homens daquela têmpera chegavam ao perfeito
desenvolvimento de sua organização, e adquiriam a robusta virilidade, que ilustrou a
história de tantos feitos brilhantes.
O grave parecer esclarecido por um espírito superior era o documento do passado
honroso e o prenúncio da carreira ilustre que ainda tinha a percorrer; a severidade não
excluía a afabilidade das maneiras e a polidez do trato, que caracterizavam o fino
cavalheiro.
Homem de governo, escravo do dever, para quem a lei era religião, e a honra culto;
conhecia-se contudo que ele compreendia, e talvez mesmo sentisse ainda, o entusiasmo
heroico e cavalheiresco, que iluminara as lendas e os romances da Média Idade, e já
então apenas lançava os frouxos clarões da luz que bruxuleia ao extinguir-se.
Apenas o governador, fazendo uma cortesia geral, sentou-se na cadeira alcatifada, ouviu-
se o temperado de garganta sonoro e clássico do mestre de capela, que do alto de seu
trono regia a orquestra; quase imediatamente a larga tira de papel pautado, tangida pelo
braço robusto, assentou no respaldo da grade do coro a palmada estridente e simbólica.
Era o sinal para começar a missa cantada; primeira pancada de compasso que abria o
solfejo de velho in-fólio colocado sobre uma estante.
O mestre de capela, cheio de sua importância, meneava aquela tira de papel pautada
com a galhardia de um general brandindo a espada vitoriosa em frente ao seu exército no
momento da batalha.
Os meninos do coro tomaram seu lugar; uma exígua figura, coberta de longa capa de
raso preto, saiu do esvão da torre, e dirigiu-se lenta e compassadamente para o teclado
do órgão, sobre o qual estava aberto um grosso alfarrábio das solfas do P. Manuel
Mendes.
A cor lívida, os olhos profundos e cingidos de uma orla de bistre, as faces encovadas,
davam àquele semblante um aspecto triste e lúgubre; os cabelos grisalhos e revoltos
caíam sobre a testa vasta e proeminente; o hábito do estudo lhe acurvara o corpo
emagrecido, diminuindo aparentemente a estatura raquítica, que pouco excedia de cinco
palmos craveiros.
Tal era o licenciado Vaz Caminha, o mais sábio letrado da cidade do Salvador, que apesar
de suas elucubrações forenses e da gravidade do ofício, fazia ao mestre de capela a
mercê de tocar órgão na Sé, por ocasião de grandes festividades, mediante a espórtula
de um tostão em prata e o jantar na mesa do senhor bispo, quando este se achava na
Bahia.
O discípulo de Bártolo e Scoto endireitou a tripeça, sentou-se traçando as perninhas em
forma de cruz grega, e apoiando o queixo sobre o polegar da mão esquerda, sestro que
lhe era familiar, esperou o segundo sinal.
— Sua senhoria acaba de chegar, disse o mestre de capela. Podemos dar começo, se
vos praz, senhor licenciado.
— Por mim não se espere, mestre Bartolomeu.
— Atenção! exclamou o chefe da orquestra, voltando-se para os meninos do coro. Atacar
o ut com presteza, subito, compasso quaternário.
E erguendo a braço hercúleo, e volvendo uma última vista em torno, assentou com o rolo
de música um segundo estalo, que foi o prelúdio da mais tremenda algazarra jamais
ouvida em templo cristão.
Os gritos agudos e esganiçados dos meninos do coro, impelidos com toda a força dos
pulmões feriam o ouvido como o estrídulo metálico do canto da uiraponga; no meio do
alarido troava, mugia, a voz de baixo profundo do mestre Bartolomeu, que com uma só
nota enchia o vasto âmbito da catedral.
O monstruoso concerto durou cinco minutos em formidável crescendo; baixando afinal de
tono em tono, reboando pelas altas abóbadas, expirou como o trovão que rola ao longe
pelas nuvens, ou o oceano encapelado quando geme sob a refega do vento.
No entanto o licenciado Pero de Campos, deão, que oficiava na ausência do bispo,
revestido dos guisamentos sacerdotais, subia ao altar acompanhado dos dois acólitos; e o
cantochão desafinado dos cônegos respondeu dignamente ao desafio musical da
orquestra.
O mestre de capela, à guisa de alguns cantores modernos desempenhava ao mesmo
tempo dois papéis, o de baixo e o de contralto; cerrando pois as largas queixadas, expeliu
pelo nariz uma voz de tiple, fanhosa e esguichada, que meteria inveja ao mais alentado
eunuco da Capela Sistina; era um alegro predileto do grande solfista.
Assim, apenas terminou, ainda com as bochechas insufladas e o suor a correr-lhe pela
touta, voltou-se para Vaz Caminha que feria as teclas com a mesma gravidade que teria,
se estivesse consultando um texto do Corpus Juris ou arrazoando um agravo para a Casa
da Suplicação.
— Que dizeis deste solo, senhor licenciado? É solfa deste vosso servo.
— Optime! respondeu o letrado cortesmente.
Era a vigésima vez que o bom do Bartolomeu cantava aquele trecho e terminava pela
pergunta referida, à qual o advogado com a regularidade dos homens sisudos e
pensadores respondia pelo mesmo advérbio.
A ponto que isto passava no coro, e a missa cantada prosseguia, muitos sentimentos
diversos e bem estranhos à cerimônia sagrada agitavam os atores principais da cena.
D. Diogo de Menezes vendo a cadeira do provincial dos jesuítas vaga, sorrira de um
modo significativo; compreendera que a ausência não motivada, no dia em que
celebravam a sua chegada, era um primeiro manifesto de guerra que lhe lançavam os
aliados do Bispo D. Constantino.
Embora fosse toda mental e íntima a reflexão, o fidalgo ergueu a cabeça com expressão
de energia, como se aceitasse o desafio e se preparasse para a luta; depois lembrando-
se onde estava inclinou diante de Deus a fronte que trazia sempre alta em face dos
homens.
Mais longe, as duas meninas, logo que começara o sacrifício, haviam cessado a conversa
e emudecido no santo respeito que lhes inspirava o sublime mistério da religião cristã;
mas o espírito de Elvira, rebelde e tenaz, voltava às suas preocupações, apesar de todos
os esforços que ela fazia para afastá-lo de tais ideias e trazê-lo à oração que os lábios
balbuciavam automaticamente.
A donzela lembrava-se das festas que deviam ter lugar à tarde, festas que a haviam feito
sonhar tantas horas, e iam passar enfim sem que as gozasse; sua fantasia revoava por
todas aquelas imagens brilhantes e esquecia a realidade para viver ainda alguns instantes
de esperança; mas a ilusão desvanecia-se breve e tornava ainda mais pungente a
decepção.
Às vezes em sua cólera infantil, a inocente fazia protestos de querer mal à sua mãe por
causa da crueldade com que a condenava à solidão no momento em que todos haviam
folgar e rir; eram ímpetos passageiros, como as faúlhas que saltam das chamas e se
apagam no ar.
Por fim acabava pedindo à Virgem perdão para o mau pensamento que tivera; e
resignada à sua desventura, enfiava por entre o véu um olhar longo e apaixonado, que
penetrava até o coração de Cristóvão, e voltava de lá mais sereno e consolado.
Inesita, essa estava inteiramente absorvida pela oração; o espírito de Deus a dominava; e
só de espaço em espaço, nos momentos em que a alma saindo da meditação lembra-se
que tem um corpo, a tímida menina sentia-se viver pela recordação do lugar onde estava
e da proximidade de Estácio; então sem ver, adivinhava que o olhar do moço a envolvia
em um raio de amor, e estremecia com a sensação de gozo inexprimível.
Mas o que ela não podia adivinhar era a angústia que confrangia a alma do moço,
ajoelhado junto à grade e tão pálido, que o oval de seu rosto iluminado por uma réstia de
sol, destacava entre as roupas negras como um relevo de alabastro em medalha de
ébano.
Estácio descobrira a alguns passos D. Fernando de Ataíde, que não tirava os olhos da
menina; bastou para que uma suspeita cruel entrasse em sua alma; lembrou-se que
talvez o olhar de Inesita fosse dirigido a seu rival, e desejou até que ela não erguesse
mais a vista, nem se voltasse de seu lado.
O moço era pobre e modesto; aqueles que como ele amaram um dia, compreenderão o
martírio que sentiu pensando que D. Fernando de Ataíde, nobre e rico, podia depor aos
pés de sua amada um belo nome e soberbas prendas, enquanto que ele apenas tinha um
coração leal a oferecer.
A dama desconhecida e velada não tirava os olhos de Estácio, senão para volvê-los a
Inesita. Por vezes inclinara-se para a gorducha de sua companheira, como se lhe
quisesse falar e disfarçava; até que afinal a palavra retida escapou-lhe dos lábios:
— Sabeis, Brásia, quem seja aquele cavalheiro que agora ajoelha perto à grade, bem em
frente a nós?...
— Vejo dois, D. Marina, tão gentil um como outro! De qual falais?
— Do que traja negro.
— Não sei, não, dona; mas não faltará quem o saiba.
— Pois indagai, e onde mora.
A velha estabeleceu logo um cochicho que percorreu toda a longa fila de beatas estendida
pela nave da catedral.
A festa prosseguia, o coro e o cantochão continuavam alternando, quando foi ouvido na
porta da igreja um ligeiro rumor causado por muitas pessoas, que voltavam o rosto para
ver alguma coisa que estava passando fora.
O objeto que tanto excitava a curiosidade, a ponto de distrair assim a atenção do ofício
divino, era um navio de alto porte que encoberto pelas sombras da noite se avizinhara de
terra, e aos raios do sol nascente aparecia à entrada do porto com as velas enfunadas
pela fresca viração da manhã.
D. Diogo acenou ao capitão de sua guarda:
— Manuel de Melo, inquiri da razão deste rumor! disse-lhe à puridade.
Nesse tempo ainda não se tinha desmoronado o tabuleiro que ficava em frente da Sé, a
pique da montanha, com uma vista soberba para o mar; por isso daquela posição
distinguia-se já perfeitamente o navio que velejava demandando o porto, e o casco, e a
mastreação, e a bandeira espanhola a flutuar na popa. A não escassear o vento, era
natural que em menos de duas horas estivesse fundeado.
A notícia transmitiu-se rapidamente. Há uma espécie de corrente elétrica nas grandes
massas de povo; dois minutos depois de ouvir-se o rumor na porta da igreja ninguém já
ignorava a grande nova.
— É uma fragata espanhola, ao que parece procedente do reino, que entra a barra,
informou ao governador o capitão da guarda.
Este fato que hoje não tem muita importância pela sua frequência, naquele tempo de
raras e difíceis comunicações entre o Brasil e a metrópole, era um acontecimento do
maior interesse. Para os governadores e empregados no serviço real queria dizer a
solução de altas questões da administração do novo Estado; para o povo exprimia talvez
o deferimento aos pedidos das Câmaras sobre redução de impostos, extinção dos
estancos e servidão dos índios; para os mercadores de grosso trato significava o
recebimento de cabedais ou de gêneros de tráfego; para os particulares era o provimento
da mercê que haviam requerido, ou a reforma da sentença de que tinham agravado; para
as mulheres, além da parte que tomavam no que dizia respeito a seus pais, irmãos e
maridos, havia a curiosidade, sentimento poderoso em todas as filhas de Eva.
Já se vê pois, que desde o Governador D. Diogo de Menezes até a última das beatas
escondida em algum canto, todas as pessoas, que se achavam na igreja, desejaram
intimamente ver acabada a missa; os cônegos acordando salmeavam o cantochão como
se cantassem um solau; o licenciado apressara o compasso; o deão saltara por engano
uma página do missal; as velhas correram duas contas por cada padre-nosso.
No meio da geral preocupação só ficaram estranhos, Elvira e Inesita, que continuavam as
suas orações; Cristóvão, Estácio e Fernando, para os quais o mundo se resumia nas
duas meninas; D. Luísa de Paiva, imóvel em seu êxtase religioso; finalmente o mestre de
capela, que apesar dos cônegos, do salto da página, do toque do órgão, apesar de tudo,
solfejava um andante com imperturbável sangue-frio, sem engolir uma nota ou falhar uma
pausa.
IV - Em que vem à lume um papel velho.
A cerimônia religiosa terminou por volta de nove horas.
Em pouco tempo a multidão deixou a igreja quase solitária e foi apinhar-se à beira do
terreiro, para ver a fragata que distava do porto cerca de um tiro de canhão.
Elvira e sua amiga dirigiram-se à pia de mármore branco colocada à porta, como de
costume; a alguma distância seguiam D. Luísa de Paiva conversando com o pai de
Inesita. Era este, D. Francisco de Aguilar, nobre castelhano, senhor do engenho de
Paripe, homem principal, como se dizia naquele tempo.
Alto, robusto, ainda verde e bem conservado, D. Francisco era o verdadeiro tipo do
hidalgo andaluz. Orgulhoso de seu sangue, de sua pátria e de seus cabedais, altivo no
trato dos que julgava inferiores, seco nas maneiras, tinha contudo a verdadeira nobreza,
que a educação e o hábito podem apurar, mas não é o privilégio dos brasões, pois a dá o
coração; sabia ser grande e generoso quando os prejuízos de fidalguia não se opunham
aos impulsos de sua alma.
Elvira e Inesita apressando o passo chegaram à pia, onde os dois amigos já as
esperavam; mas D. Fernando aproximara-se no mesmo momento, e tomando água na
palma ofereceu-a cortesmente às duas meninas.
Inesita hesitou; tímida como era, não teve ânimo de recusar; embebendo a pontinha dos
dedos alvos e delicados, ia levá-los à fronte, quando viu o olhar de Estácio; a pobre
menina estremeceu e sem saber o que fazia, deixou cair o braço desfalecido.
Quanto a Elvira, mais animosa, voltou-se para Cristóvão. O cavalheiro encorajando-se
com esse movimento adiantou-se, e apresentou-lhe a mão onde brincavam algumas
gotas d’água; depois de benzer-se, a menina umedeceu de novo os dedos e com um
movimento rápido lançou de longe um borrifo na fronte do mancebo.
— Para que sejais esta tarde bem feliz, disse ela enrubescendo.
— Basta que desejeis para que o seja, respondeu o mancebo não se contendo de alegria
e felicidade. Que o vosso olhar me acompanhe...
— O olhar, não, que é impossível; o pensamento, sim, respondeu Elvira com uma
expressão melancólica.
— Por quê? Lá não estareis? perguntou o moço em sobressalto.
— Não; minha mãe...
A aproximação de D. Luísa e Aguilar cortou a conversa; as duas meninas saíram da
igreja, Elvira satisfeita porque ao menos consolara Cristóvão de sua ausência; Inesita
zangada consigo mesma porque não tivera coragem de recusar o oferecimento de
Fernando, e com Estácio, porque depois do seu movimento em vez de apresentar-lhe a
mão voltara-se triste e desaparecera; de modo que ela foi obrigada, para benzer-se, a
molhar os dedos na pia.
Quanto a Ataíde, como todos os homens que têm plena confiança em sua riqueza, não
percebera nem a indecisão da menina e o movimento que produziu o olhar de Estácio,
nem o disfarce com que Inesita molhara de novo os dedos na pia. Radiante sob o gibão
de veludo carmesim acompanhou o fidalgo castelhano.
No adro e por ocasião de despedir-se, Inesita voltou-se para D. Francisco:
— Meu pai, instai com D. Luísa para que leve esta tarde Elvira às festas do Terreiro do
Colégio.
— Vosso pedido tem mais valia do que o meu, mas se o quereis...
— Impossível, Senhor D. Francisco. Fiz voto de não assistir a festas profanas; e quebrar
um voto, disse-me o Padre Luís Figueira, é incorrer em excomunhão latae sententiae.
O castelhano, ouvindo o texto, voltou-se para trocar um sorriso com Fernando.
— Mas, acudiu Inesita, Elvira que não fez voto podia ir comigo!
— Não lhe está bem aparecer em lugares de folia sem sua mãe, menina. É prova de
descomedimento, que não assenta em donzela recatada.
O tom severo destas palavras, mais de repreensão que de resposta, desconcertou
Inesita, que não soube o que replicar; despediu-se de sua amiga, e entrou na cadeirinha
lançando um olhar a furto em busca de Estácio.
Este depois que desaparecera, tomando pelo corredor lateral, encostara-se à portada de
onde observara toda a cena anterior, e seguira com os olhos a cadeirinha, cujas cortinas
ao longe lhe pareciam entreabertas por uma mãozinha mimosa.
Era o tempo que o palanquim de D. Luísa sumia-se também, e Cristóvão saía da igreja.
Estácio foi-lhe ao encontro.
— Julgava-te longe, disse Cristóvão; vi-te sair pouco há.
— Mas não tive a força de ir-me, embora fosse o melhor, respondeu o moço com um
sorriso triste.
— Que te aconteceu?
— Nada. Dize-me: tens desejo de primar esta tarde sobre todos, para merecer o olhar
dela, não é verdade?
— Acertaste, menos em um ponto, Estácio; desejo vencer nos torneios e jogos porque ela
lá não estará, e assim farei que não tenham outras, o que só merece a mais bela.
— E contas ganhar todos os preços? perguntou Estácio com intenção.
— Todos os que não quiseres para ti.
— Por que não os outros?
— Porque nem quero medir-me contigo, nem que o quisesse, o poderia com vantagem.
— Não digas tal!
— Não o diria a outro, ainda que sentisse a sua espada na gorja; digo-o a ti com a mão no
coração.
— Pois ouve, acudiu Estácio; também a mim repugna-me roubar um prêmio que te pode
pertencer; toma-os todos, mas cede-me uma só coisa.
— Qual, Estácio?
— Cede-me teu lugar na primeira corrida.
— Meu lugar!... Mas diriam que tive medo!
— Não receies tal; a confusão da partida impedirá ver; demais não lucras na troca. D.
José de Aguilar é dos mais aguerridos campeões que entrarão em liça.
— Ah! compreendo; não te queres bater com o irmão de D. Inês!
— É um dos motivos; o outro saberás depois.
— Pois está dito; mas por isso não te deixes vencer por minha causa. Lembra-te que
também te olham. Adeus; vou-me com pressa.
— Em pouco irei ter contigo.
Os dois moços apertaram-se as mãos; e separaram-se tomando direção oposta.
Terna e sincera amizade os ligava. O modo singular porque nascera essa afeição
anunciou logo a têmpera daquelas duas almas, ainda não batidas na incude do mundo.
Costumavam os filhos das principais famílias, quando por tarde saíam a passeio
acompanhados de seus aios, reunirem-se na Praça do Governador onde estava
assentada uma bateria a pique da Ribeira. Aí entretinham-se em galhofas e folguedos
próprios da infância.
Uma vez acertou Estácio de passar por ali tornando da casa de Vaz Caminha, onde tinha
escola de pueris. Um gibão rapado, de mangas tão justas que o crucificavam, barrete que
de machucado já tinha virado carapuça, e calções com remendos davam ao rapazinho um
aspecto realmente grotesco. Os meninos o receberam com tremenda algazarra que o
acompanhou até sumir-se do lado oposto.
Percebendo que a mofa era com ele, Estácio parou e voltou face aos rapazes,
afrontando-os com o olhar e gesto. Desde então o discípulo e afilhado de Vaz Caminha
teve para si, que fora cobardia escolher outro caminho. Todas as tardes ali passava,
embora para isso fizesse uma volta. Os meninos o atropelavam como da primeira vez
com vaias e apupos. Ele passava impávido e calmo, empertigando-se em sua pobreza e
desafiando-os a todos.
Cristóvão que era da roda, soube afinal quem fosse o tal rapazito; e uma tarde quando ele
passava, deixou muito zangado os companheiros e botou-se de carreira ao filho de
Robério Dias.
Esperou-o a pé firme Estácio, julgando que o outro vinha brigar. Deitando ao chão um
maço de cadernos, arregaçou as mangas.
— Não venho para brigarmos, senão para nos conhecermos, pois somos parentes! disse
Cristóvão sorrindo e com um modo afável.
Passada a primeira surpresa de ver aquela fala e modo em um menino tão bem trajado e
que parecia de família rica e principal, o escolar respondeu altivo:
— Não tenho parentes mais que uma tia!
— Pois não sois filho de Robério Dias?
— Que vos importa isso?...
— Eu sou filho de Garcia de Ávila!
— Não vos conheço!...
— Que val, se temos o mesmo sangue! Perguntai a vossa tia.
— É escusado!... Sei eu que não tenho parentesco com gente de vossa qualidade; sou
pobre!...
Dizendo essa palavra com orgulhosa arrogância, o escolar foi seu caminho sem mais
palavras. Nos dias seguintes, por espaço de duas semanas, todas as tardes Cristóvão
fazia parar Estácio para convencê-lo do seu mútuo parentesco, e a todas as instâncias
respondia este com uma orgulhosa esquivança. Não se enganava Cristóvão. Seu terceiro
avô, Garcia de Ávila, também terceiro de nome, tivera uma filha natural, Isabel Garcia,
casada em segundas núpcias com Diogo Dias, neto do Caramuru e segundo avô de
Estácio; donde vinha entrelaçamento de afinidade entre as duas famílias.
Uma tarde, Cristóvão perdeu a paciência, e disse para Estácio:
— Ou me reconheceis por vosso parente ou brigo convosco.
— Briguemos; é melhor.
Atracaram-se ali mesmo; mas o aio de Cristóvão correu a separá-los, e o fez maltratando
Estácio. O menino afastou-se indignado.
— Eu te castigarei, maroto!
Cristóvão irado arrancou a vergasta que o aio trazia e com ela o fustigou.
No dia seguinte muito cedo esperava por Estácio à porta de Vaz Caminha para lhe
comunicar que o criado fora expulso de seu serviço e de sua casa. Desde essa manhã
ficaram camaradas; os anos vieram fazê-los amigos e afinal irmãos.
Tornemos à Sé.
Estácio seguiu para as bandas de Santo Antônio. A alguns passos encontrou Vaz
Caminha, que atravessava gravemente o largo com a cabeça baixa, e entregue a funda
meditação.
Logo que terminara a missa, o licenciado recebera do mestre de capela a competente
moeda de prata; mergulhando-a na comprida bolsa presa ao ilhós do calção, esgueirou-se
pela escadinha do coro, e foi acompanhando a chusma de curiosos ver o navio que
entrava na barra.
Depois de alguns minutos de observação, conhecendo que em menos de uma hora não
se poderia haver notícias do reino, resolveu ir confortar o estômago, e nesta intenção
louvável dirigia-se ao modesto tugúrio, quando foi encontrado por Estácio.
— Bom-dia, mestre, disse o moço quando o velhinho passava. Tão embebido ides em
vossas reflexões, que não vedes os amigos?
O licenciado ergueu a cabeça de chofre, e os olhos pequeninos pestanejaram com
vivacidade jovial.
— Bem aparecido, pequeno! Há bons quatro dias que não vos ponho olhos. Bem diz o
ditado: “que para os moços são as festas e para os velhos as crestas”.
— Me levais a mal, que tome parte nos brincos e jogos de cavaleiros?
— Ao contrário, filho. Lograi a vossa mocidade, que perto vem o tempo dos cuidados; e
bem aziago é quando não se tem nos maus dias uma boa lembrança para consolar o
espírito.
— Acho-vos hoje mais triste que de costume, mestre; alguma coisa vos amofina?
— É próprio da velhice; quando a idade é muita e a saúde pouca, sobram os enfados e
mínguam as esperanças. Mas não semeemos flores em cinzas, que não brotam; dizei-me
antes, se estais contente e satisfeito, se contais que ninguém vos dispute hoje na
galhardia e boas manhas?
— Farei o que em mim estiver; e ajudando Deus, espero dar-vos algum prazer.
— E as roupas estão ao vosso agrado? Ajustam-vos bem? São de fino estofo? perguntou
o velho com terna solicitude.
— Ricas não podem ser, bem o sabeis; mas também não desmerecem em um cavalheiro:
talhou-as o melhor algibebe da cidade, mestre Cosme.
— Ainda bem; dais-me com isso mais gosto do que pensais; porém – acrescentou o
licenciado fitando o olhar no semblante do moço – alguma coisa ainda vos resta que me
dizer?
— O que, mestre?
— Aquelas galas devem ter sido bem apreçadas, e do pouco que possuo sempre há para
vos não deixar à mercê de fanqueiros e algibebes.
Estácio apertou com efusão a mão seca e mirrada do velho, cuja oferta tão delicada como
generosa lhe tocara o coração.
— Obrigado, mestre; lembrastes que de feito me faltava referir-vos alguma coisa, que
esta manhã tinha em mente, e passou-me na missa; mas não é o que pensais. Graças à
minha mãe que me deixou um saquitel com algumas dobras, poucas é verdade, pude
enroupar-me; sem isso não o faria; pobre como sou, gasto do meu, não uso do alheio.
São vossas lições.
— Que bem aproveitaram; mas não é alheio, filho, o que pertence àqueles que nos
amam; porque esse está como depósito em outras mãos, e para ser nosso basta
querermos.
— Outra vez obrigado, mestre; felizmente não careço despir-vos do vosso necessário
para satisfazer fantasias de rapaz.
— Assim não haveis precisão de nada?
— De vossos conselhos, muita; e tanto que, se me dais licença, vou recorrer a eles.
— É verdade; o caso que tínheis em mente?
— Dele mesmo é que vos quero falar.
— Estamos à soleira, melhor é entrarmos.
— Como vos parecer.
Conversando, Estácio e Vaz Caminha tinham tomado por detrás da Sé; seguindo por uma
rua estreita e solitária, quebraram em um beco apenas guarnecido por algumas
habitações, que se destacavam a espaços entre as linhas de cercas cobertas de melão-
de-são-caetano.
O beco descia em ladeira, e formava no centro uma espécie de vala por onde corriam as
águas da chuva; junto das cercas serpejavam dois trilhos que serviam de caminho, e iam
dar à entrada das casas, para as quais subia-se por alguns degraus feitos de tijolo. Um
monturo, que servia de despejo às casinhas da vizinhança, ardia lentamente fazendo
grande fumaceira.
A casa do licenciado era a segunda; pouca diferença tinha das outras. Baixa, com duas
gelosias e uma porta, paredes caiadas de branco e beiradas saídas, o edifício dava
perfeita ideia da arquitetura do tempo. Ao lado esquerdo via-se o quintal coberto de
mamona e beldros, com touças de bananeiras; encostados ao oitão, o galinheiro, e uma
espécie de horto onde cresciam alguns pés de arruda, hortelã, manjericão e perpétuas.
Uma velhinha com saia de ganga amarela e manta escura de rebuço, que lhe cobria a
cabeça como um capuz de freira, de volta da missa entrara no poleiro, e fizera uma
revolução; as frangas cacarejavam, os galos batiam as asas, os pintos pipilavam, quando
felizmente para o povo galináceo o licenciado chegou a casa.
Apesar de serem nove horas do dia, a porta exterior estava fechada, como se usava
então, que não se tinha inventado a polícia, e cada um era obrigado a velar na segurança
própria; Vaz Caminha chegou ao canto da casa, e erguendo-se nas pontas dos pés para
ver por sobre a cerca do quintal, chamou a caseira.
— Euquéria! Abride, filha!
A velhinha correu tanto quanto o permitiam suas pernas curtas e trôpegas; decorrido um
momento, o licenciado entrava em seu cartório acompanhado de Estácio.
Duas altas estantes de livros, um telônio cheio de autos e papéis, um bufete e alguns
tamboretes rasos, eram os móveis que ornavam o gabinete, onde a luz filtrava amortecida
pelos vidros das janelas, cobertas da mesma poeira clássica que jazia sobre os grandes
alfarrábios, e das veneráveis teias de aranha suspensas ao teto.
— Vossa colação aí está sobre o bufete, senhor licenciado. Se não precisais de mim vou-
me aos pintainhos, que estão morrendo do mal triste.
— Ide, filha; eu cá me aviarei.
— Jesus! exclamou a caseira voltando a correr com as mãos na cabeça.
— Hein!... já pela manhã vos começam a aparecer as almas do outro mundo? disse Vaz
Caminha para a velha.
— Que Deus, Nosso Senhor, nos livre e guarde! Ai! só de falar já estou tremendo, minha
Virgem Santíssima! Mas vai, senhor licenciado, que por um triz não me escorrega ainda
hoje de vos dizer!... E três dias há que o trago mesmo aqui na ponta da língua! Quando
digo que estou já com esta cabeça varrida, não querem acreditar! Pois é assim!
— No fim das contas, o que há, Euquéria? Dizei-o de uma feita.
— É o vosso vinho, que está por um dedal. Daqueles dois odres que se encheram pela
Assunção, um encarquilhou que nem, com o devido respeito, o roquete do senhor deão; o
outro que aí tendes, bem escorropichado, muito dará, se der, um meio pichel.
— Bem, filha; havemos de prover ao necessário. Ide com Deus.
Vaz Caminha tirou o barrete e arrastou dois mochos para junto do bufete, onde havia
sobre o mantém de algodão grosso, porém de alvura deslumbrante, uma escudela com
três ovos escalfados, uma cestinha com bananas passadas, uma regueifa de pão e um
pichel de estanho polido como prata.
— Sentai-vos, pequeno, e refazei com o que há; não chega para regalo, mas basta para
quebrar o jejum.
— Não tenho fome, mestre; almoçai vós, eu esperarei.
— Por quê?... Os ouvidos nada têm com o estômago; se quereis, falai, que vos presto
atenção, e se não, fazei como vos aprouver.
Durante isto, o licenciado sentava-se ao bufete arregaçando as mangas, escorria no
canjirão o resto de vinho do odre pendurado por detrás de uma das estantes, e começava
seu parco almoço. Estácio de pé encostado ao telônio deixava que ele satisfizesse o
apetite para começar.
— Então? disse Vaz Caminha erguendo os olhos.
— Não é coisa de grande monta, replicou Estácio. Ontem pedi à tia o cofre que me deixou
minha mãe quando faleceu, para tirar algumas dobras guardadas numa bolsa, e deparou-
me o acaso com um papel do qual nunca tive notícia. Talvez me possais explicar o
sentido.
— De qual papel falais?
— De uma carta escrita a minha mãe, há cerca de quatro anos. Por sinal que ainda se
achava selada, disse o moço tirando do seio do gibão um papel dobrado e já amarelento.
— Lede essa carta.
Estácio desdobrou o papel e leu:
A D. Clara Dias Correia
Senhora
Para em minhas mãos um papel de mor valia que pertenceu a vosso falecido marido
Robério Dias; como seja demais precioso para sujeitá-lo a perda na remessa, mandareis
havê-lo por pessoa de confiança.
Em São Sebastião, aos 28 de setembro de 1604.
D. Diogo de Mariz.
Vaz Caminha perturbou-se de tal maneira ao ouvir as primeiras palavras, que levou a
naca de pão ao nariz, e ficou de boca aberta sem poder proferir uma palavra.
V - Quem era o licenciado Vaz Caminha, aliás doutor de capelo.
Vaz Caminha era natural da vila de Arraiolos, em Portugal, e descendente de uma família
de aldeões, para quem o mundo não existia além do estreito horizonte em que se
debuxava o campanário da igreja paroquial.
O futuro legista estava pois condenado a vegetar nos labores campestres, se a natureza
deserdando-o da robustez e vigor proverbial na família, não o houvesse predestinado
para uma vida espiritual e meditativa: nascera de sete meses e mostrara desde logo que
pouco desenvolvimento teria sua organização acanhada.
Os pais sentiam profundo anojo de ver aquele menino raquítico e débil, que tiritando de
frio e encolhido a um canto, acompanhava com a vista, nas longas tardes de inverno, os
brincos de dois rapagões fortes e rosados a saltarem no eirado da granja.
A mãe especialmente tinha tomado tal desgosto a esse fruto imaturo de suas entranhas,
que a não ser a solicitude de uma irmã, o menino não teria decerto sobrevivido à
indiferença e abandono em que ela o deixava; mas a Providência parece colocar sempre
ao lado das criaturas fracas e desamparadas um coração que as proteja e abrigue; é a
folha para a larva do inseto.
Felizmente um monge do Convento dos Loios tomou o menino sob sua proteção, e depois
de o haver feito aprender as pueris e gramaticais, mandou-o ouvir na Universidade de
Coimbra as aulas maiores de degredos; porém, o moço estudante preferiu dedicar-se à
jurisprudência, e seu protetor atendendo às boas disposições que mostrava, não o
contrariou.
Vaz Caminha cursou todas as cadeiras, das quais fez exame privado. Defendendo
sucessivamente as conclusões magnas exigidas pelo Estatuto da Universidade, tomou
um após outro os graus que então havia de bacharel, mestre, licenciado e doutor; e
ganhou na sábia congregação de Coimbra a fama de um dos mais profundos romanistas
do tempo.
O legista recolheu-se então à sua vila natal; aí, entregue às lides forenses, teve a nobre
ambição de ilustrar seu nome obscuro; aproveitando os momentos que lhe deixavam os
clientes, como depois fez Lobão, empreendeu escrever um Comentário às Ordenações
Manuelinas, obra de plano vasto, em que se investigavam as verdadeiras fontes daquele
código do direito português.
Correram os anos. Vaz Caminha concluiu sua obra, limou-a conforme o preceito de
Horácio, e sentiu o desejo muito natural de trazer à luz o fruto de suas longas vigílias; mas
então a imprensa era um luxo dispendioso, e as cópias em pergaminho, a que se recorria
na falta daquele agente da circulação, não custavam menos.
Ora, o foro de Arraiolos era escasso; o advogado poucas economias tinha feito, apesar da
parcimônia com que vivia; de modo que a obra estava condenada a jazer na arca de
papéis e autos, se um acontecimento imprevisto não viesse dar a seu autor uma
esperança de obter a fazenda necessária para a realização de seu grande desejo.
Criara-se em 1588 uma Relação na Bahia; desde que o tribunal começasse a funcionar, o
número das demandas aumentaria infalivelmente; no Brasil, terra abundante de ouro e
balda de letrados, os provarás e embargos deviam ser pagos por bom preço; um
advogado pois que se fosse ali estabelecer tinha todas as probabilidades de adquirir
rápida abastança.
Foi esse o raciocínio de Vaz Caminha, e devemos confessar que não pecava contra a
lógica; assim embalando-se na ideia risonha de poder realizar o sonho de sua vida,
resolveu definitivamente embarcar-se para a cidade do Salvador; deixou algumas
economias à irmã que velara sobre sua infância e ainda o acompanhava, e partiu para
Lisboa.
Um navio estava a fazer-se de vela, e nele ia um dos desembargadores da nova Relação,
Baltasar Ferraz, que encontramos feito provedor-mor da fazenda; o nosso advogado
aproveitou o ensejo, e obtendo uma passagem, deixou as terras da pátria, para ir procurar
longe os meios de dar-lhe uma prova do seu amor, e de erguer um monumento à sua
glória.
Com feliz travessia chegou ele à Bahia, e foi assentar os seus penates, isto é, suas
estantes, seus livros, seu telônio, seu manuscrito e a velha Euquéria naquela mesma
casinha por detrás da Sé; imediatamente os demandistas recorreram à experiência do
novo jurisconsulto, a quem o povo, ignorante das distinções acadêmicas, chamava
geralmente — o senhor licenciado.
Vaz Caminha, modesto como era, nenhum caso fez; mas não deixou de lhe causar
impressão o caráter especial do foro baiano. O advogado era apenas um conciliador de
partes; afora essa tarefa de nada servia; porque os embargos, os agravos e recursos
tinham sido substituídos por uma exceção peremptória não consignada no formulário dos
praxistas — a adaga ou o arcabuz.
Começavam-se muitos pleitos, porém todos eram decididos extrajudicialmente; os físicos
vendiam alguns récipes e os boticários as suas mezinhas; os padres ganhavam
frequentes encomendações; mas ao advogado nada rendia esse modo expedito de
terminar os processos. Assim Vaz Caminha compreendeu que antes da chegada da
Relação nada se podia fazer.
Desde então principiou um hábito que ele ainda conservava na ocasião em que o
encontramos; todos os dias ao raiar da alvorada saía de casa, e no seu passeio matutino
dirigia-se ao Largo da Sé, de onde se descortinava toda a baía. Ali ficava cerca de uma
hora com os olhos engolfados no horizonte a ver se enfim surgia o galeão, em que vinha
a desejada Relação.
Ora, esse galeão partira em meado de 1588 de Lisboa, tendo a seu bordo o Governador
Francisco Giraldes donatário dos Ilhéus, e os desembargadores nomeados para
instalarem o novo tribunal; sucedendo arribar duas vezes, os passageiros tomaram isso
como aviso do céu e deixaram-se ficar em Portugal.
Nem mais novas houve da Relação. Vaz Caminha resignou-se e continuou a magra
advocacia que pouco mais lhe rendia que em Arraiolos; então lembrando-se de algumas
lições de cravo que tomara em sua mocidade, aceitou o lugar de organista da Sé, o que
lhe deixava no fim do ano algumas patacas.
A gente que se ocupa da vida alheia chamava-o de avarento; mas ignorava que sublimes
sentimentos ocultava aquela restrita economia: não sabia que dos modestos lucros ele
mandava dar uma pensão em Portugal à irmã que lhe servira de mãe, e o resto destinava
para a publicação de sua obra, o maior serviço que podia prestar ao seu país.
Quando os rapazes que passavam para a escola, vendo-o que se dirigia para o Largo da
Sé triste e cabisbaixo, o perseguiam com risos e galhofas gritando — vais? vais,
Caminha? — mal pensavam que aquele homem que durante vinte anos, chovesse ou
fizesse sol, ia todas as manhãs olhar o mar e o horizonte, não se iludia já com a
esperança vã e ridícula de ver chegar o navio que trazia a Relação.
O que o levava lá era a saudade da pátria, a sublime nostalgia do velho que sente o corpo
vergar para uma terra, que não é a sua, e em cujo seio talvez descansarão suas cinzas,
entre gente estranha, longe do berço; o que ele ia ver não era nem o mar, nem os navios,
era sim o horizonte imenso, no fundo do qual os olhos d'alma lhe mostravam o modesto
painel de sua aldeia natal.
Que lhe importava que o mundo risse? As dores profundas e grandes se escondem nos
refolhos do coração, aí vivem, aí morrem, sem que a compaixão pública as profane; só
Deus lhes sabe o segredo, e lhes manda às vezes uma doce consolação na terra, ou lhes
guarda um prêmio no céu.
Para o licenciado essa consolação fora um menino.
Três anos depois que chegara à Bahia, em 1590, conheceu Robério Dias, o célebre
possuidor do segredo das minas de prata. Corria que voltava da Espanha descontente,
porque Filipe II lhe recusara o título de Marquês das Minas, que pedira como prêmio da
descoberta, e o nomeara apenas administrador. Viera ele esperar na cidade do Salvador
o novo Governador-Geral D. Francisco de Sousa, aproveitando o ensejo para passar
algum tempo com sua mulher, de quem andava ausente havia bom par de anos.
Robério sofrera uma grande decepção e era infeliz; não há laço que mais prenda e solde
duas almas do que a desgraça; tendo necessidade de consultar o advogado para deixar
os seus negócios em boa ordem, achou nele um conselheiro, que breve tornou-se amigo;
estabeleceu-se a intimidade, a tal ponto que, partindo para o sertão com o governador,
Robério, a quem um pressentimento cerrava o coração, abriu-se completamente com Vaz
Caminha e deixou-lhe o cuidado de velar sobre sua mulher e o filho que ela ainda trazia
no ventre.
O pequeno Estácio veio a ser um consolo para o legista, a quem a sorte negara o doce
sentimento da paternidade; esse menino e sua mãe criaram para o seu coração virgem
uma família espiritual, em cujo seio ia esquecer as saudades de sua boa irmã e as
lembranças de seu velho Portugal.
Um ano não era decorrido, quando Robério Dias adoeceu e morreu no sertão sem haver
revelado o segredo das minas de prata; este fato deixando órfã e ao desamparo aquela
criança, ainda ligou-a mais ao licenciado, que sentia necessidade de repartir com uma
criatura humana a afeição que votara aos seus queridos alfarrábios.
Cuidar da educação de Estácio foi imenso prazer para ele; ensinou ao menino as
humanidades; depois, modesto como era, e desejando dar-lhe uma instrução acabada,
entregou-o a mestres de primeira força; na idade de quinze anos o moço começou a
frequentar as aulas do Colégio dos Jesuítas, na qual tivera tais adiantamentos, que os
padres instavam para que ele entrasse na ordem.
Este projeto porém encontrou séria oposição da parte de Álvaro de Carvalho, que se
associara a Vaz Caminha na educação do moço e se incumbira de ensinar-lhe as artes da
cavalaria. O velho alcaide sonhava para seu protegido um mais brilhante futuro, que o da
roupeta.
Eis como se achavam as coisas no momento em que Estácio, acabando de ler a carta
dirigida a sua mãe por D. Diogo de Mariz, dobrava-a tranquilamente sem reparar na
alteração de fisionomia e na posição grotesca de Vaz Caminha.
— Podeis dizer-me, mestre, que papel é esse de mor valia, pertencente a meu falecido
pai?
O licenciado conseguiu restabelecer-se do abalo que sofrera; atirando-se a Estácio,
arrancou-lhe das mãos o papel e leu-o de novo, enquanto o moço olhava-o admirado da
singular excitação que pela primeira vez quebrava a pausada e fria gravidade do
advogado.
Quando acabou de ler, segurando o papel nos dedos trêmulos, voltou-se para o
estudante:
— Não sabeis a história de vosso pai?
— Sei dela o que me tem ensinado a tradição popular; contam que meu pai conhecia o
segredo de grandes minas de prata, que recusou descobrir por lhe haver El-Rei negado a
recompensa que pedia.
— A tradição mente, filho; Robério era incapaz de uma tal vilania; depois de haver
prometido cumpria.
— Mas então por que ainda hoje é desconhecido o segredo?
— Ouvide, filho; o que vou referir-vos foi dito há dezenove anos por Dias na véspera de
partir-se para o sertão, de onde um pressentimento lhe advertia que não devia voltar;
desde então ficou sepultado em mim, e só agora sai de meus lábios para vossa alma.
Assim, é como se vosso pai vos falasse do seu túmulo.
VI - Que dá uma versão da história do célebre Robério Dias.
O velho recolheu-se um instante.
Estácio comovido, preparava-se para escutá-lo.
— Estas famosas minas de prata do Brasil, que tanto mal têm feito, excitando a cobiça de
uns e causando a desgraça de outros, fazendo que reis esqueçam seus povos e
sacerdotes sua divina missão, foram achadas em 1587 por vosso avô, o Moribeca, de
uma maneira que ainda hoje se ignora.
— Ah! não foi meu pai!
— Para não esquecer o lugar e direção em que demoravam, deixou no tronco das árvores
em todo seu trajeto certos golpes que deviam orientá-lo em uma segunda jornada.
Infelizmente não a pôde levar a cabo; enfermou quando ordenava os aprestos dela, e na
hora derradeira chamou o filho e lhe comunicou sua descoberta.
Robério cuidou logo em fazer a jornada para aviventar os rumos e marcos apostos por
vosso avô, antes que o tempo e os acidentes os destruíssem. Partiu quase escoteiro,
seguindo as pegadas do pai e chegou ao lugar indicado.
— Quando isso? perguntou o moço.
— Em fins desse mesmo ano de 1587, ainda eu não estava no Brasil. Vosso pai, por
prudência e para não dar rebate aos garimpeiros que o acompanhavam, saiu do rancho
como para caçar. Seguindo as indicações, deu com a entrada da caverna; achou-se em
uma longa crasta subterrânea; havia escuridão profunda; mas com pouco o luar enfiando
pelas fendas da pedra, deu em cheio sobre aquelas paredes alvas e brilhantes; vosso pai
admirado julgou ver um palácio encantado no qual o pórtico, a fachada, as colunas, tudo
era de prata.
— E voltou carregado de riquezas?
— Não trouxe nem uma oitava de metal; seria revelar o segredo e expor as minas à
ambição de todos que o acompanhavam, tanto mais quando de repente foi surpreendido
pelas vozes de alguns que se aproximavam. Resistiu à tentação e voltou como fora. De
volta à Bahia, caso de maravilhar, encontrou na voz do povo, e assoalhada por toda a
cidade, a nova da descoberta. Disse-me Robério que atribuía esses boatos à muita cópia
de prata em alfaias que vosso avô havia mercado, logo após sua chegada do sertão; e de
feito, casa alguma rica da Bahia competia com a vossa, Estácio, em baixela e copa.
— Agora come-se nela em escudela de pau, e bebe-se em pichel de estanho!
— É a lei deste mundo, filho; devemos nos resignar. Vosso pai tivera o cuidado de
substituir os primeiros sinais por outros de mais dura, bem como de escrever a rota da
jornada de modo a poder em qualquer tempo ir com segurança e presteza às minas.
— Ah! é esse roteiro que D. Diogo de Mariz anuncia?... exclamou Estácio.
— Esperai! acudiu o licenciado interrompendo-o com brandura. Era o primeiro intento de
Robério empreender por si mesmo a exploração das minas; mas os boatos que
começaram de correr, como vos disse, o fizeram mudar de parecer.
— Foi então que passou às Espanhas?
— Sim; refletiu, e julgou que melhor era seguir rumo direito; embarcou-se para o reino;
levava o roteiro dentro de uma bolsa de couro que nunca o deixava. Por infelicidade
precedia-o a fama do que ia fazer; depois de oferecer o segredo das minas a Filipe II, que
lhe prometeu de seu moto próprio o título de marquês, quando abriu a bolsa para entregar
o manuscrito, não o achou; tinham-no roubado.
— Ah!... balbuciou Estácio cujos olhos brilharam de indignação.
— El-Rei, desconfiado como era, não conhecendo o caráter do homem que com ele
tratava, suspeitou um embuste; voltou atrás; e proveu D. Francisco de Sousa no governo
para vir ao descobrimento das minas, nomeando vosso pai simples administrador.
— Apesar de perdido o roteiro?
— Robério afirmou ao rei, que sua memória supriria o papel; e Filipe II receando que
outrem lograsse o tesouro, tomou aquela resolução. Robério veio então para esta cidade
esperar o governador, e aqui durante dezoito meses de estada tive eu a dita de conhecê-
lo; um ano depois partia para não tornar, deixando a meu cuidado vossa mãe que vos
trazia ainda no ventre.
— Terminai!... exclamou o moço.
— O resto sabeis: são as desgraças que enlutaram vosso berço, filho. Robério confiou
demais da sua memória, na qual cinco anos de cuidados e tributações tinham apagado a
reminiscência da primeira jornada; por fim, depois de esforços baldados, tido como falso e
embusteiro, ele, a honradez em pessoa, foi preso de uma febre maligna, e finou-se no
delírio que lhe mostrava ainda uma vez a visão daquela tarde, em que entrara nas minas.
O Governador D. Francisco de Sousa dera conta a El-Rei do que passara, e sobre as
cinzas ainda quentes de vosso pai executava-se a sentença de confiscação que vos
reduziu à extrema pobreza.
O moço enxugou a lágrima que tremulou em seus olhos límpidos; e beijou com ternura e
respeito filial as mãos secas do velho.
— Depois vós me servistes de pai, e quando, vai para cinco anos, minha mãe deixou-me
para ir-se aonde a chamava seu esposo, fostes vós ainda que tomastes o lugar que ela
ocupava neste mundo.
— Não falemos disto, disse o licenciado passando a manga pelos olhos; o passado é dos
velhos, pequeno; aos mancebos deu Deus o futuro. Ele vos pertence; podeis realizar a
obra de vosso pai. O papel de que fala esta carta é o roteiro de Robério; não pode ser
outro.
— Assim, eu sou rico! disse o moço como acordando de um sonho.
— Rico é o menos; tendes em vossas mãos um grande poder; o ponto é saberdes usá-lo.
— Me guiareis com a vossa experiência; ensinareis a gozar da riqueza àquele a quem
ensinastes a suportar a pobreza.
— Em tempo praticaremos sobre isso; hoje tendes o espírito todo empregado em
folguedos e festas.
— É verdade! respondeu Estácio lembrando-se de Inesita; agora mal vos escutaria.
— Ide, ide, pequeno, onde vai o vosso pensamento; não vos demoro. Somente lembrai-
vos que esta carta é mais que a vossa felicidade, é a reabilitação da memória de vosso
pai.
— Não o esquecerei nunca, mestre.
— Guardai-a, e o segredo que ela encerra, como um arcano; tirai exemplo da desgraça
de Robério.
— Não pode estar melhor do que em vossas mãos, respondeu o moço entregando-lhe o
papel.
— Não, filho, um velho fraco e inerme, é má guarda de tesouro tamanho, a alma é
impenetrável, mas o corpo facilmente se quebra. Sois moço e valente cavalheiro; a
riqueza mudou-vos de repente a carreira; habituai-vos desde já a trazer a vossa fortuna,
como a vossa honra, na ponta de vossa espada.
— Então vossos projetos?...
— A Providência acaba de destruí-los.
Mais estabelecidos das comoções por que tinham passado, o velho voltou ao seu almoço,
e Estácio escondendo no seio o papel, dispôs-se a partir.
— Uma coisa porém me parece obscura ainda.
— Apontai-a, filho, que vo-la explicarei podendo.
— Por que esta carta que continha tão importante revelação estava ainda fechada com o
fio preto que a selava? Por que nunca minha mãe falou-me dela? Quem a entregou?
— O escrito traz a data de 28 de setembro de 1604; que no mesmo dia partisse de São
Sebastião, devia chegar aqui meado de outubro; vossa mãe já estava sacramentada; uma
semana depois rezávamos por sua alma; a carta que lhe trouxeram ficou pois na caixinha
onde guardava suas alfaias, tal como a tinham entregado. Quanto ao mensageiro, decerto
algum colono que passou ao reino ou a esta capitania.
— E esse homem não devassaria o segredo? disse Estácio tomado de súbita inquietação.
— É claro que não, respondeu o licenciado com o acento da convicção.
— Como o afirmais?
— Se ele soubesse o conteúdo da carta, não a entregaria, e por si, ou por terceiro, se
apresentaria a D. Diogo de Mariz para receber o papel.
— Tendes razão. E estais informado da pessoa que é esse D. Diogo?
— É o provedor-mor da Fazenda de São Sebastião; bom português, fidalgo às direitas,
descendente da casa dos Marizes, uma das melhores do tempo do Senhor D. Afonso
Henriques, que Deus tem. É filho de D. Antônio de Mariz, que prestou grandes serviços no
governo do Sr. D. Antônio Salema, e há anos correu ter perecido às mãos do gentio
aimoré.
— Julgais então que durante os quatro anos que passaram, ele tenha fielmente guardado
o roteiro?
— Não conheceis um português, Estácio! Com esta sede de ouro que traz ao Brasil tantos
aventureiros, os costumes dos nossos maiores se perderam; mas entre estes ainda há
cavalheiros que sabem o que devem à sua honra e aos seus brios. D. Diogo de Mariz é
um dos poucos dessa raça que lá se vai com o seu tempo; o roteiro, se o não roubaram,
ainda está em seu poder e intato.
— Quando assentais que deva partir? perguntou o moço com certa vivacidade.
— Devagar, filho; depois trataremos disso. Festina lente.
A citação latina anunciou ao moço que Vaz Caminha ia apresentar-se sob um aspecto que
já conhecemos.
Com efeito havia naquela exótica figura três homens diversos.
Um era o homem de sentimento e efusão, que só a Estácio se revelava nos momentos de
intimidade: uma bela alma fechada num corpo grotesco; uma pérola fina escondida em
casca rude e grosseira.
O outro era o homem do foro, o advogado seco e dogmático, inflexível no raciocínio,
recheado de textos romanos, armado com o ergo formidável que acentuava as
conclusões de sua lógica de aço; a necessidade de ganhar os meios de subsistência tinha
criado essa personalidade, que sendo a menos verdadeira, era a que a todos se
manifestava.
O terceiro homem, que havia dentro daquela organização raquítica, era o homem de
talento, o autor ainda desconhecido de uma obra concebida e realizada durante muitos
anos de trabalho e longas noites de insônia. Espírito vivendo no futuro, alimentado pelo
fogo íntimo que queima lentamente, absorvido na gestação de um pensamento grande,
ninguém o compreendia; a ninguém se revelava nessa última fase de sua vida. Era um
mistério entre ele, a candeia que o alumiava e Deus que o encorajava.
Os três elementos dessa organização tinham constituído uma vida à parte; cada uma das
fases da tríplice existência tinha seu órgão diverso e sua esfera distinta.
No primeiro homem funcionava o coração; no segundo a vontade; no terceiro a
inteligência.
Pai espiritual e amigo pela necessidade de amar; advogado pela obrigação de se
alimentar e socorrer sua irmã; autor pela febre d’alma que excita o espírito a criar alguma
coisa, e deixar durante a rápida passagem neste mundo seu nome impresso e seu
pensamento materializado em algum objeto.
Ora, Estácio amava seu mestre; mas respeitando o advogado, sentia uma certa
dissonância entre seu caráter leal e a lógica forense que arma-se muitas vezes do
sofisma para escurecer a verdade; por isso apenas Vaz Caminha anunciou com o
primeiro texto latino que o jurisconsulto ia aparecer, o mancebo apertando-lhe a mão,
partiu.
Ia seu caminho bem preocupado com os pensamentos que lhe suscitara a revelação de
seu padrinho, e por isso não ouvia que o chamavam.
— Psiu!... Psiu!... Senhor cavalheiro!
Brásia corria após ele e o alcançou.
— Fazei a mercê de esperar, meu rico senhor!
— Que desejais, mulher?
— Certa dama que vos viu na missa está tão rendida de vosso gentil parecer, que
ansiosamente deseja falar-vos um instante que seja.
Estácio ficou surpreso e passado; não era mancebo de aventuras; nunca as tivera, nem
mesmo as sonhara. Ficou pois a olhar mui sério, para a aia, sem lhe ocorrer alguma
resposta.
— Que lhe hei de eu levar à formosa dama, meu rico senhor?
— Dir-lhe-eis que este seu servo não merece seu agrado, e nem já se pertence, pois
rendeu-se cativo de outros encantos, tornou Estácio gravemente.
A Brásia titubeou; mas logo espevitada acudiu:
— Mas, gentil namorado, não me entendestes ou eu não me expliquei assaz... Não sou
correio de Cupido, que bem diversa é a incumbência que trago!... A dama, sabendo da
vossa bizarria, quer valer-se dela, para seu amparo!
— Ah! então carece ela de mim?
— Pois que tão apressada me mandou...
— Onde a posso eu encontrar?
— Esta mesma noite de hoje, ao escurecer. Ficai parado no adro de Santa Luzia, olhando
fito para as bandas do mar.
— Esta noite não poderei, pois devo estar no torneio.
— É verdade, mas em acabando ele?
— Lá estarei, se for por instantes, pois devo voltar para o sarau.
— Pois sim, disse a Brásia esgueirando-se.
Entretanto o legista terminava tranquilamente seu almoço, e se dispunha a sair de novo,
quando o vultozinho da tia Euquéria assomou à porta.
— O pequeno já se foi, senhor licenciado? perguntou ela.
— Agora mesmo saiu; ainda não dobrou o canto. Por quê?
— É pena que se fosse; podia dar-me uma demão para cortar lá no horto um cachinho de
bananas que estão a cair de maduras! Faz gosto ver!
— Pois Euquéria, disse Vaz com ar severo, é essa incumbência que quereis dar a um
moço cavalheiro?
— Ai!... tal não me lembrou, Senhor Vaz; mas não leveis a mal, que me arrependo, e dos
arrependidos é o reino do céu. Como ele foi quase criado aqui...
— Contudo já é um homem...
— Um rapaz, resmungou a velha; para homem ainda lhe falta muito. Porém as frutinhas?
Ficam perdidas? Mete dó! Já estão sorvando!
— Não vos amofineis, Euquéria, há de se arranjar.
— Como, é que eu não sei, porque o cacho não é lá muito baixo, e nem vós mesmo,
senhor licenciado, com serdes de boa altura, podeis deitar-lhe a mão.
Com efeito Vaz Caminha tinha mais meia polegada que a sua caseira.
— Talvez por aí venha logo mestre Bartolomeu, disse Vaz Caminha.
— Esse sim! Era um achado! Mas virá ele?
— É natural.
— Pois vou preparar meu tabuleiro para pô-las à seca. Não gostastes dessas passas que
vos servi na colação?
— Não desgostei, não; estavam tenras.
— Sabem, assim assim, com os nossos figos de Arraiolos, não é verdade, Senhor Vaz?
Se nós os tivéssemos cá? Que de anos não lhes tomo o gosto! Fazem bem pela
Páscoa...
E a velhinha começou de fazer a conta.
O licenciado deixou-a nessa profunda elucubração; tomando o barrete e sua cana de
Bengala, ganhou a rua e seguiu para as bandas do Colégio dos Jesuítas.
VII - Que trata das novas do reino e do mais que seguiu-se.
A poucos passos de casa, o advogado encontrou o desembargador Baltazar Ferraz, seu
antigo companheiro de viagem, que como ele, esperara debalde pela encantada Relação,
e afinal se consolara de sua inércia forense nas lidas financeiras do cargo de provedor-
mor da Fazenda.
O magistrado voltava de palácio, onde deixara o governador ocupado com a leitura dos
despachos reservados que vinham do reino.
— Então, doctor, não foi ainda desta vez!... Nada de Relação.
— Virá quando Deus for servido, e El-Rei o ordenar, senhor desembargador. Quais novas
do reino? Boas?
— Não sei, se boas, se más; sei que são importantes. El-Rei houve por bem dividir outra
vez seu Estado do Brasil em dois governos, separando as capitanias do Sul.
— El-Rei terá razão de assim proceder, Senhor Baltasar Ferraz; mas não é menos certo
que pouco avança, quem não segue rumo direito. Ainda em 1577 se uniam os dois
governos, e já os dividem!
— Pensais com acerto, Doutor Vaz Caminha. Porém não pensam assim os vossos
amigos, que tão certo como ser hoje quinta-feira, foram os motores disso.
— Falais dos padres, senhor desembargador?
— Falo dos da Companhia de Jesus, que bem conheceis.
— Ubi effectus, ibi causa. Que interesse podem ter eles na divisão?
— O de vingar-se de D. Diogo de Menezes, pela audácia de lembrar-lhes o texto das
Santas Escrituras. Os filhos de Jesus costumam esquecer que seu reino non est de hoc
mundo.
— Estou que vos enganais, senhor provedor.
— O tempo vos abrirá os olhos, Senhor Vaz Caminha.
— Sabe-se já quem foi o provido no governo do Sul?
— D. Francisco de Sousa há muito o estava por carta régia de 2 de janeiro passado.
— D. Francisco de Sousa!... É o que veio há anos em cata das minas de prata de Robério
Dias?
— O mesmo, e desta vez traz não só o provimento de governador, como a
superintendência das minas, com regalia de conceder foro de fidalgo e hábitos nas três
ordens, passando por morte a sucessão a seu filho, independente da confirmação de El-
Rei.
— Julgais então que os padres da Companhia para humilhar D. Diogo de Menezes
obtiveram tudo isto?
— É fora de dúvida. Quem, se não eles, obteriam prerrogativas, como governador algum
ainda as teve?
O licenciado abanou a cabeça.
— Afora estas, não há outras novas?
— Conta o sargento-mor que os desembargadores nomeados ficavam a partir para virem
instalar nesta cidade a nova Relação; mas tantas vezes nos tem chegado a mesma
notícia, que já não há crer nela.
— Chegarão quando menos os esperarem. E passageiros? Muitos?
— Algumas famílias de Ilhéus para a colonização das terras, e um padre da Companhia.
— Só um? perguntou Vaz Caminha.
— Achais que são poucos os que já existem em sua casa do Terreiro? Orçam por noventa
e tantos!
— Não é isso que me causou estranheza, senhor desembargador; poucos ou muitos,
nada tenho com o número; é natural que onde sobra o trabalho das reduções e
apostolados, mais se empenhem as forças da Companhia. Por outro motivo pareceu-me
singular a vinda do padre.
— Por que, doutor? Não andam eles sempre de arribação?
— Sim; mas não se manda um soldado para aumentar a guarnição de uma praça, senhor
provedor.
— O que se manda então?
— Manda-se um bom cabo de guerra para defendê-la; ou um mensageiro para levar-lhe
instruções superiores.
— É possível que assim aconteça. O que for soará, respondeu o provedor despedindo-se.
O licenciado continuou seu caminho refletindo sobre a conversa que tivera com o
Desembargador Baltasar Ferraz.
Não era que o seu espírito andasse ocupado com as questões da governança da terra;
em sua posição modesta e com seu gênio, nunca aspirara a fazer o papel de político; e
até recusara em 1562 representar a vila de Arraiolos em Cortes, desviando de si os votos
do Conselho, e fazendo nomear outro procurador.
Mas os homens de inteligência, habituados ao estudo e meditação, não se podem
conservar indiferentes aos fatos de importância que passam sob seus olhos: embora não
lhes interessem de perto, sentem eles a necessidade de os apreciar. A inteligência é ímã
também; atrai o que entra em sua atmosfera.
Estranhava que o governo espanhol em vez de conservar a unidade da administração
colonial, imagem da unidade da monarquia, voltasse ao antigo sistema da divisão que
pouco havia fora condenado; não acreditava que uma simples vingançazinha dos jesuítas
desse causa àquela mudança repentina e impolítica.
No meio dessas reflexões uma ideia passou-lhe de relance pelo espírito.
A lembrança da cena que há pouco tivera lugar em sua casa entre ele e Estácio; a
coincidência de ser o novo Governador D. Francisco de Sousa, o mesmo que em 1591
viera com Robério Dias ao descobrimento das minas de prata; o fato da existência do
roteiro que se julgava perdido; todas essas circunstâncias, apresentando-se de repente e
conjuntas a um espírito sagaz e profundo como o seu, deviam impressionar.
A ambição insaciável dos reis de Espanha, os quais desde a descoberta do Novo Mundo,
sugavam o sangue da América para arrancar do seio dessa terra o ouro e as pedras
preciosas que a natureza aí depositara; o desejo de obter as famosas minas de prata,
cuja abundância e riqueza a tradição popular havia engrandecido, explicariam
perfeitamente a nova política e a nomeação de outro governador e superintendente.
Também não deixava de causar certo reparo ao nosso advogado a chegada do jesuíta,
que naturalmente, como fizera sentir ao provedor, vinha incumbido de alguma missão
importante; qual ela fosse, é o que ele não podia adivinhar. Isso o inquietava
involuntariamente. Um quer que seja lhe fazia recear que o segredo de Estácio se
achasse envolvido em todos esses acontecimentos.
— Cuidemos de sondar os ânimos! disse entre si.
Assim pensativo atravessava o doutor o Largo da Sé, quando lhe ocorreu a advertência
da tia Euquéria, de que a sua provisão de vinho das Canárias já estava exausta, e pois
carecia nova para o dia seguinte. Quebrou na primeira travessa em busca de uma taverna
muito afreguesada, que havia ali perto, servida por um tal Brás Judengo.
A varanda da taverna ainda estava deserta e a porta cerrada; porém Vaz Caminha, como
freguês antigo, penetrou no interior. Já ele vinha do fundo desenganado de encontrar viva
alma com quem falasse, um murmúrio de vozes abafadas feriu-lhe o ouvido. O advogado
sondou com o olhar os cantos escuros do aposento.
Viu no fundo uma fresta triangular interiormente esclarecida por uma candeia.
— Bom! pensou Vaz Caminha. Está justamente na adega.
De fato, a fresta dava para o vão subterrâneo de uma escada onde o bodegueiro havia
construído a cava dos vinhos. Enfiando o olhar pela abertura, o advogado pôde ver e
ouvir distintamente o que passava no interior.
Na estreita área ladrilhada, que formava o fundo da adega, estavam dois homens
sentados em face de um e outro lado da quartola, cujo tampo lhes servia de mesa; outros
barrilotes deitados faziam as vezes de tamboretes.
A candeia, colocada sobre um tijolo saliente da parede, projetava a luz de chapa sobre o
meio perfil dos dois companheiros.
Um deles era um negro, moço e robusto, cuja tez escura refletia os raios da luz, como o
lustro do jacarandá polido. Tinha a feição comprimida peculiar à sua raça: o olhar pesado
e torvo; nos lábios grossos, o sorriso carnal da animalidade africana. Com os cotovelos
apoiados sobre o arco da quartola acompanhava os movimentos do outro.
Era esse o taverneiro, o Brás Judengo, como o chamava o vulgo; homem de estatura
meã, entre gordo e magro, de cabelo preto corrido e barba ruiva encarapinhada; espécie
de ecletismo vivo no moral como no físico; alma anfíbia, habitando no vício tão bem como
na virtude.
Não professava religião alguma, porém usava de todas: era ao mesmo tempo pelos
padres da Companhia e pelos senhores de engenho, a favor e contra a liberdade dos
índios; vivia bem com o alcaide e com os ratoneiros; acoutava negros fugidos e também
os entregava aos donos quando lhe davam pingue espórtula.
Seu verdadeiro nome era Joaquim Brás; pelo menos assim foi dado o rol na Câmara,
quando se tratara do assentamento dos moradores e vizinhos do Conselho. Desse nome
usava ele sempre que traficava com os mercadores judeus. Neste caso pronunciava
Baraz e escrevia Joakim com k em vez de q; isso dava à assinatura certo cheiro de velho
testamento, bastante para conciliar a benevolência dos vendedores, e não tanto que
comprometesse.
Se vivera nos tempos modernos, o Sr. Brás (Joaquim) ou Joakim Baraz faria um
importante papel na política; e primaria sem dúvida entre os mestres de certa escola, que
aceita todos os princípios e apoia todos os governos.
O Brás naquele momento acabava de riscar a giz sobre o chantel do barrilote diversos
traços que figuravam a tosca planta do interior de um edifício.
— Pronto! exclamou ele largando o giz e enchendo na mesma quartola, que lhe servia de
mesa, uma caneca de vinho.
E continuou, depois de beber:
— O dinheiro está por baixo do oratório, não é?
O negro acenou com a cabeça:
— Aqui, respondeu assentando a ponta do dedo sobre um dos traços de giz.
— Então, replicou o Brás, bem vês, Lucas, que tenho razão: é melhor cavar dentro da
casa. Anda mais lesto e vai-se pela certa!
— Não! disse o negro com a palavra breve e decidida. Dentro não se pode; há de ser por
fora.
— Mas vem cá, filho! Devagar, que é o meio de apressar.
O bodegueiro designou a planta.
— Se o oratório está aqui, temos que para lá chegar, carece atravessar a recâmera da
dona. Ora, cavar tudo isto por baixo da terra, não é cavar um queijo do Alentejo.
— Gimbo muito! Paga a pena, retorquiu o negro.
— E a dona não há de ouvir, quando estiverem a cavar por baixo da cama dela?
— É não fazer barulho.
— Custa pouco a dizer: Beba, mas não engula! O som do ferro no chão, por força que se
há de ouvir, filho de São Benedito!
— Pois a querer, é assim! disse o negro, que se ergueu resolutamente e bateu com a
palma da mão no barrilote. Dentro da casa ninguém entra, que não deixo eu!
— Está bem! acudiu o bodegueiro, não vai a zangar. Tudo se arranja.
O advogado apenas teve tempo de ganhar a varanda, antes que os dois interlocutores
assomassem no topo da escada subterrânea.
— Ó de casa! disse Vaz Caminha batendo com a bengala no ladrilho. Não há quem acuda
aos fregueses?
— Já se vai! Já se vai! gritou o Judengo, supondo que batiam à porta da rua.
— Ora sejais bem aparecido, sô taverneiro! Tarde madrugais, para que vos Deus ajude.
— O senhor licenciado!... Cá dentro?... Por onde entrou sua mercê? exclamou o
taverneiro arregalando os olhos.
— Não está má! Pela porta! Queríeis que entrasse pela janela?
— Mas se a porta estava fechada!
— Tanto não estava, que por ela entrei eu!
E como o Brás embatucasse, continuou o advogado rindo maliciosamente:
— A isto chama-se no digesto, mestre Brás, provar in continenti pela vista dos olhos,
aspectu.
O bodegueiro disparatou afinal:
— Já sei! Foi aquele maldito que se pôs ao fresco e deixou-me às escâncaras, em risco
de me limparem a casa!... Martim! Martim! Diabrete, filhote do demo, com perdão de sua
mercê, senhor licenciado! Anda por aí de bródio! Não tem que ver!... Deixa estar, cão, que
eu te guardarei boa pitança.
Quando o bodegueiro acabou de vociferar e acalmou o furor que o tomara por ver a porta
aberta, Vaz Caminha apreçou o vinho e continuou seu itinerário. Mal tinha ele dado uns
trinta passos na rua, o negro, que o seguira de longe, entregou-lhe uma carta.
Vinha na capa o seguinte endereço:
Para o Sr. Vaz Caminha, letrado da Bahia, que mora por detrás da Sé.
— Quem te manda? perguntou o advogado reconhecendo no portador o companheiro de
Brás na adega.
— O papel diz, respondeu Lucas.
O advogado rompeu o selo, augurando mal daquela estranha missiva; a carta continha
estas palavras:
Pessoa que tem razão de segredo, muito deseja aconselhar-se com o senhor licenciado.
Não permitindo seu sexo e posição que o procure ela, pede para vir à sua casa esta
mesma noite de hoje, depois do sino de recolher. Um escravo fiel acompanhará sua
mercê.
— Senhor vai? perguntou Lucas, vendo o advogado dobrar lentamente o papel.
Vaz Caminha fitou os olhos vivos na face do negro; sentiu um ligeiro estremecimento,
recordando a cena misteriosa da adega; não obstante respondeu com a voz clara, ainda
que um tanto baixa:
— Irei, filho, irei!
— Depois do sino?
— Onde te encontrarei?
— Na bodega, respondeu Lucas.
— Aqui serei a ponto.
Não foi sem inquietação, sem medo, digamos francamente, que Vaz Caminha se meteu
naquela arriscada aventura; porém o advogado tinha, em falta da coragem física, a
coragem moral dos homens de vontade firme. De mais, que interesse havia em atentar
contra sua vida, que a ninguém prejudicava?
Tomando pela Rua dos Mercadores, o licenciado foi sair no Terreiro, junto ao Colégio dos
Jesuítas, vasto e belo edifício que ocupava uma das faces do largo, com a frente voltada
para o nascente.
No meio do Terreiro via-se armada em vasto círculo uma paliçada, que abria para o lado
do convento e rematava nos cantos com palanques alcatifados de rases e lambéis de
cores vivas. Nas ruas próximas e no largo havia profusão de folhas aromáticas que
serviam de tapete; as escadas e os estrados porém estavam cobertos de lindos panos de
Flandres com vistosas ramagens.
Muitos oficiais mecânicos, carpinteiros e capelistas, trabalhavam ainda nos preparativos
dos festejos da tarde; os primeiros erguiam as colunas e arcos que tinham de servir aos
diversos jogos; os segundos pregavam as telas, e armavam sobre os assentos
preparados para as damas os ligeiros toldos de tafetá, que deviam resguardar os
formosos rostos dos raios do sol.
O licenciado deu uma vista indiferente àqueles trabalhos, e atravessando o Terreiro,
entrou a larga portaria do convento, aberta pelo Irmão Bernardo, que se desfez em
mesuras ao visitante.
— Servus servorum!
— De Deus, de quem todos o somos, Irmão Bernardo. Como vai o vosso achaque?
— Sempre na mesma, senhor licenciado! Um cansaço... Ah!... que nem posso com este
corpo.
O achaque do irmão porteiro era a preguiça, que ele diagnosticara — afrontação.
No rés do chão do edifício ficavam, de um lado as vastas salas do refeitório e a rouparia,
do outro o pátio, nome que davam os jesuítas às aulas de latim e mais estudos menores;
no fundo viam-se por entre as grades das janelas o horto e a grande cerca do convento, a
qual ia ter ao mar.
Enquanto Vaz Caminha subia os primeiros degraus da escada de pedra, que conduzia
aos aposentos superiores, assomou no topo a figura de um frade já quebrado pelos anos,
o qual tendo visto pela janela entrar o advogado, fora cortesmente ao seu encontro.
— Ave, doctor, semper amabilis! disse o jesuíta com a expressão da mais viva
cordialidade.
— Gratia vobis, pater provincialis, respondeu o legista com igual expressão.
E acabando de subir, apertou a mão que lhe estendia o Provincial Fernão Cardim.
— É de mister que Deus mande um dia de ano-bom, para que os seus servos possam ter-
vos nesta sua casa.
— Tão poucas não são as festas do ano, padre provincial; e elas não passam sem me ver
sentado à mesa deste convento, onde a vossa amizade me acolhe com verdadeiras
mostras de bondade.
— Não é razão, carissime doctor, para nos privar de vossa companhia nos dias não
santificados; se eu fora vosso confessor, vos daria essa penitência por algum
pecadozinho que deveis ter cometido na mocidade.
— Não era preciso ir tão longe; hoje mesmo, padre provincial. Sou homem, e o salmista o
disse: Homo, natus de muliere, repletur multis miseriis...
— Livre-nos Deus de ofender vossa modéstia. Mas passando a assunto profano, vindes
disposto a jogar nossa partida do costume?
— Decerto, e por sinal que me deveis uma desforra da última vez. Preparastes um lance
que me desorientou bastante.
— É verdade! respondeu o provincial, esfregando as mãos com visível satisfação. Avancei
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  • 1. José de Alencar AS MINAS DE PRATA (ROMANCE) PRIMEIRA PARTE Em que se faz conhecimento com dois mancebos de boas prendas. Raiava o ano de 1609. A primeira manhã de janeiro, esfolhando a luz serena pelos horizontes puros e diáfanos, dourava o cabeço dos montes que cingem a linda Bahia do Salvador, e desenhava sobre o matiz de opala e púrpura o soberbo panorama da antiga capital do Brasil. A cidade nascente apenas, mas louçã e gentil, elevando aos ares as grimpas de suas torres, olhando o mar que se alisava a seus pés como uma alcatifa de veludo, era então, pelo direito da beleza e pela razão da progenitura, a rainha do império selvagem que dormia ainda no seio das virgens florestas. A natureza preparara no grupo de outeiros apinhados um trono de relva sobre o qual a linda cidade dominava o oceano, sorrindo ao nauta que da extrema do horizonte a saudava com um olhar amigo, para dar-lhe o bom-dia se chegava, e enviar-lhe o último adeus quando se partia. Despertando com os primeiros raios da alvorada, a população baiana recobrava a atividade depois do repouso. As casas se abriam para receber o ar e a luz da manhã; a pouco e pouco os mil rumores do dia, que são a voz das cidades, iam enchendo o espaço antes ocupado pelo silêncio e pelas trevas. Os mesteirais e vilãos já percorriam as ruas, não com a calma e regularidade de homens que vão ao trabalho ou ao cumprimento da obrigação diária, mas com a agitação doce e a jovial sofreguidão de quem busca o prazer e corre após uma alegre esperança. Vestidos com maior apuro do que punham nos trajes domingueiros, homens e mulheres saudavam-se entre si com tal efusão, desejando as boas saídas e estreias de ano; apertavam as mãos com tamanha cordialidade, que percebia-se na disposição geral dos ânimos a doce influência de um motivo qualquer de regozijo público. Com efeito não era a festa do Ano-Bom a causa única da jovial expansão; outra havia. Aquele dia estava marcado para os festejos com que a Bahia desejava solenizar a
  • 2. chegada do novo Governador-Geral do Estado do Brasil, D. Diogo de Menezes e Siqueira, que depois de haver permanecido um ano na Capitania de Pernambuco para dispor sobre coisas da administração, aportara finalmente à capital no dia 17 de dezembro de 1608. Não havia exemplo de semelhantes demonstrações em uma cidade onde os governadores e capitães-generais, revestidos de poderes absolutos, eram recebidos com desconfiança, e muitas vezes despedidos com alegria. Mas D. Diogo de Menezes, depois Conde da Ericeira, e um dos abalizados varões que governaram o Estado do Brasil, merecia pelo seu nobre caráter e espírito superior uma demonstração especial da parte dos baianos. Contudo, essa única circunstância não bastara para excitar na classe rica o desejo de receber o novo governador com festas públicas, se o interesse, primeira lei das ações humanas, não inspirasse o mesmo pensamento como um hábil expediente de política colonial. Durante o tempo que se demorara em Pernambuco, D. Diogo de Menezes tinha revelado sua força de vontade, e mostrara o firme propósito de repelir a intervenção que o Bispo D. Constantino Barradas e a Companhia de Jesus exerciam anteriormente sobre o governo temporal. A luta se travara com uma questão de etiqueta e precedência, a que dera lugar a procissão do Corpo de Deus celebrada em Olinda. Justamente nessa época os senhores de engenho, que formavam a classe nobre e rica da Bahia, sustentavam contra os jesuítas a grande questão da servidão dos índios, e compreendiam a vantagem de ter de seu lado um homem como D. Diogo de Menezes, cujo voto autorizado devia pesar nas decisões do Conselho da Índia e no ânimo de El-Rei D. Filipe III. Por isso, chegado que foi o governador, se concertaram para fazer-lhe uma recepção brilhante. Em quatorze dias estavam concluídos todos os preparativos e aprestos necessários para solenizar com a entrada do ano os benefícios do novo governo. O programa do festejo primava pela variedade e boa escolha. Depois da missa cantada, seguida de Te Deum, havia alardo da gente de guerra e companhias de ordenanças em frente aos paços; à tarde devia correr-se no Terreiro do Colégio uma luzida cavalhada com a qual se dariam jogos, torneios e alcanzias; à noite danças pelas ruas e arcos de luminárias concertados com palmeiras ou festões de flores na Praça do Governador. Não era preciso tanto para excitar a imaginação viva da mocidade baiana e fazer girar
  • 3. como corrupios todas as comadres devotas e mexeriqueiras, de que a metrópole brasileira já naquele tempo estava abundantemente provida. A Bahia não passava então de uma pequena cidade habitada por cerca de mil e quinhentas almas; mas seus vizinhos eram abastados e gostavam do luxo; havia muitos colonos ricos de fazendas de raiz, peças de prata e ouro, jaezes de cavalo e alfaias de casa; alguns tinham o melhor de cinco mil cruzados de renda, e diz Gabriel Soares, “tratavam suas pessoas mui honradamente com muitos cavalos, criados e escravos”. Esses cabedais que atualmente parecem mesquinhos, eram naquele tempo avultados; a facilidade com que se adquiriam e o gênio natural da população inclinada ao fausto e prodigalidade alimentavam na Bahia e Pernambuco um luxo superior ao de Lisboa, e entretinham o gosto pelas festas e divertimentos. Não há pois admirar se a Capital do Brasil despertou quinta-feira, 1.º de janeiro de 1609, possuída do alvoroto agradável que produz uma esperança prestes a realizar-se, e precede a satisfação de um desejo afagado de nossa alma. Às seis horas o sino pequeno da Sé, tangido rapidamente, soltou os alegres repiques, que pelo som argentino parecem as vozes travessas dos anjos do Senhor, chamando os fiéis; os ecos vibrando no ar foram apressar as palpitações de muito coração que os esperava com impaciência. Quase ao mesmo tempo o carrilhão do Colégio dos Jesuítas retroando pelo espaço acompanhava o canto matutino da torre episcopal; suas notas graves, sombrias e plangentes, unindo-se aos repiques das outras igrejas, formavam o concerto majestoso com que a religião da luz e da verdade saúda o nascimento do dia. Apenas a primeira badalada do sino repercutiu nos ares e a larga portada da Sé abriu de par em par, o grupo de velhas beatas, que tinham amanhecido no adro da igreja, envoltas em longas mantilhas de rebuço, esgueirou-se pela teia das naves e lá foi tomar lugar no cruzeiro. Em pouco as lájeas do vasto pavimento se iam cobrindo daquelas trouxas negras ou pardas de seda e burel, que nem longes tinham de vulto humano; da massa enorme elevou-se um sussurro, a princípio imperceptível, e foi crescendo, como se um enxame de vespas esvoaçasse pelo âmbito da igreja. Nesse momento invadiu o altar uma corporação, que hoje tem perdido muito da sua primitiva importância social, mas que no século XVII representava um papel distinto em todas as carolices e galhofas da época; doze meninos do coro, metidos em sacos de lã
  • 4. vermelha, espalharam-se pelo corpo da igreja armados do competente acendedor. Foi um rebuliço: os rapazes travessos, rindo como perdidos, pisavam de propósito os vestidos das velhas devotas, que se conchegavam resmoneando uma ladainha de imprecações; a mocidade imprudente não respeitava a velhice; os ânimos se exacerbavam, o sangue fervia; afinal, esgotado de parte a parte o rosário das injúrias consagradas pelo estilo, os dois campos lançaram mutuamente o último e o mais terrível dos insultos. Os rapazes soltaram a palavra infamante de barata, a que as velhas retorquiram com o epíteto não menos afrontoso de formigão: e depois disso, como não havia despique possível de tão grande provocação, a não serem as vias de fato que o respeito do lugar impedia, cada uma das duas hostes inimigas retraiu-se e voltou silenciosamente a suas ocupações. Era tempo; porque a igreja enchia-se de fiéis, e no adro viam-se já as cadeirinhas e palanquins que traziam à missa as donas e filhas dos ricos senhores da Bahia. Tinham parado na calçada dois moços, ambos na flor da idade, ambos elegantes e bem parecidos, mas tão dessemelhantes no trajar, como no molde da beleza varonil. O mais velho, que teria vinte e dois anos, era moreno. A fisionomia franca e aberta, as cores frescas e rosadas, o porte firme e direito sobre uma estatura regular, mostravam compleição vigorosa; mas sua expressão ressumbrava tanta graça, o sorriso que lhe brincava nos lábios era tão faceiro, havia tal donaire nos seus movimentos, que a força muscular desaparecia sob a flor da feliz organização, como a robustez do tronco sob a virente folha. Vestia gibão de gorgorão cor de pérola guarnecido na orla por delgado fio de ouro com que eram igualmente tecidos os passamanes, e calção de veludo turqui debruado nas costuras por fino cairel de prata. Torçal de seda escarlate suspendia-lhe ao flanco esquerdo o florete; o boné de veludo azul com um broche de rubi cingia os anéis dos cabelos negros; a meia cor de pinhão debuxava a perna bem contornada, e o sapato raso com espora afilada calçava um pé fino e aristocrático. Naquele tempo em que a profusão de cores vivas e bordados era o toque da louçania, não se encontrara decerto um cavalheiro trajado com mais gentileza e primor; a riqueza apenas se mostrava, para não ofuscar o bom gosto na combinação artística das lindas cores, nem o esmero do corte e piques das roupas. Também na Bahia não havia mancebo casquilho como Cristóvão de Garcia de Ávila,
  • 5. senhor de fazenda passante de cinquenta mil cruzados, e descendente de uma das famílias nobres que tinham vindo do Reino com Tomé de Sousa, em 1549. Nesse momento, voltado para a Praça do Governador, ele enfiava o olhar pela rua que desembocava no Largo da Sé, e pela qual esperava despontasse alguma coisa, que visivelmente o interessava. O outro moço contava apenas dezenove anos. Trajava tudo negro, de simplicidade extrema, mas de esquisita elegância. Um aljôfar isolado brilhava na touca de veludo preto; as preguilhas da mais fina lençaria de alvas deslumbravam; a espora ligeira que mordia o salto do borzeguim e a cruz da espada eram de aço, mas tão bem polido que cintilava como custosas pedrarias. O cetim negro das vestes dava muito realce à sua bela cabeça erguida com meneio altivo, e à alvura rosada de sua tez. Os grandes olhos pardos tinham os raios profundos e reflexivos que desfere a inteligência nos momentos de repouso; o lábio superior, coberto pelo buço de seda que pungia, arqueava graciosamente com expressão grave; era de alta estatura, e tinha como seu companheiro o talhe esbelto, mão e pé de supremo esmero. Mas o que especialmente o caracterizava, era uma sombra imperceptível, que às vezes deslizando pela fronte alta e inteligente, carregava ligeiramente as linhas do perfil e imprimia-lhe na fisionomia o cunho da vontade tenaz; nestes momentos sentia-se que a razão calma, firme, inflexível, dominaria, se preciso fosse, as expansões da mocidade. Os dois cavalheiros continuavam a conversa começada quando se encontraram no adro da igreja. — Perdes teu tempo, dizia Cristóvão de Ávila sem tirar os olhos do seu alvo predileto. — Não sei em que melhor o possa empregar do que em praticar com um amigo, respondeu o cavalheiro sorrindo. — Mal vais com disfarces que dalgo não servem, que de mais descobrir a verdade. Digo que perdes teu tempo, quando teimas que entre tantas damas gentis não haja uma por quem desejes esta tarde tirar uma argolinha, ou correr um passe d'armas. — E para ti há alguma? perguntou o outro desviando de si a alusão. — Bem sabes que sim. Não sou de segredos; tão santa coisa é o amor que Deus nos pôs n'alma, que não me peja de trazê-lo no rosto e à face de todos. — Assim deve ser para quem é nobre e rico, e não teme repulsa; mas outros há que não têm direito de erguer a vista, embora mais alto que ela tragam o coração.
  • 6. As últimas palavras foram pronunciadas com ligeiro assomo de orgulho ofendido, que imediatamente sufocado esvaeceu em sorriso melancólico. — À fé que não te compreendo, Estácio. Tão nobre és, como os melhores, e rico; porque a ninguém mais que a ti, devem de pertencer as terras que teu avô Diogo Álvares conquistou ao gentio para El-Rei, de quem as houvemos nós e nossos pais. O moço ia replicar, quando uma cadeirinha de cúpula dourada, que vinha das bandas do Terreiro do Colégio, carregada por dois negros vestidos à mourisca, com aljubas de lã escarlate, excitou vivamente sua atenção. Cristóvão simulou não perceber o estremecimento de prazer que teve seu companheiro, e voltou o rosto sorrindo. Nem um nem outro reparou em certa dama que nesse instante e acerca deles passava para a igreja, acompanhada por uma velha aia. Estava ela completamente velada com o espesso crepe da mantilha, de modo que era impossível distinguir feições. Vendo o gesto de Estácio, lançou rápido e furtivo olhar para descobrir a causa de sua emoção, e entrou na Sé murmurando consigo: — É já rendido de amores! II - Como outrora rezavam na missa duas beatinhas baianas. Apenas a cadeirinha parou no adro da igreja, as cortinas de damasco verde franjadas abriram-se, e a ponta do escarpim de veludo que escondia um pé de menina pousou de leve na calçada, como a asa de uma gaivota quando roça a flor d’água no voo rápido. Um homem de meia idade e compleição robusta, que acompanhava a cadeirinha, estendeu o braço para receber a mão afilada e transparente, que apenas tocou o veludo da manga, como se receasse magoar-se ao contato da macia pelúcia. Logo assomou o vulto delicado de uma moça vestida com o faceiro e gracioso traje das andaluzas; vasquinha de seda azul bastante curta para mostrar a nascente da perna divina, e véu bastante longo para ocultar o rosto e seio, deixando apenas ver a cor de leite e a luz de dois olhos, que brilhavam mais que os diamantes do colar. O cavalheiro que trajava vestes pretas tirou o gorro e corando inclinou-se, quando a moça passava diante dele para entrar na igreja. Recebeu em troca um olhar rápido e profundo, dos que vêm do íntimo e se desprendem, como chispas d'alma.
  • 7. — Bem certo é o anexim, que o mal e o bem à face vêm; disse Cristóvão gracejando. — Nem sempre! — Segredos são escravos rebeldes, que mais amiúde se tornam senhores; por mais fundos que os tragas, eles sobem à tona quando mal pensas; se lhes cerras os lábios, falam pelos olhos. — Aos olhos de um amigo. — De todos. Mais val não os ter; e com isso dou-me às maravilhas. — Se tivesses de lutar com a fortuna que é inconstante e com os homens que são maus, respondeu o moço gravemente, terias outro falar, Cristóvão. — Digo-te que não. — Tu vês o mundo como bom e jovial companheiro, de quem não hás mister ocultar teus sonhos de prazer; aqueles que têm nele um inimigo, esses nunca lhe esconderão demais sua alma. Nisto, um mancebo que trazia com certo garbo vaidoso as luzidas galas de suas roupas de veludo e seda carmesim, aproximou-se e cortejou risonho os dois mancebos. — Trajais de negro em dia como estes, Senhor Estácio Correia? disse ele com volubilidade. — Trago luto por meu pai e por minha mãe, respondeu o cavalheiro com certo vexame. — Vai para quatro anos que morreu uma, e o outro deixou-vos no berço. Não cuidei que levásseis a piedade tão longe. — Desavisado fui, Senhor D. Fernando de Ataíde, em não consultar vosso calendário para saber que tempo duraria meu sentimento; quando vier à estampa vossa pragmática, regularei por ela meu traje. Até lá a cada um seu gosto e modo de viver. Estácio acompanhou o dito com um sorriso de ironia. — Pesa-me que vos enfadasse tão inocente reparo; não foi mais que simples curiosidade. Ouvi dizer algures que pretendíeis abraçar a vida eclesiástica e entrar na Companhia de Jesus, razão por que conjeturei que a gravidade do futuro estado vos obrigava já a trazer vestes sombrias. Uma faísca cintilou no olhar de Estácio; pareceu-lhe que a desculpa de Fernando ocultava um motejo; mas a expressão de bonomia que viu no semblante do moço conteve a palavra provocadora que os lábios iam soltar.
  • 8. — Enganou-vos quem tal disse, respondeu friamente. — Oh! Aí chega D. Elvira de Paiva e sua mãe! Já me não admira ver-vos tão apurado, Senhor D. Cristóvão d’Ávila! Esta exclamação jovial partiu dos lábios de um cavalheiro que se acercara do grupo; era homem que orçava pelos vinte e cinco anos, de mediana estatura e com certo desplante militar no porte arrogante; o rosto, cuja alvura primitiva desaparecera sob os raios do sol tropical que lhe queimara a tez, apresentava fisionomia espanhola, a que dava realce o bigode retorcido e a pera afilada. O gibão e as calças de tufos eram amarelos golpeados sobre veludo preto; uma capa negra forrada de seda da mesma cor das roupas caía-lhe sobre o ombro esquerdo, mostrando no canto as armas de Portugal bordadas a retrós, o que indicava que o cavalheiro pertencia à milícia; tinha um chapéu de feltro branco, e meias botas de couro alourado com rendas no canhão. Cristóvão durante a conversa distraíra-se em seguir com os olhos uma liteira que passava pela frente da Santa Casa da Misericórdia; ao ouvir a exclamação voltou-se para o cavalheiro sorrindo: — Achais que mal empregue meu cuidado, senhor alferes? perguntou o moço com afabilidade. — Por Deus, que não! Tão formosa dama não pisou ainda esta terra de gentio. Aposto cinquenta cruzados em um lanço de dados, que não me mostram, nem mais airosa, nem mais prendada. — Esqueceis vossa irmã, D. José! retrucou Fernando de Ataíde. — Oh! não vos tinha visto, Dom Paladino! exclamou o alferes rindo; mas se com isso vos ofendi, estou pronto a aceitar-vos a requesta. Dizendo estas palavras, D. José apertou amistosamente a mão de Fernando; e cortejou com um modo frio e soberbo a Estácio. Este empalidecera ouvindo as últimas frases e desviou-se do grupo. Um quinto mancebo, que trajava também à milícia, batera familiarmente no ombro do alferes. — Aceito a aposta, contanto que sejais vós mesmo o árbitro, D. José! — Oh! Padilha!... Por quem parais então, amigo?
  • 9. — Por uns maganos d'olhos negros que luzem através de certa rótula de sobrado na Rua da Palma! — Olhem o taful!... — Ah! ah!... Então o nosso alferes também adora as sotas de carne e osso! exclamou Cristóvão rindo. — Caluda, senhores! acudiu D. José com um sério-cômico; isto por enquanto está em segredo. Não espantemos a caça, que é arisca! E os mancebos a rir, como se ri nessa idade feliz. A liteira tinha parado; vinham nela duas senhoras. Uma teria quarenta anos de idade; bela ruína em que o tempo, deixando impressa a sua passagem, respeitara a obra primitiva da natureza. Os cabelos haviam embranquecido, a tez perdera os toques rosados e murchara ao fogo do sangue que a escaldava outrora; o frescor dos traços desaparecera com o sopro ardente dos prazeres; mas aquele busto descorado debuxava ainda sob a máscara da velhice prematura as formas de um belo tipo da raça hebraica – Judite ou Madalena. A boca, embora crestada na flor dos lábios, dizia quanta paixão e quanto amor devia ter ela desfolhado nas carícias lascivas, nos sorrisos sedutores e nas palavras ardentes, que semeara pelo caminho da vida; o seio branco, como o mármore de um túmulo, frio como ele, servia de urna às cinzas do coração que outrora o fizera arfar com os ímpetos de desejos irresistíveis; os olhos, esses brilhavam como nos dias da juventude, e pareciam o clarão da chama interna que consumira lentamente a seiva daquele corpo, como o óleo de uma lâmpada. Ao seu aspecto adivinhava-se que essa mulher devia ter amado muito na sua vida e abandonado ao prazer uma alma ardente e insaciável. Agora, que a beleza fugira e os sentidos se acalmavam, tinha ela necessidade ainda de algum sentimento profundo e veemente que desse expansão às energias da natureza criada para a paixão. Esse sentimento era a religião; todas as faculdades que outrora o amor absorvera, voltavam-se para a nova preocupação, e se entregavam a ela com igual ardor e afã: a mulher apaixonada e voluptuosa transformara-se na devota fanática; em face de Deus, como diante dos homens, foi sempre a mesma: foi o verbo das almas cujo destino na terra se resume em uma só palavra – amar – sublime encarnação do anjo feito mulher. A moça que a acompanhava era sua imagem, mas perfumada pela mocidade, iluminada
  • 10. pelos raios da vida que desponta, colorida pelos reflexos de sangue tépido e puro que circula sob a cútis transparente, animada pela doce confiança que naquela idade abre os límpidos horizontes da existência e solta o voo à imaginação ávida. O mesmo fogo da paixão, a mesma voluptuosidade do prazer, que deixara uma sombra de suas erupções no rosto envelhecido da mãe, brilhava nos olhos pretos e fúlgidos, no sorriso lânguido e no requebro gracioso da filha; mas a inocência e pureza d'alma vendavam ainda essas irradiações com a expressão modesta e ingênua, que as tornava mais perigosas. D. Luísa de Paiva e sua filha desceram do palanquim, e recebendo as saudações dos cavalheiros que estavam parados no adro, dirigiram-se à capela-mor onde já estavam as almofadas de veludo roxo, que então as damas faziam conduzir à igreja por pajens escravos. Chegada à porta que abria da sacristia para a capela, Elvira lançou um olhar em volta do pavimento já quase inteiramente ocupado pelas damas, e viu a sua almofada colocada no centro ao pé de uma menina que tinha o véu descido, a mesma que poucos antes tanto havia excitado a atenção de Estácio Correia. Imediatamente a moça, roçagando a vasquinha curta, deu um passo para tomar o seu lugar. — Fiquemos ali, disse D. Luísa mostrando o estrado. — Tenho a minha almofada perto de Inesita, respondeu Elvira voltando-se. — Bem; não te esqueças!... — Oh! não; tenho-a de cor, disse a moça com um sorriso malicioso. E atravessando por entre as outras damas, foi ajoelhar-se ao lado de Inesita, que embebida na sua oração tinha os olhos baixos e as pálpebras descidas. — Por quem roga a minha santinha com tanta devoção? perguntou Elvira baixinho. A menina sobressaltando-se corou através do véu; depois sorriu à sua amiga. — Vieste tão tarde! disse ela em tom de queixa. — É que não tinha alguém que me esperasse com seu olhar todo melancólico. — Cala-te; estão nos olhando, balbuciou a moça. — Se nos olham, menina, é que nos querem, respondeu a amiga sorrindo.
  • 11. Estácio e Cristóvão tinham entrado pouco havia; colocados junto à grade que dividia a capela do corpo da igreja, não perdiam nenhum dos movimentos das duas meninas. — Tua mãe?... perguntou Inesita. — Não a vês na frente, bem próxima ao altar? Dela não há susto, continuou a moça gracejando; enquanto não desfiar a última conta do rosário e não recitar todas as orações do livro dominical, não dá por coisa alguma. — Pois desce o véu, não te voltes, e podemos conversar enquanto não principia a missa; pensarão, vendo-nos falar, que dizemos nossas rezas. — Sonsinha que és!... exclamou Elvira com um sorriso. Não queres que me volte para não ver onde vão presos esses olhos. — Vão a Deus. — A Deus no céu, e a ele na terra. — Minha tentação, queres sossegar? — Não me deixeis cair em tentação!... continuou Elvira com ar de malícia e fingindo que orava. — Com as palavras sagradas não se brinca!... É pecado! disse Inesita séria. — A quem o dizes? A mim que sei todas as rezas! Minha mãe tem tido o cuidado de mas ensinar; ainda hoje, sabes a penitência que me deu? De recitar uma ladainha maior do que a Rua dos Mercadores! — E foi isto que te demorou? — Não, Inesita, respondeu a moça perdendo de repente o seu ar faceiro e entristecendo, foi coisa pior... Oh! muito pior! — O quê? — Chorei toda a noite. — Ele te... — Ele não, mas por causa dele. Minha mãe não quer ir hoje à festa. Inesita teve um triste sobressalto, e emudeceu buscando no espírito um meio de amparar a amiga: — Se pedir-lhe eu? — É escusado; quando lhe metem alguma coisa de religião na cabeça, não há volta;
  • 12. disseram-lhe que não está bem a uma dama devota ver folguedos do mundo. — E tu perdes tão lindas coisas? — Hão de estar galantes as corridas, não é verdade? Depois me contarás? — Sem faltar nada. Mas ninguém dirá, ao ver-te tão prazenteira, que hajas chorado toda a noite. — Que queres? Quando cheguei esqueci tudo, para só me lembrar que estava perto de ti. — De ti!... disse Inesita inclinando imperceptivelmente a cabeça para o lado da grade, sem contudo erguer os olhos. Elvira reparou no movimento da amiga e quis tirar sua desforra. — Bem sei, respondeu ela travessamente, que estar perto de uma é estar perto do outro; a sombra acompanha o corpo. — Vamos rezar, menina, acudiu Inesita meio enfadada. — Vamos. Sabes tu as Obras de Misericórdia? — Que pergunta! — Não as sabes, não; porque elas mandam consolar os aflitos; e ali está uma alma penando por tua causa à espera de um só olhar teu. Inesita corou inclinando ainda mais a fronte; porém os cílios de seda, que roçavam as faces, se ergueram e cerraram logo, deixando coar um olhar doce e aveludado, que foi tremulando embeber-se no rosto de Estácio. — Agora sim cumpriste tua devoção! — Elvira!... Cuidas que também eu não reparo no que fazes? As duas meninas continuaram o alegre colóquio, cujo matiz gracioso não se pode desenhar; porque há gestos feiticeiros e inflexões harmoniosas, que só os lábios e a gentileza de uma mulher sabem dar às palavras mais simples. Naquele tempo, como hoje, como sempre, duas moças amigas que se encontravam, tinham tanto que dizer entre si, e estavam tão cheias de segredos e confidências, que o lábio rosado não emudecia, enquanto não destilava todo o mel que havia nos favos delicados do coração, toda a fragrância que respiravam as rosas d'alma em botão. A mulher é sempre mulher; mudam os usos, as modas, os costumes e as línguas; mudam os tempos e com eles nós os homens, porém o anjo frágil e delicado que Deus prendeu à
  • 13. terra é a fênix moral, que renovando-se em todos os séculos e em todas as eras, remoça a humanidade, e a purifica. Assim, quem ouvisse aquelas duas beatinhas dos começos do século dezessete, conversando tão travessa e profanamente sob a aparência do mais profundo recolhimento, esquecendo o traje e o lugar, julgaria escutar as falas de duas moças dos nossos dias, trocando no seu jardim as confidências de uma véspera de baile. D. Luísa às vezes lançava à filha uma vista rápida e severa, que retirava satisfeita para fitá-la de novo no resplendor das imagens; de feito Elvira e Inesita com o véu baixo, as mãos cruzadas, as frontes inclinadas e os lábios a moverem frouxamente, tinham um tal ar de compunção, que ninguém suspeitaria o mais leve pecadilho sob aquele beático recolho. Entretanto elas ainda falavam de mil coisas; não tinham dito nem metade da mútua confissão. III - Em que mestre Bartolomeu revela seus dotes para a solfa cantada. A igreja estava apinhada. A nave sepultada em meia obscuridade servia de moldura ao retábulo da capela, a qual cintilava com a luz dos círios e os reflexos metálicos das alfaias e galas que cobriam os altares. No centro da esfera luminosa, nublada pela fumaça do incenso, que exalava da caçoula de prata lentamente embalançada pelo turiferário, destacava a cruz negra do martírio, de onde a imagem do Cristo dominava a multidão curvada e respeitosa. Eram sete horas e meia quando soaram os atabales do terço postado no largo. Chegava o Governador D. Diogo de Menezes, conduzido debaixo de pálio pelos juízes e vereadores do conselho, e acompanhado por D. Diogo de Campos, sargento-mor do Estado do Brasil, pelo Alcaide-Mor da Bahia, Álvaro de Carvalho, provedor da fazenda, o Desembargador Baltasar Ferraz, ouvidor, escrivão dos contos e mais gente do serviço de El-Rei. O cabido saiu fora a recebê-lo com as etiquetas do formulário, e o conduziu ao setial colocado do lado do evangelho; no mesmo plano estava o assento forrado de damasco branco dos oficiais da Câmara; vinham depois o ouvidor, alcaide, provedor e os outros
  • 14. ministros. Do outro lado via-se a poltrona episcopal, vaga pela ausência de D. Constantino Barradas, que se achava de visita na Capitania de Pernambuco; seguiam-se as dignidades da Sé e o coro dos cônegos; no fim havia um banco de veludo roxo que devia ser ocupado pelo provincial dos jesuítas à direita do dom abade de São Bento e do custódio dos franciscanos. D. Diogo de Menezes era um verdadeiro fidalgo no porte senhoril como no caráter egrégio; achava-se então no vigor da idade, no período de transição dos quarenta para os cinquenta anos, em que então os homens daquela têmpera chegavam ao perfeito desenvolvimento de sua organização, e adquiriam a robusta virilidade, que ilustrou a história de tantos feitos brilhantes. O grave parecer esclarecido por um espírito superior era o documento do passado honroso e o prenúncio da carreira ilustre que ainda tinha a percorrer; a severidade não excluía a afabilidade das maneiras e a polidez do trato, que caracterizavam o fino cavalheiro. Homem de governo, escravo do dever, para quem a lei era religião, e a honra culto; conhecia-se contudo que ele compreendia, e talvez mesmo sentisse ainda, o entusiasmo heroico e cavalheiresco, que iluminara as lendas e os romances da Média Idade, e já então apenas lançava os frouxos clarões da luz que bruxuleia ao extinguir-se. Apenas o governador, fazendo uma cortesia geral, sentou-se na cadeira alcatifada, ouviu- se o temperado de garganta sonoro e clássico do mestre de capela, que do alto de seu trono regia a orquestra; quase imediatamente a larga tira de papel pautado, tangida pelo braço robusto, assentou no respaldo da grade do coro a palmada estridente e simbólica. Era o sinal para começar a missa cantada; primeira pancada de compasso que abria o solfejo de velho in-fólio colocado sobre uma estante. O mestre de capela, cheio de sua importância, meneava aquela tira de papel pautada com a galhardia de um general brandindo a espada vitoriosa em frente ao seu exército no momento da batalha. Os meninos do coro tomaram seu lugar; uma exígua figura, coberta de longa capa de raso preto, saiu do esvão da torre, e dirigiu-se lenta e compassadamente para o teclado do órgão, sobre o qual estava aberto um grosso alfarrábio das solfas do P. Manuel Mendes.
  • 15. A cor lívida, os olhos profundos e cingidos de uma orla de bistre, as faces encovadas, davam àquele semblante um aspecto triste e lúgubre; os cabelos grisalhos e revoltos caíam sobre a testa vasta e proeminente; o hábito do estudo lhe acurvara o corpo emagrecido, diminuindo aparentemente a estatura raquítica, que pouco excedia de cinco palmos craveiros. Tal era o licenciado Vaz Caminha, o mais sábio letrado da cidade do Salvador, que apesar de suas elucubrações forenses e da gravidade do ofício, fazia ao mestre de capela a mercê de tocar órgão na Sé, por ocasião de grandes festividades, mediante a espórtula de um tostão em prata e o jantar na mesa do senhor bispo, quando este se achava na Bahia. O discípulo de Bártolo e Scoto endireitou a tripeça, sentou-se traçando as perninhas em forma de cruz grega, e apoiando o queixo sobre o polegar da mão esquerda, sestro que lhe era familiar, esperou o segundo sinal. — Sua senhoria acaba de chegar, disse o mestre de capela. Podemos dar começo, se vos praz, senhor licenciado. — Por mim não se espere, mestre Bartolomeu. — Atenção! exclamou o chefe da orquestra, voltando-se para os meninos do coro. Atacar o ut com presteza, subito, compasso quaternário. E erguendo a braço hercúleo, e volvendo uma última vista em torno, assentou com o rolo de música um segundo estalo, que foi o prelúdio da mais tremenda algazarra jamais ouvida em templo cristão. Os gritos agudos e esganiçados dos meninos do coro, impelidos com toda a força dos pulmões feriam o ouvido como o estrídulo metálico do canto da uiraponga; no meio do alarido troava, mugia, a voz de baixo profundo do mestre Bartolomeu, que com uma só nota enchia o vasto âmbito da catedral. O monstruoso concerto durou cinco minutos em formidável crescendo; baixando afinal de tono em tono, reboando pelas altas abóbadas, expirou como o trovão que rola ao longe pelas nuvens, ou o oceano encapelado quando geme sob a refega do vento. No entanto o licenciado Pero de Campos, deão, que oficiava na ausência do bispo, revestido dos guisamentos sacerdotais, subia ao altar acompanhado dos dois acólitos; e o cantochão desafinado dos cônegos respondeu dignamente ao desafio musical da orquestra.
  • 16. O mestre de capela, à guisa de alguns cantores modernos desempenhava ao mesmo tempo dois papéis, o de baixo e o de contralto; cerrando pois as largas queixadas, expeliu pelo nariz uma voz de tiple, fanhosa e esguichada, que meteria inveja ao mais alentado eunuco da Capela Sistina; era um alegro predileto do grande solfista. Assim, apenas terminou, ainda com as bochechas insufladas e o suor a correr-lhe pela touta, voltou-se para Vaz Caminha que feria as teclas com a mesma gravidade que teria, se estivesse consultando um texto do Corpus Juris ou arrazoando um agravo para a Casa da Suplicação. — Que dizeis deste solo, senhor licenciado? É solfa deste vosso servo. — Optime! respondeu o letrado cortesmente. Era a vigésima vez que o bom do Bartolomeu cantava aquele trecho e terminava pela pergunta referida, à qual o advogado com a regularidade dos homens sisudos e pensadores respondia pelo mesmo advérbio. A ponto que isto passava no coro, e a missa cantada prosseguia, muitos sentimentos diversos e bem estranhos à cerimônia sagrada agitavam os atores principais da cena. D. Diogo de Menezes vendo a cadeira do provincial dos jesuítas vaga, sorrira de um modo significativo; compreendera que a ausência não motivada, no dia em que celebravam a sua chegada, era um primeiro manifesto de guerra que lhe lançavam os aliados do Bispo D. Constantino. Embora fosse toda mental e íntima a reflexão, o fidalgo ergueu a cabeça com expressão de energia, como se aceitasse o desafio e se preparasse para a luta; depois lembrando- se onde estava inclinou diante de Deus a fronte que trazia sempre alta em face dos homens. Mais longe, as duas meninas, logo que começara o sacrifício, haviam cessado a conversa e emudecido no santo respeito que lhes inspirava o sublime mistério da religião cristã; mas o espírito de Elvira, rebelde e tenaz, voltava às suas preocupações, apesar de todos os esforços que ela fazia para afastá-lo de tais ideias e trazê-lo à oração que os lábios balbuciavam automaticamente. A donzela lembrava-se das festas que deviam ter lugar à tarde, festas que a haviam feito sonhar tantas horas, e iam passar enfim sem que as gozasse; sua fantasia revoava por todas aquelas imagens brilhantes e esquecia a realidade para viver ainda alguns instantes de esperança; mas a ilusão desvanecia-se breve e tornava ainda mais pungente a
  • 17. decepção. Às vezes em sua cólera infantil, a inocente fazia protestos de querer mal à sua mãe por causa da crueldade com que a condenava à solidão no momento em que todos haviam folgar e rir; eram ímpetos passageiros, como as faúlhas que saltam das chamas e se apagam no ar. Por fim acabava pedindo à Virgem perdão para o mau pensamento que tivera; e resignada à sua desventura, enfiava por entre o véu um olhar longo e apaixonado, que penetrava até o coração de Cristóvão, e voltava de lá mais sereno e consolado. Inesita, essa estava inteiramente absorvida pela oração; o espírito de Deus a dominava; e só de espaço em espaço, nos momentos em que a alma saindo da meditação lembra-se que tem um corpo, a tímida menina sentia-se viver pela recordação do lugar onde estava e da proximidade de Estácio; então sem ver, adivinhava que o olhar do moço a envolvia em um raio de amor, e estremecia com a sensação de gozo inexprimível. Mas o que ela não podia adivinhar era a angústia que confrangia a alma do moço, ajoelhado junto à grade e tão pálido, que o oval de seu rosto iluminado por uma réstia de sol, destacava entre as roupas negras como um relevo de alabastro em medalha de ébano. Estácio descobrira a alguns passos D. Fernando de Ataíde, que não tirava os olhos da menina; bastou para que uma suspeita cruel entrasse em sua alma; lembrou-se que talvez o olhar de Inesita fosse dirigido a seu rival, e desejou até que ela não erguesse mais a vista, nem se voltasse de seu lado. O moço era pobre e modesto; aqueles que como ele amaram um dia, compreenderão o martírio que sentiu pensando que D. Fernando de Ataíde, nobre e rico, podia depor aos pés de sua amada um belo nome e soberbas prendas, enquanto que ele apenas tinha um coração leal a oferecer. A dama desconhecida e velada não tirava os olhos de Estácio, senão para volvê-los a Inesita. Por vezes inclinara-se para a gorducha de sua companheira, como se lhe quisesse falar e disfarçava; até que afinal a palavra retida escapou-lhe dos lábios: — Sabeis, Brásia, quem seja aquele cavalheiro que agora ajoelha perto à grade, bem em frente a nós?... — Vejo dois, D. Marina, tão gentil um como outro! De qual falais? — Do que traja negro.
  • 18. — Não sei, não, dona; mas não faltará quem o saiba. — Pois indagai, e onde mora. A velha estabeleceu logo um cochicho que percorreu toda a longa fila de beatas estendida pela nave da catedral. A festa prosseguia, o coro e o cantochão continuavam alternando, quando foi ouvido na porta da igreja um ligeiro rumor causado por muitas pessoas, que voltavam o rosto para ver alguma coisa que estava passando fora. O objeto que tanto excitava a curiosidade, a ponto de distrair assim a atenção do ofício divino, era um navio de alto porte que encoberto pelas sombras da noite se avizinhara de terra, e aos raios do sol nascente aparecia à entrada do porto com as velas enfunadas pela fresca viração da manhã. D. Diogo acenou ao capitão de sua guarda: — Manuel de Melo, inquiri da razão deste rumor! disse-lhe à puridade. Nesse tempo ainda não se tinha desmoronado o tabuleiro que ficava em frente da Sé, a pique da montanha, com uma vista soberba para o mar; por isso daquela posição distinguia-se já perfeitamente o navio que velejava demandando o porto, e o casco, e a mastreação, e a bandeira espanhola a flutuar na popa. A não escassear o vento, era natural que em menos de duas horas estivesse fundeado. A notícia transmitiu-se rapidamente. Há uma espécie de corrente elétrica nas grandes massas de povo; dois minutos depois de ouvir-se o rumor na porta da igreja ninguém já ignorava a grande nova. — É uma fragata espanhola, ao que parece procedente do reino, que entra a barra, informou ao governador o capitão da guarda. Este fato que hoje não tem muita importância pela sua frequência, naquele tempo de raras e difíceis comunicações entre o Brasil e a metrópole, era um acontecimento do maior interesse. Para os governadores e empregados no serviço real queria dizer a solução de altas questões da administração do novo Estado; para o povo exprimia talvez o deferimento aos pedidos das Câmaras sobre redução de impostos, extinção dos estancos e servidão dos índios; para os mercadores de grosso trato significava o recebimento de cabedais ou de gêneros de tráfego; para os particulares era o provimento da mercê que haviam requerido, ou a reforma da sentença de que tinham agravado; para as mulheres, além da parte que tomavam no que dizia respeito a seus pais, irmãos e
  • 19. maridos, havia a curiosidade, sentimento poderoso em todas as filhas de Eva. Já se vê pois, que desde o Governador D. Diogo de Menezes até a última das beatas escondida em algum canto, todas as pessoas, que se achavam na igreja, desejaram intimamente ver acabada a missa; os cônegos acordando salmeavam o cantochão como se cantassem um solau; o licenciado apressara o compasso; o deão saltara por engano uma página do missal; as velhas correram duas contas por cada padre-nosso. No meio da geral preocupação só ficaram estranhos, Elvira e Inesita, que continuavam as suas orações; Cristóvão, Estácio e Fernando, para os quais o mundo se resumia nas duas meninas; D. Luísa de Paiva, imóvel em seu êxtase religioso; finalmente o mestre de capela, que apesar dos cônegos, do salto da página, do toque do órgão, apesar de tudo, solfejava um andante com imperturbável sangue-frio, sem engolir uma nota ou falhar uma pausa. IV - Em que vem à lume um papel velho. A cerimônia religiosa terminou por volta de nove horas. Em pouco tempo a multidão deixou a igreja quase solitária e foi apinhar-se à beira do terreiro, para ver a fragata que distava do porto cerca de um tiro de canhão. Elvira e sua amiga dirigiram-se à pia de mármore branco colocada à porta, como de costume; a alguma distância seguiam D. Luísa de Paiva conversando com o pai de Inesita. Era este, D. Francisco de Aguilar, nobre castelhano, senhor do engenho de Paripe, homem principal, como se dizia naquele tempo. Alto, robusto, ainda verde e bem conservado, D. Francisco era o verdadeiro tipo do hidalgo andaluz. Orgulhoso de seu sangue, de sua pátria e de seus cabedais, altivo no trato dos que julgava inferiores, seco nas maneiras, tinha contudo a verdadeira nobreza, que a educação e o hábito podem apurar, mas não é o privilégio dos brasões, pois a dá o coração; sabia ser grande e generoso quando os prejuízos de fidalguia não se opunham aos impulsos de sua alma. Elvira e Inesita apressando o passo chegaram à pia, onde os dois amigos já as esperavam; mas D. Fernando aproximara-se no mesmo momento, e tomando água na palma ofereceu-a cortesmente às duas meninas. Inesita hesitou; tímida como era, não teve ânimo de recusar; embebendo a pontinha dos
  • 20. dedos alvos e delicados, ia levá-los à fronte, quando viu o olhar de Estácio; a pobre menina estremeceu e sem saber o que fazia, deixou cair o braço desfalecido. Quanto a Elvira, mais animosa, voltou-se para Cristóvão. O cavalheiro encorajando-se com esse movimento adiantou-se, e apresentou-lhe a mão onde brincavam algumas gotas d’água; depois de benzer-se, a menina umedeceu de novo os dedos e com um movimento rápido lançou de longe um borrifo na fronte do mancebo. — Para que sejais esta tarde bem feliz, disse ela enrubescendo. — Basta que desejeis para que o seja, respondeu o mancebo não se contendo de alegria e felicidade. Que o vosso olhar me acompanhe... — O olhar, não, que é impossível; o pensamento, sim, respondeu Elvira com uma expressão melancólica. — Por quê? Lá não estareis? perguntou o moço em sobressalto. — Não; minha mãe... A aproximação de D. Luísa e Aguilar cortou a conversa; as duas meninas saíram da igreja, Elvira satisfeita porque ao menos consolara Cristóvão de sua ausência; Inesita zangada consigo mesma porque não tivera coragem de recusar o oferecimento de Fernando, e com Estácio, porque depois do seu movimento em vez de apresentar-lhe a mão voltara-se triste e desaparecera; de modo que ela foi obrigada, para benzer-se, a molhar os dedos na pia. Quanto a Ataíde, como todos os homens que têm plena confiança em sua riqueza, não percebera nem a indecisão da menina e o movimento que produziu o olhar de Estácio, nem o disfarce com que Inesita molhara de novo os dedos na pia. Radiante sob o gibão de veludo carmesim acompanhou o fidalgo castelhano. No adro e por ocasião de despedir-se, Inesita voltou-se para D. Francisco: — Meu pai, instai com D. Luísa para que leve esta tarde Elvira às festas do Terreiro do Colégio. — Vosso pedido tem mais valia do que o meu, mas se o quereis... — Impossível, Senhor D. Francisco. Fiz voto de não assistir a festas profanas; e quebrar um voto, disse-me o Padre Luís Figueira, é incorrer em excomunhão latae sententiae. O castelhano, ouvindo o texto, voltou-se para trocar um sorriso com Fernando. — Mas, acudiu Inesita, Elvira que não fez voto podia ir comigo!
  • 21. — Não lhe está bem aparecer em lugares de folia sem sua mãe, menina. É prova de descomedimento, que não assenta em donzela recatada. O tom severo destas palavras, mais de repreensão que de resposta, desconcertou Inesita, que não soube o que replicar; despediu-se de sua amiga, e entrou na cadeirinha lançando um olhar a furto em busca de Estácio. Este depois que desaparecera, tomando pelo corredor lateral, encostara-se à portada de onde observara toda a cena anterior, e seguira com os olhos a cadeirinha, cujas cortinas ao longe lhe pareciam entreabertas por uma mãozinha mimosa. Era o tempo que o palanquim de D. Luísa sumia-se também, e Cristóvão saía da igreja. Estácio foi-lhe ao encontro. — Julgava-te longe, disse Cristóvão; vi-te sair pouco há. — Mas não tive a força de ir-me, embora fosse o melhor, respondeu o moço com um sorriso triste. — Que te aconteceu? — Nada. Dize-me: tens desejo de primar esta tarde sobre todos, para merecer o olhar dela, não é verdade? — Acertaste, menos em um ponto, Estácio; desejo vencer nos torneios e jogos porque ela lá não estará, e assim farei que não tenham outras, o que só merece a mais bela. — E contas ganhar todos os preços? perguntou Estácio com intenção. — Todos os que não quiseres para ti. — Por que não os outros? — Porque nem quero medir-me contigo, nem que o quisesse, o poderia com vantagem. — Não digas tal! — Não o diria a outro, ainda que sentisse a sua espada na gorja; digo-o a ti com a mão no coração. — Pois ouve, acudiu Estácio; também a mim repugna-me roubar um prêmio que te pode pertencer; toma-os todos, mas cede-me uma só coisa. — Qual, Estácio? — Cede-me teu lugar na primeira corrida. — Meu lugar!... Mas diriam que tive medo!
  • 22. — Não receies tal; a confusão da partida impedirá ver; demais não lucras na troca. D. José de Aguilar é dos mais aguerridos campeões que entrarão em liça. — Ah! compreendo; não te queres bater com o irmão de D. Inês! — É um dos motivos; o outro saberás depois. — Pois está dito; mas por isso não te deixes vencer por minha causa. Lembra-te que também te olham. Adeus; vou-me com pressa. — Em pouco irei ter contigo. Os dois moços apertaram-se as mãos; e separaram-se tomando direção oposta. Terna e sincera amizade os ligava. O modo singular porque nascera essa afeição anunciou logo a têmpera daquelas duas almas, ainda não batidas na incude do mundo. Costumavam os filhos das principais famílias, quando por tarde saíam a passeio acompanhados de seus aios, reunirem-se na Praça do Governador onde estava assentada uma bateria a pique da Ribeira. Aí entretinham-se em galhofas e folguedos próprios da infância. Uma vez acertou Estácio de passar por ali tornando da casa de Vaz Caminha, onde tinha escola de pueris. Um gibão rapado, de mangas tão justas que o crucificavam, barrete que de machucado já tinha virado carapuça, e calções com remendos davam ao rapazinho um aspecto realmente grotesco. Os meninos o receberam com tremenda algazarra que o acompanhou até sumir-se do lado oposto. Percebendo que a mofa era com ele, Estácio parou e voltou face aos rapazes, afrontando-os com o olhar e gesto. Desde então o discípulo e afilhado de Vaz Caminha teve para si, que fora cobardia escolher outro caminho. Todas as tardes ali passava, embora para isso fizesse uma volta. Os meninos o atropelavam como da primeira vez com vaias e apupos. Ele passava impávido e calmo, empertigando-se em sua pobreza e desafiando-os a todos. Cristóvão que era da roda, soube afinal quem fosse o tal rapazito; e uma tarde quando ele passava, deixou muito zangado os companheiros e botou-se de carreira ao filho de Robério Dias. Esperou-o a pé firme Estácio, julgando que o outro vinha brigar. Deitando ao chão um maço de cadernos, arregaçou as mangas. — Não venho para brigarmos, senão para nos conhecermos, pois somos parentes! disse Cristóvão sorrindo e com um modo afável.
  • 23. Passada a primeira surpresa de ver aquela fala e modo em um menino tão bem trajado e que parecia de família rica e principal, o escolar respondeu altivo: — Não tenho parentes mais que uma tia! — Pois não sois filho de Robério Dias? — Que vos importa isso?... — Eu sou filho de Garcia de Ávila! — Não vos conheço!... — Que val, se temos o mesmo sangue! Perguntai a vossa tia. — É escusado!... Sei eu que não tenho parentesco com gente de vossa qualidade; sou pobre!... Dizendo essa palavra com orgulhosa arrogância, o escolar foi seu caminho sem mais palavras. Nos dias seguintes, por espaço de duas semanas, todas as tardes Cristóvão fazia parar Estácio para convencê-lo do seu mútuo parentesco, e a todas as instâncias respondia este com uma orgulhosa esquivança. Não se enganava Cristóvão. Seu terceiro avô, Garcia de Ávila, também terceiro de nome, tivera uma filha natural, Isabel Garcia, casada em segundas núpcias com Diogo Dias, neto do Caramuru e segundo avô de Estácio; donde vinha entrelaçamento de afinidade entre as duas famílias. Uma tarde, Cristóvão perdeu a paciência, e disse para Estácio: — Ou me reconheceis por vosso parente ou brigo convosco. — Briguemos; é melhor. Atracaram-se ali mesmo; mas o aio de Cristóvão correu a separá-los, e o fez maltratando Estácio. O menino afastou-se indignado. — Eu te castigarei, maroto! Cristóvão irado arrancou a vergasta que o aio trazia e com ela o fustigou. No dia seguinte muito cedo esperava por Estácio à porta de Vaz Caminha para lhe comunicar que o criado fora expulso de seu serviço e de sua casa. Desde essa manhã ficaram camaradas; os anos vieram fazê-los amigos e afinal irmãos. Tornemos à Sé. Estácio seguiu para as bandas de Santo Antônio. A alguns passos encontrou Vaz Caminha, que atravessava gravemente o largo com a cabeça baixa, e entregue a funda
  • 24. meditação. Logo que terminara a missa, o licenciado recebera do mestre de capela a competente moeda de prata; mergulhando-a na comprida bolsa presa ao ilhós do calção, esgueirou-se pela escadinha do coro, e foi acompanhando a chusma de curiosos ver o navio que entrava na barra. Depois de alguns minutos de observação, conhecendo que em menos de uma hora não se poderia haver notícias do reino, resolveu ir confortar o estômago, e nesta intenção louvável dirigia-se ao modesto tugúrio, quando foi encontrado por Estácio. — Bom-dia, mestre, disse o moço quando o velhinho passava. Tão embebido ides em vossas reflexões, que não vedes os amigos? O licenciado ergueu a cabeça de chofre, e os olhos pequeninos pestanejaram com vivacidade jovial. — Bem aparecido, pequeno! Há bons quatro dias que não vos ponho olhos. Bem diz o ditado: “que para os moços são as festas e para os velhos as crestas”. — Me levais a mal, que tome parte nos brincos e jogos de cavaleiros? — Ao contrário, filho. Lograi a vossa mocidade, que perto vem o tempo dos cuidados; e bem aziago é quando não se tem nos maus dias uma boa lembrança para consolar o espírito. — Acho-vos hoje mais triste que de costume, mestre; alguma coisa vos amofina? — É próprio da velhice; quando a idade é muita e a saúde pouca, sobram os enfados e mínguam as esperanças. Mas não semeemos flores em cinzas, que não brotam; dizei-me antes, se estais contente e satisfeito, se contais que ninguém vos dispute hoje na galhardia e boas manhas? — Farei o que em mim estiver; e ajudando Deus, espero dar-vos algum prazer. — E as roupas estão ao vosso agrado? Ajustam-vos bem? São de fino estofo? perguntou o velho com terna solicitude. — Ricas não podem ser, bem o sabeis; mas também não desmerecem em um cavalheiro: talhou-as o melhor algibebe da cidade, mestre Cosme. — Ainda bem; dais-me com isso mais gosto do que pensais; porém – acrescentou o licenciado fitando o olhar no semblante do moço – alguma coisa ainda vos resta que me dizer?
  • 25. — O que, mestre? — Aquelas galas devem ter sido bem apreçadas, e do pouco que possuo sempre há para vos não deixar à mercê de fanqueiros e algibebes. Estácio apertou com efusão a mão seca e mirrada do velho, cuja oferta tão delicada como generosa lhe tocara o coração. — Obrigado, mestre; lembrastes que de feito me faltava referir-vos alguma coisa, que esta manhã tinha em mente, e passou-me na missa; mas não é o que pensais. Graças à minha mãe que me deixou um saquitel com algumas dobras, poucas é verdade, pude enroupar-me; sem isso não o faria; pobre como sou, gasto do meu, não uso do alheio. São vossas lições. — Que bem aproveitaram; mas não é alheio, filho, o que pertence àqueles que nos amam; porque esse está como depósito em outras mãos, e para ser nosso basta querermos. — Outra vez obrigado, mestre; felizmente não careço despir-vos do vosso necessário para satisfazer fantasias de rapaz. — Assim não haveis precisão de nada? — De vossos conselhos, muita; e tanto que, se me dais licença, vou recorrer a eles. — É verdade; o caso que tínheis em mente? — Dele mesmo é que vos quero falar. — Estamos à soleira, melhor é entrarmos. — Como vos parecer. Conversando, Estácio e Vaz Caminha tinham tomado por detrás da Sé; seguindo por uma rua estreita e solitária, quebraram em um beco apenas guarnecido por algumas habitações, que se destacavam a espaços entre as linhas de cercas cobertas de melão- de-são-caetano. O beco descia em ladeira, e formava no centro uma espécie de vala por onde corriam as águas da chuva; junto das cercas serpejavam dois trilhos que serviam de caminho, e iam dar à entrada das casas, para as quais subia-se por alguns degraus feitos de tijolo. Um monturo, que servia de despejo às casinhas da vizinhança, ardia lentamente fazendo grande fumaceira. A casa do licenciado era a segunda; pouca diferença tinha das outras. Baixa, com duas
  • 26. gelosias e uma porta, paredes caiadas de branco e beiradas saídas, o edifício dava perfeita ideia da arquitetura do tempo. Ao lado esquerdo via-se o quintal coberto de mamona e beldros, com touças de bananeiras; encostados ao oitão, o galinheiro, e uma espécie de horto onde cresciam alguns pés de arruda, hortelã, manjericão e perpétuas. Uma velhinha com saia de ganga amarela e manta escura de rebuço, que lhe cobria a cabeça como um capuz de freira, de volta da missa entrara no poleiro, e fizera uma revolução; as frangas cacarejavam, os galos batiam as asas, os pintos pipilavam, quando felizmente para o povo galináceo o licenciado chegou a casa. Apesar de serem nove horas do dia, a porta exterior estava fechada, como se usava então, que não se tinha inventado a polícia, e cada um era obrigado a velar na segurança própria; Vaz Caminha chegou ao canto da casa, e erguendo-se nas pontas dos pés para ver por sobre a cerca do quintal, chamou a caseira. — Euquéria! Abride, filha! A velhinha correu tanto quanto o permitiam suas pernas curtas e trôpegas; decorrido um momento, o licenciado entrava em seu cartório acompanhado de Estácio. Duas altas estantes de livros, um telônio cheio de autos e papéis, um bufete e alguns tamboretes rasos, eram os móveis que ornavam o gabinete, onde a luz filtrava amortecida pelos vidros das janelas, cobertas da mesma poeira clássica que jazia sobre os grandes alfarrábios, e das veneráveis teias de aranha suspensas ao teto. — Vossa colação aí está sobre o bufete, senhor licenciado. Se não precisais de mim vou- me aos pintainhos, que estão morrendo do mal triste. — Ide, filha; eu cá me aviarei. — Jesus! exclamou a caseira voltando a correr com as mãos na cabeça. — Hein!... já pela manhã vos começam a aparecer as almas do outro mundo? disse Vaz Caminha para a velha. — Que Deus, Nosso Senhor, nos livre e guarde! Ai! só de falar já estou tremendo, minha Virgem Santíssima! Mas vai, senhor licenciado, que por um triz não me escorrega ainda hoje de vos dizer!... E três dias há que o trago mesmo aqui na ponta da língua! Quando digo que estou já com esta cabeça varrida, não querem acreditar! Pois é assim! — No fim das contas, o que há, Euquéria? Dizei-o de uma feita. — É o vosso vinho, que está por um dedal. Daqueles dois odres que se encheram pela Assunção, um encarquilhou que nem, com o devido respeito, o roquete do senhor deão; o
  • 27. outro que aí tendes, bem escorropichado, muito dará, se der, um meio pichel. — Bem, filha; havemos de prover ao necessário. Ide com Deus. Vaz Caminha tirou o barrete e arrastou dois mochos para junto do bufete, onde havia sobre o mantém de algodão grosso, porém de alvura deslumbrante, uma escudela com três ovos escalfados, uma cestinha com bananas passadas, uma regueifa de pão e um pichel de estanho polido como prata. — Sentai-vos, pequeno, e refazei com o que há; não chega para regalo, mas basta para quebrar o jejum. — Não tenho fome, mestre; almoçai vós, eu esperarei. — Por quê?... Os ouvidos nada têm com o estômago; se quereis, falai, que vos presto atenção, e se não, fazei como vos aprouver. Durante isto, o licenciado sentava-se ao bufete arregaçando as mangas, escorria no canjirão o resto de vinho do odre pendurado por detrás de uma das estantes, e começava seu parco almoço. Estácio de pé encostado ao telônio deixava que ele satisfizesse o apetite para começar. — Então? disse Vaz Caminha erguendo os olhos. — Não é coisa de grande monta, replicou Estácio. Ontem pedi à tia o cofre que me deixou minha mãe quando faleceu, para tirar algumas dobras guardadas numa bolsa, e deparou- me o acaso com um papel do qual nunca tive notícia. Talvez me possais explicar o sentido. — De qual papel falais? — De uma carta escrita a minha mãe, há cerca de quatro anos. Por sinal que ainda se achava selada, disse o moço tirando do seio do gibão um papel dobrado e já amarelento. — Lede essa carta. Estácio desdobrou o papel e leu: A D. Clara Dias Correia Senhora
  • 28. Para em minhas mãos um papel de mor valia que pertenceu a vosso falecido marido Robério Dias; como seja demais precioso para sujeitá-lo a perda na remessa, mandareis havê-lo por pessoa de confiança. Em São Sebastião, aos 28 de setembro de 1604. D. Diogo de Mariz. Vaz Caminha perturbou-se de tal maneira ao ouvir as primeiras palavras, que levou a naca de pão ao nariz, e ficou de boca aberta sem poder proferir uma palavra. V - Quem era o licenciado Vaz Caminha, aliás doutor de capelo. Vaz Caminha era natural da vila de Arraiolos, em Portugal, e descendente de uma família de aldeões, para quem o mundo não existia além do estreito horizonte em que se debuxava o campanário da igreja paroquial. O futuro legista estava pois condenado a vegetar nos labores campestres, se a natureza deserdando-o da robustez e vigor proverbial na família, não o houvesse predestinado para uma vida espiritual e meditativa: nascera de sete meses e mostrara desde logo que pouco desenvolvimento teria sua organização acanhada. Os pais sentiam profundo anojo de ver aquele menino raquítico e débil, que tiritando de frio e encolhido a um canto, acompanhava com a vista, nas longas tardes de inverno, os brincos de dois rapagões fortes e rosados a saltarem no eirado da granja. A mãe especialmente tinha tomado tal desgosto a esse fruto imaturo de suas entranhas, que a não ser a solicitude de uma irmã, o menino não teria decerto sobrevivido à indiferença e abandono em que ela o deixava; mas a Providência parece colocar sempre ao lado das criaturas fracas e desamparadas um coração que as proteja e abrigue; é a folha para a larva do inseto. Felizmente um monge do Convento dos Loios tomou o menino sob sua proteção, e depois de o haver feito aprender as pueris e gramaticais, mandou-o ouvir na Universidade de Coimbra as aulas maiores de degredos; porém, o moço estudante preferiu dedicar-se à
  • 29. jurisprudência, e seu protetor atendendo às boas disposições que mostrava, não o contrariou. Vaz Caminha cursou todas as cadeiras, das quais fez exame privado. Defendendo sucessivamente as conclusões magnas exigidas pelo Estatuto da Universidade, tomou um após outro os graus que então havia de bacharel, mestre, licenciado e doutor; e ganhou na sábia congregação de Coimbra a fama de um dos mais profundos romanistas do tempo. O legista recolheu-se então à sua vila natal; aí, entregue às lides forenses, teve a nobre ambição de ilustrar seu nome obscuro; aproveitando os momentos que lhe deixavam os clientes, como depois fez Lobão, empreendeu escrever um Comentário às Ordenações Manuelinas, obra de plano vasto, em que se investigavam as verdadeiras fontes daquele código do direito português. Correram os anos. Vaz Caminha concluiu sua obra, limou-a conforme o preceito de Horácio, e sentiu o desejo muito natural de trazer à luz o fruto de suas longas vigílias; mas então a imprensa era um luxo dispendioso, e as cópias em pergaminho, a que se recorria na falta daquele agente da circulação, não custavam menos. Ora, o foro de Arraiolos era escasso; o advogado poucas economias tinha feito, apesar da parcimônia com que vivia; de modo que a obra estava condenada a jazer na arca de papéis e autos, se um acontecimento imprevisto não viesse dar a seu autor uma esperança de obter a fazenda necessária para a realização de seu grande desejo. Criara-se em 1588 uma Relação na Bahia; desde que o tribunal começasse a funcionar, o número das demandas aumentaria infalivelmente; no Brasil, terra abundante de ouro e balda de letrados, os provarás e embargos deviam ser pagos por bom preço; um advogado pois que se fosse ali estabelecer tinha todas as probabilidades de adquirir rápida abastança. Foi esse o raciocínio de Vaz Caminha, e devemos confessar que não pecava contra a lógica; assim embalando-se na ideia risonha de poder realizar o sonho de sua vida, resolveu definitivamente embarcar-se para a cidade do Salvador; deixou algumas economias à irmã que velara sobre sua infância e ainda o acompanhava, e partiu para Lisboa. Um navio estava a fazer-se de vela, e nele ia um dos desembargadores da nova Relação, Baltasar Ferraz, que encontramos feito provedor-mor da fazenda; o nosso advogado aproveitou o ensejo, e obtendo uma passagem, deixou as terras da pátria, para ir procurar
  • 30. longe os meios de dar-lhe uma prova do seu amor, e de erguer um monumento à sua glória. Com feliz travessia chegou ele à Bahia, e foi assentar os seus penates, isto é, suas estantes, seus livros, seu telônio, seu manuscrito e a velha Euquéria naquela mesma casinha por detrás da Sé; imediatamente os demandistas recorreram à experiência do novo jurisconsulto, a quem o povo, ignorante das distinções acadêmicas, chamava geralmente — o senhor licenciado. Vaz Caminha, modesto como era, nenhum caso fez; mas não deixou de lhe causar impressão o caráter especial do foro baiano. O advogado era apenas um conciliador de partes; afora essa tarefa de nada servia; porque os embargos, os agravos e recursos tinham sido substituídos por uma exceção peremptória não consignada no formulário dos praxistas — a adaga ou o arcabuz. Começavam-se muitos pleitos, porém todos eram decididos extrajudicialmente; os físicos vendiam alguns récipes e os boticários as suas mezinhas; os padres ganhavam frequentes encomendações; mas ao advogado nada rendia esse modo expedito de terminar os processos. Assim Vaz Caminha compreendeu que antes da chegada da Relação nada se podia fazer. Desde então principiou um hábito que ele ainda conservava na ocasião em que o encontramos; todos os dias ao raiar da alvorada saía de casa, e no seu passeio matutino dirigia-se ao Largo da Sé, de onde se descortinava toda a baía. Ali ficava cerca de uma hora com os olhos engolfados no horizonte a ver se enfim surgia o galeão, em que vinha a desejada Relação. Ora, esse galeão partira em meado de 1588 de Lisboa, tendo a seu bordo o Governador Francisco Giraldes donatário dos Ilhéus, e os desembargadores nomeados para instalarem o novo tribunal; sucedendo arribar duas vezes, os passageiros tomaram isso como aviso do céu e deixaram-se ficar em Portugal. Nem mais novas houve da Relação. Vaz Caminha resignou-se e continuou a magra advocacia que pouco mais lhe rendia que em Arraiolos; então lembrando-se de algumas lições de cravo que tomara em sua mocidade, aceitou o lugar de organista da Sé, o que lhe deixava no fim do ano algumas patacas. A gente que se ocupa da vida alheia chamava-o de avarento; mas ignorava que sublimes sentimentos ocultava aquela restrita economia: não sabia que dos modestos lucros ele mandava dar uma pensão em Portugal à irmã que lhe servira de mãe, e o resto destinava
  • 31. para a publicação de sua obra, o maior serviço que podia prestar ao seu país. Quando os rapazes que passavam para a escola, vendo-o que se dirigia para o Largo da Sé triste e cabisbaixo, o perseguiam com risos e galhofas gritando — vais? vais, Caminha? — mal pensavam que aquele homem que durante vinte anos, chovesse ou fizesse sol, ia todas as manhãs olhar o mar e o horizonte, não se iludia já com a esperança vã e ridícula de ver chegar o navio que trazia a Relação. O que o levava lá era a saudade da pátria, a sublime nostalgia do velho que sente o corpo vergar para uma terra, que não é a sua, e em cujo seio talvez descansarão suas cinzas, entre gente estranha, longe do berço; o que ele ia ver não era nem o mar, nem os navios, era sim o horizonte imenso, no fundo do qual os olhos d'alma lhe mostravam o modesto painel de sua aldeia natal. Que lhe importava que o mundo risse? As dores profundas e grandes se escondem nos refolhos do coração, aí vivem, aí morrem, sem que a compaixão pública as profane; só Deus lhes sabe o segredo, e lhes manda às vezes uma doce consolação na terra, ou lhes guarda um prêmio no céu. Para o licenciado essa consolação fora um menino. Três anos depois que chegara à Bahia, em 1590, conheceu Robério Dias, o célebre possuidor do segredo das minas de prata. Corria que voltava da Espanha descontente, porque Filipe II lhe recusara o título de Marquês das Minas, que pedira como prêmio da descoberta, e o nomeara apenas administrador. Viera ele esperar na cidade do Salvador o novo Governador-Geral D. Francisco de Sousa, aproveitando o ensejo para passar algum tempo com sua mulher, de quem andava ausente havia bom par de anos. Robério sofrera uma grande decepção e era infeliz; não há laço que mais prenda e solde duas almas do que a desgraça; tendo necessidade de consultar o advogado para deixar os seus negócios em boa ordem, achou nele um conselheiro, que breve tornou-se amigo; estabeleceu-se a intimidade, a tal ponto que, partindo para o sertão com o governador, Robério, a quem um pressentimento cerrava o coração, abriu-se completamente com Vaz Caminha e deixou-lhe o cuidado de velar sobre sua mulher e o filho que ela ainda trazia no ventre. O pequeno Estácio veio a ser um consolo para o legista, a quem a sorte negara o doce sentimento da paternidade; esse menino e sua mãe criaram para o seu coração virgem uma família espiritual, em cujo seio ia esquecer as saudades de sua boa irmã e as lembranças de seu velho Portugal.
  • 32. Um ano não era decorrido, quando Robério Dias adoeceu e morreu no sertão sem haver revelado o segredo das minas de prata; este fato deixando órfã e ao desamparo aquela criança, ainda ligou-a mais ao licenciado, que sentia necessidade de repartir com uma criatura humana a afeição que votara aos seus queridos alfarrábios. Cuidar da educação de Estácio foi imenso prazer para ele; ensinou ao menino as humanidades; depois, modesto como era, e desejando dar-lhe uma instrução acabada, entregou-o a mestres de primeira força; na idade de quinze anos o moço começou a frequentar as aulas do Colégio dos Jesuítas, na qual tivera tais adiantamentos, que os padres instavam para que ele entrasse na ordem. Este projeto porém encontrou séria oposição da parte de Álvaro de Carvalho, que se associara a Vaz Caminha na educação do moço e se incumbira de ensinar-lhe as artes da cavalaria. O velho alcaide sonhava para seu protegido um mais brilhante futuro, que o da roupeta. Eis como se achavam as coisas no momento em que Estácio, acabando de ler a carta dirigida a sua mãe por D. Diogo de Mariz, dobrava-a tranquilamente sem reparar na alteração de fisionomia e na posição grotesca de Vaz Caminha. — Podeis dizer-me, mestre, que papel é esse de mor valia, pertencente a meu falecido pai? O licenciado conseguiu restabelecer-se do abalo que sofrera; atirando-se a Estácio, arrancou-lhe das mãos o papel e leu-o de novo, enquanto o moço olhava-o admirado da singular excitação que pela primeira vez quebrava a pausada e fria gravidade do advogado. Quando acabou de ler, segurando o papel nos dedos trêmulos, voltou-se para o estudante: — Não sabeis a história de vosso pai? — Sei dela o que me tem ensinado a tradição popular; contam que meu pai conhecia o segredo de grandes minas de prata, que recusou descobrir por lhe haver El-Rei negado a recompensa que pedia. — A tradição mente, filho; Robério era incapaz de uma tal vilania; depois de haver prometido cumpria. — Mas então por que ainda hoje é desconhecido o segredo? — Ouvide, filho; o que vou referir-vos foi dito há dezenove anos por Dias na véspera de
  • 33. partir-se para o sertão, de onde um pressentimento lhe advertia que não devia voltar; desde então ficou sepultado em mim, e só agora sai de meus lábios para vossa alma. Assim, é como se vosso pai vos falasse do seu túmulo. VI - Que dá uma versão da história do célebre Robério Dias. O velho recolheu-se um instante. Estácio comovido, preparava-se para escutá-lo. — Estas famosas minas de prata do Brasil, que tanto mal têm feito, excitando a cobiça de uns e causando a desgraça de outros, fazendo que reis esqueçam seus povos e sacerdotes sua divina missão, foram achadas em 1587 por vosso avô, o Moribeca, de uma maneira que ainda hoje se ignora. — Ah! não foi meu pai! — Para não esquecer o lugar e direção em que demoravam, deixou no tronco das árvores em todo seu trajeto certos golpes que deviam orientá-lo em uma segunda jornada. Infelizmente não a pôde levar a cabo; enfermou quando ordenava os aprestos dela, e na hora derradeira chamou o filho e lhe comunicou sua descoberta. Robério cuidou logo em fazer a jornada para aviventar os rumos e marcos apostos por vosso avô, antes que o tempo e os acidentes os destruíssem. Partiu quase escoteiro, seguindo as pegadas do pai e chegou ao lugar indicado. — Quando isso? perguntou o moço. — Em fins desse mesmo ano de 1587, ainda eu não estava no Brasil. Vosso pai, por prudência e para não dar rebate aos garimpeiros que o acompanhavam, saiu do rancho como para caçar. Seguindo as indicações, deu com a entrada da caverna; achou-se em uma longa crasta subterrânea; havia escuridão profunda; mas com pouco o luar enfiando pelas fendas da pedra, deu em cheio sobre aquelas paredes alvas e brilhantes; vosso pai admirado julgou ver um palácio encantado no qual o pórtico, a fachada, as colunas, tudo era de prata. — E voltou carregado de riquezas? — Não trouxe nem uma oitava de metal; seria revelar o segredo e expor as minas à ambição de todos que o acompanhavam, tanto mais quando de repente foi surpreendido
  • 34. pelas vozes de alguns que se aproximavam. Resistiu à tentação e voltou como fora. De volta à Bahia, caso de maravilhar, encontrou na voz do povo, e assoalhada por toda a cidade, a nova da descoberta. Disse-me Robério que atribuía esses boatos à muita cópia de prata em alfaias que vosso avô havia mercado, logo após sua chegada do sertão; e de feito, casa alguma rica da Bahia competia com a vossa, Estácio, em baixela e copa. — Agora come-se nela em escudela de pau, e bebe-se em pichel de estanho! — É a lei deste mundo, filho; devemos nos resignar. Vosso pai tivera o cuidado de substituir os primeiros sinais por outros de mais dura, bem como de escrever a rota da jornada de modo a poder em qualquer tempo ir com segurança e presteza às minas. — Ah! é esse roteiro que D. Diogo de Mariz anuncia?... exclamou Estácio. — Esperai! acudiu o licenciado interrompendo-o com brandura. Era o primeiro intento de Robério empreender por si mesmo a exploração das minas; mas os boatos que começaram de correr, como vos disse, o fizeram mudar de parecer. — Foi então que passou às Espanhas? — Sim; refletiu, e julgou que melhor era seguir rumo direito; embarcou-se para o reino; levava o roteiro dentro de uma bolsa de couro que nunca o deixava. Por infelicidade precedia-o a fama do que ia fazer; depois de oferecer o segredo das minas a Filipe II, que lhe prometeu de seu moto próprio o título de marquês, quando abriu a bolsa para entregar o manuscrito, não o achou; tinham-no roubado. — Ah!... balbuciou Estácio cujos olhos brilharam de indignação. — El-Rei, desconfiado como era, não conhecendo o caráter do homem que com ele tratava, suspeitou um embuste; voltou atrás; e proveu D. Francisco de Sousa no governo para vir ao descobrimento das minas, nomeando vosso pai simples administrador. — Apesar de perdido o roteiro? — Robério afirmou ao rei, que sua memória supriria o papel; e Filipe II receando que outrem lograsse o tesouro, tomou aquela resolução. Robério veio então para esta cidade esperar o governador, e aqui durante dezoito meses de estada tive eu a dita de conhecê- lo; um ano depois partia para não tornar, deixando a meu cuidado vossa mãe que vos trazia ainda no ventre. — Terminai!... exclamou o moço. — O resto sabeis: são as desgraças que enlutaram vosso berço, filho. Robério confiou demais da sua memória, na qual cinco anos de cuidados e tributações tinham apagado a
  • 35. reminiscência da primeira jornada; por fim, depois de esforços baldados, tido como falso e embusteiro, ele, a honradez em pessoa, foi preso de uma febre maligna, e finou-se no delírio que lhe mostrava ainda uma vez a visão daquela tarde, em que entrara nas minas. O Governador D. Francisco de Sousa dera conta a El-Rei do que passara, e sobre as cinzas ainda quentes de vosso pai executava-se a sentença de confiscação que vos reduziu à extrema pobreza. O moço enxugou a lágrima que tremulou em seus olhos límpidos; e beijou com ternura e respeito filial as mãos secas do velho. — Depois vós me servistes de pai, e quando, vai para cinco anos, minha mãe deixou-me para ir-se aonde a chamava seu esposo, fostes vós ainda que tomastes o lugar que ela ocupava neste mundo. — Não falemos disto, disse o licenciado passando a manga pelos olhos; o passado é dos velhos, pequeno; aos mancebos deu Deus o futuro. Ele vos pertence; podeis realizar a obra de vosso pai. O papel de que fala esta carta é o roteiro de Robério; não pode ser outro. — Assim, eu sou rico! disse o moço como acordando de um sonho. — Rico é o menos; tendes em vossas mãos um grande poder; o ponto é saberdes usá-lo. — Me guiareis com a vossa experiência; ensinareis a gozar da riqueza àquele a quem ensinastes a suportar a pobreza. — Em tempo praticaremos sobre isso; hoje tendes o espírito todo empregado em folguedos e festas. — É verdade! respondeu Estácio lembrando-se de Inesita; agora mal vos escutaria. — Ide, ide, pequeno, onde vai o vosso pensamento; não vos demoro. Somente lembrai- vos que esta carta é mais que a vossa felicidade, é a reabilitação da memória de vosso pai. — Não o esquecerei nunca, mestre. — Guardai-a, e o segredo que ela encerra, como um arcano; tirai exemplo da desgraça de Robério. — Não pode estar melhor do que em vossas mãos, respondeu o moço entregando-lhe o papel. — Não, filho, um velho fraco e inerme, é má guarda de tesouro tamanho, a alma é
  • 36. impenetrável, mas o corpo facilmente se quebra. Sois moço e valente cavalheiro; a riqueza mudou-vos de repente a carreira; habituai-vos desde já a trazer a vossa fortuna, como a vossa honra, na ponta de vossa espada. — Então vossos projetos?... — A Providência acaba de destruí-los. Mais estabelecidos das comoções por que tinham passado, o velho voltou ao seu almoço, e Estácio escondendo no seio o papel, dispôs-se a partir. — Uma coisa porém me parece obscura ainda. — Apontai-a, filho, que vo-la explicarei podendo. — Por que esta carta que continha tão importante revelação estava ainda fechada com o fio preto que a selava? Por que nunca minha mãe falou-me dela? Quem a entregou? — O escrito traz a data de 28 de setembro de 1604; que no mesmo dia partisse de São Sebastião, devia chegar aqui meado de outubro; vossa mãe já estava sacramentada; uma semana depois rezávamos por sua alma; a carta que lhe trouxeram ficou pois na caixinha onde guardava suas alfaias, tal como a tinham entregado. Quanto ao mensageiro, decerto algum colono que passou ao reino ou a esta capitania. — E esse homem não devassaria o segredo? disse Estácio tomado de súbita inquietação. — É claro que não, respondeu o licenciado com o acento da convicção. — Como o afirmais? — Se ele soubesse o conteúdo da carta, não a entregaria, e por si, ou por terceiro, se apresentaria a D. Diogo de Mariz para receber o papel. — Tendes razão. E estais informado da pessoa que é esse D. Diogo? — É o provedor-mor da Fazenda de São Sebastião; bom português, fidalgo às direitas, descendente da casa dos Marizes, uma das melhores do tempo do Senhor D. Afonso Henriques, que Deus tem. É filho de D. Antônio de Mariz, que prestou grandes serviços no governo do Sr. D. Antônio Salema, e há anos correu ter perecido às mãos do gentio aimoré. — Julgais então que durante os quatro anos que passaram, ele tenha fielmente guardado o roteiro? — Não conheceis um português, Estácio! Com esta sede de ouro que traz ao Brasil tantos aventureiros, os costumes dos nossos maiores se perderam; mas entre estes ainda há
  • 37. cavalheiros que sabem o que devem à sua honra e aos seus brios. D. Diogo de Mariz é um dos poucos dessa raça que lá se vai com o seu tempo; o roteiro, se o não roubaram, ainda está em seu poder e intato. — Quando assentais que deva partir? perguntou o moço com certa vivacidade. — Devagar, filho; depois trataremos disso. Festina lente. A citação latina anunciou ao moço que Vaz Caminha ia apresentar-se sob um aspecto que já conhecemos. Com efeito havia naquela exótica figura três homens diversos. Um era o homem de sentimento e efusão, que só a Estácio se revelava nos momentos de intimidade: uma bela alma fechada num corpo grotesco; uma pérola fina escondida em casca rude e grosseira. O outro era o homem do foro, o advogado seco e dogmático, inflexível no raciocínio, recheado de textos romanos, armado com o ergo formidável que acentuava as conclusões de sua lógica de aço; a necessidade de ganhar os meios de subsistência tinha criado essa personalidade, que sendo a menos verdadeira, era a que a todos se manifestava. O terceiro homem, que havia dentro daquela organização raquítica, era o homem de talento, o autor ainda desconhecido de uma obra concebida e realizada durante muitos anos de trabalho e longas noites de insônia. Espírito vivendo no futuro, alimentado pelo fogo íntimo que queima lentamente, absorvido na gestação de um pensamento grande, ninguém o compreendia; a ninguém se revelava nessa última fase de sua vida. Era um mistério entre ele, a candeia que o alumiava e Deus que o encorajava. Os três elementos dessa organização tinham constituído uma vida à parte; cada uma das fases da tríplice existência tinha seu órgão diverso e sua esfera distinta. No primeiro homem funcionava o coração; no segundo a vontade; no terceiro a inteligência. Pai espiritual e amigo pela necessidade de amar; advogado pela obrigação de se alimentar e socorrer sua irmã; autor pela febre d’alma que excita o espírito a criar alguma coisa, e deixar durante a rápida passagem neste mundo seu nome impresso e seu pensamento materializado em algum objeto. Ora, Estácio amava seu mestre; mas respeitando o advogado, sentia uma certa dissonância entre seu caráter leal e a lógica forense que arma-se muitas vezes do
  • 38. sofisma para escurecer a verdade; por isso apenas Vaz Caminha anunciou com o primeiro texto latino que o jurisconsulto ia aparecer, o mancebo apertando-lhe a mão, partiu. Ia seu caminho bem preocupado com os pensamentos que lhe suscitara a revelação de seu padrinho, e por isso não ouvia que o chamavam. — Psiu!... Psiu!... Senhor cavalheiro! Brásia corria após ele e o alcançou. — Fazei a mercê de esperar, meu rico senhor! — Que desejais, mulher? — Certa dama que vos viu na missa está tão rendida de vosso gentil parecer, que ansiosamente deseja falar-vos um instante que seja. Estácio ficou surpreso e passado; não era mancebo de aventuras; nunca as tivera, nem mesmo as sonhara. Ficou pois a olhar mui sério, para a aia, sem lhe ocorrer alguma resposta. — Que lhe hei de eu levar à formosa dama, meu rico senhor? — Dir-lhe-eis que este seu servo não merece seu agrado, e nem já se pertence, pois rendeu-se cativo de outros encantos, tornou Estácio gravemente. A Brásia titubeou; mas logo espevitada acudiu: — Mas, gentil namorado, não me entendestes ou eu não me expliquei assaz... Não sou correio de Cupido, que bem diversa é a incumbência que trago!... A dama, sabendo da vossa bizarria, quer valer-se dela, para seu amparo! — Ah! então carece ela de mim? — Pois que tão apressada me mandou... — Onde a posso eu encontrar? — Esta mesma noite de hoje, ao escurecer. Ficai parado no adro de Santa Luzia, olhando fito para as bandas do mar. — Esta noite não poderei, pois devo estar no torneio. — É verdade, mas em acabando ele? — Lá estarei, se for por instantes, pois devo voltar para o sarau. — Pois sim, disse a Brásia esgueirando-se.
  • 39. Entretanto o legista terminava tranquilamente seu almoço, e se dispunha a sair de novo, quando o vultozinho da tia Euquéria assomou à porta. — O pequeno já se foi, senhor licenciado? perguntou ela. — Agora mesmo saiu; ainda não dobrou o canto. Por quê? — É pena que se fosse; podia dar-me uma demão para cortar lá no horto um cachinho de bananas que estão a cair de maduras! Faz gosto ver! — Pois Euquéria, disse Vaz com ar severo, é essa incumbência que quereis dar a um moço cavalheiro? — Ai!... tal não me lembrou, Senhor Vaz; mas não leveis a mal, que me arrependo, e dos arrependidos é o reino do céu. Como ele foi quase criado aqui... — Contudo já é um homem... — Um rapaz, resmungou a velha; para homem ainda lhe falta muito. Porém as frutinhas? Ficam perdidas? Mete dó! Já estão sorvando! — Não vos amofineis, Euquéria, há de se arranjar. — Como, é que eu não sei, porque o cacho não é lá muito baixo, e nem vós mesmo, senhor licenciado, com serdes de boa altura, podeis deitar-lhe a mão. Com efeito Vaz Caminha tinha mais meia polegada que a sua caseira. — Talvez por aí venha logo mestre Bartolomeu, disse Vaz Caminha. — Esse sim! Era um achado! Mas virá ele? — É natural. — Pois vou preparar meu tabuleiro para pô-las à seca. Não gostastes dessas passas que vos servi na colação? — Não desgostei, não; estavam tenras. — Sabem, assim assim, com os nossos figos de Arraiolos, não é verdade, Senhor Vaz? Se nós os tivéssemos cá? Que de anos não lhes tomo o gosto! Fazem bem pela Páscoa... E a velhinha começou de fazer a conta. O licenciado deixou-a nessa profunda elucubração; tomando o barrete e sua cana de Bengala, ganhou a rua e seguiu para as bandas do Colégio dos Jesuítas.
  • 40. VII - Que trata das novas do reino e do mais que seguiu-se. A poucos passos de casa, o advogado encontrou o desembargador Baltazar Ferraz, seu antigo companheiro de viagem, que como ele, esperara debalde pela encantada Relação, e afinal se consolara de sua inércia forense nas lidas financeiras do cargo de provedor- mor da Fazenda. O magistrado voltava de palácio, onde deixara o governador ocupado com a leitura dos despachos reservados que vinham do reino. — Então, doctor, não foi ainda desta vez!... Nada de Relação. — Virá quando Deus for servido, e El-Rei o ordenar, senhor desembargador. Quais novas do reino? Boas? — Não sei, se boas, se más; sei que são importantes. El-Rei houve por bem dividir outra vez seu Estado do Brasil em dois governos, separando as capitanias do Sul. — El-Rei terá razão de assim proceder, Senhor Baltasar Ferraz; mas não é menos certo que pouco avança, quem não segue rumo direito. Ainda em 1577 se uniam os dois governos, e já os dividem! — Pensais com acerto, Doutor Vaz Caminha. Porém não pensam assim os vossos amigos, que tão certo como ser hoje quinta-feira, foram os motores disso. — Falais dos padres, senhor desembargador? — Falo dos da Companhia de Jesus, que bem conheceis. — Ubi effectus, ibi causa. Que interesse podem ter eles na divisão? — O de vingar-se de D. Diogo de Menezes, pela audácia de lembrar-lhes o texto das Santas Escrituras. Os filhos de Jesus costumam esquecer que seu reino non est de hoc mundo. — Estou que vos enganais, senhor provedor. — O tempo vos abrirá os olhos, Senhor Vaz Caminha. — Sabe-se já quem foi o provido no governo do Sul? — D. Francisco de Sousa há muito o estava por carta régia de 2 de janeiro passado. — D. Francisco de Sousa!... É o que veio há anos em cata das minas de prata de Robério
  • 41. Dias? — O mesmo, e desta vez traz não só o provimento de governador, como a superintendência das minas, com regalia de conceder foro de fidalgo e hábitos nas três ordens, passando por morte a sucessão a seu filho, independente da confirmação de El- Rei. — Julgais então que os padres da Companhia para humilhar D. Diogo de Menezes obtiveram tudo isto? — É fora de dúvida. Quem, se não eles, obteriam prerrogativas, como governador algum ainda as teve? O licenciado abanou a cabeça. — Afora estas, não há outras novas? — Conta o sargento-mor que os desembargadores nomeados ficavam a partir para virem instalar nesta cidade a nova Relação; mas tantas vezes nos tem chegado a mesma notícia, que já não há crer nela. — Chegarão quando menos os esperarem. E passageiros? Muitos? — Algumas famílias de Ilhéus para a colonização das terras, e um padre da Companhia. — Só um? perguntou Vaz Caminha. — Achais que são poucos os que já existem em sua casa do Terreiro? Orçam por noventa e tantos! — Não é isso que me causou estranheza, senhor desembargador; poucos ou muitos, nada tenho com o número; é natural que onde sobra o trabalho das reduções e apostolados, mais se empenhem as forças da Companhia. Por outro motivo pareceu-me singular a vinda do padre. — Por que, doutor? Não andam eles sempre de arribação? — Sim; mas não se manda um soldado para aumentar a guarnição de uma praça, senhor provedor. — O que se manda então? — Manda-se um bom cabo de guerra para defendê-la; ou um mensageiro para levar-lhe instruções superiores. — É possível que assim aconteça. O que for soará, respondeu o provedor despedindo-se.
  • 42. O licenciado continuou seu caminho refletindo sobre a conversa que tivera com o Desembargador Baltasar Ferraz. Não era que o seu espírito andasse ocupado com as questões da governança da terra; em sua posição modesta e com seu gênio, nunca aspirara a fazer o papel de político; e até recusara em 1562 representar a vila de Arraiolos em Cortes, desviando de si os votos do Conselho, e fazendo nomear outro procurador. Mas os homens de inteligência, habituados ao estudo e meditação, não se podem conservar indiferentes aos fatos de importância que passam sob seus olhos: embora não lhes interessem de perto, sentem eles a necessidade de os apreciar. A inteligência é ímã também; atrai o que entra em sua atmosfera. Estranhava que o governo espanhol em vez de conservar a unidade da administração colonial, imagem da unidade da monarquia, voltasse ao antigo sistema da divisão que pouco havia fora condenado; não acreditava que uma simples vingançazinha dos jesuítas desse causa àquela mudança repentina e impolítica. No meio dessas reflexões uma ideia passou-lhe de relance pelo espírito. A lembrança da cena que há pouco tivera lugar em sua casa entre ele e Estácio; a coincidência de ser o novo Governador D. Francisco de Sousa, o mesmo que em 1591 viera com Robério Dias ao descobrimento das minas de prata; o fato da existência do roteiro que se julgava perdido; todas essas circunstâncias, apresentando-se de repente e conjuntas a um espírito sagaz e profundo como o seu, deviam impressionar. A ambição insaciável dos reis de Espanha, os quais desde a descoberta do Novo Mundo, sugavam o sangue da América para arrancar do seio dessa terra o ouro e as pedras preciosas que a natureza aí depositara; o desejo de obter as famosas minas de prata, cuja abundância e riqueza a tradição popular havia engrandecido, explicariam perfeitamente a nova política e a nomeação de outro governador e superintendente. Também não deixava de causar certo reparo ao nosso advogado a chegada do jesuíta, que naturalmente, como fizera sentir ao provedor, vinha incumbido de alguma missão importante; qual ela fosse, é o que ele não podia adivinhar. Isso o inquietava involuntariamente. Um quer que seja lhe fazia recear que o segredo de Estácio se achasse envolvido em todos esses acontecimentos. — Cuidemos de sondar os ânimos! disse entre si. Assim pensativo atravessava o doutor o Largo da Sé, quando lhe ocorreu a advertência
  • 43. da tia Euquéria, de que a sua provisão de vinho das Canárias já estava exausta, e pois carecia nova para o dia seguinte. Quebrou na primeira travessa em busca de uma taverna muito afreguesada, que havia ali perto, servida por um tal Brás Judengo. A varanda da taverna ainda estava deserta e a porta cerrada; porém Vaz Caminha, como freguês antigo, penetrou no interior. Já ele vinha do fundo desenganado de encontrar viva alma com quem falasse, um murmúrio de vozes abafadas feriu-lhe o ouvido. O advogado sondou com o olhar os cantos escuros do aposento. Viu no fundo uma fresta triangular interiormente esclarecida por uma candeia. — Bom! pensou Vaz Caminha. Está justamente na adega. De fato, a fresta dava para o vão subterrâneo de uma escada onde o bodegueiro havia construído a cava dos vinhos. Enfiando o olhar pela abertura, o advogado pôde ver e ouvir distintamente o que passava no interior. Na estreita área ladrilhada, que formava o fundo da adega, estavam dois homens sentados em face de um e outro lado da quartola, cujo tampo lhes servia de mesa; outros barrilotes deitados faziam as vezes de tamboretes. A candeia, colocada sobre um tijolo saliente da parede, projetava a luz de chapa sobre o meio perfil dos dois companheiros. Um deles era um negro, moço e robusto, cuja tez escura refletia os raios da luz, como o lustro do jacarandá polido. Tinha a feição comprimida peculiar à sua raça: o olhar pesado e torvo; nos lábios grossos, o sorriso carnal da animalidade africana. Com os cotovelos apoiados sobre o arco da quartola acompanhava os movimentos do outro. Era esse o taverneiro, o Brás Judengo, como o chamava o vulgo; homem de estatura meã, entre gordo e magro, de cabelo preto corrido e barba ruiva encarapinhada; espécie de ecletismo vivo no moral como no físico; alma anfíbia, habitando no vício tão bem como na virtude. Não professava religião alguma, porém usava de todas: era ao mesmo tempo pelos padres da Companhia e pelos senhores de engenho, a favor e contra a liberdade dos índios; vivia bem com o alcaide e com os ratoneiros; acoutava negros fugidos e também os entregava aos donos quando lhe davam pingue espórtula. Seu verdadeiro nome era Joaquim Brás; pelo menos assim foi dado o rol na Câmara, quando se tratara do assentamento dos moradores e vizinhos do Conselho. Desse nome usava ele sempre que traficava com os mercadores judeus. Neste caso pronunciava
  • 44. Baraz e escrevia Joakim com k em vez de q; isso dava à assinatura certo cheiro de velho testamento, bastante para conciliar a benevolência dos vendedores, e não tanto que comprometesse. Se vivera nos tempos modernos, o Sr. Brás (Joaquim) ou Joakim Baraz faria um importante papel na política; e primaria sem dúvida entre os mestres de certa escola, que aceita todos os princípios e apoia todos os governos. O Brás naquele momento acabava de riscar a giz sobre o chantel do barrilote diversos traços que figuravam a tosca planta do interior de um edifício. — Pronto! exclamou ele largando o giz e enchendo na mesma quartola, que lhe servia de mesa, uma caneca de vinho. E continuou, depois de beber: — O dinheiro está por baixo do oratório, não é? O negro acenou com a cabeça: — Aqui, respondeu assentando a ponta do dedo sobre um dos traços de giz. — Então, replicou o Brás, bem vês, Lucas, que tenho razão: é melhor cavar dentro da casa. Anda mais lesto e vai-se pela certa! — Não! disse o negro com a palavra breve e decidida. Dentro não se pode; há de ser por fora. — Mas vem cá, filho! Devagar, que é o meio de apressar. O bodegueiro designou a planta. — Se o oratório está aqui, temos que para lá chegar, carece atravessar a recâmera da dona. Ora, cavar tudo isto por baixo da terra, não é cavar um queijo do Alentejo. — Gimbo muito! Paga a pena, retorquiu o negro. — E a dona não há de ouvir, quando estiverem a cavar por baixo da cama dela? — É não fazer barulho. — Custa pouco a dizer: Beba, mas não engula! O som do ferro no chão, por força que se há de ouvir, filho de São Benedito! — Pois a querer, é assim! disse o negro, que se ergueu resolutamente e bateu com a palma da mão no barrilote. Dentro da casa ninguém entra, que não deixo eu! — Está bem! acudiu o bodegueiro, não vai a zangar. Tudo se arranja.
  • 45. O advogado apenas teve tempo de ganhar a varanda, antes que os dois interlocutores assomassem no topo da escada subterrânea. — Ó de casa! disse Vaz Caminha batendo com a bengala no ladrilho. Não há quem acuda aos fregueses? — Já se vai! Já se vai! gritou o Judengo, supondo que batiam à porta da rua. — Ora sejais bem aparecido, sô taverneiro! Tarde madrugais, para que vos Deus ajude. — O senhor licenciado!... Cá dentro?... Por onde entrou sua mercê? exclamou o taverneiro arregalando os olhos. — Não está má! Pela porta! Queríeis que entrasse pela janela? — Mas se a porta estava fechada! — Tanto não estava, que por ela entrei eu! E como o Brás embatucasse, continuou o advogado rindo maliciosamente: — A isto chama-se no digesto, mestre Brás, provar in continenti pela vista dos olhos, aspectu. O bodegueiro disparatou afinal: — Já sei! Foi aquele maldito que se pôs ao fresco e deixou-me às escâncaras, em risco de me limparem a casa!... Martim! Martim! Diabrete, filhote do demo, com perdão de sua mercê, senhor licenciado! Anda por aí de bródio! Não tem que ver!... Deixa estar, cão, que eu te guardarei boa pitança. Quando o bodegueiro acabou de vociferar e acalmou o furor que o tomara por ver a porta aberta, Vaz Caminha apreçou o vinho e continuou seu itinerário. Mal tinha ele dado uns trinta passos na rua, o negro, que o seguira de longe, entregou-lhe uma carta. Vinha na capa o seguinte endereço: Para o Sr. Vaz Caminha, letrado da Bahia, que mora por detrás da Sé. — Quem te manda? perguntou o advogado reconhecendo no portador o companheiro de Brás na adega. — O papel diz, respondeu Lucas. O advogado rompeu o selo, augurando mal daquela estranha missiva; a carta continha estas palavras: Pessoa que tem razão de segredo, muito deseja aconselhar-se com o senhor licenciado.
  • 46. Não permitindo seu sexo e posição que o procure ela, pede para vir à sua casa esta mesma noite de hoje, depois do sino de recolher. Um escravo fiel acompanhará sua mercê. — Senhor vai? perguntou Lucas, vendo o advogado dobrar lentamente o papel. Vaz Caminha fitou os olhos vivos na face do negro; sentiu um ligeiro estremecimento, recordando a cena misteriosa da adega; não obstante respondeu com a voz clara, ainda que um tanto baixa: — Irei, filho, irei! — Depois do sino? — Onde te encontrarei? — Na bodega, respondeu Lucas. — Aqui serei a ponto. Não foi sem inquietação, sem medo, digamos francamente, que Vaz Caminha se meteu naquela arriscada aventura; porém o advogado tinha, em falta da coragem física, a coragem moral dos homens de vontade firme. De mais, que interesse havia em atentar contra sua vida, que a ninguém prejudicava? Tomando pela Rua dos Mercadores, o licenciado foi sair no Terreiro, junto ao Colégio dos Jesuítas, vasto e belo edifício que ocupava uma das faces do largo, com a frente voltada para o nascente. No meio do Terreiro via-se armada em vasto círculo uma paliçada, que abria para o lado do convento e rematava nos cantos com palanques alcatifados de rases e lambéis de cores vivas. Nas ruas próximas e no largo havia profusão de folhas aromáticas que serviam de tapete; as escadas e os estrados porém estavam cobertos de lindos panos de Flandres com vistosas ramagens. Muitos oficiais mecânicos, carpinteiros e capelistas, trabalhavam ainda nos preparativos dos festejos da tarde; os primeiros erguiam as colunas e arcos que tinham de servir aos diversos jogos; os segundos pregavam as telas, e armavam sobre os assentos preparados para as damas os ligeiros toldos de tafetá, que deviam resguardar os formosos rostos dos raios do sol. O licenciado deu uma vista indiferente àqueles trabalhos, e atravessando o Terreiro, entrou a larga portaria do convento, aberta pelo Irmão Bernardo, que se desfez em mesuras ao visitante.
  • 47. — Servus servorum! — De Deus, de quem todos o somos, Irmão Bernardo. Como vai o vosso achaque? — Sempre na mesma, senhor licenciado! Um cansaço... Ah!... que nem posso com este corpo. O achaque do irmão porteiro era a preguiça, que ele diagnosticara — afrontação. No rés do chão do edifício ficavam, de um lado as vastas salas do refeitório e a rouparia, do outro o pátio, nome que davam os jesuítas às aulas de latim e mais estudos menores; no fundo viam-se por entre as grades das janelas o horto e a grande cerca do convento, a qual ia ter ao mar. Enquanto Vaz Caminha subia os primeiros degraus da escada de pedra, que conduzia aos aposentos superiores, assomou no topo a figura de um frade já quebrado pelos anos, o qual tendo visto pela janela entrar o advogado, fora cortesmente ao seu encontro. — Ave, doctor, semper amabilis! disse o jesuíta com a expressão da mais viva cordialidade. — Gratia vobis, pater provincialis, respondeu o legista com igual expressão. E acabando de subir, apertou a mão que lhe estendia o Provincial Fernão Cardim. — É de mister que Deus mande um dia de ano-bom, para que os seus servos possam ter- vos nesta sua casa. — Tão poucas não são as festas do ano, padre provincial; e elas não passam sem me ver sentado à mesa deste convento, onde a vossa amizade me acolhe com verdadeiras mostras de bondade. — Não é razão, carissime doctor, para nos privar de vossa companhia nos dias não santificados; se eu fora vosso confessor, vos daria essa penitência por algum pecadozinho que deveis ter cometido na mocidade. — Não era preciso ir tão longe; hoje mesmo, padre provincial. Sou homem, e o salmista o disse: Homo, natus de muliere, repletur multis miseriis... — Livre-nos Deus de ofender vossa modéstia. Mas passando a assunto profano, vindes disposto a jogar nossa partida do costume? — Decerto, e por sinal que me deveis uma desforra da última vez. Preparastes um lance que me desorientou bastante. — É verdade! respondeu o provincial, esfregando as mãos com visível satisfação. Avancei