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A BIOGRAFIA 
NÃO-AUTORIZADA 
DE 
BRANCA DE NEVE 
Lazarus de Betania 
Tradução 
Carlos Élson L. da Cunha
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Sumário 
Imprimatur 
Agradecimentos 
Por Que Fizemos Este Livro 
O Ilustrador Tem a Palavra 
Segredos do Caçador 
O Pensamento Vivo do Caçador e Sua Atual Ocupação Como Taxidermista 
Segredos do Coelhinho Assassinado 
O Pensamento da Família do Coelhinho Assassinado 
Segredos de Soneca 
Como Soneca Fundou a Igreja “Cristo é Grana!” 
Segredos de Nisséia, a Rainha Má 
Como a Rainha se Tornou Gerente de Eventos 
Segredos de Hebe, a Bruxa 
O Pensamento Vivo da Bruxa e Sua Vida de Aposentada pelo INSS 
Segredos de Dunga e Sua Tentativa de Suicídio 
O Pensamento Vivo de Dunga e Seu Trabalho Junto à Unicef 
A Morte de Atchim e seu Legado 
O Pensamento de Maddona, a Amante Argentina de Atchim 
Dengoso e o Segredo de Sua Grande Fortuna 
Como Dengoso Subornou Nosso Repórter 
Segredos do Príncipe Encantado 
O Pensamento do Príncipe Encantado e Como Ele se Tornou Consultor de Empresas e Palestrante 
Segredos de Zangado 
A Entrevista Que Zangado Não Concedeu 
Segredos de Branca de Neve e Suas Empresas 
O Pensamento Vivo de Branca de Neve e Sua Relação com Mowgli 
Segredos de Feliz 
Uma Antiga Entrevista de Feliz e Sua Visão da Mulher 
Segredos do Mestre 
Máximas do Mestre Cedidas a Diversos Autores 
Segredos de Vavá – O Cabeleireiro de Branca de Neve 
Vavá Conversa com Lazarus e Revela Coisas Incríveis 
Segredos do Dr. Drausio Marinho – o Ginecologista de Branca de Neve 
O Prontuário Confidencial do Dr. Drausio Marinho 
Segredos do Dr. Sigmund Jung – o Psiquiatra de Branca de Neve 
Sigmund Jung Conversa com Lazarus e Expõe Suas Angústias 
Segredos do Espelho Mágico – Que Só Fala a Verdade 
O Pensamento Vivo do Espelho Mágico e Seu Deslocamento no Mundo 
Uma Palavra Sobre o Autor 
Livros de Lazarus 
A Fundação Lazarus de Betânia 
Sobre a Tradução 
Íntegra da Versão Original 
Simulado para Vestibular 
Aviso Final 
Índice Remissivo
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Aprovado para leitura dos moços. 
Nihil obstat. Imprima-se. 
DomLucas de Torquemada 
Capo da Confraria dos Cérebros Sem Fronteiras 
Vicarius Delegatus 
Madrid, 1o de abril de 1498
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Agradecimentos 
Não poderia deixar de mencionar algumas pessoas e instituições que, de uma forma ou de outra, colaboraram para que este livro se tornasse realidade. 
Devo muito ao prefeito de Orlando, Coronel Cintra, que nos recebeu tão hospitaleiramente quando de nossa visita, e ao superintendente da Disneyworld Library, por nos permitir acesso aos manuscritos precisávamos. 
Mesmo correndo o risco de esquecer alguém, preciso citar aqueles que nos deram valiosas dicas na Ilha da Fantasia: Napoleão Solo e seu colega Maxwell Smart, o agente 86; Bruce Wayne e seu pupilo Dick Grason; Peter Parker – repórter fotográfico que enriqueceu por demais nosso arquivo; o repórter Clark Kent (muito bom moço, embora às vezes parecesse estar voando) e seu colega Jimmy Olsen; James T. Kirky, nosso incansável piloto, sempre pronto a nos levar onde nenhum homem jamais esteve antes; Capitão Nemo, que nos conduziu por umas 20.000 léguas; Major Antony Nelson, e sua genial esposa Jeanne pela simpatia com que nos receberam; o professor Zachari Smith, técnico que muito nos auxiliou nos problemas mecânicos, e inspetor Closeau, a quem devemos as orientações na parte jurídica deste projeto. 
Nosso obrigado também a Antonio Rogérius Magry e sua secretária, Karla Peres, que por seu impecável português fizeram exaustiva correção em nosso manuscrito original até que nada mais fosse encontrado de errado. O que sair defeituoso é culpa da gráfica. 
Nosso elogio à marinha do Equador, na pessoa do insígne almirante Bravo Bolívar, que nos emprestou transporte e equipamento necessário para chegarmos à Ilha da Fantasia, e por nos fornecer o mapa de toda a região. 
É mister lembrar também do Instituto Sigmund Freud, em Viena, que nos cedeu o diagrama que elucida toda a mente humana, com suas perturbações e motivações ocultas. Só assim pudemos escapar ilesos desta viagem, que de outro modo nos faria crer estarmos completamente dementes. 
Um obrigado carinhoso à Eva Braun, bibliotecária da fundação, cujo telefone eu perdi – mas a quem preciso dizer o seguinte: Eva, aquele meu convite ainda está de pé. Se tudo aquilo que você sentia ainda é verdadeiro, procura meu editor para que possamos nos encontrar de novo. 
Meu terno agradecimento a Esopo, Perrault, La Fontaine, Hans Christian Andersen, e Walt Disney, por tornarem tão saboroso o ler e ouvir estórias. 
Um especial obrigado a Jacob e Wilhelm, os irmãos Grimm, que tiveram a sabedoria de ouvir nas aldeias pessoas idosas que nos legaram esta estória dramática e empolgante - Branca de Neve e os Sete Anões. A estes anônimos camponeses alemães, homens e mulheres do século passado, meu particular reconhecimento. 
E por fim, muitíssimo obrigado à minha editora, Valentina, a profissional mais inteligente que conheço. Inteligente e corajosa. 
Lazarus de Bethania.
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Porque Fizemos Este Livro 
Há algum tempo, num encontro de editores, surgiu a queixa da falta de temas novos para o público. Já se escreveu praticamente sobre tudo, e boa parte do que hoje parece novidade é, na verdade, repetição de temas e autores antigos. 
Naturalmente pode-se continuar ganhando dinheiro editando o que vende fácil, atendendo assim a maior parte do público que sabe o que quer: romances, culinária, auto-ajuda e etc. Todavia, há uma faixa de leitores que busca idéias e conceitos novos. Querem saber mais; não apenas o que aconteceu, mas porquê aconteceu. Atender a tais leitores, entre os quais se incluem os próprios editores e autores, não é fácil. 
Surgiu a idéia de fazer uma investigação isenta do que se passa agora nos bastidores das estórias famosas. Todos temos na mente diversas estórias que encheram nossa infância de magia e emoção. Mas, como estariam vivendo neste exato momento os personagens que nos emocionaram? 
Essas respostas só seriam obtidas com um trabalho muito sério, envolvendo viajar e se imiscuir nos bastidores muito reservados das estórias infantis. Bem, naquele momento decidimos que esta era uma pesquisa original e sobre a qual milhões de pessoas têm destacado interesse. Escolhemos Branca de Neve por ser o conto mais famoso dos irmãos Grimm, e que Walt Disney primorosamente levou ao cinema. Certamente, ao falar de Branca de Neve, falamos a praticamente todo ser humano alfabetizado, onde quer que esteja. 
Sabia que mexeríamos num vespeiro, uma vez que seriam reveladas muitas fofocas escondidas do grande público. Mas, sempre gostei de jornalismo investigativo. Demos o prazo e o dinheiro que Lazarus achava necessários, e ele intrépido seguiu rumo à maior reportagem jamais feita. Nomes e lugares citados aqui são reais, e qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é proposital. 
Decidimos não esconder nada. 
Claro que isto nos trouxe inimizades. Estávamos, porém, decididos a chegar a uma nova fronteira literária. A bem da verdade, descobri que há uns quinze anos um certo Jules Maigret fez uma investigação semelhante a essa. Por algum motivo inexplicado a edição do jornal que publicou a primeira parte de suas reportagens foi recolhida ainda no prelo. 
Era época do regime militar, e comumente algumas matérias sofriam censura. Quase nada escapava da mira dos censores. Porém, as bibliotecas públicas hoje exibem quase tudo que foi proscrito naqueles anos. Mas, nada restou do trabalho de Jules Maigret. Amigos me confirmaram que uma das únicas cópias do trabalho de Maigret se encontra rasgada e manchada, mas ainda em condições de leitura na biblioteca particular de Josef Mindlin. 
Infelizmente o senhor Mindlin jamais retornou às ligações que lhe fiz, pedindo permissão para ver os manuscritos de J. Maigret. Parece que sempre estava viajando ou dando palestras.
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Persisiti por uns seis meses, até que um recado na minha secretária eletrônica me fez desistir. Uma voz grave e não identificada sugeria que parasse com essa pesquisa, e elogiava meus filhos, dizendo que seria muito triste se eles tivessem de crescer órfãos de pai. 
O mais intrigante descobri nos anais do jornal “A Folha do Estado”: o próprio J. Maigret morreu logo depois de tentar publicar sua matéria. A causa mortis, no laudo assinado pelo dr. Badan Falhares, apontava câncer fulminante no pulmão por tabagismo, embora parentes e amigos garantam que Maigret nunca fumou. 
Sabendo de tudo isso, tínhamos motivos para nos preocupar, mas fomos em frente. Tudo foi feito em nome da verdade e certos de que lançaríamos um novo marco no conceito que o leitor mediano tem sobre as parábolas infantis. Houve enorme pressão para que essa obra não fosse publicada. Exatamente por isso quero reconhecer publicamente a coragem de meu sócio editor que se manteve intransigente e não mutilou o manuscrito, mesmo ao enfrentar agentes poderosos. Espero estar contribuindo para engrandecer a imprensa séria que se faz neste país. Conforme verão, Lazarus pagou um preço muito alto por abraçar esta ousadia, mas certamente tem hoje a sensação feliz do dever cumprido. 
É com muita honra e emoção que agora passo ao leitor amigo este diagnóstico cruel: “Branca de Neve, Uma Biografia Não Autorizada”. 
O Editor.
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O Ilustrador Tem a Palavra 
Foi uma feliz surpresa receber o convite de Lazarus para ilustrar seu livro. Uma das lembranças mais gratas de minha infância é cena de papai retornando de viagem e presenteando a nós, seus filhos, com diversos livros grandes e coloridos. Muitas vezes eram livros de Lazarus, que recebíamos ávidos para folhear, ler, colorir e copiar. Outras vezes, após a janta, podíamos ouvi-lo ler seus contos e fábulas para mamãe, enquanto esta recolhia a louça ou costurava. 
Assim, foi com viva emoção que encontrei Lazarus na penúltima feira do livro, em Frankfurt. Já tínhamos nos encontrado antes, mas nunca com tempo suficiente para uma boa prosa, como ocorreu naquela ocasião. Abraçar o velho professor e ouvir algumas de suas muitas estórias tornou aquela semana inesquecível. 
Desde então, tornei-me seu devedor e agora pago minha dívida com algumas pranchas, que na verdade estavam sendo reservadas para um grande projeto de minha equipe, que é ilustrar a Bíblia inteira. Como parece que não conseguiremos concluir nosso intento, cedemos estes desenhos para o livro de Lazarus, que tenho certeza, nos dará a projeção internacional que desejamos. 
Aqui em Paris, seguimos numa rotina enfadonha, sem grandes novidades. 
Votos de muita paz e saúde ao nosso fraterno professor itinerante, 
Paris, 13 de julho de 1789.
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Segredos do Caçador 
“O caçador ia pensando: ‘Nada arrisco, pois os animais da floresta 
vão devorá-la em breve, e a vontade da rainha será satisfeita, 
sem que eu seja obrigado a suportar o peso 
de um feio crime.’ ” 
-Versão original dos irmãos Grimm 
Foi fácil encontrar a casa do caçador na periferia da ilha. Seu nome indica sua origem francesa, e seu agradável sotaque o confirma. 
Estava certo de encontrar um personagem alegre e bonachão, mas não foi bem assim. Era um homem triste, amargurado. Havia perdido muito com toda aquela estória, e hoje se tornou apenas mais um homem de meia-idade sem conseguir um emprego digno. O que é um a pena, pois é muito inteligente. Tem um jeito muito particular de ver o mundo e aprendi muito com ele. 
O senhor De Lyon explicou-me que o Atchim e o Mestre morreram há algum tempo, o que considerei um grande furo de reportagem. Mas, o interessante é que os personagens não morrem como imaginamos. Para se entender bem isto aprendi que há três classes de personagens: os protagonistas, os coadjuvantes e os personagens coletivos. 
O protagonistas - são os atores principais na estória. Possuem nome e papel bem definido, como Cinderela, Simbad, Gepeto e outros. São os que têm melhor salário, roupa bonita e fama. Porém trabalham muito para atender às indústrias de brinquedos, camisetas, livros, filmes e etc. Na verdade pouco tempo tem para usufruir o que ganham. 
Os coadjuvantes - são os que não têm nome, mas função. Alguns exemplos: o caçador, uma fada, o alfaiate, etc. Estes ganham pouco, porém não ficam sujeitos a tantas obrigações contratuais, como entrevistas, lançamento de CD’s etc. Levam uma vida mais simples e mais saudável, pois normalmente moram nas aldeias, ou ao redor dos castelos, um tanto afastado da badalação incessante da corte. 
Os coletivos - são personagens que nunca mostram seus rostos. Não possuem nome nem identidade própria. Aparecem sempre em grupo como: “uma multidão saudou o novo rei...” ou: “os soldados cercaram o castelo...”. O leitor irá encontrá-los sempre que o desenhista apresentar aquelas imagens com dezenas de rostos que são apenas manchinhas repetidas. Tais são os personagens coletivos. 
Estes são os párias das estórias. Sem nome, sem rosto, sem identidade. Vivos, mas quase vegetando. Entre eles estão os personagens que um dia foram protagonistas, mas alijados pelos novos roteiristas, eles desaparecem da memória dos leitores. Encontram-se num limbo inacessível, mortos para o mundo em que vivem.
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É o que aconteceu com Atchim e Mestre, pelo que me contou o caçador. Suas mortes na verdade são o abandono da condição de protagonistas para ser um anônimo, um coletivo. O que é simplesmente apavorante para qualquer personagem. 
O que complica a situação é que, há fortes rumores da existência de uma máfia responsável pela morte de inúmeros personagens. Qualquer leitor de estórias e fábulas vai perceber que vários personagens vão desaparecendo nas sucessivas edições das lendas. 
Por exemplo, Branca de Neve tinha uma mãe que aparecia logo no começo da estória. Era uma protagonista. Nas edições mais recentes os roteiristas simplesmente a eliminaram, citando apenas que o pai de Branca de Neve ficou viúvo e casou-se novamente. 
Textos mais antigos traziam também o pai de Branca de Neve como protagonista, mas os roteiristas de Disney o descartaram da trama. Este desaparecimento de personagens nunca foi bem explicado. Alguns comentam a boca pequena, que há chantagens e extorsões sobre os protagonistas, e quando eles não conseguem colaborar com o submundo, simplesmente somem. 
Talvez as explicações sejam outras, mas como os personagens têm pavor de tocar neste assunto, as especulações vão crescendo, e ficamos sem saber onde termina a verdade e onde começa a lenda. 
Bem, saber disto e de outras coisas que relato aqui, como intrigas entre os anões, o casamento problemático do príncipe - que não foi feliz para sempre coisa nenhuma - etc., diminuiu meu encanto com o mundo das fábulas. Sofro ao imaginar que isto também acontecerá no caso do leitor. Mas, precisei ir até o fim de meu trabalho por dois motivos poderosos: o interesse na verdade jornalística e a necessidade de cobrir meu cheque especial. 
Vejamos, pois, o que tem a dizer o caçador.
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O Pensamento Vivo do Caçador e Sua Ocupação Atual Como Taxidermista 
- É uma honra entrevista-lo, sr. De Lyon. Permita que expresse em nome de muitos leitores, que ficamos muito aliviados pelo seu nobre gesto de salvar Branca de Neve da morte. O senhor tem consciência do alívio que trouxe a todos os seus leitores? 
- Certamente, mon ami. Foi um momento muito difícil para todos nós envolvidos na trama, e orgulho-me do que fiz. 
- Acredito que poucos saibam de sua origem francesa. Pode nos falar um pouco sobre isso? 
- Oui, minha mãe era bretã e meu pai era de Albret, ao sul. Casaram-se numa época em que havia muita insegurança e desemprego; e mesmo os que tinham emprego quase nunca conseguiam pagar suas dívidas. Como os negócios de meu avô paterno fracassaram em Albret, meus pais retornaram para a Bretanha, em Saint-Paul de Lyon, onde nasci. 
- O senhor continua caçando? 
- Em absoluto. Na verdade há anos que não caço sequer uma raposa, mesmo porque neste lado da ilha há muito pouco delas. As maiores raposas ficam na sede da Ilha da Fantasia... Por aqui estão desaparecendo, e minha profissão não é vista com bons olhos. Vivo mais de recordações, e quando relembro a época em que fui o caçador oficial da rainha, fico muito triste. O senhor deve entender o porquê. 
- Desculpe-me a ignorância, mas donde vem tanta mágoa? 
- Ora, mon ami! Devido a ter enganado a rainha perdi meu emprego vitalício como o caçador oficial de sua majestade! Pior: fui mandado embora sem direitos! Não fosse eu ter comprado esta choupana nos bons tempos, hoje seria mais um desabrigado aí pelas ruas... 
- Bem, eu não sabia disso. Lamento muito. Mas, imagino que não deva ser tão terrível para um personagem perder seu emprego, afinal escrevem-se tantas estórias que aqui e acolá deve haver uma vaga para caçador. Estou certo? 
- Sim, mas normalmente são papéis curtos e poucos simpáticos. Um exemplo? O caçador da estória de Bambi. Quem gosta dele? Na verdade são poucas as cenas em que aparecemos com dignidade. Felizes são os caçadores em Chapéuzinho Vermelho, meus primos! Trabalham muito pouco, aparecendo só no final, e tornam-se os grandes heróis. Quanto à maioria de nós, além do ostracismo, ainda temos de enfrentar as pressões da SPCC. Por causa deles eu nem posso mais visitar a França. 
- O que é a SPCC? 
- É a Sociedade Protetora de Coelhos, Chinchilas e Afins, uma ONG de extrema direita com sede em Nancy que denuncia abusos cometidos contra coelhos, chinchilas e outros pequenos animais no mundo todo. 
- Como surgiu? 
- Bem, foi fundada por Jean-Marie Larrusse, ex-funcionário da Revlon francesa, que a via crueldade com que eram feitos os testes de alcalinidade dos novos cosméticos, por se jogarem fórmulas experimentais nos olhos dos coelhos. Larrusse trabalhou 22 anos na empresa e nunca se manifestou sobre o que via ali, mas quando foi demitido sob acusação de espionagem industrial, retaliou fundando a SPCC levando vários documentos e fotos comprovando a desumanidade com os animais. A organização cresceu muito, tendo hoje escritório em 639 países, sendo financiada pelos seus sócios, entre eles gente famosa como Brigitte Bardot e Arnold Ninrode.
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- Como era a sua vida no castelo? 
- Trés joli! Tínhamos refeição e moradia por conta da realeza, além do salário. A casa era uma beleza, nos fundos do castelo. O salário também era muito bom. Recebia duzentas patacas por mês. 
- Quanto vale isso hoje? 
- Olha, na razão de uma pataca por 1,7 florim, dá F$ 340 (florins liliputeanos). 
- Puxa! Isto é um alto salário em qualquer lugar do mundo. Sua família deve ter sofrido muito com sua demissão. 
- Sim, sofre até hoje. Meus filhos não se conformam de eu ter perdido a posição de caçador-mor que poderia ser transmitida por herança. O mais velho, que não consegue emprego de jeito nenhum, já me disse mais de uma vez que se Branca de Neve tivesse morrido a gente não estaria passando apuros. Sei que ele não falou por mal, mas apenas desabafou. 
- Eles têm trabalhado em estórias de caçadores? 
- Olha, está muito difícil para eles. Eu me preocupo muito com isso. Queria vê-los bem colocados antes de morrer. Mas vivemos em tempos difíceis... Eu mesmo me arranjo com serviço de empalhador, pois sou taxidermista também, e ensinei aos meninos. Não que seja uma maravilha de serviço, mas a gente sempre livra alguns florins. O mais novo pegou gosto pela coisa e está se arranjando até que bem, contratado pelo Senado para manter de pé algumas múmias. 
- Como era conviver com a rainha má? 
- Dona Nisséia? Madamme é uma lady. Essa imagem de megera foi criada pela mídia. Ela apenas é uma mulher com forte personalidade. Mas, é uma pessoa hospitaleira, esforçada. Nunca teve esse gênio violento que se diz por aí. Eu que a conheci mais de perto sei que ela é até sensível e tem seus momentos de meiguice. É só a questão de, como se diz no seu país, saber levar. 
- Todavia, a rainha má mandou matar Branca de Neve. Ou não? 
- Veja bem, de certa forma sim. Todavia é preciso entender as circunstâncias em que as coisas aconteceram. Não se pode julgar alguém só pelo que se ouviu dizer. Também, mesmo que ela tenha errado, um momento de nervosismo não representa o que a pessoa é como um todo. 
- O senhor me surpreende. É a primeira vez que vejo alguém defender a rainha má. 
- Claro, pois a conheci mais de perto que a maioria. 
- Vocês chegaram a ter algum relacionamento romântico? Acredita que ela tenha sido influenciada por alguém a fazer o que fez? 
- Respondendo à sua segunda pergunta: sim, ela foi levada pelo espelho mágico a criar essa neurose de querer saber se “existe uma mulher mais bela do que eu...” 
- Mas o espelho mágico apenas foi franco. Como pode a franqueza levar alguém a um assassinato? É algo que não consigo entender. 
- Naturalmente as pessoas de mentalidade apenas mediana têm dificuldade de entender coisas mais profundas. Não param a fim de examinar mais de perto esta questão. O espelho, que se chama Eternus Veritás, sempre fala a verdade, de fato. Mas peca de duas maneiras, mon ami. 
- Quais? 
- Primeiro: por refletir ininterruptamente. 
- Ora, mas não é o que se espera dos espelhos? 
- Sim, mas ouça-me com atenção. Estou certo de que já passou por isso. Você está trabalhando, sentado, ou andando, sei lá, mas de repente passa na frente de um espelho! Note como tudo o mais se torna desimportante e você passa a se concentrar em quão feio de fato é. Sim, o espelho lembra-lhe rudemente de que és mais gordo, desgrenhado, ou corcunda do que até o momento imaginava ser. Quanta crueza há no revelar fulminante dessa sua figura! Logo você se vê buscando um pente, puxando uma roupa para diminuir sua feiúra... 
- Mas, isto é bom. Ou não?
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- De fato, às vezes é bom, e até nos protege de nos apresentarmos como um espantalho. Mas, por favor! Entenda o seguinte: o fato do espelho continuamente nos expor como somos por fora, reduz o cuidado com quem somos por dentro, percebe? Este serviço diuturno carrega uma agressão desnecessária, que se fosse atenuada evitaria muita dor. Na verdade o espelho é o pai do narcisismo, que vai gerar o egocentrismo, a arrogância e o desprezo pelo semelhante – sem falar naquele desvio pavoroso que o senhor sabe qual é. 
- Seu julgamento não é um tanto exacerbado? 
- Não se acrescentarmos a índole reveladora do espelho um outro complicador: a natureza feminina. Sabemos que estas criaturas, as varoas, são presas fáceis da beleza e, por conseguinte buscam a formosura como as ondas buscam as praias. De tal forma são vítimas deste vício que se enfeitam mesmo idosas e viúvas. Desde a infância se alegram com adornos e toda a sorte de ornamentos delicados. Nisto o espelho é um grande cúmplice e promotor. Ainda mais: as fêmeas humanas precisam sentir-se notadas, daí armar-se para esta guerra surda do cortejo, usando a graça que lhes é própria enfeitando-se até o limite do bom senso – algumas vezes ultrapassado, bem o sabemos. O resultado é constrangedor quando vemos o tempo que perdem diante do espelho, seu confidente e mecenas. 
- Vejo aonde o senhor quer chegar: se o espelho mexe tão profundamente com a alma feminina, tanto pior se somarmos a isso um espelho falante. 
- Exatamente, senhor Lazarus! Eis o segundo pecado de Eternus Veritás: para piorar a situação sempre fala a verdade, somente a verdade e nada mais do que a verdade. 
- O senhor não acha que isso é uma virtude? 
- Claro que sim. Porém, ser franco é diferente de ser franco sempre! 
- Não vejo como, mas por favor continue. 
- Meu amigo, tudo é tão simples. Quantas vezes você já se refreou de dizer a verdade para não magoar alguém! Ou será que não? Aqui mesmo, nesta velha casa. Não sentiu um cheiro de mofo ao entrar? Seja franco! Não sente um cheiro azedo de móveis velhos, almofadas velhas, como se um cachorro tivesse dormido neste sofá? 
- Bem, eu... 
- Sim, claro que sim. E não me aborreço se confirmares, pois sei que é verdade. Mas, note bem: você nada me disse sobre isso! Ignorar algumas coisas é parte de teu cavalheirismo. Outro exemplo: ao me ver certamente te decepcionaste com tantas rugas, barriga e esta calva que carrego. Mas tuas primeiras palavras foram: ‘é bom vê- lo saudável e disposto!’ 
- E fui sincero. 
- Sim, sei que não mentiu. Agora pense nisso: focalizamos os pontos altos e ignoramos os pontos fracos, e isso é fundamental para uma boa convivência entre nossos semelhantes. O que prova que a franqueza absoluta não tem lugar entre as pessoas civilizadas. 
- O que tudo isso tem a ver com a rainha má? 
- Você consegue imaginar a pressão sobre Nisséia, que via diariamente o espelho lhe dizer “não há outra mais bela do que tu”? Entende como dia pós dia o espelho foi cevando este lado vaidoso da rainha, criando o vício da adulação? Ele a induziu, na sua insistência de só dizer a verdade, à uma competição feroz entre todas as mulheres do condado. Ali estava uma mulher sem filhos, que se casou com um viúvo oferecendo-lhe companhia e calor para os últimos anos de sua vida. O que essa mulher mais queria era ser desejada pelo seu esposo. Mas a convivência diária com o espelho produziu ao longo dos anos uma mente doente, maníaca pelo cetro da beleza eterna. 
- Que poderia ele ter feito diferente? 
- Poderia ter mudado de assunto, falado de beleza interior, sei lá. Deveria tê-la ajudado a criar outros valores. Alguma coisa como “bem você sabe que é impossível ser eternamente bela, mas para mim o mais importante é que você é a melhor patroa que eu já tive...” Isto a teria ajudado a encarar a vida de forma diferente, mais
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equilibrada, já que a beleza é tão fugaz. Ah, meu caro, quão mais felizes seriam todas as mulheres se quebrassem de uma vez seus espelhos e não mirassem mais a si, antes aos seus semelhantes! Não mais perguntariam “quão bela eu sou”, mas sim “quão boa estou me tornando como mulher, mãe e etc.” Quão mais fortes ficariam para encarar a velhice se vissem a si mesmas crescendo em ternura, companheirismo, habilidades na cozinha – por que não? – aumentando em conhecimento, participando em projetos comunitários, pessoais e assim por diante. Mas, não! Lá vão elas, escravas do espelho, esse maníaco compulsivo que só analisa a forma. E veja as desgraças que colhem! 
- Senhor De Lyon, o senhor quase me convenceu de que a rainha má foi vítima de uma “insanidade temporária”. De qualquer modo acredito que o senhor é um perfeito rábula, no melhor sentido da palavra. Mas, há outras questões que gostaria que me respondesse. Por exemplo, como estão os anões hoje? 
- Vão bem. Continuam se apresentando junto, mesmo após a morte de Atchim e Mestre. 
- Como aconteceu isso? 
- Quanto ao Atchim, todos sabiam que era alérgico, mas não se tratava, ao contrário, trabalhava demais. Quando tinham aquela mina de diamantes era ele quem sempre ficava no escritório até mais tarde. Passava lá no fim de semana para ver se estava tudo em ordem, e adiantava um pouco o serviço que os outros deixavam para segunda. Aliás, esta mania de trabalhar foi a causa de seu divórcio, visto que a mulher reclamava muito a falta do marido. E, quando ele vinha, sempre chegava poeirento, suado e cansado. Já não bastava ser baixinho... dizia ela. 
- E ele nunca mais se casou? 
- Ele não, coitado. Há um boato, nunca confirmado, de que se amasiou com uma artista Argentina. Não sei. Agora, Dolores, sua esposa, arrumou rapidinho um Smurf e se mandou para outra estória. 
- Imagino que o Atchim morreu então de depressão...? 
- Não. Ocorreu que o grupo dos sete anões passou pela crise da venda da mina, que quase acabou com sua união. Depois o Atchim pegou um dinheiro emprestado com o Príncipe Encantado e abriu um sebo, muito bom por sinal, mas com todo aquele pó, foi a gota d’água para acabar de vez com a saúde do pobre ancião. Bastou três meses no meio daqueles livros velhos para contrair uma bronquite fatal. 
- E o Mestre? 
- Bem, ele se aposentou, como você sabe, com salário de professor nível um, já que tinha de estar sempre na mina e não podia avançar na carreira. Ele até que sobrevivia mais ou menos dentro daquele orçamento apertadinho, quando um dia o governo reajustou a aposentadoria em 1,5% no mesmo mês em que os remédios dele subiram 51 %. Aí não deu outra. 
- O senhor mencionou a “crise na venda da mina”. Como foi isso? Algum deles ganho comissão ilegal no negócio? 
- Olha, não há prova disso, mas algumas coisas ficaram muito mal explicadas. A mina ia bem, especialmente depois do desenho de Disney. Começou a chegar pedidos de toda a parte do mundo. Em determinado momento, quando os negócios começaram a se internacionalizar, alguns mega investidores começaram a enviar propostas de compra aos sete anões. A Dee Beers ofereceu uma bolada pela mina, mas todos recusaram, menos um, o Dengoso. A partir daí ele começou a insistir que era vantagem vender a mina, que era tolice tentar se manter no negócio de pedras, já que o preço oscilava muito, e também que não era bom enfrentar a Dee Beers como concorrente etc e tal. 
- E como conseguiu convencê-los? 
- Dengoso viajou para Pretória, Antuérpia e Tel-Aviv, trazendo várias planilhas de custo e catálogos com sistema de extração com robôs, e convenceu os demais de que em breve não haveria mais espaço para uma mina de sistema antigo como a deles. O
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grupo acabou vendendo a mina de diamante excelente que tinham, e hoje tem uma mina de cassiterita em Rondônia. 
- E como é o relacionamento deles hoje? 
- Bem, eles sofrem muito com o calor infernal de Porto Velho, e volta e meia um deles fica doente. Depois, ficou um clima pesado para o Dengoso, pois após as negociações ele apareceu com muito mais dinheiro que os demais. Ele jura que foi uma herança recebida coincidentemente no mesmo ano em que intermediou a venda para a Dee Beers, mas ninguém entendeu direito essa história. O que se sabe é que ele comprou uma pousada numa região termal luxuosa, e hoje é dono de vários apartamentos de aluguel. Para amenizar o mal-estar ele sempre recebe os outros anões gratuitamente na baixa estação. Eles vão, e tudo o mais... Porém, que a moral do Dengoso não é mais aquela, ah, não é mesmo. Dengoso hoje é muito rico, e ninguém fica milionário impunemente. 
- Quanta verdade existe nos rumores de que uma máfia dos roteiristas novos estaria agindo aqui na Ilha da Fantasia? 
- Não existe esta organização que o senhor citou. Isto é uma invenção da imprensa americana que vive uma eterna teoria da conspiração. Nunca houve essa máfia, e nem Dengoso nem o Soneca tem alguma coisa a ver com isso. Gostaria, encarecidamente, que mudássemos de assunto. 
- Senhor De Lyon, conversamos muito, mas restam algumas perguntas sobre aquele dia em o senhor levou Branca de Neve à floresta para matá-la. 
- Preferia que não entrasse neste tema também, se pode me perdoar por isso. 
- Mas até hoje muitos se perguntam: 1 – Por que o senhor aceitou aquela comissão covarde? 2 – O que o fez mudar de idéia e deixar a menina escapar com vida? 3 – Qual era exatamente o animal que o senhor matou no lugar de Branca de Neve? Há uma discussão interminável entre se era um coelho, um veadinho, um alce. Há até quem diga que foi um javali. 4 – O que sentiu ao cumprir aquele ritual macabro de retirar o coração e o figado do animalzinho e levá-lo numa caixa para a rainha? 
- Senhor Lazarus, o senhor pergunta demais. A única coisa que estou posso lhe dizer é que se Branca de Neve está viva, deve isso a mim. Alguns me acusam de assassino fracassado e traidor, já que ludibriei a rainha. Não sou nem uma coisa nem outra, pois agi de acordo com a minha consciência e a menina sobreviveu e casou-se muito bem. O único prejudicado em toda essa estória fui eu, de forma que não admito essas acusações maldosas. 
- Perdoe-me se o irritei, senhor De Lyon. É que na minha profissão preciso fazer perguntas. 
- Meu caro, faça-as então ao espelho mágico, se é que tem estrutura para tanto. Quanto aos demais personagens, sugiro que tome cuidado. Agora o senhor me dá licença porque preciso tomar meus medicamentos e fazer minha inalação. Au revoir, mon ami
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Segredos do Coelhinho Assassinado 
Nesse momento passou correndo um veadinho; 
o caçador matou-o, tirou-lhe o coração e o fígado.” 
- Versão original dos irmãos Grimm 
Estava planejando minha próxima entrevista quando chamaram-me pelo interfone do hotel. Era o sub-gerente preocupado, pois uns oitocentos coelhos estavam no saguão principal, exigindo minha presença num clima de revolta. O sub-gerente, Antonio Carlos de Magalhães, que era de fato quem resolvia tudo, estava avexado. 
Os manifestantes traziam faixas e gritavam palavras de ordem, chamando a atenção de todos. Perguntei se haviam chamado a polícia para evitar conflitos e ele confirmou que sim, mas que não podiam impedir a manifestação que até o momento era pacífica. Prometi descer logo, mas queria saber exatamente qual era a reivindicação dos coelhos. Disse-me o sub-gerente que a revolta parecia ser pela morte do coelhinho na estória de Branca de Neve. As faixas diziam: “Ressurreição Já!”; “Coelhos Unidos Jamais Serão Vencidos”’; “Morte aos Veados!”; “Mangueira – Onde é que Estãos Teus Tamborins, Ó Nega?” e coisas assim. 
Bem, pelo menos agora eu sabia o que iria enfrentar. Avisei que me encontraria com uma comissão de no máximo 50 coelhos e seu líder. Só os atenderia se os demais liberassem a entrada do hotel e aguardassem tranqüilamente na Praça da Paz Celestial. E por fim solicitei o uso do salão nobre de conferências no sub-solo para resolvermos este abacaxi, no que o sub-gerente imediatamente concordou. 
Quando desci já sabia que o líder deles era um coelho de olhar esbugalhado, cabelo desgrenhado, e chamava-se Paulinho Vicentão. Era presidente local da SPCC, a Sociedade Protetora de Coelhos, Chinchilas e Afins eleito pelas comissões de toca. Na verdade o nome da figura era Paulo Vicente Matarazzo, mas na Ilha da Fantasia os sindicalistas imaginam que só serão respeitados pelos companheiros se usarem apelidos de bar, jamais usarem gravatas e sempre parecerem pobres, por maior que seja seu salário. Consideram o fino da bossa aparentarem ser proletários que sobrevivem heroicamente numa luta incessante contra a opressão do sistema. No caso dos coelhos a imagem de proletários era de fácil visualização, pois de prole eles entendiam. 
São todos gente boa, nem fica bem falar, mas padecem de um preconceito absoluto com qualquer que não seja correligionário ou membro do partido. Assim como os religiosos fundamentalistas rotulam seus interlocutores de infiéis, ou pagãos, os coelhos usam a alcunha depreciativa de “burguês” aos que não rezam sob sua cartilha. Confesso que até hoje procuro entender o que significa exatamente este termo, mas acredito que isto deva ser pior do que discípulo do capeta. Houve épocas que eu me imaginava burguês só por fazer a barba diariamente. 
O fato é que ali estava eu, prestes a me envolver numa polêmica absurda sem a menor idéia de aonde tudo aquilo me levaria. 
O Pensamento da Família do Coelhinho Assassinado
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- Senhores, estou à sua disposição. Como posso ajudá-los? 
- Seu Lazarô a gente temos um pobrema urgente a tratar com o senhor, e, por favor, não tente nos enrolar porque a gente não vamos embora sem uma solução do nosso causo. 
- Companheiros, permitam-me primeiro cumprimentar a todos vocês pela garra na sua luta. Eu também sou um trabalhador e acredito na força dos trabalhadores para fazermos do mundo um lugar mais justo. (gritos e aplausos abriram meu sorriso e notei que o clima já ficava mais ameno para mim). Agradeço muito que tenham me procurado, embora não saiba o motivo. Mas tenham certeza de que farei o possível e o impossível para junto lutarmos contra a opressão burguesa. Aliás, nunca vi tantos coelhos assim num auditório reunidos. Por favor, sentem-se todos e fiquem tranqüilos que tudo será resolvido. Agora, dêem só um minutinho... 
[Chamei Romeo Thurma, o chefe da segurança, e pedi que trouxesse lanche, café, bolo de cenoura e água para todos ali. Calculei que devíamos estar com mais ou menos 80 pessoas. Autorizei que o ACM colocasse tudo na minha conta, e tinha certeza de que ele cobraria alto esta fatura.] 
- Continuando, seu Paulinho Vicentão, agora por favor diga-me exatamente: qual a queixa de vocês? 
- Acontece seu Lazarus que assassinaram um dos nossos, sem maiores explicações. O caçador, esse tal de Francisco de Lyon, matou Tamborim, um coelhinho de menor, sendo que o roteiro original exigia que fosse um veadinho. Por isso tamos revoltados. Somos todos parente dele e não aceitamo esta situação. 
- O que o senhor era de Tamborim? 
- Tio. E os pais dele, Tambor e Agôgo estão com a gente aqui. 
[Apontou-me um casal de coelhos abraçados na primeira fileira do auditório. Ele, um coelho meio-idoso, esguio, de ar grave, indignado. Ela, uma coelha negra de olhos marejados, recostava-se no marido e me olhava diretamente como que aguardando resposta a um clamor não pronunciado. Ambos envelhecidos pela dor. O pai se levantou calmamente, e neste instante fez-se um silêncio assustador no salão. Quando o vi caminhar até mim, adiantei-me para evitar que andasse tanto e o cumprimentei com ambas as mãos. Havia nele uma dignidade do Mandela saindo de sua longa prisão]. 
- Perdoe-nos envolvê-lo em nossa tragédia pessoal, seu Lazarus. Espero que nunca venha a sentir na pele o que significa perder um filho assim tolamente. O que dói mais é saber que se alguma coisa não for feita isto vai continuar acontecendo. Eu aceitei o apoio do sindicato nesta luta não só pela memória do Tamborim, mas também para que outras vidas jovens não se percam de modo tão banal. Sabe, Tamborim era um coelhinho cheio de vida. Naquele dia eu o chamei prá gente jogar bater uma bolinha no campo do Morro Doce. Era sábado. Ele disse que não podia ir pois tinha de entregar na segunda-feira um trabalho de matemática que ia preparar com os filhos do Pernalonga. Ele amava a escola, seu Lazarus... [ abaixou a cabeça ] Por que isto teve de acontecer justo com um rapazinho tão bom? Há tantos maloqueiros no mundo e não acontece nada com eles! Por que estes roteiristas tiveram de escolher justamente o nosso filhinho? Por que não pegaram um personagem coletivo...? 
[Pus minha mão sobre o seu ombro.] 
- Sei como deve ser duro...
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- Desculpe, seu Lazarus, mas o senhor já teve um filho assassinado? Penso que não. O senhor não sabe o que é ouvir sua mulher dizer, mesmo depois oitenta filhotes e vários anos: ‘hoje Tamborim faria 17 anos...’ O senhor não tem idéia do que é ver uma turma de rapazes andando pelo shopping e pensar que seu filho poderia estar ali entre eles, no meio daquela algazarra. Fica se perguntando: que aparência ele teria hoje...? E sabe que nunca terá esta resposta... O senhor tem idéia do que é viver com esta lembrança dia após dia? 
[Ao falar o maduro coelho deixou correr um lágrima livremente. Abracei-o e verti uma lágrima solidária também, decidindo naquele momento fazer tudo ao meu alcance para reparar – até onde fosse possível – essa injustiça. Todos ao redor respeitaram aquele minuto num silêncio total, petrificados. Aos poucos voltamos a conversar num tom normal]. 
- Seu Paulinho Vicentão, o que se pode fazer num caso destes? 
- Seu Lazarus é o seguinte: a gente não vai aceitar parado a morte de Tamborim e queremos justiça. Só isso. 
- Mas não fui eu que escrevi a estória. E, além disso, qual é a fábula boa que não tem morte? 
- A gente sabemos que o senhor não é o autor, mas o senhor é jornalista e pode levar nossa exigência pro pessoal de Hollywood e para as editoras. Sabemos que veio à Ilha da Fantasia fazer uma pesquisa. A gente sabemos também que o senhor vai publicar um livro no fim de tudo. Então queremos um compromisso seu na frente dos companheiros, tomando o nosso lado nessa luta. E encaminhe aos roteiristas novos um protocolo pela ressurreição de Tamborim. 
- Vamos com calma. Em primeiro lugar preciso estar certo de uma coisa: foi realmente um coelhinho ou um veadinho, a vítima? 
- Olha, na versão original era um veadinho. Mas essas associações que surgiram agora defendendo os direitos desta turma conseguiu numa jogada de bastidores mexer no roteiro e, quem pagou o pato foi o coelho. A gente até compreende que a morte faz parte da vida, tudo bem. Mas não estamos em Hamlet, ou Macbet para filosofar sobre a morte. Estamos numa estória infantil que precisa se ater ao manuscrito original, entende? De forma que não tem o menor sentido matar um coelho jovem sem a menor cerimônia, pôxa. E a pureza textual? E a reputação dos coelhos? 
Um outro companheiro, um tal de “Barba”, que depois descobri ser 35º secretário do sindicato intervém revoltado: 
- Tem uns roteiristas que colocam um alce, ou um esquilo, ou um javali como vítima. Mas o que importa para nós é que muitas versões estão saindo com a morte de Tamborim. E outra: precisamos acabar com essa polêmica, porque desse jeito a gente não chega a lugar nenhum. Estas versões foram colocadas pelo pessoal da terceira via que sempre está contra nóis. Mas a gente tamos unidos agora, e vai ser duro se livrar da gente enquanto não trouxerem o Tamborim de volta. Já não basta a humilhação de usarem nossa imagem sem autorização legal pela Playboy, que além de nos dar a imagem de sem-vergonhas, não recolhem nem um centavo pro nosso sindicato. Está é outra briga que a gente trava há muito tempo, mas se Deus quisé vamos vencer também. 
- Algum roteirista já fez uma proposta de negociação com vocês? 
- Sim, eles tentaram colocar uns pano quente no lançamento do Bambi. 
- Como assim? 
- Convidaram Tambor para o filme de Bambi, dando-lhe mais destaque do que o roteiro original previa, e um cachê extra, a título de indenização pela morte de Tamborim. Também disseram que a morte da mãe do Bambi era uma compensação moral, e isto equilibraria as coisas: a morte do veado pagou o sangue do coelho. Tambor chegou a assinar um contrato em que se comprometia a encerrar essa queixa,
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e assim tudo ficaria bem. Só que dois dias depois das filmagens ele se arrependeu de ter trocado a vida do filho por dinheiro e devolveu toda a quantia, impugnando o contrato na justiça – que glosou o acordo, e tudo voltou à estaca zero. 
- E o que a família quer, se não é dinheiro? 
Paulinho Vicentão responde: 
- A gente exigimos a ressurreição de Tamborim! 
A platéia de coelhos sindicalizados começou a repetir em coro: 
“Violência vai ter fim, ressurreição pro Tamborim! 
Violência vai ter fim, ressurreição pro Tamborim!” 
Após um instante de empolgação, o Barba pediu silêncio e a conversa prosseguiu. 
- Mas vocês não tem idéia do que estão pedindo! Isso é totalmente impossível. Não há como fazer um reviravolta tão grande numa estória. 
- Ah, não? E como é que a Branca de Neve ressuscitou? E a Bela Adormecida, não foi desperta de um sono eterno? E a Fênix grega ressurgindo das cinzas? 
Outro companheiro com o punho cerrado bradou: 
- Até para o Super-Homem teve ressurreição! 
Paulinho Vicentão retomou a palavra: 
- Olha, seu Lazarus: ressurreição nunca é pobrema para os protagonistas branco e rico. Agora tem de fazer prá personagem coadjuvante pobre e pardo. Caso contrário a gente acampa aqui neste hotel até ser atendido. 
- Tudo bem, vamos com calma. O pedido de vocês é meio estranho, porém válido. Agora preciso de um instrumento, quero dizer, como é que vamos fazer exatamente para chegar lá? 
Toma a palavra um coelho sóbrio, engravatado, de voz mansa, que até então tinha ficado calado. 
- Senhor Lazarus, permita que lhe mostre duas pastas. A primeira tem cópia do processo que impetramos. Trata-se de uma ação popular que exige do governo a recriação de Tamborim, inclusive com a mesma cor que tinha ao morrer. Já ganhamos em última instância, mas o processo ainda não saiu em transitado e julgado. Em vista da lentidão da justiça aqui, apelamos a um tribunal internacional de direitos das minorias. Na parte final desta pasta o senhor vai encontrar a queixa apresentada à Corte Européia de Justiça, onde fomos muito bem recebidos. Os juízes ali nos disseram que moralmente já ganhamos a causa, mas nossa ilha não está dentro da área de competência deste tribunal. 
- E o Príncipe Encantado, que pensa sobre tudo isso? 
- Ele é ótima pessoa, e tem a mente democrática. Sabe que estamos certos no nosso pleito, e nos dá todo o apoio moral. Mas, como o sindicato é de esquerda, ele não pode agir publicamente a nosso favor sem atingir sua base parlamentar. Quer dizer, o congresso o deixa de mãos atadas neste caso. 
- Entendo. E a segunda pasta, o que contém? 
Falando ainda mais baixo, ele se aproximou ainda mais, olhando-me direto nos olhos, e disse: 
- O nó desta história toda é o envolvimento da máfia dos roteiristas novos, que o senhor já conhece. Pois bem, foram eles que causaram a morte de Tamborim, ao mudar o enredo tradicional de nossa lenda. Acreditamos que só o líder deles pode reparar esse engano trágico. Pelos meio normais jamais conseguiríamos pagar a taxa que eles estão cobrando para nos devolver Tamborim com vida. Mas, se um humano como o senhor interviesse pessoalmente talvez o resultado seja positivo. Nesta pasta
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o senhor tem um dossiê com diversas informações sobre a máfia dos roteiristas novos e sua atividade nos últimos anos. Há nomes e endereços que não podem cair em mãos erradas. É claro que temos cópia deste material guardado em local seguro. Mas, queremos que o senhor chegue até o poderoso chefão e o faça saber do material que temos. Diga-lhe que prometemos destruir este dossiê assim que Tamborim retornar com vida. 
- Ou seja: vocês querem que eu chantageie um chefe mafioso? 
- Exatamente. 
- E que garantia dão de que escaparei vivo dessa? 
Silêncio total enquanto eles trocaram olhares entre si. Não precisavam dizer nada, a resposta era óbvia. 
- O que podemos fazer pelo senhor, caso aceite esta missão, é deixar-lhe hoje uma lista com o telefone e endereço de todos os personagens que o senhor quer entrevistar, neste disquete prata. Sabemos que este material lhe será muito útil. Esperamos que o senhor decida rapidamente, pois este disquete se autodestruirá em quinze minutos. 
- Ok, você venceu! Não prometo que dobrarei os assassinos, mas lutaremos juntos para resgatar Tamborim. Peço apenas o seu apoio logístico e sigilo quanto aos detalhes de nosso acordo para que os reacionários não se antecipem a nós. 
Quando disse isso eles vibraram e aplaudiram minha decisão. Abriram garrafões de vinho Sangue de Boi e logo se iniciou uma grande festa. Até eu me emocionei, por ter assumido uma causa tão nobre. Carregaram-me nos braços e, quando dei por mim estava num palanque improvisado em cima de um tanque, que não sei de onde surgiu, no centro da Praça da Paz Celestial. Assim, me jogaram um microfone na mão e improvisei um discurso que saiu mais ou menos assim: 
- Trabalhadores da Ilha da Fantasia! Se é para o bem de todos, e para felicidade geral da nação, diga aos coelhos que fico! [aplausos] Eu tenho um sonho...! ...De que coelhos e roteiristas viverão em paz aqui. Imaginem não haver fronteiras! Imaginem não haver inferno e nem céu! Cada um vivendo sua vida em paz. Dizem que eu sou um sonhador, mas eu sei que não sou o único! Por enquanto só posso lhes prometer uma coisa: sangue, suor e lágrimas. Mas juro, no altar da minha consciência, fazer de tudo para trazermos Tamborim de volta! Como faremos isso, o tempo dirá. Porém, não importa a cor do gato, contanto que ele pegue o rato. Até lá, a única coisa que devemos temer é o medo... 
Ovacionaram-me por minutos a fio, e só com muita dificuldade consegui sair dali. No dia seguinte continuei meu serviço normalmente, torcendo para que os coelhos não me descobrissem em meu novo endereço.
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Segredos de Soneca 
“O sétimo anão dormiu.” 
- Versão original dos irmãos Grimm 
Na lista que encontrei no hotel achei o endereço e telefone do Soneca. Era o anão que eu tinha mais vontade conhecer. Sempre me deu pena aquela carinha meiga, bocejando e com um ar de quem não está entendendo nada do que se passa ao redor. Escolhi-o como primeiro anão a ser entrevistado. Mas certamente não estava preparado para as surpresas que me aguardavam. Soneca, cujo nome real é D. Seumoney encontrou Jesus e mudou muito. Não era mais aquele ingênuo sonâmbulo. Na verdade, conforme verão, ele ficou esperto. Esperto até demais. 
Havia um burburinho na Ilha da Fantasia devido à nova religião do Soneca: Assembléia da Congregação Universal Cristo é Grana. Esta nova fé crescia rapidamente. Em todos os bairros os melhores salões já pertenciam à família, que era como eles se referiam a si mesmos. O movimento acendia paixões de amor e ódio. Os tradicionalistas apontavam para estes novos crentes acusando-os de heresias e de serem o anticristo, o falso profeta, predito pelas Escrituras. Estes, por sua vez, se viam como iluminados, comissionados por Cristo para levar a verdade revelada ao mundo, sendo os santos modernos escolhidos para salvar este mundo mau. 
Como Soneca entrou nessa? Que interesses o movia a se apresentar como religioso fervoroso? Quanto sucesso estaria tendo na sua luta pelos pobres, que segundo informaram-me, era sua causa principal? Tais eram minhas dúvidas quando me dirigia ao apartamento de cobertura duplex, num condomínio fechado que ficava na periferia da ilha. Lembrei-me de tê-lo visto algumas vezes pela TV, falando com voz mansa, num tom um pouco afetado, referindo-se aos pobres e à necessidade de justiça social. Vi-o orando também, com gestos largos, vestindo um discreto risca-de-giz italiano, e em seguida oferecendo seu CD e coleção de vídeo. 
Quando me recebeu, com toda a fidalguia, notei que seu tom de voz ficou normal, sem aquela afetação do púlpito, quando eu lhe garanti que nada iria ser gravado. Mesmo aqueles gestos de abrir as mãos simetricamente, levantando-as e fazendo-as se encontrar junto ao peito, é só coisa de palco. O homem é muito simples, de olhos muito vivos, mas com enormes olheiras. 
Disse que apesar de estar com a agenda cheia para aquele dia, conceder-me-ia quarenta minutos, pois seu assessor financeiro iria demorar-se um pouco mais do que o previsto no Citi Bank. O Banco vai financiar a montagem de um mega evento para dois milhões de pessoas. Soneca estava muito otimista com este show gospel, pois assim espera superar a marca de público que a visita do superbispo de outra igreja famosa conseguiu no começo do ano.
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Como Soneca Fundou a Igreja “Cristo é Grana!” 
- Senhor D. Seumoney, milhões de leitores o conhecem como Soneca, e gostariam de lhe fazer algumas perguntas. Eu venho em nome deles, numa missão de paz. Diga, por favor, que impressões ainda guarda por ter vivido este personagem em Branca de Neve? 
- Bem, quero primeiro enviar um caloroso abraço a todos estes nossos leitores espalhados pelo mundo. É muito gratificante saber que as pessoas ainda nos guardam carinho por um trabalho feito já há alguns anos, mas feito com muito amor. Quanto às minhas impressões, são as melhores possíveis. Soneca é um personagem que inspira ternura, e a ternura é atitude que enobrece o homem, diferindo-o dos animais, e tornando a vida mais fácil de ser vivida. 
- Hoje o senhor é um líder espiritual para milhares de pessoas nesta ilha. Como descobriu sua vocação religiosa? 
- Para falar a verdade, jamais havia me preocupado com assuntos espirituais. Talvez seja uma surpresa para muitos de seus leitores, mas o fato é que levei uma vida devassa até poucos anos atrás. Tinha amantes, apostava em cavalos, fumava, bebia muito e tudo o mais. Assim, o Diabo estava me pondo como um dos seus mais ferrenhos seguidores. Até ganhei muito dinheiro com agiotagem, mas hoje graças a Deus, não preciso mais disso: possuo um Banco, ganho juros maiores, tenho menos riscos e sou muito mais respeitado. 
- Neste período, seu serviço de agiotagem chegou a atrapalhar suas atividades como personagem? 
- Sim, pois os outros anões sempre foram pobres. Não é que ganhavam mal, pois tinham a mina de diamantes. É que não sabiam administrar o dinheiro. Daí que sempre me pediam emprestado. Acredita que chegou um dia que todos – exceto o Dengoso – me deviam? 
- E isso não afetava o clima entre vocês? 
- Sim, e muito. Não que eu ficasse pressionando a turma. Eu sabia que eles iam pagar, mas eles mesmos se sentiam desconfortáveis com os juros correndo mês a mês. Ainda bem que vendemos a mina, apesar de que eu fui contra na ocasião. Mas, graças a isso todos acertaram comigo, e não precisaram mais de dinheiro. Hoje a gente quando se reúne só trata de fofocar e dar risada do passado. Só o Dunga ainda deve alguma coisa, mas aquele é assim mesmo. Mas é sangue bom, o coitado. 
- Naquela época o senhor conseguiu ficar rico? 
- Olha, rico rico, não. Agora, montei umas quatro firminhas, comprei vários imóveis e viajei muito. Só que devido a vários processos na justiça, comecei a gastar muito com advogados e a coisa piorou tanto que tive de vender duas empresas e a casa da praia para escapar da prisão. Os advogados pareciam uns alucinados. Exigiam de mim honorários cada vez maiores e ao mesmo tempo minha renda começou a despencar. Passei a beber muito e a usar drogas. Por isso aparecia sempre no estúdio completamente chapado. 
- Então vem daí o apelido Soneca? 
- Isso mesmo. Foi um período terrível para mim. Até minha mulher já havia desistido de mim, e mudou-se com as crianças para a floresta de Chapeuzinho Vermelho, onde a vovó, que era sua parente também, a recebeu naqueles anos difíceis. Numa noite chuvosa, desesperado, tentei o suicídio ouvindo Raimundo Fagner, Ivan Lins e Xuxa. Pus no automático do meu som, enquanto tomava uma overdose de tubaína Xereta, com biscoitos recheados de terceira linha. Estava certo de aquilo seria o meu fim, mas pelo menos, pensava eu, ficaria livre daquele labirinto em que havia entrado. O pior foi que sobrevivi, só que acordei completamente chapado.
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- Entendo. Suponho que depois um anjo apareceu do céu e o nomeou arauto de uma nova fé... 
- Não. Eu liguei a TV pela manhã e descobri algo incrível: a programação matinal consegue ser pior do que a da madrugada. Só tinha desenhos repetidos n vezes e pregadores alucinados. Na falta de opção ouvi um pastor com tipo de professor de aeróbica e então algo me marcou para a vida toda. 
- O senhor descobriu que Cristo o amava? 
- Melhor: descobri que eles enviavam um boleto bancário para qualquer um que ligasse naquele exato momento e quisesse patrocinar a igreja. Você poderia dar apenas F$ 30,00 por mês, e Cristo lhe abriria várias portas. Isto me tocou profundamente. 
- Como assim? 
- Bem, eu fiz as contas: se dez mil pessoas estivessem vendo o programa como eu naquele momento, e dez por cento destes ligassem pedindo o carnê, já seriam mil pessoas. Se dessas mil, apenas a metade fosse de fato ao banco naquele dia, e pagasse o esperado, a Igreja faturava F$ 15.000,00 de uma tacada só. Poxa, F$ 15.000,00! E eu com minhas dívidas precisava naquela semana de só F$ 7.500,00! Então entendi que Cristo estava me dando um sinal. 
- Sinal? 
- Sim, uma chamada, não entende? Carisma eu já tinha. Oratória eu sempre dominei. Faltava-me apenas um produto de ampla aceitação para dar a volta por cima. E a fé era precisamente isso. 
- Então sua conversão deu-se para resolver seus problemas financeiros? 
- Naturalmente! 
- Isto não lhe parece um tanto cobiçoso? 
- De modo algum, filho. As Escrituras dizem em Provérbios 2:4: ‘busque a sabedoria assim como se busca o ouro e a prata’. Dizem também que a verdade é uma pérola de grande valor! Mostra que a cidade santa, a nova Jerusalém no Apocalipse é uma cidade cuja praça é de ouro puro. Já imaginou? Uma praça de ouro puro! Eu apenas estou montando lá em casa uma pequena parte desta cidade santa. 
- Então o senhor acha legítimo usar estes trechos bíblicos para fundamentar seu materialismo “cristão”? 
- Sim, e senti que desde o dia em comecei a levar a palavra, o Senhor não me abandonou. Comecei sózinho na rua, e enquanto falava deixava meu chapéu disponível para os que quisessem ajudar a obra de Deus. Em duas semanas eu já pude alugar um salãozinho em que cabiam umas trinta pessoas. A partir daí, nunca mais a bênção faltou na minha carteira. 
- Mas não lhe parece ousadamente carnal esta filosofia? Quer dizer, até o nome de sua Igreja, “Cristo é Grana”, não soa um tanto estranho para uma igreja? 
- Meu caro, os visonários são os que revelam coisas que outros escondem. Claro que a fé é muito maior do que apenas este título. Mas, quando a fome aperta, quando seu filho pede um brinquedo, quando você tem alguém doente em casa, ou decidiu que é hora de comprar um carro melhor, então percebe a verdade cristalina: sem dinheiro não dá! Neste exato momento compreende claramente: Cristo é grana! Todo o resto é secundário. 
- Não haveriam outros valores na vida além do dinheiro? 
- Claro: ouro, dólar, ações, imóveis... Tudo isso é bênção do Senhor para os que tem fé. Mas, antes é preciso dar uma oferta, para que Cristo veja que você realmente acredita nele. Isto enriquece aquele que busca a Deus. Veja, até Ariel Minerva, a Branca de Neve, freqüenta nossa igreja. E foi isso que salvou seu casamento. Aliás, Jesus a livrou daquela bruxa que tentava matá-la, sua madrasta. Aquilo era o Diabo, mas agora ‘tá amarrado’, em nome de Jesus!
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- Muitos tem criticado sua Igreja de reduzir o cristianismo à uma simples questão monetária, esquecendo princípios morais. Sabe-se que há vários processos abertos contra a Igreja devido a fraudes fiscais, comprar irregular de emissoras de rádio e TV. O que o senhor diz sobre isso? 
- Aleluia! É como diz o meu primo Dengoso, outro que também é perseguido sem motivos: só atiram pedras em árvore que dá fruta! Paulo de Tarso foi perseguido. Estevão e muitos outros também. Toda essa crítica apenas nos mostra que estamos no caminho certo. 
- Mas estes cristãos antigos foram perseguidos por levar a boa nova do Reino de Deus, e não por fraudes contra o governo. Pregavam a fé em Cristo como o Salvador da humanidade, que trará novos céus e uma nova terra, ao passo que o senhor enfatiza o sucesso financeiro aqui e agora. Como explica essa diferença? 
- É óbvio que Paulo, Pedro e outros levaram um evangelho diferente do nosso. Entenda, meu caro: o grão precisa morrer para dar lugar a planta. Se ele não desaparecer, será apenas um grão. A igreja primitiva lançou a semente. Esta semente morreu, meu caro, para dar lugar à nova igreja, rica, próspera, e com pastores ganhando F$ 5.000,00 por mês para louvar ao Senhor! Esta é a evolução da fé cristã! Como Paulo e os outros vivendo numa época primitiva e ignorante poderiam entender o novo evangelho do dinheiro? Eles tiveram sua época e fizeram um trabalho maravilhoso. Mas eram apenas pescadores simplórios. Agora o Senhor escolheu a nós para levar ao mundo novas boas novas: “entregue seu coração a Jesus e seu talão de cheques para mim!” 
- Bem, se a bênção vem em forma de grana, o senhor deve ser um homem muito abençoado, não? 
- Glória a Deus! Tenho alguns carrinhos, duas casas ‘razoáveis’, um sítio em Atibaia e algumas outras coisinhas. E louvo o Senhor por isso. Mas, ao contrário do que possa parecer, não sou materialista. Por exemplo, sempre oro antes de sair com minha Corvete, e sempre recito um salmo antes de mergulhar na piscina da minha cobertura. 
- Puxa, quanta fé! 
- E tem mais. Meus bens na verdade, foram consagrados a Deus. 
- Como assim? 
- Eu os ofertei à Igreja, assim as casas, carros e tudo o mais estão em nome da Fundação Irmãos de João Batista Humildes. Eu apenas sou um mordomo das coisas de Deus. 
- Então na verdade, o senhor é pobre? 
- Paupérrimo! E posso mostrar minha declaração de bens para comprovar isso. Para ser franco, tive até restituição no ano passado, pois oficialmente vivo apenas de uma pensão do governo, que fiz jus quando era um drogado incapacitado. 
- É lindo ver como Deus opera maravilhas aos que trilham Seus caminhos! 
- O senhor, por exemplo, seu Lazarus, não tem problemas financeiros? Há algum alvo que tenta atingir? 
- Sim, na verdade sempre quis editar meu livro, mas nunca tive verba para bancar a edição. 
- Quanto seria necessário para o seu projeto? 
- Hum..., talvez uns F$ 3.000,00. Algo próximo disso. 
- Então, entregue seu coração a Jesus e ... 
- Sim, já sei o resto... 
- Basta ofertar ao Senhor F$ 300,00 agora! Enviaremos para o monte Hermom, de onde o Salmo diz que sai o orvalho do Senhor, e lá setenta monges encapusados, que vivem apenas de oração abençoarão suas notas. Na fogueira santa queimaremos seu pedido e o dinheiro guardaremos na Suíça. Demonstre fé e verá como rapidamente seu livro será editado! 
- Deus não pode ouvir minha oração daqui mesmo? 
- Claro que sim. Mas neste caso perderíamos esta boquinha. 
- Quer dizer, basta lhe dar meu salário de dois meses que tudo acontecerá?
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- Naturalmente é preciso ter fé. Claro que sua fé também vai movê-lo a correr atrás das editoras. Mas, verá então como a luz divina, contida numa pedrinha vinda especialmente das montanhas sagradas do Tibet, vai lhe abrir as portas. 
- Quer dizer, se eu não me esforçar, nada acontecerá, certo? 
- Certo, mas tem que haver a fé junto com o dinheiro. Estamos redigindo uma nova tradução da Bíblia que vai citar Tiago assim: “a fé sem grana está morta.” 
- Bem, vejo que o senhor faz citações muito livres da Bíblia, torcendo bastante a idéia do contexto. Todos sabem que Jesus nasceu numa manjedoura, e que não tinha onde encostar a cabeça. Pedro também disse a um mendigo que lhe pediu esmola, que nada tinha de bens, mas deu a ele o que podia, que foi fazer um milagre para que voltasse a andar. E Tiago disse que a fé sem obras está morta. O senhor considera honesta esta teologia do dinheiro? 
- Olha, eu não vou discutir a Bíblia aqui, pois já vi que você é um materialista sem fé, que não crê na luz que vem do alto. Mas, tudo bem. Continuarei orando por você com amor cristão. Quer um conselho? Vá hoje mesmo na Igreja Cristo é Grana e verá Jesus operar maravilhas no nosso caixa. Tenho a certeza de que sairá de lá muito mais feliz. 
- E o que é que acontece exatamente no seu culto? 
- Pulamos! 
- Como assim? 
- Ora, pulamos. Esta é uma técnica usada por todas as religiões primitivas a fim de levar seus membros ao êxtase. As tribos africanas são quem melhor usa isso. Você começa num ritmo lento, a cantiga vai se repetindo, o refrão vai ficando mais alto, mais rápido, a fumaça do incenso ajuda o pessoal a ficar embalado, até que fenômenos começam a ocorrer. As mulheres começam a chorar, e tudo é muito lindo pois qualquer coisa que você disser então vira verdade absoluta. É incrível. 
- Então é por isso que tantas religiões estão levando a turma a pular cantando refrões infantis? 
- Perfeito! É o mesmo princípio de aeróbica na praia, ou num concerto de música popular. O importante é fazer o pessoal pular. 
- E vocês usam isto para embriagar as pessoas com sua fé? 
- Exatamente! E Glória a Deus! 
- Glória a Deus...! Senhor D. Seumoney, eu ainda tinha muitas perguntas a fazer, mas não posso continuar agora. Mando o restante depois, por escrito. De repente deu-me um enjôo, e não estou sentido-me muito bem. Desculpe. Onde tem uma pia? Preciso correr, acho que não vai dar tempo. 
Segredos da Rainha Má 
“Ela não podia suportar a idéia de que alguém 
a sobrepujasse em beleza”. 
- Versão original dos irmãos Grimm
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À medida que meu trabalho avançava, as dúvidas continuavam. Onde estaria vivendo hoje, Branca de Neve e seu consorte? Teria o casal sido feliz para sempre? Em caso afirmativo estariam dispostos a nos contar num livro, o segredo da felicidade eterna no casamento? Neste caso certamente seria um best-seller. Já imagino o título: “O casamento feliz – dicas de quem vive nele”. E o Príncipe Encantado? Como seria pessoalmente? 
Que personagem interessante deve ser! Tantas vezes sonhado, desejado e nunca alcançado, por uma tão grande legião de mulheres! O que não pagariam para poder estar face a face com ele! Mas, o que teriam diante de si, de fato, se o encontrassem? 
E os outros anões? Será que ainda cantam ao trabalhar? Que segredo possuem para sua longevidade? Tomam ginseng? Caracu com ovo? Iorgute amargo às 5 da manhã? Será que já se aposentaram? Neste caso, que mágica fazem para sobreviver com a pensão do INSS? Será que curtem a terceira idade? 
Seria verdade que freqüentam o matusalêmico Baile da Saudade, aquele arrasta pé freqüentado por Doryan Gray e dirigido pelo eterno Franciesco Petrônius? Eram tantas perguntas e tão poucas respostas! Queria encontrar a rainha má para prosseguir minha investigação, mas seu endereço não constava na lista que os coelhos haviam me dado. 
Todavia fui ajudado por uma destas sortes que só acontecem com anões do orçamento que ganham 50 vezes na loteria esportiva. Estava saindo de um supermercado Pão de Açúcar (perdoem a redundância, já que hoje na Ilha da Fantasia todo supermercado é, independente do nome na fachada, um Pão de Açúcar no final das contas), quando encontrei um velho amigo jornalista, Orestes de Mesquita Frias. Ele estava assim como eu comprando vinho. Enquanto ele passava seu Beaujolais Poully-Fuissé, eu saía prosaicamente com meu San Tomé de F$ 1,50. Não é incrível? 
Pois bem, realizamos aquele papinho descartável de formiga quando cumprimenta rapidamente outra formiga. Mas, assim que soube que eu procurava a rainha, disse certeiro: “Toda rainha mora num castelo. Já procurou nos arredores da cidade em algum castelo novo?” 
Era isso! Na estrada sul havia um castelo novo no Magic World Park, um desses parques temáticos que custam os olhos da cara. Certamente com toda a estrutura dessas grandes empresas, ali haveria uma rainha de plantão. Por que não Nisséia, a rainha má? 
Foi assim que a descobri, e ela me recebeu muito bem, ainda que surpresa de que alguém ainda se preocupasse com sua atuação na estória de Branca de Neve, depois de tantos anos. Apesar de não poder prolongar muito a conversa, já que é diretora de eventos e trabalha como louca, foi muito gentil comigo. Tem um pique e uma inteligência impressionantes. 
Ao fim de minha visita mudei totalmente meu conceito sobre Nisséia. Acho difícil vê-la como bruxa. Nem consigo mais me referir a ela como “rainha má”. Não especialmente depois que ganhei um par de entradas para passar um dia inteiro no parque com tudo pago. Aquela bela e madura mulher, para mim era, sob vários aspectos, absolutamente encantadora.
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Como a Rainha Má se Tornou Gerente de Eventos 
- Majestade, reparei que seu trabalho é bastante corrido. Já pensou em parar um pouco, para descansar? 
- Em momento algum! Meu caro, com as despesas que tenho, como posso pensar em parar? 
- Mas a senhora não tem filhos. A renda de seu marido não lhe permite viver tranqüila? 
- Acontece que não gosto de depender dele para cada bolsa Vitton, ou toda vez que troco de carro. Sabe, gosto de eu mesma fazer estas despesinhas. Além do que Celsinho, meu atual marido, é o tipo ausente, que viaja muito. Pode notar que mesmo na estória de Branca de Neve ele pouco ou nada aparece. É o jeitão dele. Fazer o que! De modo que meu trabalho é minha terapia, o senhor compreende, não? 
- Claro que sim. Ainda sobre o seu trabalho, como decidiu entrar nesse ramo? 
- Só um segundinho, por favor... 
- Alô! 
- (...) 
- Não, não, não, não... Pode cancelar! De jeito nenhum! 
- (...) 
- Eu sei, mas os Metralhas me ligaram ontem e já reservei o três andares para eles. Vem todo mundo: o 1313, o vovô Metralha, os Metralhinhas, todo mundo 
- (...) 
- Também gosto do Patinhas, mas como eles não convivem no mesmo hotel eu não posso dispensar uma família que gasta dinheiro como ladrão por um escocês pão- duro. 
- (...) 
- Nem pensar! Se eu deixo as duas famílias juntas aqui, no dia seguinte a gente vai aparecer no caderno policial. Sem chance! 
- (...) 
- Sei lá o que você vai dizer pro Patinhas! Diz qualquer coisa. Fala que o preço da estadia dobrou, sei lá. A questão é que com as contas que eu tenho sobre a minha mesa, não vou perder os Metralhas nestas férias. Lembra do conserto do elevador? O Fininho me liga toda semana cobrando... 
- (...) 
- Ok, deixa comigo. Se livra desta encrenca que depois a gente vê uma gratificação pro teu departamento. (Desligando). Desculpe, seu Lazarus, mas onde estávamos mesmo? Ah, sim, como entrei nesse ramo... Bem, depois de toda aquela celeuma na estória de Branca de Neve, minha reputação foi destruída. Meu marido viajava, como sempre, e meu nome saiu em todos os jornais da ilha como se eu fosse uma bruxa assassina... Os parentes se afastaram; Pedro Henrique se separou de mim... Até meu gerente cortou meu cheque especial, e sutilmente sugeriu que eu abrisse conta em outro banco. Fiquei completamente desnorteada. O senhor imagina, uma rainha de repente se ver sem ninguém ao seu lado para apoiá-la! Eu era a própria versão feminina de Rei Lear! 
- Mas, por que seu gerente a abandonou? 
- Por vários motivos. Que banco quer ter um cliente conhecido como criminoso quando isto se torna público? Houve também um problema com Francisco de Lyon, o caçador. Tive de sustar um cheque de valor alto que lhe dei como pagamento para que ele se livrasse de Ariel Minerva - que é como se chama a Branca de Neve. Ele me traiu, e ainda queria descontar o cheque! Essa eu achei demais! Quando ele soube que sustei o cheque, me processou em juízo. Por isso tive de mandá-lo embora sem direitos,
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apesar de gostar muito dele. Foi uma fase muito dura para mim, como pode imaginar. Daí, tive de procurar me refazer psicologicamente, e como o Barão de Munchausen estava precisando de alguém com experiência aqui, vim de muito bom grado. Este emprego foi a melhor coisa que me aconteceu ultimamente. Depois dele foi que conheci o Celsinho e casei-me, pois sempre pensei o seguinte: antes mal acompanhada do que só. 
- A senhora se arrepende de ter mandado matar Branca de Neve? 
- Mas eu nunca mandei matá-la! Isso é uma grande confusão que fizeram em cima de uma briga de família. O que a imprensa não diz é que aquela sirigaitazinha (desculpe o termo), prepotente, que pensa apenas em si mesma, era uma inútil. Passava os dias reclamando que sentia saudades da mãe, que não tinha com quem conversar num castelo tão grande, que queria viajar, ser modelo, desfilar, que todas as suas amigas já eram modelo, que só ela ficava trancada naquela gaiola gigante (como ele chamava meu castelo) etc. etc. Um dia me enchi e disse para o caçador: “Leva essa guria para a casa das tias antes que a encha de tapas. Não volte aqui sem uma prova de que ela jamais retornará!” Foi isso que eu disse. E então ele fez aquela besteira tremenda. ... 
- Mas a versão dele é bem diferente da sua. 
- Ora, meu caro, acha que eu seria tão tola a ponto de planejar a morte de alguém e contratar um capanga que depois se tornaria testemunha contra mim? Certas coisas a gente tem que fazer sozinha para fazer bem feito. Além disso, eu seria incapaz de uma coisa dessas... 
- Bom, isto muda tudo. Mas ainda pesa contra a senhora a acusação de ser, como diria, uma... uma feiticeira, e que teria se aproveitado da ingenuidade de Branca de Neve, visitando-a disfarçada de vendedora e... 
- Eu sei, eu sei. Olha, eu já expliquei isso dezenas de vezes para o juiz do condado, mas ele nunca acreditou em mim. Só não me prendeu por falta de provas. Desde então esse homenzinho insignificante tentou me condenar por um crime que não cometi, até morrer ano passado por uma doença estranha. 
- O juiz que queria condená-la morreu então inesperadamente? Como foi isso? 
- Parece que ele comeu alguma fruta que lhe causou intoxicação alimentar, não sei direito. Mas prosseguindo nossa estória... Desculpe, o telefone de novo... 
- Sim? 
- (...) 
- Oi Bill! 
- (...) 
- Tudo bem, claro. 
- (...) 
- Ah, você notou? Obrigado. Foi só 150 ml. De cada lado. 
- (...) 
- Não, não, pára com isso! 
- (...) 
- Seu bobo! Você é que é muito galanteador. Pára com isso. Me fala o que você ta precisando, que eu estou recebendo um repórter agora. 
- (...) 
- Tudo bem! Fica para a próxima semana. 
- (...). 
- Claro, claro. Sigilo total. 
- (...) 
- Você usa o portão C, como da última vez. 
- (...) 
- Não me importa com quem virás. Antes mal acompanhado do que só, meu querido. Apenas não quero aquele batalhão de seguranças chamando a atenção aqui no parque. 
- (...)
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- Fica tranqüilo, pois instalamos um novo circuito interno com o triplo de câmeras, e contratamos outra empresa de segurança muito melhor. 
- (...) 
- Ok, outro prá você. Tchauzinho! 
- É o Clinton. Esse menino não aprende mesmo! 
- Virá com a família? 
- Que nada! Você parece que nem conhece a figura. Família? Jamais! A Hillary está num congresso da Unesco sobre a luta contra o analfabetismo na Ásia, e a filha fica em Nova York, dividindo o tempo entre a escola e o analista. Enquanto ele... deixa prá lá. Sobre o que falávamos mesmo? 
- Sobre sua fama de esotérica. 
- Bruxa, você quer dizer. Bem, sei que o senhor é um homem lido. Diga-me francamente, não acha que toda mulher tem, dependendo do dia, um lado anjo e outro lado bruxa? 
- Majestade, neste caso estamos falando de um crime. Com todo o respeito, meu papel de jornalista me obriga a ser franco: a senhora envenenou Branca de Neve naquela tarde na casa dos sete anões? 
- Se o senhor quer dar um tom jurídico a nossa conversa, tenho o mesmo direito: o senhor, ou quem quer que seja, tem uma prova de que eu a tenha envenenado? Sabe que essas insinuações podem trazer ao senhor um processo por calúnia e difamação? 
- Meus cumprimentos a seu advogado, madame. 
- Dispenso seu cinismo, cavalheiro, mas há muitas coisas que o senhor certamente não sabe. Primeiro, naquele dia eu estava no II Congresso de Ocultismo Mundial, em Lagos, Nigéria. Aqui estão minhas credenciais para confirmar meu álibi. Segundo: a menina foi encontrada dopada em coma medicamentoso, coisa que muita gente não sabe, e a imprensa não publica. Os laudos apontam para uma overdose por uma droga não identificada. Ademais, esta rapariga, que não teve o pudor de invadir uma residência de sete mineiros desconhecidos, tinha crise maníaco-depressiva, confirmada mais tarde pelo marido dela, que certamente o senhor também não sabe, é anestesiologista e pode confirmar tudo que estou lhe dizendo. 
- Desculpe se fui preconceituoso consigo, senhora. Tudo isso é novo para mim. 
- Tudo bem. É sempre assim. As pessoas acreditam em tudo o que lêem e vêem na televisão, e a moral dos acusados é arruinada, sem chance de defesa. O senhor pelo menos é o primeiro jornalista que me dá espaço para contar a minha versão dos fatos. Não quero ser venenosa, mas nunca entendi como uma “donzela” pôde agir como Ariel agiu. Imagine, beija a boca do primeiro homem que vê pela frente ao acordar, e casa-se sem jamais tê-lo visto antes! Sei que nem fica bem falar, e que ela é de boa família e tudo o mais, mas tem coisa que, se a gente não fala, ninguém fala.” 
- Mas o príncipe salvou-lhe a vida, não foi? 
- Ora, ora, meu amigo! Nem você e nem eu nos casaríamos com alguém desconhecido só porque ele nos salvou a vida, por mais gratos que fôssemos! A gente sabe que as alpinistas sociais existem, mas um pouquinho de sutileza não faz mal a ninguém, concorda? 
- Puxa, a senhora coloca as coisas por um prisma tão diferente! Branca de Neve, uma alpinista social... tem sua lógica! Vocês viveram juntas algum tempo, não foi? Que lhe vem à mente sobre aquela época? 
- Francamente, eu acho que deveria ter sido mais firme na criação dela. Percebo agora que faltou mais disciplina. Meu erro foi tentar ser, não uma madrasta, mas uma amiga. Achava que bastava o amor e a liberdade para formar uma princesa. Mas fracassei. Reconheço que ela sofreu muito com a morte da mãe. O pai também não ajudou muito, pois só cuidava dos assuntos da corte e conversava pouco com a filha. É claro que o novo casamento do pai é um trauma muito grande para qualquer criança. Sinceramente, eu fiz tudo o que pude. Mas, a amizade que ela tinha estragou tudo.
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- Ela tinha amiguinhos no castelo? 
- Não, seu Lazarus. Ela tinha apenas um amigo. O pior deles: o espelho! 
- O espelho mágico! Pensei que só a senhora tivesse acesso a ele. 
- De fato, era para ser de uso privativo, o que sem dúvida teria evitado muita confusão. Mas, qual menina não gosta de mexer na cômoda da mãe? Meu marido também usava o espelho toda vez que ia fechar um grande negócio. Resultado: está rico de dar inveja ao Bill Gates. Só que viaja o ano todo. 
- Sendo assim a senhora deve sentir muita solidão. Como lida com isso? 
- Acho que o senhor na verdade quer saber se tenho amante. É tolice de sua parte perguntar sobre isso, pois em qualquer dos casos minha resposta seria sempre não, concorda? 
- Passemos adiante. Percebo que seu trabalho preenche todo o seu dia. Gosta do que faz? 
- Meu caro, meu trabalho é minha vida. Sou hoje uma mulher muito mais feliz desde quando me livrei daquele maldito espelho. Convivo muito bem com meu rosto. Sei que estou envelhecendo, mas ao invés disso me assustar, na verdade me reanima, pois sei que estou progredindo como gente. Trabalho, leio, viajo, tenho meus sobrinhos, filhos de Larry e Samantha, minha filha, que sempre me visita nas férias escolares. Eles são adoráveis. Se pudesse ver como correm por todo este castelo e como aprontam nesse parque...! 
- De fato a senhora parece muito dinâmica e penso que este empreendimento não poderia estar em mãos melhores. Que conselho a senhora dá às mulheres que se assustam com a chegada da idade madura? 
- Quebrem seus espelhos! E enfrentem a luta! Aliás, aqui vai um conselho para o senhor: não fale com espelhos aqui na Ilha da Fantasia, senhor Lazarus. O preço pode ser muito alto. 
- Madame, minha última pergunta: alguns personagens desapareceram misteriosamente nas últimas versões de Branca de Neve e os Sete Anões, e não tem sido dada nenhuma explicação oficial sobre isso. Há um rumor de que por trás disso esteja certa máfia dos roteiristas novos. Quanto de verdade há nesses boatos? 
- Um minuto, por favor. Preciso dar algumas instruções ao meu mordomo sobre o jantar. Com licença. 
- (...?) 
(A rainha fala em tom inaudível). 
- (...!) 
- (...?) 
- (...!!!) 
- (...) 
- Cavalheiro, precisará me desculpar, mas nunca ouvi falar destes rumores, mas agradeço muito a sua visita. 
- Madame, esqueçamos tudo isso. Cá estamos nós, num castelo belíssimo, no centro da Ilha da Fantasia, e a vida passando por nós. Conhecê-la foi o ponto alto desta minha viagem. Além de belíssima, é muito inteligente! 
- Ora, senhor Lazarus! Certamente conheceste muitas mulheres interessantes por aí. 
- Nenhuma tão inteligente. E novamente jantarei sozinho, a menos que a senhora são se ofenda com um convite meu. Aposto que não conhece o peixe na telha servido no Bar do Vespa. Que me diz? 
- O senhor é muito cativante, e aproveita-se de uma pobre mulher louca para fugir um pouco da rotina, senhor Lazarus. Deveria ser preso por isso!
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Segredos da Bruxa 
“Receias, acaso, que esta maçã esteja envenenada?” 
- Versão original dos irmãos Grimm 
Amigo leitor, já ouviu falar da intuição masculina? Acredite ou não, ela existe. Tive uma prova quando estava tomando um sorvete na praça central da Cidade Maravilhosa, a principal aldeia da Ilha da Fantasia. Vi alguém que de imediato identifiquei como a bruxa da estória de Branca de Neve. Era uma anciã encurvada sentada num banco próximo ao meu. A idosa mulher dava pipoca aos pombos, quando notei que dois pombinhos caíram envenenados após comer aqueles grãos, enquanto a velha ria baixinho. 
A cara, o olhar, o riso cínico – tinha de ser ela! O corpo envelhecido era carregado por um espírito zombeteiro. Quando pude enfim olhar diretamente nos seus olhos vi a mesma ardileza de Nisséia, a rainha má. O leve tremor no seu rosto quando me viu denunciou que sabia ter sido reconhecida. Com tanta convicção nem tive receio de falar-lhe francamente. 
O problema é que a velha é esperta demais. Negou tudo, naturalmente, de modo que fica apenas a minha palavra, sem uma prova definitiva que resolveria finalmente este mistério da tentativa de homicídio tão famosa em todo o mundo. 
Todavia aprendi muito conversando com Éby. Eu que me julgava esperto, saí tosquiado. Veja se não é verdade.
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O Pensamento Vivo da Bruxa e Sua Vida Como Aposentada do INSS 
- Bom dia minha senhora. Permita que me apresente. Meu nome é Lazarus, e sou jornalista. 
- Azar o seu! (risada frouxa) Bom dia, jovem. Chamam-me Éby, e sou uma velha. 
- Perdoe-me a indiscrição, mas a senhora é, como diria, espiritualista? Quero dizer, esotérica? Bem, já participou como sensitiva em alguma estória? Para ser franco a senhora parece uma... 
- ...Uma bruxa? Quer saber se sou uma bruxa? Ora mocinho se eu fosse porque diria? Não sabe que as bruxas são perseguidas? Como imagina que eu ou qualquer outra pessoa admitisse isso assim, publicamente? 
- Desculpe se fui rude. 
- Não foi rude. Foi tolo, só isso. Mas não me ofendo. Já me confundiram muitas vezes com elas. Alguns até me acusam de ser Nisséia, a rainha laboriosa. Imagine só! Logo eu, uma pobre velha vendedora de maçãs. Veja a Nisséia, que encanto de mulher! Tivesse eu a beleza e o poder que ela tem, acha que viveria assim, como uma pensionista do INSS? 
- Mas por que a confundem com uma bruxa? 
- É o nariz. Maldita verruga! Sempre ela, a traiçoeira. Talvez não acredite, mas já fui bonita, muito bonita! Ora se fui. Cheguei a ser eleita a rainha da uva nos meus belos dias. E na eleição da miss Caixa Prego fui a terceira colocada. A eleita foi a Pagu, que nos deixou já há muito tempo. E a segunda foi madame Pompadour. Ah, sim. Fui muito bonita! Quando uma moçoila te encantar pela beleza, meu rapaz, imagine-a cinqüenta anos mais velha. Se na tua projeção sobrar alguma coisa de valor, case com ela. Nós, as velhas, somos as modelos amanhã. Ah, sim. 
- Mas sem dúvida a senhora sabe do drama vivido por Ariel Minerva, a Branca de Neve. 
- Ah, sim. Aqui não se fala de outra coisa. 
- Na sua opinião quem é o principal culpado por tudo o que aconteceu de errado na estória? 
- Ah, o espelho mágico, sem dúvida nenhuma! Aquele linguarudo! Às vezes penso que na verdade ele é uma espelha, por ser tão fofoqueiro. 
- Conhece-o pessoalmente? 
- Não, não. Claro que nunca o vi, mas digo isto pelo que li sobre ele na Contigo. É um vigarista! Usar a magia para falar a verdade! Ora, ora, que contradição. Quantos amigos separou! Quantas famílias dividiu! O caso de Branca de Neve é só um exemplo. Tive tantas amigas que consultaram o espelho mágico, quando ele ficou no Salão de Beleza da Madame Min. Hoje estão todas largadas do marido, e maldizem o dia em que se casaram. Tudo por culpa daquele bossal que pensa que é culto só por ficar citando Shakespeare. Como a Lola, por exemplo que faleceu há quinze anos. 
- O que pensa ao ver tantas mulheres descasadas nos dias de hoje, dona Éby? 
- Tenho dó. Blasfemam do casamento a todo instante. Dizem que os homens são todos iguais, que casar foi a pior besteira que fizeram na vida e etc. e tal. Parece um pouco a raposa desprezando as uvas que no fundo deseja. Menosprezam o casamento porque tiveram o seu demolido. Mas agora, com essa onda de sexo livre, casar pra quê? Entregam-se ao primeiro que lhes oferecer um jantar, ou um perfume barato! Pobrezinhas. Vivem só e morrerão só, carregando esta bandeira pesada e inútil da falsa independência, mas no íntimo de seu quarto quantas lágrimas derramadas ao travesseiro por estarem envelhecendo sem um companheiro, um
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amigo. Perambulam hoje nessas casas vazias que um dia foram um lar. Pobrezinhas. Se escutassem o que mamãe dizia... 
- Embora concorde em parte com a senhora, não lhe ocorre estar sendo incisiva demais? 
- Nem um pouco. Veja a ironia: primeiro elas afugentam seus homens, e depois cheias de neura, pagam a um homem estudado, um analista, para que as ouça e diminua seus grilos. 
- Falando em problemas femininos: a senhora acha que Ariel e Nisséia poderiam ter evitado toda aquela crise? 
- Sim, especialmente se não dessem ouvido ao espelho. É tudo culpa do Eternus Veritás, aquele intrometido. Ah, se houvesse uma poção mágica que transformasse um espelho falador em simples escutador, que beleza seria! Ele então ouviria nossas confissões, choraria conosco, riria de nossas tolices, nos dizendo baixinho “fale mais de você”, sem nunca se cansar e nunca olhar rapidamente o relógio – este gesto odioso que expulsa qualquer um que tinha esperança de ser ouvido com carinho. Ah, sim, se o espelho nunca falasse, mas sempre ouvisse, quanto apego teríamos por ele. 
- Perdoe-me se a importuno, dona. Mas, há tanto mistério para se esclarecer nesta estória. Incomoda-se se lhe fizer mais algumas perguntas? 
- Em momento algum! Não se preocupe, meu rapaz. Você parece um daqueles meninos dispostos a correr céus e terra atrás da verdade. Que época bonita da vida! Ah, sim, eu corri muito atrás da verdade também. Hoje, não mais. Já me consolo se pelo menos conseguir fugir da mentira. 
- A senhora é muito sagaz. Vejo que a vida lhe deu muita experiência. 
- E você é muito gentil, menino. Lembra-me Calígula, meu primeiro marido. Ele e Adolf Himmler, meu cunhado, também finado, gostavam de pescar na lagoa do Bateau Muche com o saudoso Dom Corleoni. 
- A senhora já perdeu muitos parentes e amigos, não? 
- É verdade. Maldito tempo, que tudo nos leva: a beleza, o vigor, os amados... e por requinte de crueldade nos brinda com essa constante lembrança dos mortos, retardando sem motivos nossa própria morte! 
- Diga-me como passa seus dias? Gosta de ler? 
- Li muito, ah, sim. Hoje minha vista é fraca. Mas, faço doces. Sei fazer biscoitos de polvilho que são muito elogiados. Só no bar do Vespa eu vendo duas dúzias por dia. E maçãs do amor, que encantam os amantes, aumentando a paixão. 
-E funcionam? 
- Claro que sim, pois quando não as comem o amor se esvai. Olhe a seu redor. Qual dos casais em crise o senhor vê que esteja comendo maçã do amor, ou algodão doce, ou qualquer outra guloseima de circo? Nenhum. Pesquisa e vê. São tantos casais solenes, bonitos, mas sem carinho e paz. Nos shoppings e nas ruas lá vão eles. Passam de rostos graves, atirando entre si frases ásperas. Ah, os amantes sem amor! Quanto sofrem! Faltam-lhes uma praça, um banco e maçãs. Maçãs do amor. 
- Isso é profundo, dona Éby. Porém, maçãs encantadas podem matar. 
- Bobagem. O que mata é o desamor. Mesmo a bruxa má – crime fez? Apenas foi gentil com uma menina tonta. Deu um presente para uma donzela que teve indisposição. Um gesto de bondade que por acidente virou intoxicação alimentar. Só isso. Daí, os neuróticos viram nisso uma tentativa de homicídio. Que ironia. Uma anciã dá uma fruta a alguém e se torna acusada de assassinato! Não tem lógica isso. Ainda mais porque naquela tarde Branca de Neve tomou manga com leite. E que manga enorme. Parecia que já estava meio passada, pela cor... 
- Como sabe de tudo isso? 
- Como sei? Bem, me contaram. Quer dizer, acho que li em algum jornal sobre o caso. 
- Lembra qual jornal? 
- Não, não vou me lembrar agora. Mas, isso é coisa que todo mundo já sabe por aqui. Agora, falemos um pouco sobre se acusar os indefesos. Alguém procurou escutar a versão daquela senhora idosa, a quem chamam de bruxa?
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- O que acha que aconteceu naquela manhã, que ainda não saibamos? 
- Não era manhã. Eram 13:45 h. Olha, tem coisa que eu prefiro não falar, mas a gente fica sabendo de cada uma... Por exemplo, essa mocinha é anoréxica, sabia? É, tem pavor de engordar. É triste, mas é verdade. Essa molecada de hoje é terrível. O senhor promete guardar segredo? Endora, Deus a tenha em bom lugar!, um dia me contou que Branca de Neve fazia até bulimia e tomava uns remédios de fórmula, para emagrecer ainda mais. Outra coisa: tinha pavor de ficar moreninha. Por isso não saia para brincar, nem no castelo, nem na casa dos anões. Coitadinha, era meio pancada. 
- Tem certeza disso? 
- Claro, seu Lazarus. Nesse ritmo é claro que mais cedo ou mais tarde ia ter um troço. Vivia sozinha; abandonada pela família real; sem estudo; sem emprego; servindo de doméstica para os anões. Uma hora era fatal dar um piripaque. Eu não a condeno. Sei de muita gente que toma droga para enfrentar as pressões da vida. Pobrezinha. Não teve força para enfrentar seus probleminhas. Mas o destino foi justo com ela: casou- se! 
- A senhora conhece os sete anões? 
- Claro! São uns amores. Ah, isso são. 
- Encontra-os sempre? 
- Mais ou menos. Às vezes Dunga circulando com seu micro ônibus. Garoto maluco! Como é que alguém, nos dias de hoje, adota 19 crianças? Coitado. Ele sempre foi mesmo meio pirado! O último que vi foi o Mestre, pouco antes da cirurgia, mês passado. Estava na fila do banco para retirar a aposentadoria. Estava tão magro o coitadinho. Mas, é um amor de pessoa. Sempre me convida para tomar um café no Largo do São Francisco, que fica próximo à agência bancária. Lembra dos Sobrinhos do Capitão? Sempre estavam lá também. Ah, o senhor não conheceu? Que pena. Os dois morreram de cirrose em abril. 
- Fale mais sobre o pessoal do café. 
- Muitos personagens se encontram ali. Quanto ao Mestre, da última vez ele nos contou que estava terminando um livro – ele escreve muito, sabe? Acho que era um livro de máximas. É isso mesmo. O livro chama-se Máximas do Mestre. Sabe, eu sou meio ignorante nessas coisas de livros. Sei é que ele está muito animado. Já tinha até um editor que prometeu publicar tudo o que o Mestre mandar. Porém, continua pobre. Não entendo. Tão culto e tão sem dinheiro? Não é uma ironia do destino? 
- Mestre nunca suspeitou que a senhora fosse a bruxa da estória? 
- Sim, suspeitava de mim. Nessa época nem me cumprimentava. Mas, um dia precisou trocar alguns cheques pré-datados e ficou sabendo que eu tinha uma boa poupança, e então quebrei o galho dele. A partir daí ficamos bons amigos. Mas, ele sempre teve certeza de que a bruxa da estória era eu. Sabe o que ele me disse um dia? “Éby, você estava certa. Essa menina precisava de uma lição dura para enxergar a vida como ele á. Depois daquela maçã nunca mais ela caiu em nenhum conto do vigário!” 
- Por que ele achava que ela precisava de uma boa lição? 
- Mestre queria que a menina estudasse, completando o primeiro grau, depois o magistério, para daí entrar na faculdade. Sempre imaginou humanas para Ariel. É que ele tinha bons amigos na secretaria da cultura e sonhava colocar a garota lá. Porém, tudo foi muito rápido. Ele acha que foi um erro Ariel casar-se tão nova, e sem conhecer bem o príncipe. Não sei. Essas coisas do amor são meio complicadas. 
- Quem a senhora acha que tentou matar Branca de Neve? Não acha importante que se encontre a velha criminosa para pô-la na masmorra? 
- Quer horror, seu moço! Gente, é preciso respeitar a terceira idade! Olha que se tratava de uma idosa vendedora de frutas. Quer dizer, ela ainda trabalha para sobreviver. Então essas pessoas merecem mais consideração. 
- Mas a evidência é tão clara! Tem certeza de que nunca viu esta bruxa pessoalmente?
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- Em momento algum. Mas como idosa sofro ao ver essas acusações assim, tão fulminantes, sem dar a pessoa o benefício da dúvida. Olha, as coisas estão mudando. Não será tão fácil humilhar os velhos daqui para frente. 
- O que a faz pensar assim? 
- Temos muitas associações hoje. Temos advogados. E temos poder econômico para fazer valer nossos direitos. O mundo hoje é outro, e esperamos, ou melhor, exigimos o respeito da sociedade. Houve época em que só as farmácias gostavam de nós. Hoje tudo mudou. As agências de viagens nos amam. O Francisco Petrônio e o Agnaldo Rayol também. É, somos amadas. Jaime, meu quarto marido, se fosse vivo iria adorar ver esse tempo. 
- Dona Éby, novamente desculpe-me se fui grosseiro com a senhora, mas é que não pude deixar de tirar essas dúvidas. Foi ótimo ouvir sua versão dos fatos. Aqui está meu telefone. Caso saiba de algo novo queira me procurar. 
- Já vai tão cedo? Olha, tome um presentinho. Alguém que busca a verdade precisa se alimentar bem. O que acha que sua mãe pensaria ao vê-lo tão esquálido? Vamos, aceite esta maçã. Não, não faça desfeita, ou me ofendo. Prove. E te sentirás como nunca antes. Podes comer sem medo. Essa, eu garanto, não está envenenada. Olha, boa sorte para você. E tomara que além de encontrar a verdade, encontres uma parceira, pois afinal, antes mal acompanhado do que só. Perdoe-me a pressa. Também já vou indo. Abriu um novo Bingo na Brigadeiro, e todas as minhas amigas já estão lá. Hoje não posso faltar. Adeus.
36 
Segredos de Dunga e Sua Tentativa de Suicídio 
“Queres ficar conosco? Aqui não te faltará nada.” 
- Versão original dos irmãos Grimm 
Dunga, que na vida real se chama Raul Eduardo Seixas, aceitou logo da primeira vez nossa proposta para uma entrevista. 
Durante minha viagem até o sítio Quinta da Esperança, o meu guia confidenciou-me alguns detalhes sobre a tentativa de suicídio de Dunga. Até então eu só tinha ouvido comentários esparsos e contraditórios. O relato a seguir foi confirmado posteriormente por mais uma fonte, de modo que posso me assegurar de passar ao amigo leitor a versão real ou a mais próxima disto. 
Logo após o filme de Branca de Neve rodar o mundo, Dunga foi ajudado pelo Mestre a procurar ajuda médica. É que sua mudez resultava da surdez, de modo que com ajuda perita ele poderia falar e se comunicar razoavelmente bem, falando. O tratamento foi ótimo, entretanto quando terminou ele já não era mais um menino, mas sim um jovem adulto, cheio de sonhos e ansioso de se apresentar no palco. A estréia de sua peça, na Praça Roosevelt, num pequeno teatro experimental, obteve grande repercussão na mídia e na primeira noite a fila na entrada chamava a atenção. O problema foi que o público reagiu negativamente, pois o nome de Dunga atraiu fãs do menino tonto, que todos viram no desenho animado. Ao se deparar com aquele rapagão, com barba, apresentando Tchekov, e pior, num monólogo, os fãs o abandonaram. O fracasso da peça nas noites seguintes arrasou nosso amigo, que desapareceu por um bom tempo. Nem os anões sabiam de seu paradeiro. 
Conseguiram informações de que passou a morar num muquifo no Bexiga, isolado, apenas lendo e indo a cinemas de arte, sempre irreconhecível e escrevendo resenhas literárias para o Reader’s Digest. Quem o localizou foi Feliz, que comparecia vez em quando à alguns bares decadentes da região e ficou sabendo do paradeiro de Dunga. Feliz e Yoko, que era sua mulher na época, fizeram uma visita ao jovem angustiado e mantinham certo contato com ele. Com o tempo Dunga e Yoko começaram a trocar e- mails e ela se preocupava sobremaneira com ele. Quanto ao Feliz, demonstrou indiferença com seu amigo de trabalho. Seu modo de vida mundano, e a desfaçatez com que saía com várias namoradas, contribuíram para negligenciar a esposa, que sentia forte ímpeto de ajudar Dunga a se reerguer. Até o dia em que Dunga não mais retornou nenhum contato e saiu do ar. 
Três dias depois Yoko foi ao quarto de Dunga e encontrou um bilhete que dizia o seguinte: 
“Querida Yoko e queridos amigos, 
Perdoem pela covardia de fugir. Tentei o quanto pude lutar contra a sensação de fracasso, que me oprimia. Não conseguir me comunicar pela arte que mais amo, o palco, derrubou todos os sonhos que tinha construído. Longe de meus antigos fãs, sem conhecer minha família natural e sem poder viver da arte, o peso de viver se tornou maior do que pude suportar. Esta noite encontrarão meu corpo na linha do trem que vem de Patópolis.
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Os segredos revelados de Branca de Neve

  • 1. 1 A BIOGRAFIA NÃO-AUTORIZADA DE BRANCA DE NEVE Lazarus de Betania Tradução Carlos Élson L. da Cunha
  • 2. 2
  • 3. 3 Sumário Imprimatur Agradecimentos Por Que Fizemos Este Livro O Ilustrador Tem a Palavra Segredos do Caçador O Pensamento Vivo do Caçador e Sua Atual Ocupação Como Taxidermista Segredos do Coelhinho Assassinado O Pensamento da Família do Coelhinho Assassinado Segredos de Soneca Como Soneca Fundou a Igreja “Cristo é Grana!” Segredos de Nisséia, a Rainha Má Como a Rainha se Tornou Gerente de Eventos Segredos de Hebe, a Bruxa O Pensamento Vivo da Bruxa e Sua Vida de Aposentada pelo INSS Segredos de Dunga e Sua Tentativa de Suicídio O Pensamento Vivo de Dunga e Seu Trabalho Junto à Unicef A Morte de Atchim e seu Legado O Pensamento de Maddona, a Amante Argentina de Atchim Dengoso e o Segredo de Sua Grande Fortuna Como Dengoso Subornou Nosso Repórter Segredos do Príncipe Encantado O Pensamento do Príncipe Encantado e Como Ele se Tornou Consultor de Empresas e Palestrante Segredos de Zangado A Entrevista Que Zangado Não Concedeu Segredos de Branca de Neve e Suas Empresas O Pensamento Vivo de Branca de Neve e Sua Relação com Mowgli Segredos de Feliz Uma Antiga Entrevista de Feliz e Sua Visão da Mulher Segredos do Mestre Máximas do Mestre Cedidas a Diversos Autores Segredos de Vavá – O Cabeleireiro de Branca de Neve Vavá Conversa com Lazarus e Revela Coisas Incríveis Segredos do Dr. Drausio Marinho – o Ginecologista de Branca de Neve O Prontuário Confidencial do Dr. Drausio Marinho Segredos do Dr. Sigmund Jung – o Psiquiatra de Branca de Neve Sigmund Jung Conversa com Lazarus e Expõe Suas Angústias Segredos do Espelho Mágico – Que Só Fala a Verdade O Pensamento Vivo do Espelho Mágico e Seu Deslocamento no Mundo Uma Palavra Sobre o Autor Livros de Lazarus A Fundação Lazarus de Betânia Sobre a Tradução Íntegra da Versão Original Simulado para Vestibular Aviso Final Índice Remissivo
  • 4. 4 Aprovado para leitura dos moços. Nihil obstat. Imprima-se. DomLucas de Torquemada Capo da Confraria dos Cérebros Sem Fronteiras Vicarius Delegatus Madrid, 1o de abril de 1498
  • 5. 5 Agradecimentos Não poderia deixar de mencionar algumas pessoas e instituições que, de uma forma ou de outra, colaboraram para que este livro se tornasse realidade. Devo muito ao prefeito de Orlando, Coronel Cintra, que nos recebeu tão hospitaleiramente quando de nossa visita, e ao superintendente da Disneyworld Library, por nos permitir acesso aos manuscritos precisávamos. Mesmo correndo o risco de esquecer alguém, preciso citar aqueles que nos deram valiosas dicas na Ilha da Fantasia: Napoleão Solo e seu colega Maxwell Smart, o agente 86; Bruce Wayne e seu pupilo Dick Grason; Peter Parker – repórter fotográfico que enriqueceu por demais nosso arquivo; o repórter Clark Kent (muito bom moço, embora às vezes parecesse estar voando) e seu colega Jimmy Olsen; James T. Kirky, nosso incansável piloto, sempre pronto a nos levar onde nenhum homem jamais esteve antes; Capitão Nemo, que nos conduziu por umas 20.000 léguas; Major Antony Nelson, e sua genial esposa Jeanne pela simpatia com que nos receberam; o professor Zachari Smith, técnico que muito nos auxiliou nos problemas mecânicos, e inspetor Closeau, a quem devemos as orientações na parte jurídica deste projeto. Nosso obrigado também a Antonio Rogérius Magry e sua secretária, Karla Peres, que por seu impecável português fizeram exaustiva correção em nosso manuscrito original até que nada mais fosse encontrado de errado. O que sair defeituoso é culpa da gráfica. Nosso elogio à marinha do Equador, na pessoa do insígne almirante Bravo Bolívar, que nos emprestou transporte e equipamento necessário para chegarmos à Ilha da Fantasia, e por nos fornecer o mapa de toda a região. É mister lembrar também do Instituto Sigmund Freud, em Viena, que nos cedeu o diagrama que elucida toda a mente humana, com suas perturbações e motivações ocultas. Só assim pudemos escapar ilesos desta viagem, que de outro modo nos faria crer estarmos completamente dementes. Um obrigado carinhoso à Eva Braun, bibliotecária da fundação, cujo telefone eu perdi – mas a quem preciso dizer o seguinte: Eva, aquele meu convite ainda está de pé. Se tudo aquilo que você sentia ainda é verdadeiro, procura meu editor para que possamos nos encontrar de novo. Meu terno agradecimento a Esopo, Perrault, La Fontaine, Hans Christian Andersen, e Walt Disney, por tornarem tão saboroso o ler e ouvir estórias. Um especial obrigado a Jacob e Wilhelm, os irmãos Grimm, que tiveram a sabedoria de ouvir nas aldeias pessoas idosas que nos legaram esta estória dramática e empolgante - Branca de Neve e os Sete Anões. A estes anônimos camponeses alemães, homens e mulheres do século passado, meu particular reconhecimento. E por fim, muitíssimo obrigado à minha editora, Valentina, a profissional mais inteligente que conheço. Inteligente e corajosa. Lazarus de Bethania.
  • 6. 6 Porque Fizemos Este Livro Há algum tempo, num encontro de editores, surgiu a queixa da falta de temas novos para o público. Já se escreveu praticamente sobre tudo, e boa parte do que hoje parece novidade é, na verdade, repetição de temas e autores antigos. Naturalmente pode-se continuar ganhando dinheiro editando o que vende fácil, atendendo assim a maior parte do público que sabe o que quer: romances, culinária, auto-ajuda e etc. Todavia, há uma faixa de leitores que busca idéias e conceitos novos. Querem saber mais; não apenas o que aconteceu, mas porquê aconteceu. Atender a tais leitores, entre os quais se incluem os próprios editores e autores, não é fácil. Surgiu a idéia de fazer uma investigação isenta do que se passa agora nos bastidores das estórias famosas. Todos temos na mente diversas estórias que encheram nossa infância de magia e emoção. Mas, como estariam vivendo neste exato momento os personagens que nos emocionaram? Essas respostas só seriam obtidas com um trabalho muito sério, envolvendo viajar e se imiscuir nos bastidores muito reservados das estórias infantis. Bem, naquele momento decidimos que esta era uma pesquisa original e sobre a qual milhões de pessoas têm destacado interesse. Escolhemos Branca de Neve por ser o conto mais famoso dos irmãos Grimm, e que Walt Disney primorosamente levou ao cinema. Certamente, ao falar de Branca de Neve, falamos a praticamente todo ser humano alfabetizado, onde quer que esteja. Sabia que mexeríamos num vespeiro, uma vez que seriam reveladas muitas fofocas escondidas do grande público. Mas, sempre gostei de jornalismo investigativo. Demos o prazo e o dinheiro que Lazarus achava necessários, e ele intrépido seguiu rumo à maior reportagem jamais feita. Nomes e lugares citados aqui são reais, e qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é proposital. Decidimos não esconder nada. Claro que isto nos trouxe inimizades. Estávamos, porém, decididos a chegar a uma nova fronteira literária. A bem da verdade, descobri que há uns quinze anos um certo Jules Maigret fez uma investigação semelhante a essa. Por algum motivo inexplicado a edição do jornal que publicou a primeira parte de suas reportagens foi recolhida ainda no prelo. Era época do regime militar, e comumente algumas matérias sofriam censura. Quase nada escapava da mira dos censores. Porém, as bibliotecas públicas hoje exibem quase tudo que foi proscrito naqueles anos. Mas, nada restou do trabalho de Jules Maigret. Amigos me confirmaram que uma das únicas cópias do trabalho de Maigret se encontra rasgada e manchada, mas ainda em condições de leitura na biblioteca particular de Josef Mindlin. Infelizmente o senhor Mindlin jamais retornou às ligações que lhe fiz, pedindo permissão para ver os manuscritos de J. Maigret. Parece que sempre estava viajando ou dando palestras.
  • 7. 7 Persisiti por uns seis meses, até que um recado na minha secretária eletrônica me fez desistir. Uma voz grave e não identificada sugeria que parasse com essa pesquisa, e elogiava meus filhos, dizendo que seria muito triste se eles tivessem de crescer órfãos de pai. O mais intrigante descobri nos anais do jornal “A Folha do Estado”: o próprio J. Maigret morreu logo depois de tentar publicar sua matéria. A causa mortis, no laudo assinado pelo dr. Badan Falhares, apontava câncer fulminante no pulmão por tabagismo, embora parentes e amigos garantam que Maigret nunca fumou. Sabendo de tudo isso, tínhamos motivos para nos preocupar, mas fomos em frente. Tudo foi feito em nome da verdade e certos de que lançaríamos um novo marco no conceito que o leitor mediano tem sobre as parábolas infantis. Houve enorme pressão para que essa obra não fosse publicada. Exatamente por isso quero reconhecer publicamente a coragem de meu sócio editor que se manteve intransigente e não mutilou o manuscrito, mesmo ao enfrentar agentes poderosos. Espero estar contribuindo para engrandecer a imprensa séria que se faz neste país. Conforme verão, Lazarus pagou um preço muito alto por abraçar esta ousadia, mas certamente tem hoje a sensação feliz do dever cumprido. É com muita honra e emoção que agora passo ao leitor amigo este diagnóstico cruel: “Branca de Neve, Uma Biografia Não Autorizada”. O Editor.
  • 8. 8 O Ilustrador Tem a Palavra Foi uma feliz surpresa receber o convite de Lazarus para ilustrar seu livro. Uma das lembranças mais gratas de minha infância é cena de papai retornando de viagem e presenteando a nós, seus filhos, com diversos livros grandes e coloridos. Muitas vezes eram livros de Lazarus, que recebíamos ávidos para folhear, ler, colorir e copiar. Outras vezes, após a janta, podíamos ouvi-lo ler seus contos e fábulas para mamãe, enquanto esta recolhia a louça ou costurava. Assim, foi com viva emoção que encontrei Lazarus na penúltima feira do livro, em Frankfurt. Já tínhamos nos encontrado antes, mas nunca com tempo suficiente para uma boa prosa, como ocorreu naquela ocasião. Abraçar o velho professor e ouvir algumas de suas muitas estórias tornou aquela semana inesquecível. Desde então, tornei-me seu devedor e agora pago minha dívida com algumas pranchas, que na verdade estavam sendo reservadas para um grande projeto de minha equipe, que é ilustrar a Bíblia inteira. Como parece que não conseguiremos concluir nosso intento, cedemos estes desenhos para o livro de Lazarus, que tenho certeza, nos dará a projeção internacional que desejamos. Aqui em Paris, seguimos numa rotina enfadonha, sem grandes novidades. Votos de muita paz e saúde ao nosso fraterno professor itinerante, Paris, 13 de julho de 1789.
  • 9. 9 Segredos do Caçador “O caçador ia pensando: ‘Nada arrisco, pois os animais da floresta vão devorá-la em breve, e a vontade da rainha será satisfeita, sem que eu seja obrigado a suportar o peso de um feio crime.’ ” -Versão original dos irmãos Grimm Foi fácil encontrar a casa do caçador na periferia da ilha. Seu nome indica sua origem francesa, e seu agradável sotaque o confirma. Estava certo de encontrar um personagem alegre e bonachão, mas não foi bem assim. Era um homem triste, amargurado. Havia perdido muito com toda aquela estória, e hoje se tornou apenas mais um homem de meia-idade sem conseguir um emprego digno. O que é um a pena, pois é muito inteligente. Tem um jeito muito particular de ver o mundo e aprendi muito com ele. O senhor De Lyon explicou-me que o Atchim e o Mestre morreram há algum tempo, o que considerei um grande furo de reportagem. Mas, o interessante é que os personagens não morrem como imaginamos. Para se entender bem isto aprendi que há três classes de personagens: os protagonistas, os coadjuvantes e os personagens coletivos. O protagonistas - são os atores principais na estória. Possuem nome e papel bem definido, como Cinderela, Simbad, Gepeto e outros. São os que têm melhor salário, roupa bonita e fama. Porém trabalham muito para atender às indústrias de brinquedos, camisetas, livros, filmes e etc. Na verdade pouco tempo tem para usufruir o que ganham. Os coadjuvantes - são os que não têm nome, mas função. Alguns exemplos: o caçador, uma fada, o alfaiate, etc. Estes ganham pouco, porém não ficam sujeitos a tantas obrigações contratuais, como entrevistas, lançamento de CD’s etc. Levam uma vida mais simples e mais saudável, pois normalmente moram nas aldeias, ou ao redor dos castelos, um tanto afastado da badalação incessante da corte. Os coletivos - são personagens que nunca mostram seus rostos. Não possuem nome nem identidade própria. Aparecem sempre em grupo como: “uma multidão saudou o novo rei...” ou: “os soldados cercaram o castelo...”. O leitor irá encontrá-los sempre que o desenhista apresentar aquelas imagens com dezenas de rostos que são apenas manchinhas repetidas. Tais são os personagens coletivos. Estes são os párias das estórias. Sem nome, sem rosto, sem identidade. Vivos, mas quase vegetando. Entre eles estão os personagens que um dia foram protagonistas, mas alijados pelos novos roteiristas, eles desaparecem da memória dos leitores. Encontram-se num limbo inacessível, mortos para o mundo em que vivem.
  • 10. 10 É o que aconteceu com Atchim e Mestre, pelo que me contou o caçador. Suas mortes na verdade são o abandono da condição de protagonistas para ser um anônimo, um coletivo. O que é simplesmente apavorante para qualquer personagem. O que complica a situação é que, há fortes rumores da existência de uma máfia responsável pela morte de inúmeros personagens. Qualquer leitor de estórias e fábulas vai perceber que vários personagens vão desaparecendo nas sucessivas edições das lendas. Por exemplo, Branca de Neve tinha uma mãe que aparecia logo no começo da estória. Era uma protagonista. Nas edições mais recentes os roteiristas simplesmente a eliminaram, citando apenas que o pai de Branca de Neve ficou viúvo e casou-se novamente. Textos mais antigos traziam também o pai de Branca de Neve como protagonista, mas os roteiristas de Disney o descartaram da trama. Este desaparecimento de personagens nunca foi bem explicado. Alguns comentam a boca pequena, que há chantagens e extorsões sobre os protagonistas, e quando eles não conseguem colaborar com o submundo, simplesmente somem. Talvez as explicações sejam outras, mas como os personagens têm pavor de tocar neste assunto, as especulações vão crescendo, e ficamos sem saber onde termina a verdade e onde começa a lenda. Bem, saber disto e de outras coisas que relato aqui, como intrigas entre os anões, o casamento problemático do príncipe - que não foi feliz para sempre coisa nenhuma - etc., diminuiu meu encanto com o mundo das fábulas. Sofro ao imaginar que isto também acontecerá no caso do leitor. Mas, precisei ir até o fim de meu trabalho por dois motivos poderosos: o interesse na verdade jornalística e a necessidade de cobrir meu cheque especial. Vejamos, pois, o que tem a dizer o caçador.
  • 11. 11 O Pensamento Vivo do Caçador e Sua Ocupação Atual Como Taxidermista - É uma honra entrevista-lo, sr. De Lyon. Permita que expresse em nome de muitos leitores, que ficamos muito aliviados pelo seu nobre gesto de salvar Branca de Neve da morte. O senhor tem consciência do alívio que trouxe a todos os seus leitores? - Certamente, mon ami. Foi um momento muito difícil para todos nós envolvidos na trama, e orgulho-me do que fiz. - Acredito que poucos saibam de sua origem francesa. Pode nos falar um pouco sobre isso? - Oui, minha mãe era bretã e meu pai era de Albret, ao sul. Casaram-se numa época em que havia muita insegurança e desemprego; e mesmo os que tinham emprego quase nunca conseguiam pagar suas dívidas. Como os negócios de meu avô paterno fracassaram em Albret, meus pais retornaram para a Bretanha, em Saint-Paul de Lyon, onde nasci. - O senhor continua caçando? - Em absoluto. Na verdade há anos que não caço sequer uma raposa, mesmo porque neste lado da ilha há muito pouco delas. As maiores raposas ficam na sede da Ilha da Fantasia... Por aqui estão desaparecendo, e minha profissão não é vista com bons olhos. Vivo mais de recordações, e quando relembro a época em que fui o caçador oficial da rainha, fico muito triste. O senhor deve entender o porquê. - Desculpe-me a ignorância, mas donde vem tanta mágoa? - Ora, mon ami! Devido a ter enganado a rainha perdi meu emprego vitalício como o caçador oficial de sua majestade! Pior: fui mandado embora sem direitos! Não fosse eu ter comprado esta choupana nos bons tempos, hoje seria mais um desabrigado aí pelas ruas... - Bem, eu não sabia disso. Lamento muito. Mas, imagino que não deva ser tão terrível para um personagem perder seu emprego, afinal escrevem-se tantas estórias que aqui e acolá deve haver uma vaga para caçador. Estou certo? - Sim, mas normalmente são papéis curtos e poucos simpáticos. Um exemplo? O caçador da estória de Bambi. Quem gosta dele? Na verdade são poucas as cenas em que aparecemos com dignidade. Felizes são os caçadores em Chapéuzinho Vermelho, meus primos! Trabalham muito pouco, aparecendo só no final, e tornam-se os grandes heróis. Quanto à maioria de nós, além do ostracismo, ainda temos de enfrentar as pressões da SPCC. Por causa deles eu nem posso mais visitar a França. - O que é a SPCC? - É a Sociedade Protetora de Coelhos, Chinchilas e Afins, uma ONG de extrema direita com sede em Nancy que denuncia abusos cometidos contra coelhos, chinchilas e outros pequenos animais no mundo todo. - Como surgiu? - Bem, foi fundada por Jean-Marie Larrusse, ex-funcionário da Revlon francesa, que a via crueldade com que eram feitos os testes de alcalinidade dos novos cosméticos, por se jogarem fórmulas experimentais nos olhos dos coelhos. Larrusse trabalhou 22 anos na empresa e nunca se manifestou sobre o que via ali, mas quando foi demitido sob acusação de espionagem industrial, retaliou fundando a SPCC levando vários documentos e fotos comprovando a desumanidade com os animais. A organização cresceu muito, tendo hoje escritório em 639 países, sendo financiada pelos seus sócios, entre eles gente famosa como Brigitte Bardot e Arnold Ninrode.
  • 12. 12 - Como era a sua vida no castelo? - Trés joli! Tínhamos refeição e moradia por conta da realeza, além do salário. A casa era uma beleza, nos fundos do castelo. O salário também era muito bom. Recebia duzentas patacas por mês. - Quanto vale isso hoje? - Olha, na razão de uma pataca por 1,7 florim, dá F$ 340 (florins liliputeanos). - Puxa! Isto é um alto salário em qualquer lugar do mundo. Sua família deve ter sofrido muito com sua demissão. - Sim, sofre até hoje. Meus filhos não se conformam de eu ter perdido a posição de caçador-mor que poderia ser transmitida por herança. O mais velho, que não consegue emprego de jeito nenhum, já me disse mais de uma vez que se Branca de Neve tivesse morrido a gente não estaria passando apuros. Sei que ele não falou por mal, mas apenas desabafou. - Eles têm trabalhado em estórias de caçadores? - Olha, está muito difícil para eles. Eu me preocupo muito com isso. Queria vê-los bem colocados antes de morrer. Mas vivemos em tempos difíceis... Eu mesmo me arranjo com serviço de empalhador, pois sou taxidermista também, e ensinei aos meninos. Não que seja uma maravilha de serviço, mas a gente sempre livra alguns florins. O mais novo pegou gosto pela coisa e está se arranjando até que bem, contratado pelo Senado para manter de pé algumas múmias. - Como era conviver com a rainha má? - Dona Nisséia? Madamme é uma lady. Essa imagem de megera foi criada pela mídia. Ela apenas é uma mulher com forte personalidade. Mas, é uma pessoa hospitaleira, esforçada. Nunca teve esse gênio violento que se diz por aí. Eu que a conheci mais de perto sei que ela é até sensível e tem seus momentos de meiguice. É só a questão de, como se diz no seu país, saber levar. - Todavia, a rainha má mandou matar Branca de Neve. Ou não? - Veja bem, de certa forma sim. Todavia é preciso entender as circunstâncias em que as coisas aconteceram. Não se pode julgar alguém só pelo que se ouviu dizer. Também, mesmo que ela tenha errado, um momento de nervosismo não representa o que a pessoa é como um todo. - O senhor me surpreende. É a primeira vez que vejo alguém defender a rainha má. - Claro, pois a conheci mais de perto que a maioria. - Vocês chegaram a ter algum relacionamento romântico? Acredita que ela tenha sido influenciada por alguém a fazer o que fez? - Respondendo à sua segunda pergunta: sim, ela foi levada pelo espelho mágico a criar essa neurose de querer saber se “existe uma mulher mais bela do que eu...” - Mas o espelho mágico apenas foi franco. Como pode a franqueza levar alguém a um assassinato? É algo que não consigo entender. - Naturalmente as pessoas de mentalidade apenas mediana têm dificuldade de entender coisas mais profundas. Não param a fim de examinar mais de perto esta questão. O espelho, que se chama Eternus Veritás, sempre fala a verdade, de fato. Mas peca de duas maneiras, mon ami. - Quais? - Primeiro: por refletir ininterruptamente. - Ora, mas não é o que se espera dos espelhos? - Sim, mas ouça-me com atenção. Estou certo de que já passou por isso. Você está trabalhando, sentado, ou andando, sei lá, mas de repente passa na frente de um espelho! Note como tudo o mais se torna desimportante e você passa a se concentrar em quão feio de fato é. Sim, o espelho lembra-lhe rudemente de que és mais gordo, desgrenhado, ou corcunda do que até o momento imaginava ser. Quanta crueza há no revelar fulminante dessa sua figura! Logo você se vê buscando um pente, puxando uma roupa para diminuir sua feiúra... - Mas, isto é bom. Ou não?
  • 13. 13 - De fato, às vezes é bom, e até nos protege de nos apresentarmos como um espantalho. Mas, por favor! Entenda o seguinte: o fato do espelho continuamente nos expor como somos por fora, reduz o cuidado com quem somos por dentro, percebe? Este serviço diuturno carrega uma agressão desnecessária, que se fosse atenuada evitaria muita dor. Na verdade o espelho é o pai do narcisismo, que vai gerar o egocentrismo, a arrogância e o desprezo pelo semelhante – sem falar naquele desvio pavoroso que o senhor sabe qual é. - Seu julgamento não é um tanto exacerbado? - Não se acrescentarmos a índole reveladora do espelho um outro complicador: a natureza feminina. Sabemos que estas criaturas, as varoas, são presas fáceis da beleza e, por conseguinte buscam a formosura como as ondas buscam as praias. De tal forma são vítimas deste vício que se enfeitam mesmo idosas e viúvas. Desde a infância se alegram com adornos e toda a sorte de ornamentos delicados. Nisto o espelho é um grande cúmplice e promotor. Ainda mais: as fêmeas humanas precisam sentir-se notadas, daí armar-se para esta guerra surda do cortejo, usando a graça que lhes é própria enfeitando-se até o limite do bom senso – algumas vezes ultrapassado, bem o sabemos. O resultado é constrangedor quando vemos o tempo que perdem diante do espelho, seu confidente e mecenas. - Vejo aonde o senhor quer chegar: se o espelho mexe tão profundamente com a alma feminina, tanto pior se somarmos a isso um espelho falante. - Exatamente, senhor Lazarus! Eis o segundo pecado de Eternus Veritás: para piorar a situação sempre fala a verdade, somente a verdade e nada mais do que a verdade. - O senhor não acha que isso é uma virtude? - Claro que sim. Porém, ser franco é diferente de ser franco sempre! - Não vejo como, mas por favor continue. - Meu amigo, tudo é tão simples. Quantas vezes você já se refreou de dizer a verdade para não magoar alguém! Ou será que não? Aqui mesmo, nesta velha casa. Não sentiu um cheiro de mofo ao entrar? Seja franco! Não sente um cheiro azedo de móveis velhos, almofadas velhas, como se um cachorro tivesse dormido neste sofá? - Bem, eu... - Sim, claro que sim. E não me aborreço se confirmares, pois sei que é verdade. Mas, note bem: você nada me disse sobre isso! Ignorar algumas coisas é parte de teu cavalheirismo. Outro exemplo: ao me ver certamente te decepcionaste com tantas rugas, barriga e esta calva que carrego. Mas tuas primeiras palavras foram: ‘é bom vê- lo saudável e disposto!’ - E fui sincero. - Sim, sei que não mentiu. Agora pense nisso: focalizamos os pontos altos e ignoramos os pontos fracos, e isso é fundamental para uma boa convivência entre nossos semelhantes. O que prova que a franqueza absoluta não tem lugar entre as pessoas civilizadas. - O que tudo isso tem a ver com a rainha má? - Você consegue imaginar a pressão sobre Nisséia, que via diariamente o espelho lhe dizer “não há outra mais bela do que tu”? Entende como dia pós dia o espelho foi cevando este lado vaidoso da rainha, criando o vício da adulação? Ele a induziu, na sua insistência de só dizer a verdade, à uma competição feroz entre todas as mulheres do condado. Ali estava uma mulher sem filhos, que se casou com um viúvo oferecendo-lhe companhia e calor para os últimos anos de sua vida. O que essa mulher mais queria era ser desejada pelo seu esposo. Mas a convivência diária com o espelho produziu ao longo dos anos uma mente doente, maníaca pelo cetro da beleza eterna. - Que poderia ele ter feito diferente? - Poderia ter mudado de assunto, falado de beleza interior, sei lá. Deveria tê-la ajudado a criar outros valores. Alguma coisa como “bem você sabe que é impossível ser eternamente bela, mas para mim o mais importante é que você é a melhor patroa que eu já tive...” Isto a teria ajudado a encarar a vida de forma diferente, mais
  • 14. 14 equilibrada, já que a beleza é tão fugaz. Ah, meu caro, quão mais felizes seriam todas as mulheres se quebrassem de uma vez seus espelhos e não mirassem mais a si, antes aos seus semelhantes! Não mais perguntariam “quão bela eu sou”, mas sim “quão boa estou me tornando como mulher, mãe e etc.” Quão mais fortes ficariam para encarar a velhice se vissem a si mesmas crescendo em ternura, companheirismo, habilidades na cozinha – por que não? – aumentando em conhecimento, participando em projetos comunitários, pessoais e assim por diante. Mas, não! Lá vão elas, escravas do espelho, esse maníaco compulsivo que só analisa a forma. E veja as desgraças que colhem! - Senhor De Lyon, o senhor quase me convenceu de que a rainha má foi vítima de uma “insanidade temporária”. De qualquer modo acredito que o senhor é um perfeito rábula, no melhor sentido da palavra. Mas, há outras questões que gostaria que me respondesse. Por exemplo, como estão os anões hoje? - Vão bem. Continuam se apresentando junto, mesmo após a morte de Atchim e Mestre. - Como aconteceu isso? - Quanto ao Atchim, todos sabiam que era alérgico, mas não se tratava, ao contrário, trabalhava demais. Quando tinham aquela mina de diamantes era ele quem sempre ficava no escritório até mais tarde. Passava lá no fim de semana para ver se estava tudo em ordem, e adiantava um pouco o serviço que os outros deixavam para segunda. Aliás, esta mania de trabalhar foi a causa de seu divórcio, visto que a mulher reclamava muito a falta do marido. E, quando ele vinha, sempre chegava poeirento, suado e cansado. Já não bastava ser baixinho... dizia ela. - E ele nunca mais se casou? - Ele não, coitado. Há um boato, nunca confirmado, de que se amasiou com uma artista Argentina. Não sei. Agora, Dolores, sua esposa, arrumou rapidinho um Smurf e se mandou para outra estória. - Imagino que o Atchim morreu então de depressão...? - Não. Ocorreu que o grupo dos sete anões passou pela crise da venda da mina, que quase acabou com sua união. Depois o Atchim pegou um dinheiro emprestado com o Príncipe Encantado e abriu um sebo, muito bom por sinal, mas com todo aquele pó, foi a gota d’água para acabar de vez com a saúde do pobre ancião. Bastou três meses no meio daqueles livros velhos para contrair uma bronquite fatal. - E o Mestre? - Bem, ele se aposentou, como você sabe, com salário de professor nível um, já que tinha de estar sempre na mina e não podia avançar na carreira. Ele até que sobrevivia mais ou menos dentro daquele orçamento apertadinho, quando um dia o governo reajustou a aposentadoria em 1,5% no mesmo mês em que os remédios dele subiram 51 %. Aí não deu outra. - O senhor mencionou a “crise na venda da mina”. Como foi isso? Algum deles ganho comissão ilegal no negócio? - Olha, não há prova disso, mas algumas coisas ficaram muito mal explicadas. A mina ia bem, especialmente depois do desenho de Disney. Começou a chegar pedidos de toda a parte do mundo. Em determinado momento, quando os negócios começaram a se internacionalizar, alguns mega investidores começaram a enviar propostas de compra aos sete anões. A Dee Beers ofereceu uma bolada pela mina, mas todos recusaram, menos um, o Dengoso. A partir daí ele começou a insistir que era vantagem vender a mina, que era tolice tentar se manter no negócio de pedras, já que o preço oscilava muito, e também que não era bom enfrentar a Dee Beers como concorrente etc e tal. - E como conseguiu convencê-los? - Dengoso viajou para Pretória, Antuérpia e Tel-Aviv, trazendo várias planilhas de custo e catálogos com sistema de extração com robôs, e convenceu os demais de que em breve não haveria mais espaço para uma mina de sistema antigo como a deles. O
  • 15. 15 grupo acabou vendendo a mina de diamante excelente que tinham, e hoje tem uma mina de cassiterita em Rondônia. - E como é o relacionamento deles hoje? - Bem, eles sofrem muito com o calor infernal de Porto Velho, e volta e meia um deles fica doente. Depois, ficou um clima pesado para o Dengoso, pois após as negociações ele apareceu com muito mais dinheiro que os demais. Ele jura que foi uma herança recebida coincidentemente no mesmo ano em que intermediou a venda para a Dee Beers, mas ninguém entendeu direito essa história. O que se sabe é que ele comprou uma pousada numa região termal luxuosa, e hoje é dono de vários apartamentos de aluguel. Para amenizar o mal-estar ele sempre recebe os outros anões gratuitamente na baixa estação. Eles vão, e tudo o mais... Porém, que a moral do Dengoso não é mais aquela, ah, não é mesmo. Dengoso hoje é muito rico, e ninguém fica milionário impunemente. - Quanta verdade existe nos rumores de que uma máfia dos roteiristas novos estaria agindo aqui na Ilha da Fantasia? - Não existe esta organização que o senhor citou. Isto é uma invenção da imprensa americana que vive uma eterna teoria da conspiração. Nunca houve essa máfia, e nem Dengoso nem o Soneca tem alguma coisa a ver com isso. Gostaria, encarecidamente, que mudássemos de assunto. - Senhor De Lyon, conversamos muito, mas restam algumas perguntas sobre aquele dia em o senhor levou Branca de Neve à floresta para matá-la. - Preferia que não entrasse neste tema também, se pode me perdoar por isso. - Mas até hoje muitos se perguntam: 1 – Por que o senhor aceitou aquela comissão covarde? 2 – O que o fez mudar de idéia e deixar a menina escapar com vida? 3 – Qual era exatamente o animal que o senhor matou no lugar de Branca de Neve? Há uma discussão interminável entre se era um coelho, um veadinho, um alce. Há até quem diga que foi um javali. 4 – O que sentiu ao cumprir aquele ritual macabro de retirar o coração e o figado do animalzinho e levá-lo numa caixa para a rainha? - Senhor Lazarus, o senhor pergunta demais. A única coisa que estou posso lhe dizer é que se Branca de Neve está viva, deve isso a mim. Alguns me acusam de assassino fracassado e traidor, já que ludibriei a rainha. Não sou nem uma coisa nem outra, pois agi de acordo com a minha consciência e a menina sobreviveu e casou-se muito bem. O único prejudicado em toda essa estória fui eu, de forma que não admito essas acusações maldosas. - Perdoe-me se o irritei, senhor De Lyon. É que na minha profissão preciso fazer perguntas. - Meu caro, faça-as então ao espelho mágico, se é que tem estrutura para tanto. Quanto aos demais personagens, sugiro que tome cuidado. Agora o senhor me dá licença porque preciso tomar meus medicamentos e fazer minha inalação. Au revoir, mon ami
  • 16. 16 Segredos do Coelhinho Assassinado Nesse momento passou correndo um veadinho; o caçador matou-o, tirou-lhe o coração e o fígado.” - Versão original dos irmãos Grimm Estava planejando minha próxima entrevista quando chamaram-me pelo interfone do hotel. Era o sub-gerente preocupado, pois uns oitocentos coelhos estavam no saguão principal, exigindo minha presença num clima de revolta. O sub-gerente, Antonio Carlos de Magalhães, que era de fato quem resolvia tudo, estava avexado. Os manifestantes traziam faixas e gritavam palavras de ordem, chamando a atenção de todos. Perguntei se haviam chamado a polícia para evitar conflitos e ele confirmou que sim, mas que não podiam impedir a manifestação que até o momento era pacífica. Prometi descer logo, mas queria saber exatamente qual era a reivindicação dos coelhos. Disse-me o sub-gerente que a revolta parecia ser pela morte do coelhinho na estória de Branca de Neve. As faixas diziam: “Ressurreição Já!”; “Coelhos Unidos Jamais Serão Vencidos”’; “Morte aos Veados!”; “Mangueira – Onde é que Estãos Teus Tamborins, Ó Nega?” e coisas assim. Bem, pelo menos agora eu sabia o que iria enfrentar. Avisei que me encontraria com uma comissão de no máximo 50 coelhos e seu líder. Só os atenderia se os demais liberassem a entrada do hotel e aguardassem tranqüilamente na Praça da Paz Celestial. E por fim solicitei o uso do salão nobre de conferências no sub-solo para resolvermos este abacaxi, no que o sub-gerente imediatamente concordou. Quando desci já sabia que o líder deles era um coelho de olhar esbugalhado, cabelo desgrenhado, e chamava-se Paulinho Vicentão. Era presidente local da SPCC, a Sociedade Protetora de Coelhos, Chinchilas e Afins eleito pelas comissões de toca. Na verdade o nome da figura era Paulo Vicente Matarazzo, mas na Ilha da Fantasia os sindicalistas imaginam que só serão respeitados pelos companheiros se usarem apelidos de bar, jamais usarem gravatas e sempre parecerem pobres, por maior que seja seu salário. Consideram o fino da bossa aparentarem ser proletários que sobrevivem heroicamente numa luta incessante contra a opressão do sistema. No caso dos coelhos a imagem de proletários era de fácil visualização, pois de prole eles entendiam. São todos gente boa, nem fica bem falar, mas padecem de um preconceito absoluto com qualquer que não seja correligionário ou membro do partido. Assim como os religiosos fundamentalistas rotulam seus interlocutores de infiéis, ou pagãos, os coelhos usam a alcunha depreciativa de “burguês” aos que não rezam sob sua cartilha. Confesso que até hoje procuro entender o que significa exatamente este termo, mas acredito que isto deva ser pior do que discípulo do capeta. Houve épocas que eu me imaginava burguês só por fazer a barba diariamente. O fato é que ali estava eu, prestes a me envolver numa polêmica absurda sem a menor idéia de aonde tudo aquilo me levaria. O Pensamento da Família do Coelhinho Assassinado
  • 17. 17 - Senhores, estou à sua disposição. Como posso ajudá-los? - Seu Lazarô a gente temos um pobrema urgente a tratar com o senhor, e, por favor, não tente nos enrolar porque a gente não vamos embora sem uma solução do nosso causo. - Companheiros, permitam-me primeiro cumprimentar a todos vocês pela garra na sua luta. Eu também sou um trabalhador e acredito na força dos trabalhadores para fazermos do mundo um lugar mais justo. (gritos e aplausos abriram meu sorriso e notei que o clima já ficava mais ameno para mim). Agradeço muito que tenham me procurado, embora não saiba o motivo. Mas tenham certeza de que farei o possível e o impossível para junto lutarmos contra a opressão burguesa. Aliás, nunca vi tantos coelhos assim num auditório reunidos. Por favor, sentem-se todos e fiquem tranqüilos que tudo será resolvido. Agora, dêem só um minutinho... [Chamei Romeo Thurma, o chefe da segurança, e pedi que trouxesse lanche, café, bolo de cenoura e água para todos ali. Calculei que devíamos estar com mais ou menos 80 pessoas. Autorizei que o ACM colocasse tudo na minha conta, e tinha certeza de que ele cobraria alto esta fatura.] - Continuando, seu Paulinho Vicentão, agora por favor diga-me exatamente: qual a queixa de vocês? - Acontece seu Lazarus que assassinaram um dos nossos, sem maiores explicações. O caçador, esse tal de Francisco de Lyon, matou Tamborim, um coelhinho de menor, sendo que o roteiro original exigia que fosse um veadinho. Por isso tamos revoltados. Somos todos parente dele e não aceitamo esta situação. - O que o senhor era de Tamborim? - Tio. E os pais dele, Tambor e Agôgo estão com a gente aqui. [Apontou-me um casal de coelhos abraçados na primeira fileira do auditório. Ele, um coelho meio-idoso, esguio, de ar grave, indignado. Ela, uma coelha negra de olhos marejados, recostava-se no marido e me olhava diretamente como que aguardando resposta a um clamor não pronunciado. Ambos envelhecidos pela dor. O pai se levantou calmamente, e neste instante fez-se um silêncio assustador no salão. Quando o vi caminhar até mim, adiantei-me para evitar que andasse tanto e o cumprimentei com ambas as mãos. Havia nele uma dignidade do Mandela saindo de sua longa prisão]. - Perdoe-nos envolvê-lo em nossa tragédia pessoal, seu Lazarus. Espero que nunca venha a sentir na pele o que significa perder um filho assim tolamente. O que dói mais é saber que se alguma coisa não for feita isto vai continuar acontecendo. Eu aceitei o apoio do sindicato nesta luta não só pela memória do Tamborim, mas também para que outras vidas jovens não se percam de modo tão banal. Sabe, Tamborim era um coelhinho cheio de vida. Naquele dia eu o chamei prá gente jogar bater uma bolinha no campo do Morro Doce. Era sábado. Ele disse que não podia ir pois tinha de entregar na segunda-feira um trabalho de matemática que ia preparar com os filhos do Pernalonga. Ele amava a escola, seu Lazarus... [ abaixou a cabeça ] Por que isto teve de acontecer justo com um rapazinho tão bom? Há tantos maloqueiros no mundo e não acontece nada com eles! Por que estes roteiristas tiveram de escolher justamente o nosso filhinho? Por que não pegaram um personagem coletivo...? [Pus minha mão sobre o seu ombro.] - Sei como deve ser duro...
  • 18. 18 - Desculpe, seu Lazarus, mas o senhor já teve um filho assassinado? Penso que não. O senhor não sabe o que é ouvir sua mulher dizer, mesmo depois oitenta filhotes e vários anos: ‘hoje Tamborim faria 17 anos...’ O senhor não tem idéia do que é ver uma turma de rapazes andando pelo shopping e pensar que seu filho poderia estar ali entre eles, no meio daquela algazarra. Fica se perguntando: que aparência ele teria hoje...? E sabe que nunca terá esta resposta... O senhor tem idéia do que é viver com esta lembrança dia após dia? [Ao falar o maduro coelho deixou correr um lágrima livremente. Abracei-o e verti uma lágrima solidária também, decidindo naquele momento fazer tudo ao meu alcance para reparar – até onde fosse possível – essa injustiça. Todos ao redor respeitaram aquele minuto num silêncio total, petrificados. Aos poucos voltamos a conversar num tom normal]. - Seu Paulinho Vicentão, o que se pode fazer num caso destes? - Seu Lazarus é o seguinte: a gente não vai aceitar parado a morte de Tamborim e queremos justiça. Só isso. - Mas não fui eu que escrevi a estória. E, além disso, qual é a fábula boa que não tem morte? - A gente sabemos que o senhor não é o autor, mas o senhor é jornalista e pode levar nossa exigência pro pessoal de Hollywood e para as editoras. Sabemos que veio à Ilha da Fantasia fazer uma pesquisa. A gente sabemos também que o senhor vai publicar um livro no fim de tudo. Então queremos um compromisso seu na frente dos companheiros, tomando o nosso lado nessa luta. E encaminhe aos roteiristas novos um protocolo pela ressurreição de Tamborim. - Vamos com calma. Em primeiro lugar preciso estar certo de uma coisa: foi realmente um coelhinho ou um veadinho, a vítima? - Olha, na versão original era um veadinho. Mas essas associações que surgiram agora defendendo os direitos desta turma conseguiu numa jogada de bastidores mexer no roteiro e, quem pagou o pato foi o coelho. A gente até compreende que a morte faz parte da vida, tudo bem. Mas não estamos em Hamlet, ou Macbet para filosofar sobre a morte. Estamos numa estória infantil que precisa se ater ao manuscrito original, entende? De forma que não tem o menor sentido matar um coelho jovem sem a menor cerimônia, pôxa. E a pureza textual? E a reputação dos coelhos? Um outro companheiro, um tal de “Barba”, que depois descobri ser 35º secretário do sindicato intervém revoltado: - Tem uns roteiristas que colocam um alce, ou um esquilo, ou um javali como vítima. Mas o que importa para nós é que muitas versões estão saindo com a morte de Tamborim. E outra: precisamos acabar com essa polêmica, porque desse jeito a gente não chega a lugar nenhum. Estas versões foram colocadas pelo pessoal da terceira via que sempre está contra nóis. Mas a gente tamos unidos agora, e vai ser duro se livrar da gente enquanto não trouxerem o Tamborim de volta. Já não basta a humilhação de usarem nossa imagem sem autorização legal pela Playboy, que além de nos dar a imagem de sem-vergonhas, não recolhem nem um centavo pro nosso sindicato. Está é outra briga que a gente trava há muito tempo, mas se Deus quisé vamos vencer também. - Algum roteirista já fez uma proposta de negociação com vocês? - Sim, eles tentaram colocar uns pano quente no lançamento do Bambi. - Como assim? - Convidaram Tambor para o filme de Bambi, dando-lhe mais destaque do que o roteiro original previa, e um cachê extra, a título de indenização pela morte de Tamborim. Também disseram que a morte da mãe do Bambi era uma compensação moral, e isto equilibraria as coisas: a morte do veado pagou o sangue do coelho. Tambor chegou a assinar um contrato em que se comprometia a encerrar essa queixa,
  • 19. 19 e assim tudo ficaria bem. Só que dois dias depois das filmagens ele se arrependeu de ter trocado a vida do filho por dinheiro e devolveu toda a quantia, impugnando o contrato na justiça – que glosou o acordo, e tudo voltou à estaca zero. - E o que a família quer, se não é dinheiro? Paulinho Vicentão responde: - A gente exigimos a ressurreição de Tamborim! A platéia de coelhos sindicalizados começou a repetir em coro: “Violência vai ter fim, ressurreição pro Tamborim! Violência vai ter fim, ressurreição pro Tamborim!” Após um instante de empolgação, o Barba pediu silêncio e a conversa prosseguiu. - Mas vocês não tem idéia do que estão pedindo! Isso é totalmente impossível. Não há como fazer um reviravolta tão grande numa estória. - Ah, não? E como é que a Branca de Neve ressuscitou? E a Bela Adormecida, não foi desperta de um sono eterno? E a Fênix grega ressurgindo das cinzas? Outro companheiro com o punho cerrado bradou: - Até para o Super-Homem teve ressurreição! Paulinho Vicentão retomou a palavra: - Olha, seu Lazarus: ressurreição nunca é pobrema para os protagonistas branco e rico. Agora tem de fazer prá personagem coadjuvante pobre e pardo. Caso contrário a gente acampa aqui neste hotel até ser atendido. - Tudo bem, vamos com calma. O pedido de vocês é meio estranho, porém válido. Agora preciso de um instrumento, quero dizer, como é que vamos fazer exatamente para chegar lá? Toma a palavra um coelho sóbrio, engravatado, de voz mansa, que até então tinha ficado calado. - Senhor Lazarus, permita que lhe mostre duas pastas. A primeira tem cópia do processo que impetramos. Trata-se de uma ação popular que exige do governo a recriação de Tamborim, inclusive com a mesma cor que tinha ao morrer. Já ganhamos em última instância, mas o processo ainda não saiu em transitado e julgado. Em vista da lentidão da justiça aqui, apelamos a um tribunal internacional de direitos das minorias. Na parte final desta pasta o senhor vai encontrar a queixa apresentada à Corte Européia de Justiça, onde fomos muito bem recebidos. Os juízes ali nos disseram que moralmente já ganhamos a causa, mas nossa ilha não está dentro da área de competência deste tribunal. - E o Príncipe Encantado, que pensa sobre tudo isso? - Ele é ótima pessoa, e tem a mente democrática. Sabe que estamos certos no nosso pleito, e nos dá todo o apoio moral. Mas, como o sindicato é de esquerda, ele não pode agir publicamente a nosso favor sem atingir sua base parlamentar. Quer dizer, o congresso o deixa de mãos atadas neste caso. - Entendo. E a segunda pasta, o que contém? Falando ainda mais baixo, ele se aproximou ainda mais, olhando-me direto nos olhos, e disse: - O nó desta história toda é o envolvimento da máfia dos roteiristas novos, que o senhor já conhece. Pois bem, foram eles que causaram a morte de Tamborim, ao mudar o enredo tradicional de nossa lenda. Acreditamos que só o líder deles pode reparar esse engano trágico. Pelos meio normais jamais conseguiríamos pagar a taxa que eles estão cobrando para nos devolver Tamborim com vida. Mas, se um humano como o senhor interviesse pessoalmente talvez o resultado seja positivo. Nesta pasta
  • 20. 20 o senhor tem um dossiê com diversas informações sobre a máfia dos roteiristas novos e sua atividade nos últimos anos. Há nomes e endereços que não podem cair em mãos erradas. É claro que temos cópia deste material guardado em local seguro. Mas, queremos que o senhor chegue até o poderoso chefão e o faça saber do material que temos. Diga-lhe que prometemos destruir este dossiê assim que Tamborim retornar com vida. - Ou seja: vocês querem que eu chantageie um chefe mafioso? - Exatamente. - E que garantia dão de que escaparei vivo dessa? Silêncio total enquanto eles trocaram olhares entre si. Não precisavam dizer nada, a resposta era óbvia. - O que podemos fazer pelo senhor, caso aceite esta missão, é deixar-lhe hoje uma lista com o telefone e endereço de todos os personagens que o senhor quer entrevistar, neste disquete prata. Sabemos que este material lhe será muito útil. Esperamos que o senhor decida rapidamente, pois este disquete se autodestruirá em quinze minutos. - Ok, você venceu! Não prometo que dobrarei os assassinos, mas lutaremos juntos para resgatar Tamborim. Peço apenas o seu apoio logístico e sigilo quanto aos detalhes de nosso acordo para que os reacionários não se antecipem a nós. Quando disse isso eles vibraram e aplaudiram minha decisão. Abriram garrafões de vinho Sangue de Boi e logo se iniciou uma grande festa. Até eu me emocionei, por ter assumido uma causa tão nobre. Carregaram-me nos braços e, quando dei por mim estava num palanque improvisado em cima de um tanque, que não sei de onde surgiu, no centro da Praça da Paz Celestial. Assim, me jogaram um microfone na mão e improvisei um discurso que saiu mais ou menos assim: - Trabalhadores da Ilha da Fantasia! Se é para o bem de todos, e para felicidade geral da nação, diga aos coelhos que fico! [aplausos] Eu tenho um sonho...! ...De que coelhos e roteiristas viverão em paz aqui. Imaginem não haver fronteiras! Imaginem não haver inferno e nem céu! Cada um vivendo sua vida em paz. Dizem que eu sou um sonhador, mas eu sei que não sou o único! Por enquanto só posso lhes prometer uma coisa: sangue, suor e lágrimas. Mas juro, no altar da minha consciência, fazer de tudo para trazermos Tamborim de volta! Como faremos isso, o tempo dirá. Porém, não importa a cor do gato, contanto que ele pegue o rato. Até lá, a única coisa que devemos temer é o medo... Ovacionaram-me por minutos a fio, e só com muita dificuldade consegui sair dali. No dia seguinte continuei meu serviço normalmente, torcendo para que os coelhos não me descobrissem em meu novo endereço.
  • 21. 21 Segredos de Soneca “O sétimo anão dormiu.” - Versão original dos irmãos Grimm Na lista que encontrei no hotel achei o endereço e telefone do Soneca. Era o anão que eu tinha mais vontade conhecer. Sempre me deu pena aquela carinha meiga, bocejando e com um ar de quem não está entendendo nada do que se passa ao redor. Escolhi-o como primeiro anão a ser entrevistado. Mas certamente não estava preparado para as surpresas que me aguardavam. Soneca, cujo nome real é D. Seumoney encontrou Jesus e mudou muito. Não era mais aquele ingênuo sonâmbulo. Na verdade, conforme verão, ele ficou esperto. Esperto até demais. Havia um burburinho na Ilha da Fantasia devido à nova religião do Soneca: Assembléia da Congregação Universal Cristo é Grana. Esta nova fé crescia rapidamente. Em todos os bairros os melhores salões já pertenciam à família, que era como eles se referiam a si mesmos. O movimento acendia paixões de amor e ódio. Os tradicionalistas apontavam para estes novos crentes acusando-os de heresias e de serem o anticristo, o falso profeta, predito pelas Escrituras. Estes, por sua vez, se viam como iluminados, comissionados por Cristo para levar a verdade revelada ao mundo, sendo os santos modernos escolhidos para salvar este mundo mau. Como Soneca entrou nessa? Que interesses o movia a se apresentar como religioso fervoroso? Quanto sucesso estaria tendo na sua luta pelos pobres, que segundo informaram-me, era sua causa principal? Tais eram minhas dúvidas quando me dirigia ao apartamento de cobertura duplex, num condomínio fechado que ficava na periferia da ilha. Lembrei-me de tê-lo visto algumas vezes pela TV, falando com voz mansa, num tom um pouco afetado, referindo-se aos pobres e à necessidade de justiça social. Vi-o orando também, com gestos largos, vestindo um discreto risca-de-giz italiano, e em seguida oferecendo seu CD e coleção de vídeo. Quando me recebeu, com toda a fidalguia, notei que seu tom de voz ficou normal, sem aquela afetação do púlpito, quando eu lhe garanti que nada iria ser gravado. Mesmo aqueles gestos de abrir as mãos simetricamente, levantando-as e fazendo-as se encontrar junto ao peito, é só coisa de palco. O homem é muito simples, de olhos muito vivos, mas com enormes olheiras. Disse que apesar de estar com a agenda cheia para aquele dia, conceder-me-ia quarenta minutos, pois seu assessor financeiro iria demorar-se um pouco mais do que o previsto no Citi Bank. O Banco vai financiar a montagem de um mega evento para dois milhões de pessoas. Soneca estava muito otimista com este show gospel, pois assim espera superar a marca de público que a visita do superbispo de outra igreja famosa conseguiu no começo do ano.
  • 22. 22 Como Soneca Fundou a Igreja “Cristo é Grana!” - Senhor D. Seumoney, milhões de leitores o conhecem como Soneca, e gostariam de lhe fazer algumas perguntas. Eu venho em nome deles, numa missão de paz. Diga, por favor, que impressões ainda guarda por ter vivido este personagem em Branca de Neve? - Bem, quero primeiro enviar um caloroso abraço a todos estes nossos leitores espalhados pelo mundo. É muito gratificante saber que as pessoas ainda nos guardam carinho por um trabalho feito já há alguns anos, mas feito com muito amor. Quanto às minhas impressões, são as melhores possíveis. Soneca é um personagem que inspira ternura, e a ternura é atitude que enobrece o homem, diferindo-o dos animais, e tornando a vida mais fácil de ser vivida. - Hoje o senhor é um líder espiritual para milhares de pessoas nesta ilha. Como descobriu sua vocação religiosa? - Para falar a verdade, jamais havia me preocupado com assuntos espirituais. Talvez seja uma surpresa para muitos de seus leitores, mas o fato é que levei uma vida devassa até poucos anos atrás. Tinha amantes, apostava em cavalos, fumava, bebia muito e tudo o mais. Assim, o Diabo estava me pondo como um dos seus mais ferrenhos seguidores. Até ganhei muito dinheiro com agiotagem, mas hoje graças a Deus, não preciso mais disso: possuo um Banco, ganho juros maiores, tenho menos riscos e sou muito mais respeitado. - Neste período, seu serviço de agiotagem chegou a atrapalhar suas atividades como personagem? - Sim, pois os outros anões sempre foram pobres. Não é que ganhavam mal, pois tinham a mina de diamantes. É que não sabiam administrar o dinheiro. Daí que sempre me pediam emprestado. Acredita que chegou um dia que todos – exceto o Dengoso – me deviam? - E isso não afetava o clima entre vocês? - Sim, e muito. Não que eu ficasse pressionando a turma. Eu sabia que eles iam pagar, mas eles mesmos se sentiam desconfortáveis com os juros correndo mês a mês. Ainda bem que vendemos a mina, apesar de que eu fui contra na ocasião. Mas, graças a isso todos acertaram comigo, e não precisaram mais de dinheiro. Hoje a gente quando se reúne só trata de fofocar e dar risada do passado. Só o Dunga ainda deve alguma coisa, mas aquele é assim mesmo. Mas é sangue bom, o coitado. - Naquela época o senhor conseguiu ficar rico? - Olha, rico rico, não. Agora, montei umas quatro firminhas, comprei vários imóveis e viajei muito. Só que devido a vários processos na justiça, comecei a gastar muito com advogados e a coisa piorou tanto que tive de vender duas empresas e a casa da praia para escapar da prisão. Os advogados pareciam uns alucinados. Exigiam de mim honorários cada vez maiores e ao mesmo tempo minha renda começou a despencar. Passei a beber muito e a usar drogas. Por isso aparecia sempre no estúdio completamente chapado. - Então vem daí o apelido Soneca? - Isso mesmo. Foi um período terrível para mim. Até minha mulher já havia desistido de mim, e mudou-se com as crianças para a floresta de Chapeuzinho Vermelho, onde a vovó, que era sua parente também, a recebeu naqueles anos difíceis. Numa noite chuvosa, desesperado, tentei o suicídio ouvindo Raimundo Fagner, Ivan Lins e Xuxa. Pus no automático do meu som, enquanto tomava uma overdose de tubaína Xereta, com biscoitos recheados de terceira linha. Estava certo de aquilo seria o meu fim, mas pelo menos, pensava eu, ficaria livre daquele labirinto em que havia entrado. O pior foi que sobrevivi, só que acordei completamente chapado.
  • 23. 23 - Entendo. Suponho que depois um anjo apareceu do céu e o nomeou arauto de uma nova fé... - Não. Eu liguei a TV pela manhã e descobri algo incrível: a programação matinal consegue ser pior do que a da madrugada. Só tinha desenhos repetidos n vezes e pregadores alucinados. Na falta de opção ouvi um pastor com tipo de professor de aeróbica e então algo me marcou para a vida toda. - O senhor descobriu que Cristo o amava? - Melhor: descobri que eles enviavam um boleto bancário para qualquer um que ligasse naquele exato momento e quisesse patrocinar a igreja. Você poderia dar apenas F$ 30,00 por mês, e Cristo lhe abriria várias portas. Isto me tocou profundamente. - Como assim? - Bem, eu fiz as contas: se dez mil pessoas estivessem vendo o programa como eu naquele momento, e dez por cento destes ligassem pedindo o carnê, já seriam mil pessoas. Se dessas mil, apenas a metade fosse de fato ao banco naquele dia, e pagasse o esperado, a Igreja faturava F$ 15.000,00 de uma tacada só. Poxa, F$ 15.000,00! E eu com minhas dívidas precisava naquela semana de só F$ 7.500,00! Então entendi que Cristo estava me dando um sinal. - Sinal? - Sim, uma chamada, não entende? Carisma eu já tinha. Oratória eu sempre dominei. Faltava-me apenas um produto de ampla aceitação para dar a volta por cima. E a fé era precisamente isso. - Então sua conversão deu-se para resolver seus problemas financeiros? - Naturalmente! - Isto não lhe parece um tanto cobiçoso? - De modo algum, filho. As Escrituras dizem em Provérbios 2:4: ‘busque a sabedoria assim como se busca o ouro e a prata’. Dizem também que a verdade é uma pérola de grande valor! Mostra que a cidade santa, a nova Jerusalém no Apocalipse é uma cidade cuja praça é de ouro puro. Já imaginou? Uma praça de ouro puro! Eu apenas estou montando lá em casa uma pequena parte desta cidade santa. - Então o senhor acha legítimo usar estes trechos bíblicos para fundamentar seu materialismo “cristão”? - Sim, e senti que desde o dia em comecei a levar a palavra, o Senhor não me abandonou. Comecei sózinho na rua, e enquanto falava deixava meu chapéu disponível para os que quisessem ajudar a obra de Deus. Em duas semanas eu já pude alugar um salãozinho em que cabiam umas trinta pessoas. A partir daí, nunca mais a bênção faltou na minha carteira. - Mas não lhe parece ousadamente carnal esta filosofia? Quer dizer, até o nome de sua Igreja, “Cristo é Grana”, não soa um tanto estranho para uma igreja? - Meu caro, os visonários são os que revelam coisas que outros escondem. Claro que a fé é muito maior do que apenas este título. Mas, quando a fome aperta, quando seu filho pede um brinquedo, quando você tem alguém doente em casa, ou decidiu que é hora de comprar um carro melhor, então percebe a verdade cristalina: sem dinheiro não dá! Neste exato momento compreende claramente: Cristo é grana! Todo o resto é secundário. - Não haveriam outros valores na vida além do dinheiro? - Claro: ouro, dólar, ações, imóveis... Tudo isso é bênção do Senhor para os que tem fé. Mas, antes é preciso dar uma oferta, para que Cristo veja que você realmente acredita nele. Isto enriquece aquele que busca a Deus. Veja, até Ariel Minerva, a Branca de Neve, freqüenta nossa igreja. E foi isso que salvou seu casamento. Aliás, Jesus a livrou daquela bruxa que tentava matá-la, sua madrasta. Aquilo era o Diabo, mas agora ‘tá amarrado’, em nome de Jesus!
  • 24. 24 - Muitos tem criticado sua Igreja de reduzir o cristianismo à uma simples questão monetária, esquecendo princípios morais. Sabe-se que há vários processos abertos contra a Igreja devido a fraudes fiscais, comprar irregular de emissoras de rádio e TV. O que o senhor diz sobre isso? - Aleluia! É como diz o meu primo Dengoso, outro que também é perseguido sem motivos: só atiram pedras em árvore que dá fruta! Paulo de Tarso foi perseguido. Estevão e muitos outros também. Toda essa crítica apenas nos mostra que estamos no caminho certo. - Mas estes cristãos antigos foram perseguidos por levar a boa nova do Reino de Deus, e não por fraudes contra o governo. Pregavam a fé em Cristo como o Salvador da humanidade, que trará novos céus e uma nova terra, ao passo que o senhor enfatiza o sucesso financeiro aqui e agora. Como explica essa diferença? - É óbvio que Paulo, Pedro e outros levaram um evangelho diferente do nosso. Entenda, meu caro: o grão precisa morrer para dar lugar a planta. Se ele não desaparecer, será apenas um grão. A igreja primitiva lançou a semente. Esta semente morreu, meu caro, para dar lugar à nova igreja, rica, próspera, e com pastores ganhando F$ 5.000,00 por mês para louvar ao Senhor! Esta é a evolução da fé cristã! Como Paulo e os outros vivendo numa época primitiva e ignorante poderiam entender o novo evangelho do dinheiro? Eles tiveram sua época e fizeram um trabalho maravilhoso. Mas eram apenas pescadores simplórios. Agora o Senhor escolheu a nós para levar ao mundo novas boas novas: “entregue seu coração a Jesus e seu talão de cheques para mim!” - Bem, se a bênção vem em forma de grana, o senhor deve ser um homem muito abençoado, não? - Glória a Deus! Tenho alguns carrinhos, duas casas ‘razoáveis’, um sítio em Atibaia e algumas outras coisinhas. E louvo o Senhor por isso. Mas, ao contrário do que possa parecer, não sou materialista. Por exemplo, sempre oro antes de sair com minha Corvete, e sempre recito um salmo antes de mergulhar na piscina da minha cobertura. - Puxa, quanta fé! - E tem mais. Meus bens na verdade, foram consagrados a Deus. - Como assim? - Eu os ofertei à Igreja, assim as casas, carros e tudo o mais estão em nome da Fundação Irmãos de João Batista Humildes. Eu apenas sou um mordomo das coisas de Deus. - Então na verdade, o senhor é pobre? - Paupérrimo! E posso mostrar minha declaração de bens para comprovar isso. Para ser franco, tive até restituição no ano passado, pois oficialmente vivo apenas de uma pensão do governo, que fiz jus quando era um drogado incapacitado. - É lindo ver como Deus opera maravilhas aos que trilham Seus caminhos! - O senhor, por exemplo, seu Lazarus, não tem problemas financeiros? Há algum alvo que tenta atingir? - Sim, na verdade sempre quis editar meu livro, mas nunca tive verba para bancar a edição. - Quanto seria necessário para o seu projeto? - Hum..., talvez uns F$ 3.000,00. Algo próximo disso. - Então, entregue seu coração a Jesus e ... - Sim, já sei o resto... - Basta ofertar ao Senhor F$ 300,00 agora! Enviaremos para o monte Hermom, de onde o Salmo diz que sai o orvalho do Senhor, e lá setenta monges encapusados, que vivem apenas de oração abençoarão suas notas. Na fogueira santa queimaremos seu pedido e o dinheiro guardaremos na Suíça. Demonstre fé e verá como rapidamente seu livro será editado! - Deus não pode ouvir minha oração daqui mesmo? - Claro que sim. Mas neste caso perderíamos esta boquinha. - Quer dizer, basta lhe dar meu salário de dois meses que tudo acontecerá?
  • 25. 25 - Naturalmente é preciso ter fé. Claro que sua fé também vai movê-lo a correr atrás das editoras. Mas, verá então como a luz divina, contida numa pedrinha vinda especialmente das montanhas sagradas do Tibet, vai lhe abrir as portas. - Quer dizer, se eu não me esforçar, nada acontecerá, certo? - Certo, mas tem que haver a fé junto com o dinheiro. Estamos redigindo uma nova tradução da Bíblia que vai citar Tiago assim: “a fé sem grana está morta.” - Bem, vejo que o senhor faz citações muito livres da Bíblia, torcendo bastante a idéia do contexto. Todos sabem que Jesus nasceu numa manjedoura, e que não tinha onde encostar a cabeça. Pedro também disse a um mendigo que lhe pediu esmola, que nada tinha de bens, mas deu a ele o que podia, que foi fazer um milagre para que voltasse a andar. E Tiago disse que a fé sem obras está morta. O senhor considera honesta esta teologia do dinheiro? - Olha, eu não vou discutir a Bíblia aqui, pois já vi que você é um materialista sem fé, que não crê na luz que vem do alto. Mas, tudo bem. Continuarei orando por você com amor cristão. Quer um conselho? Vá hoje mesmo na Igreja Cristo é Grana e verá Jesus operar maravilhas no nosso caixa. Tenho a certeza de que sairá de lá muito mais feliz. - E o que é que acontece exatamente no seu culto? - Pulamos! - Como assim? - Ora, pulamos. Esta é uma técnica usada por todas as religiões primitivas a fim de levar seus membros ao êxtase. As tribos africanas são quem melhor usa isso. Você começa num ritmo lento, a cantiga vai se repetindo, o refrão vai ficando mais alto, mais rápido, a fumaça do incenso ajuda o pessoal a ficar embalado, até que fenômenos começam a ocorrer. As mulheres começam a chorar, e tudo é muito lindo pois qualquer coisa que você disser então vira verdade absoluta. É incrível. - Então é por isso que tantas religiões estão levando a turma a pular cantando refrões infantis? - Perfeito! É o mesmo princípio de aeróbica na praia, ou num concerto de música popular. O importante é fazer o pessoal pular. - E vocês usam isto para embriagar as pessoas com sua fé? - Exatamente! E Glória a Deus! - Glória a Deus...! Senhor D. Seumoney, eu ainda tinha muitas perguntas a fazer, mas não posso continuar agora. Mando o restante depois, por escrito. De repente deu-me um enjôo, e não estou sentido-me muito bem. Desculpe. Onde tem uma pia? Preciso correr, acho que não vai dar tempo. Segredos da Rainha Má “Ela não podia suportar a idéia de que alguém a sobrepujasse em beleza”. - Versão original dos irmãos Grimm
  • 26. 26 À medida que meu trabalho avançava, as dúvidas continuavam. Onde estaria vivendo hoje, Branca de Neve e seu consorte? Teria o casal sido feliz para sempre? Em caso afirmativo estariam dispostos a nos contar num livro, o segredo da felicidade eterna no casamento? Neste caso certamente seria um best-seller. Já imagino o título: “O casamento feliz – dicas de quem vive nele”. E o Príncipe Encantado? Como seria pessoalmente? Que personagem interessante deve ser! Tantas vezes sonhado, desejado e nunca alcançado, por uma tão grande legião de mulheres! O que não pagariam para poder estar face a face com ele! Mas, o que teriam diante de si, de fato, se o encontrassem? E os outros anões? Será que ainda cantam ao trabalhar? Que segredo possuem para sua longevidade? Tomam ginseng? Caracu com ovo? Iorgute amargo às 5 da manhã? Será que já se aposentaram? Neste caso, que mágica fazem para sobreviver com a pensão do INSS? Será que curtem a terceira idade? Seria verdade que freqüentam o matusalêmico Baile da Saudade, aquele arrasta pé freqüentado por Doryan Gray e dirigido pelo eterno Franciesco Petrônius? Eram tantas perguntas e tão poucas respostas! Queria encontrar a rainha má para prosseguir minha investigação, mas seu endereço não constava na lista que os coelhos haviam me dado. Todavia fui ajudado por uma destas sortes que só acontecem com anões do orçamento que ganham 50 vezes na loteria esportiva. Estava saindo de um supermercado Pão de Açúcar (perdoem a redundância, já que hoje na Ilha da Fantasia todo supermercado é, independente do nome na fachada, um Pão de Açúcar no final das contas), quando encontrei um velho amigo jornalista, Orestes de Mesquita Frias. Ele estava assim como eu comprando vinho. Enquanto ele passava seu Beaujolais Poully-Fuissé, eu saía prosaicamente com meu San Tomé de F$ 1,50. Não é incrível? Pois bem, realizamos aquele papinho descartável de formiga quando cumprimenta rapidamente outra formiga. Mas, assim que soube que eu procurava a rainha, disse certeiro: “Toda rainha mora num castelo. Já procurou nos arredores da cidade em algum castelo novo?” Era isso! Na estrada sul havia um castelo novo no Magic World Park, um desses parques temáticos que custam os olhos da cara. Certamente com toda a estrutura dessas grandes empresas, ali haveria uma rainha de plantão. Por que não Nisséia, a rainha má? Foi assim que a descobri, e ela me recebeu muito bem, ainda que surpresa de que alguém ainda se preocupasse com sua atuação na estória de Branca de Neve, depois de tantos anos. Apesar de não poder prolongar muito a conversa, já que é diretora de eventos e trabalha como louca, foi muito gentil comigo. Tem um pique e uma inteligência impressionantes. Ao fim de minha visita mudei totalmente meu conceito sobre Nisséia. Acho difícil vê-la como bruxa. Nem consigo mais me referir a ela como “rainha má”. Não especialmente depois que ganhei um par de entradas para passar um dia inteiro no parque com tudo pago. Aquela bela e madura mulher, para mim era, sob vários aspectos, absolutamente encantadora.
  • 27. 27 Como a Rainha Má se Tornou Gerente de Eventos - Majestade, reparei que seu trabalho é bastante corrido. Já pensou em parar um pouco, para descansar? - Em momento algum! Meu caro, com as despesas que tenho, como posso pensar em parar? - Mas a senhora não tem filhos. A renda de seu marido não lhe permite viver tranqüila? - Acontece que não gosto de depender dele para cada bolsa Vitton, ou toda vez que troco de carro. Sabe, gosto de eu mesma fazer estas despesinhas. Além do que Celsinho, meu atual marido, é o tipo ausente, que viaja muito. Pode notar que mesmo na estória de Branca de Neve ele pouco ou nada aparece. É o jeitão dele. Fazer o que! De modo que meu trabalho é minha terapia, o senhor compreende, não? - Claro que sim. Ainda sobre o seu trabalho, como decidiu entrar nesse ramo? - Só um segundinho, por favor... - Alô! - (...) - Não, não, não, não... Pode cancelar! De jeito nenhum! - (...) - Eu sei, mas os Metralhas me ligaram ontem e já reservei o três andares para eles. Vem todo mundo: o 1313, o vovô Metralha, os Metralhinhas, todo mundo - (...) - Também gosto do Patinhas, mas como eles não convivem no mesmo hotel eu não posso dispensar uma família que gasta dinheiro como ladrão por um escocês pão- duro. - (...) - Nem pensar! Se eu deixo as duas famílias juntas aqui, no dia seguinte a gente vai aparecer no caderno policial. Sem chance! - (...) - Sei lá o que você vai dizer pro Patinhas! Diz qualquer coisa. Fala que o preço da estadia dobrou, sei lá. A questão é que com as contas que eu tenho sobre a minha mesa, não vou perder os Metralhas nestas férias. Lembra do conserto do elevador? O Fininho me liga toda semana cobrando... - (...) - Ok, deixa comigo. Se livra desta encrenca que depois a gente vê uma gratificação pro teu departamento. (Desligando). Desculpe, seu Lazarus, mas onde estávamos mesmo? Ah, sim, como entrei nesse ramo... Bem, depois de toda aquela celeuma na estória de Branca de Neve, minha reputação foi destruída. Meu marido viajava, como sempre, e meu nome saiu em todos os jornais da ilha como se eu fosse uma bruxa assassina... Os parentes se afastaram; Pedro Henrique se separou de mim... Até meu gerente cortou meu cheque especial, e sutilmente sugeriu que eu abrisse conta em outro banco. Fiquei completamente desnorteada. O senhor imagina, uma rainha de repente se ver sem ninguém ao seu lado para apoiá-la! Eu era a própria versão feminina de Rei Lear! - Mas, por que seu gerente a abandonou? - Por vários motivos. Que banco quer ter um cliente conhecido como criminoso quando isto se torna público? Houve também um problema com Francisco de Lyon, o caçador. Tive de sustar um cheque de valor alto que lhe dei como pagamento para que ele se livrasse de Ariel Minerva - que é como se chama a Branca de Neve. Ele me traiu, e ainda queria descontar o cheque! Essa eu achei demais! Quando ele soube que sustei o cheque, me processou em juízo. Por isso tive de mandá-lo embora sem direitos,
  • 28. 28 apesar de gostar muito dele. Foi uma fase muito dura para mim, como pode imaginar. Daí, tive de procurar me refazer psicologicamente, e como o Barão de Munchausen estava precisando de alguém com experiência aqui, vim de muito bom grado. Este emprego foi a melhor coisa que me aconteceu ultimamente. Depois dele foi que conheci o Celsinho e casei-me, pois sempre pensei o seguinte: antes mal acompanhada do que só. - A senhora se arrepende de ter mandado matar Branca de Neve? - Mas eu nunca mandei matá-la! Isso é uma grande confusão que fizeram em cima de uma briga de família. O que a imprensa não diz é que aquela sirigaitazinha (desculpe o termo), prepotente, que pensa apenas em si mesma, era uma inútil. Passava os dias reclamando que sentia saudades da mãe, que não tinha com quem conversar num castelo tão grande, que queria viajar, ser modelo, desfilar, que todas as suas amigas já eram modelo, que só ela ficava trancada naquela gaiola gigante (como ele chamava meu castelo) etc. etc. Um dia me enchi e disse para o caçador: “Leva essa guria para a casa das tias antes que a encha de tapas. Não volte aqui sem uma prova de que ela jamais retornará!” Foi isso que eu disse. E então ele fez aquela besteira tremenda. ... - Mas a versão dele é bem diferente da sua. - Ora, meu caro, acha que eu seria tão tola a ponto de planejar a morte de alguém e contratar um capanga que depois se tornaria testemunha contra mim? Certas coisas a gente tem que fazer sozinha para fazer bem feito. Além disso, eu seria incapaz de uma coisa dessas... - Bom, isto muda tudo. Mas ainda pesa contra a senhora a acusação de ser, como diria, uma... uma feiticeira, e que teria se aproveitado da ingenuidade de Branca de Neve, visitando-a disfarçada de vendedora e... - Eu sei, eu sei. Olha, eu já expliquei isso dezenas de vezes para o juiz do condado, mas ele nunca acreditou em mim. Só não me prendeu por falta de provas. Desde então esse homenzinho insignificante tentou me condenar por um crime que não cometi, até morrer ano passado por uma doença estranha. - O juiz que queria condená-la morreu então inesperadamente? Como foi isso? - Parece que ele comeu alguma fruta que lhe causou intoxicação alimentar, não sei direito. Mas prosseguindo nossa estória... Desculpe, o telefone de novo... - Sim? - (...) - Oi Bill! - (...) - Tudo bem, claro. - (...) - Ah, você notou? Obrigado. Foi só 150 ml. De cada lado. - (...) - Não, não, pára com isso! - (...) - Seu bobo! Você é que é muito galanteador. Pára com isso. Me fala o que você ta precisando, que eu estou recebendo um repórter agora. - (...) - Tudo bem! Fica para a próxima semana. - (...). - Claro, claro. Sigilo total. - (...) - Você usa o portão C, como da última vez. - (...) - Não me importa com quem virás. Antes mal acompanhado do que só, meu querido. Apenas não quero aquele batalhão de seguranças chamando a atenção aqui no parque. - (...)
  • 29. 29 - Fica tranqüilo, pois instalamos um novo circuito interno com o triplo de câmeras, e contratamos outra empresa de segurança muito melhor. - (...) - Ok, outro prá você. Tchauzinho! - É o Clinton. Esse menino não aprende mesmo! - Virá com a família? - Que nada! Você parece que nem conhece a figura. Família? Jamais! A Hillary está num congresso da Unesco sobre a luta contra o analfabetismo na Ásia, e a filha fica em Nova York, dividindo o tempo entre a escola e o analista. Enquanto ele... deixa prá lá. Sobre o que falávamos mesmo? - Sobre sua fama de esotérica. - Bruxa, você quer dizer. Bem, sei que o senhor é um homem lido. Diga-me francamente, não acha que toda mulher tem, dependendo do dia, um lado anjo e outro lado bruxa? - Majestade, neste caso estamos falando de um crime. Com todo o respeito, meu papel de jornalista me obriga a ser franco: a senhora envenenou Branca de Neve naquela tarde na casa dos sete anões? - Se o senhor quer dar um tom jurídico a nossa conversa, tenho o mesmo direito: o senhor, ou quem quer que seja, tem uma prova de que eu a tenha envenenado? Sabe que essas insinuações podem trazer ao senhor um processo por calúnia e difamação? - Meus cumprimentos a seu advogado, madame. - Dispenso seu cinismo, cavalheiro, mas há muitas coisas que o senhor certamente não sabe. Primeiro, naquele dia eu estava no II Congresso de Ocultismo Mundial, em Lagos, Nigéria. Aqui estão minhas credenciais para confirmar meu álibi. Segundo: a menina foi encontrada dopada em coma medicamentoso, coisa que muita gente não sabe, e a imprensa não publica. Os laudos apontam para uma overdose por uma droga não identificada. Ademais, esta rapariga, que não teve o pudor de invadir uma residência de sete mineiros desconhecidos, tinha crise maníaco-depressiva, confirmada mais tarde pelo marido dela, que certamente o senhor também não sabe, é anestesiologista e pode confirmar tudo que estou lhe dizendo. - Desculpe se fui preconceituoso consigo, senhora. Tudo isso é novo para mim. - Tudo bem. É sempre assim. As pessoas acreditam em tudo o que lêem e vêem na televisão, e a moral dos acusados é arruinada, sem chance de defesa. O senhor pelo menos é o primeiro jornalista que me dá espaço para contar a minha versão dos fatos. Não quero ser venenosa, mas nunca entendi como uma “donzela” pôde agir como Ariel agiu. Imagine, beija a boca do primeiro homem que vê pela frente ao acordar, e casa-se sem jamais tê-lo visto antes! Sei que nem fica bem falar, e que ela é de boa família e tudo o mais, mas tem coisa que, se a gente não fala, ninguém fala.” - Mas o príncipe salvou-lhe a vida, não foi? - Ora, ora, meu amigo! Nem você e nem eu nos casaríamos com alguém desconhecido só porque ele nos salvou a vida, por mais gratos que fôssemos! A gente sabe que as alpinistas sociais existem, mas um pouquinho de sutileza não faz mal a ninguém, concorda? - Puxa, a senhora coloca as coisas por um prisma tão diferente! Branca de Neve, uma alpinista social... tem sua lógica! Vocês viveram juntas algum tempo, não foi? Que lhe vem à mente sobre aquela época? - Francamente, eu acho que deveria ter sido mais firme na criação dela. Percebo agora que faltou mais disciplina. Meu erro foi tentar ser, não uma madrasta, mas uma amiga. Achava que bastava o amor e a liberdade para formar uma princesa. Mas fracassei. Reconheço que ela sofreu muito com a morte da mãe. O pai também não ajudou muito, pois só cuidava dos assuntos da corte e conversava pouco com a filha. É claro que o novo casamento do pai é um trauma muito grande para qualquer criança. Sinceramente, eu fiz tudo o que pude. Mas, a amizade que ela tinha estragou tudo.
  • 30. 30 - Ela tinha amiguinhos no castelo? - Não, seu Lazarus. Ela tinha apenas um amigo. O pior deles: o espelho! - O espelho mágico! Pensei que só a senhora tivesse acesso a ele. - De fato, era para ser de uso privativo, o que sem dúvida teria evitado muita confusão. Mas, qual menina não gosta de mexer na cômoda da mãe? Meu marido também usava o espelho toda vez que ia fechar um grande negócio. Resultado: está rico de dar inveja ao Bill Gates. Só que viaja o ano todo. - Sendo assim a senhora deve sentir muita solidão. Como lida com isso? - Acho que o senhor na verdade quer saber se tenho amante. É tolice de sua parte perguntar sobre isso, pois em qualquer dos casos minha resposta seria sempre não, concorda? - Passemos adiante. Percebo que seu trabalho preenche todo o seu dia. Gosta do que faz? - Meu caro, meu trabalho é minha vida. Sou hoje uma mulher muito mais feliz desde quando me livrei daquele maldito espelho. Convivo muito bem com meu rosto. Sei que estou envelhecendo, mas ao invés disso me assustar, na verdade me reanima, pois sei que estou progredindo como gente. Trabalho, leio, viajo, tenho meus sobrinhos, filhos de Larry e Samantha, minha filha, que sempre me visita nas férias escolares. Eles são adoráveis. Se pudesse ver como correm por todo este castelo e como aprontam nesse parque...! - De fato a senhora parece muito dinâmica e penso que este empreendimento não poderia estar em mãos melhores. Que conselho a senhora dá às mulheres que se assustam com a chegada da idade madura? - Quebrem seus espelhos! E enfrentem a luta! Aliás, aqui vai um conselho para o senhor: não fale com espelhos aqui na Ilha da Fantasia, senhor Lazarus. O preço pode ser muito alto. - Madame, minha última pergunta: alguns personagens desapareceram misteriosamente nas últimas versões de Branca de Neve e os Sete Anões, e não tem sido dada nenhuma explicação oficial sobre isso. Há um rumor de que por trás disso esteja certa máfia dos roteiristas novos. Quanto de verdade há nesses boatos? - Um minuto, por favor. Preciso dar algumas instruções ao meu mordomo sobre o jantar. Com licença. - (...?) (A rainha fala em tom inaudível). - (...!) - (...?) - (...!!!) - (...) - Cavalheiro, precisará me desculpar, mas nunca ouvi falar destes rumores, mas agradeço muito a sua visita. - Madame, esqueçamos tudo isso. Cá estamos nós, num castelo belíssimo, no centro da Ilha da Fantasia, e a vida passando por nós. Conhecê-la foi o ponto alto desta minha viagem. Além de belíssima, é muito inteligente! - Ora, senhor Lazarus! Certamente conheceste muitas mulheres interessantes por aí. - Nenhuma tão inteligente. E novamente jantarei sozinho, a menos que a senhora são se ofenda com um convite meu. Aposto que não conhece o peixe na telha servido no Bar do Vespa. Que me diz? - O senhor é muito cativante, e aproveita-se de uma pobre mulher louca para fugir um pouco da rotina, senhor Lazarus. Deveria ser preso por isso!
  • 31. 31 Segredos da Bruxa “Receias, acaso, que esta maçã esteja envenenada?” - Versão original dos irmãos Grimm Amigo leitor, já ouviu falar da intuição masculina? Acredite ou não, ela existe. Tive uma prova quando estava tomando um sorvete na praça central da Cidade Maravilhosa, a principal aldeia da Ilha da Fantasia. Vi alguém que de imediato identifiquei como a bruxa da estória de Branca de Neve. Era uma anciã encurvada sentada num banco próximo ao meu. A idosa mulher dava pipoca aos pombos, quando notei que dois pombinhos caíram envenenados após comer aqueles grãos, enquanto a velha ria baixinho. A cara, o olhar, o riso cínico – tinha de ser ela! O corpo envelhecido era carregado por um espírito zombeteiro. Quando pude enfim olhar diretamente nos seus olhos vi a mesma ardileza de Nisséia, a rainha má. O leve tremor no seu rosto quando me viu denunciou que sabia ter sido reconhecida. Com tanta convicção nem tive receio de falar-lhe francamente. O problema é que a velha é esperta demais. Negou tudo, naturalmente, de modo que fica apenas a minha palavra, sem uma prova definitiva que resolveria finalmente este mistério da tentativa de homicídio tão famosa em todo o mundo. Todavia aprendi muito conversando com Éby. Eu que me julgava esperto, saí tosquiado. Veja se não é verdade.
  • 32. 32 O Pensamento Vivo da Bruxa e Sua Vida Como Aposentada do INSS - Bom dia minha senhora. Permita que me apresente. Meu nome é Lazarus, e sou jornalista. - Azar o seu! (risada frouxa) Bom dia, jovem. Chamam-me Éby, e sou uma velha. - Perdoe-me a indiscrição, mas a senhora é, como diria, espiritualista? Quero dizer, esotérica? Bem, já participou como sensitiva em alguma estória? Para ser franco a senhora parece uma... - ...Uma bruxa? Quer saber se sou uma bruxa? Ora mocinho se eu fosse porque diria? Não sabe que as bruxas são perseguidas? Como imagina que eu ou qualquer outra pessoa admitisse isso assim, publicamente? - Desculpe se fui rude. - Não foi rude. Foi tolo, só isso. Mas não me ofendo. Já me confundiram muitas vezes com elas. Alguns até me acusam de ser Nisséia, a rainha laboriosa. Imagine só! Logo eu, uma pobre velha vendedora de maçãs. Veja a Nisséia, que encanto de mulher! Tivesse eu a beleza e o poder que ela tem, acha que viveria assim, como uma pensionista do INSS? - Mas por que a confundem com uma bruxa? - É o nariz. Maldita verruga! Sempre ela, a traiçoeira. Talvez não acredite, mas já fui bonita, muito bonita! Ora se fui. Cheguei a ser eleita a rainha da uva nos meus belos dias. E na eleição da miss Caixa Prego fui a terceira colocada. A eleita foi a Pagu, que nos deixou já há muito tempo. E a segunda foi madame Pompadour. Ah, sim. Fui muito bonita! Quando uma moçoila te encantar pela beleza, meu rapaz, imagine-a cinqüenta anos mais velha. Se na tua projeção sobrar alguma coisa de valor, case com ela. Nós, as velhas, somos as modelos amanhã. Ah, sim. - Mas sem dúvida a senhora sabe do drama vivido por Ariel Minerva, a Branca de Neve. - Ah, sim. Aqui não se fala de outra coisa. - Na sua opinião quem é o principal culpado por tudo o que aconteceu de errado na estória? - Ah, o espelho mágico, sem dúvida nenhuma! Aquele linguarudo! Às vezes penso que na verdade ele é uma espelha, por ser tão fofoqueiro. - Conhece-o pessoalmente? - Não, não. Claro que nunca o vi, mas digo isto pelo que li sobre ele na Contigo. É um vigarista! Usar a magia para falar a verdade! Ora, ora, que contradição. Quantos amigos separou! Quantas famílias dividiu! O caso de Branca de Neve é só um exemplo. Tive tantas amigas que consultaram o espelho mágico, quando ele ficou no Salão de Beleza da Madame Min. Hoje estão todas largadas do marido, e maldizem o dia em que se casaram. Tudo por culpa daquele bossal que pensa que é culto só por ficar citando Shakespeare. Como a Lola, por exemplo que faleceu há quinze anos. - O que pensa ao ver tantas mulheres descasadas nos dias de hoje, dona Éby? - Tenho dó. Blasfemam do casamento a todo instante. Dizem que os homens são todos iguais, que casar foi a pior besteira que fizeram na vida e etc. e tal. Parece um pouco a raposa desprezando as uvas que no fundo deseja. Menosprezam o casamento porque tiveram o seu demolido. Mas agora, com essa onda de sexo livre, casar pra quê? Entregam-se ao primeiro que lhes oferecer um jantar, ou um perfume barato! Pobrezinhas. Vivem só e morrerão só, carregando esta bandeira pesada e inútil da falsa independência, mas no íntimo de seu quarto quantas lágrimas derramadas ao travesseiro por estarem envelhecendo sem um companheiro, um
  • 33. 33 amigo. Perambulam hoje nessas casas vazias que um dia foram um lar. Pobrezinhas. Se escutassem o que mamãe dizia... - Embora concorde em parte com a senhora, não lhe ocorre estar sendo incisiva demais? - Nem um pouco. Veja a ironia: primeiro elas afugentam seus homens, e depois cheias de neura, pagam a um homem estudado, um analista, para que as ouça e diminua seus grilos. - Falando em problemas femininos: a senhora acha que Ariel e Nisséia poderiam ter evitado toda aquela crise? - Sim, especialmente se não dessem ouvido ao espelho. É tudo culpa do Eternus Veritás, aquele intrometido. Ah, se houvesse uma poção mágica que transformasse um espelho falador em simples escutador, que beleza seria! Ele então ouviria nossas confissões, choraria conosco, riria de nossas tolices, nos dizendo baixinho “fale mais de você”, sem nunca se cansar e nunca olhar rapidamente o relógio – este gesto odioso que expulsa qualquer um que tinha esperança de ser ouvido com carinho. Ah, sim, se o espelho nunca falasse, mas sempre ouvisse, quanto apego teríamos por ele. - Perdoe-me se a importuno, dona. Mas, há tanto mistério para se esclarecer nesta estória. Incomoda-se se lhe fizer mais algumas perguntas? - Em momento algum! Não se preocupe, meu rapaz. Você parece um daqueles meninos dispostos a correr céus e terra atrás da verdade. Que época bonita da vida! Ah, sim, eu corri muito atrás da verdade também. Hoje, não mais. Já me consolo se pelo menos conseguir fugir da mentira. - A senhora é muito sagaz. Vejo que a vida lhe deu muita experiência. - E você é muito gentil, menino. Lembra-me Calígula, meu primeiro marido. Ele e Adolf Himmler, meu cunhado, também finado, gostavam de pescar na lagoa do Bateau Muche com o saudoso Dom Corleoni. - A senhora já perdeu muitos parentes e amigos, não? - É verdade. Maldito tempo, que tudo nos leva: a beleza, o vigor, os amados... e por requinte de crueldade nos brinda com essa constante lembrança dos mortos, retardando sem motivos nossa própria morte! - Diga-me como passa seus dias? Gosta de ler? - Li muito, ah, sim. Hoje minha vista é fraca. Mas, faço doces. Sei fazer biscoitos de polvilho que são muito elogiados. Só no bar do Vespa eu vendo duas dúzias por dia. E maçãs do amor, que encantam os amantes, aumentando a paixão. -E funcionam? - Claro que sim, pois quando não as comem o amor se esvai. Olhe a seu redor. Qual dos casais em crise o senhor vê que esteja comendo maçã do amor, ou algodão doce, ou qualquer outra guloseima de circo? Nenhum. Pesquisa e vê. São tantos casais solenes, bonitos, mas sem carinho e paz. Nos shoppings e nas ruas lá vão eles. Passam de rostos graves, atirando entre si frases ásperas. Ah, os amantes sem amor! Quanto sofrem! Faltam-lhes uma praça, um banco e maçãs. Maçãs do amor. - Isso é profundo, dona Éby. Porém, maçãs encantadas podem matar. - Bobagem. O que mata é o desamor. Mesmo a bruxa má – crime fez? Apenas foi gentil com uma menina tonta. Deu um presente para uma donzela que teve indisposição. Um gesto de bondade que por acidente virou intoxicação alimentar. Só isso. Daí, os neuróticos viram nisso uma tentativa de homicídio. Que ironia. Uma anciã dá uma fruta a alguém e se torna acusada de assassinato! Não tem lógica isso. Ainda mais porque naquela tarde Branca de Neve tomou manga com leite. E que manga enorme. Parecia que já estava meio passada, pela cor... - Como sabe de tudo isso? - Como sei? Bem, me contaram. Quer dizer, acho que li em algum jornal sobre o caso. - Lembra qual jornal? - Não, não vou me lembrar agora. Mas, isso é coisa que todo mundo já sabe por aqui. Agora, falemos um pouco sobre se acusar os indefesos. Alguém procurou escutar a versão daquela senhora idosa, a quem chamam de bruxa?
  • 34. 34 - O que acha que aconteceu naquela manhã, que ainda não saibamos? - Não era manhã. Eram 13:45 h. Olha, tem coisa que eu prefiro não falar, mas a gente fica sabendo de cada uma... Por exemplo, essa mocinha é anoréxica, sabia? É, tem pavor de engordar. É triste, mas é verdade. Essa molecada de hoje é terrível. O senhor promete guardar segredo? Endora, Deus a tenha em bom lugar!, um dia me contou que Branca de Neve fazia até bulimia e tomava uns remédios de fórmula, para emagrecer ainda mais. Outra coisa: tinha pavor de ficar moreninha. Por isso não saia para brincar, nem no castelo, nem na casa dos anões. Coitadinha, era meio pancada. - Tem certeza disso? - Claro, seu Lazarus. Nesse ritmo é claro que mais cedo ou mais tarde ia ter um troço. Vivia sozinha; abandonada pela família real; sem estudo; sem emprego; servindo de doméstica para os anões. Uma hora era fatal dar um piripaque. Eu não a condeno. Sei de muita gente que toma droga para enfrentar as pressões da vida. Pobrezinha. Não teve força para enfrentar seus probleminhas. Mas o destino foi justo com ela: casou- se! - A senhora conhece os sete anões? - Claro! São uns amores. Ah, isso são. - Encontra-os sempre? - Mais ou menos. Às vezes Dunga circulando com seu micro ônibus. Garoto maluco! Como é que alguém, nos dias de hoje, adota 19 crianças? Coitado. Ele sempre foi mesmo meio pirado! O último que vi foi o Mestre, pouco antes da cirurgia, mês passado. Estava na fila do banco para retirar a aposentadoria. Estava tão magro o coitadinho. Mas, é um amor de pessoa. Sempre me convida para tomar um café no Largo do São Francisco, que fica próximo à agência bancária. Lembra dos Sobrinhos do Capitão? Sempre estavam lá também. Ah, o senhor não conheceu? Que pena. Os dois morreram de cirrose em abril. - Fale mais sobre o pessoal do café. - Muitos personagens se encontram ali. Quanto ao Mestre, da última vez ele nos contou que estava terminando um livro – ele escreve muito, sabe? Acho que era um livro de máximas. É isso mesmo. O livro chama-se Máximas do Mestre. Sabe, eu sou meio ignorante nessas coisas de livros. Sei é que ele está muito animado. Já tinha até um editor que prometeu publicar tudo o que o Mestre mandar. Porém, continua pobre. Não entendo. Tão culto e tão sem dinheiro? Não é uma ironia do destino? - Mestre nunca suspeitou que a senhora fosse a bruxa da estória? - Sim, suspeitava de mim. Nessa época nem me cumprimentava. Mas, um dia precisou trocar alguns cheques pré-datados e ficou sabendo que eu tinha uma boa poupança, e então quebrei o galho dele. A partir daí ficamos bons amigos. Mas, ele sempre teve certeza de que a bruxa da estória era eu. Sabe o que ele me disse um dia? “Éby, você estava certa. Essa menina precisava de uma lição dura para enxergar a vida como ele á. Depois daquela maçã nunca mais ela caiu em nenhum conto do vigário!” - Por que ele achava que ela precisava de uma boa lição? - Mestre queria que a menina estudasse, completando o primeiro grau, depois o magistério, para daí entrar na faculdade. Sempre imaginou humanas para Ariel. É que ele tinha bons amigos na secretaria da cultura e sonhava colocar a garota lá. Porém, tudo foi muito rápido. Ele acha que foi um erro Ariel casar-se tão nova, e sem conhecer bem o príncipe. Não sei. Essas coisas do amor são meio complicadas. - Quem a senhora acha que tentou matar Branca de Neve? Não acha importante que se encontre a velha criminosa para pô-la na masmorra? - Quer horror, seu moço! Gente, é preciso respeitar a terceira idade! Olha que se tratava de uma idosa vendedora de frutas. Quer dizer, ela ainda trabalha para sobreviver. Então essas pessoas merecem mais consideração. - Mas a evidência é tão clara! Tem certeza de que nunca viu esta bruxa pessoalmente?
  • 35. 35 - Em momento algum. Mas como idosa sofro ao ver essas acusações assim, tão fulminantes, sem dar a pessoa o benefício da dúvida. Olha, as coisas estão mudando. Não será tão fácil humilhar os velhos daqui para frente. - O que a faz pensar assim? - Temos muitas associações hoje. Temos advogados. E temos poder econômico para fazer valer nossos direitos. O mundo hoje é outro, e esperamos, ou melhor, exigimos o respeito da sociedade. Houve época em que só as farmácias gostavam de nós. Hoje tudo mudou. As agências de viagens nos amam. O Francisco Petrônio e o Agnaldo Rayol também. É, somos amadas. Jaime, meu quarto marido, se fosse vivo iria adorar ver esse tempo. - Dona Éby, novamente desculpe-me se fui grosseiro com a senhora, mas é que não pude deixar de tirar essas dúvidas. Foi ótimo ouvir sua versão dos fatos. Aqui está meu telefone. Caso saiba de algo novo queira me procurar. - Já vai tão cedo? Olha, tome um presentinho. Alguém que busca a verdade precisa se alimentar bem. O que acha que sua mãe pensaria ao vê-lo tão esquálido? Vamos, aceite esta maçã. Não, não faça desfeita, ou me ofendo. Prove. E te sentirás como nunca antes. Podes comer sem medo. Essa, eu garanto, não está envenenada. Olha, boa sorte para você. E tomara que além de encontrar a verdade, encontres uma parceira, pois afinal, antes mal acompanhado do que só. Perdoe-me a pressa. Também já vou indo. Abriu um novo Bingo na Brigadeiro, e todas as minhas amigas já estão lá. Hoje não posso faltar. Adeus.
  • 36. 36 Segredos de Dunga e Sua Tentativa de Suicídio “Queres ficar conosco? Aqui não te faltará nada.” - Versão original dos irmãos Grimm Dunga, que na vida real se chama Raul Eduardo Seixas, aceitou logo da primeira vez nossa proposta para uma entrevista. Durante minha viagem até o sítio Quinta da Esperança, o meu guia confidenciou-me alguns detalhes sobre a tentativa de suicídio de Dunga. Até então eu só tinha ouvido comentários esparsos e contraditórios. O relato a seguir foi confirmado posteriormente por mais uma fonte, de modo que posso me assegurar de passar ao amigo leitor a versão real ou a mais próxima disto. Logo após o filme de Branca de Neve rodar o mundo, Dunga foi ajudado pelo Mestre a procurar ajuda médica. É que sua mudez resultava da surdez, de modo que com ajuda perita ele poderia falar e se comunicar razoavelmente bem, falando. O tratamento foi ótimo, entretanto quando terminou ele já não era mais um menino, mas sim um jovem adulto, cheio de sonhos e ansioso de se apresentar no palco. A estréia de sua peça, na Praça Roosevelt, num pequeno teatro experimental, obteve grande repercussão na mídia e na primeira noite a fila na entrada chamava a atenção. O problema foi que o público reagiu negativamente, pois o nome de Dunga atraiu fãs do menino tonto, que todos viram no desenho animado. Ao se deparar com aquele rapagão, com barba, apresentando Tchekov, e pior, num monólogo, os fãs o abandonaram. O fracasso da peça nas noites seguintes arrasou nosso amigo, que desapareceu por um bom tempo. Nem os anões sabiam de seu paradeiro. Conseguiram informações de que passou a morar num muquifo no Bexiga, isolado, apenas lendo e indo a cinemas de arte, sempre irreconhecível e escrevendo resenhas literárias para o Reader’s Digest. Quem o localizou foi Feliz, que comparecia vez em quando à alguns bares decadentes da região e ficou sabendo do paradeiro de Dunga. Feliz e Yoko, que era sua mulher na época, fizeram uma visita ao jovem angustiado e mantinham certo contato com ele. Com o tempo Dunga e Yoko começaram a trocar e- mails e ela se preocupava sobremaneira com ele. Quanto ao Feliz, demonstrou indiferença com seu amigo de trabalho. Seu modo de vida mundano, e a desfaçatez com que saía com várias namoradas, contribuíram para negligenciar a esposa, que sentia forte ímpeto de ajudar Dunga a se reerguer. Até o dia em que Dunga não mais retornou nenhum contato e saiu do ar. Três dias depois Yoko foi ao quarto de Dunga e encontrou um bilhete que dizia o seguinte: “Querida Yoko e queridos amigos, Perdoem pela covardia de fugir. Tentei o quanto pude lutar contra a sensação de fracasso, que me oprimia. Não conseguir me comunicar pela arte que mais amo, o palco, derrubou todos os sonhos que tinha construído. Longe de meus antigos fãs, sem conhecer minha família natural e sem poder viver da arte, o peso de viver se tornou maior do que pude suportar. Esta noite encontrarão meu corpo na linha do trem que vem de Patópolis.