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Equinócio
                                                                                           A Primavera
                                                                                                Lu Piras




               CAPÍTULO DE DEGUSTAÇÃO

                         PRIMEIRO CAPÍTULO

                                TUDO NORMAL
                                    “ E a vida fez sentido até o dia seguinte”

                                               (Walt Whitman)




A
            A Lua prateada reina sem súditos num céu sem estrelas. Sob esse véu negro e amparada pela
          maresia, caminho e deixo pegadas que aos poucos o mar desfaz.

          Sinto o vento roçar meu rosto, o sabor do salitre na língua, o cheiro do mar cada vez mais
forte e a areia fria e dura sob os meus pés. Uma lágrima se mistura, contrastando com o sabor salgado.
No peito, meu coração se agita como as ondas que encontram as rochas. Com os olhos marejados, só
enxergo meus pés.

   De repente, uma densa névoa se forma ao meu redor e eu me vejo obrigada a parar de caminhar.
Sento-me e colho um punhado de areia, que escapa entre meus dedos. Aqui ninguém pode ouvir,
ninguém vai dizer nada. Estou só comigo mesma.

   A Lua Cheia desaparece por trás das nuvens. Faz frio, mas não tenho vontade de levantar e
prosseguir. Prefiro ficar aqui até adormecer. Seria bom se eu sonhasse, se me transportasse para um lugar
mais aconchegante, onde em vez do mar bravio, houvesse calmaria e onde o tempo não existisse.

   Os primeiros pingos de chuva lavam as lágrimas do meu rosto. Encolho o corpo abraçando os
joelhos. De olhos fechados, saboreio a chuva. Até consigo sorrir por um breve instante.

   Apago.



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Equinócio
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                                                                                               Lu Piras


                                                       ***

    A brisa morna afasta a cortina e os raios de sol invadem o quarto me dificultando abrir os olhos. O
celular insiste, mas não tenho pressa de levantar da cama e procurar por ele. O rádio-relógio marca onze
em ponto. Para dormir tanto, eu devia estar cansada.

    Ao afastar o cobertor e pousar os pés no chão, reparo que há grãos de areia neles. De uma mecha de
cabelo caído sobre os ombros sinto cheiro de maresia. Sinais de que eu estive mesmo numa praia, de que
nada daquilo foi alucinação ou sonho. Não consigo lembrar por que fui parar lá nem como voltei para
casa.

    Ligo o chuveiro e deixo a água correr pelo ralo até o vapor embaçar o espelho. Ao limpá-lo, vejo
minha imagem turva. Esfrego os olhos até ver com clareza o rímel escorrido, manchando meu rosto.
Vestígios de um dia que eu havia esquecido.

    Debaixo da água, fico imóvel, de olhos cerrados, deixando a pressão da ducha massagear meu corpo.
O banho dura mais tempo do que de costume. Vou ao armário e escolho um jeans stretch e a camiseta
azul clara que ganhei no meu último aniversário.

    Girls Just wanna Have Fun. Esta foi a música que escolhi para reconhecer de imediato as ligações de
Christiane, minha melhor amiga. Pego no celular e pronuncio um alô arrastado.

    ― Clara! ― ela soa cansada e ofegante ― Onde você está, sua doida? ― pergunta com uma ponta de
irritação.

    ― Em casa, Chris. Perdi completamente a noção das horas! ― Minha amiga bufa do outro lado.
Silêncio vindo de Chris é perturbador. ― Mas porque “doida”? Tínhamos alguma coisa marcada? ―
indago, temerosa, pois algo no fundo me diz que sim.

    ― Você ainda pergunta?! ― o timbre estridente me obriga a afastar o telefone ― A primeira prova do
meu vestido de noiva, mulher! Meu casamento é daqui a três meses e você não está nem aí! Você é uma
madrinha desnaturada, Clara.

    Desta vez sou eu quem fico em silêncio. Vindo de mim, o silêncio é natural, principalmente, quando
me sinto uma irresponsável. A recriminação de Chris parte o meu coração, porque ela é a minha melhor
amiga e nada poderia justificar o que eu fiz.


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Equinócio
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                                                                                                 Lu Piras


       ― Clara, eu te liguei várias vezes! Fiquei te esperando durante mais de uma hora até a estilista
começar a surtar!

       Emudeço de novo diante da confusão dos meus pensamentos. Neste momento, tudo o que se ouve
do outro lado da linha é o barulho do trânsito.

       ― Olha, eu não posso falar agora porque estou correndo para o dentista, às onze e meia. Já estou
atrasadíssima! Depois a senhorita há de me explicar o que aconteceu. Como sou uma excelente amiga,
acredito que você tenha uma boa explicação para ter me dado bolo justamente hoje!

       Adoraria poder lhe dar alguma explicação. E se eu a conheço, apesar da birra, ela não vai me cobrar
explicação nenhuma porque sabe que neste momento estou muito mais chateada e inconformada do que
ela.

       Um pedido de desculpas fica engasgado diante da chamada abruptamente interrompida. Olho
atordoada para o telefone na minha mão. Durante alguns instantes, um vazio se alastra em minha mente
e eu não sei o que fazer. Então guardo o celular na bolsa e automaticamente desço as escadas para a
cozinha, onde, pelo cheiro de assado, está Maria, nossa abençoada fada do lar, preparando o almoço.

       ― Bom dia... Maria. ― digo com cautela, a espera de alguma reprovação da parte dela.

       ― Bom dia, querida! ― ela continua encostada à bancada cortando os tomates em rodelas, sem virar-
se para mim ― Sua irmã já saiu para a escola e seu pai está conversando com o Dr. Walter no portão. O
almoço vai sair em dez minutos. Põe estes pratos na mesa, por favor?

       Ela falou naturalmente, como se hoje fosse um dia normal como qualquer outro.

       ― Maria, está tudo bem?

       ― Tudo ótimo, querida. O assado cheira bem, não acha? ― vira-se de frente para mim com um
sorriso lisonjeiro.

       Emudeci por alguns segundos.

       ― Sim, cheira bem.




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                                                                                                Lu Piras


    Pelo ronco na barriga, não devo comer há muitas horas. Maria volta-se para a panela de arroz e eu
coloco o último prato à mesa, intrigada.

    ― Maria, você não estranha o fato de eu estar em casa a esta hora? Num dia em que eu deveria estar
na faculdade...

    ― É verdade. ― vira-se novamente para mim ― Você nunca almoça em casa. Ahhhh... ― sua longa
onomatopéia me deixa em suspense ― Eu devia ter preparado uma sobremesa! Você podia ter avisado
com mais antecedência que ia almoçar em casa, meu bem.

    Ela devia ter me contestado e não pensado em me premiar. E eu devia saber que ela não me ajudaria
a esclarecer nada sobre a noite misteriosa.

    Maria foi minha babá e também de Olívia, minha irmã mais nova de onze anos. Sempre foi como
uma mãe. Dedica-se à nossa família desde quando minha mãe ainda era viva. Além de governanta,
cozinheira, arrumadeira e secretária competente, ela ainda faz as vezes de Jó no jogo da paciência comigo
e minha maninha. Em suma, Maria é o tronco da família Chevallier.

    Nossa indispensável governanta nasceu em 1960, em Araripe, no Ceará. Aos quatro anos de idade,
com seus pais e sua irmã dois anos mais nova, Vilma, migrou para o Rio de Janeiro. A família morava
numa casinha de alvenaria na Rocinha. Quando Maria completou sete anos, perdeu os pais num
incêndio que começou no barraco vizinho e se alastrou. Seu pai conseguiu salvá-las, mas não resistiu.
Maria e Vilma foram encaminhadas a um orfanato. Um ano depois, Vilma foi adotada e a família não
quis ficar com Maria porque já estava muito crescida. Dois anos depois, um casal idoso a adotou. Eles
lhe proporcionam estudos até o segundo grau e Maria cuidou deles até os dois falecerem. Nunca mais
soube do paradeiro da irmã. Nos vinte e dois anos que ela convive com a minha família, nunca desistiu
de procurar por Vilma.

    Ao contrário das desventuras pelas quais passou Maria, eu e Olívia tivemos uma infância com algum
conforto. Vivemos toda a nossa vida num bairro de classe média da cidade do Rio de Janeiro, num
condomínio de dezoito casas, cada uma com jardim, piscina e cercas baixas ― uma raridade nesta cidade.

    Papai senta-se à mesa a meu lado, me dá um beijo na testa e diz boa tarde sem muito entusiasmo.
Espichando-se sobre o assado, começa a servir-se. Não comenta nada sobre minha presença e começo a
achar que realmente está tudo normal, embora me sinta estranha.



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                                                                                         A Primavera
                                                                                             Lu Piras


                                                   ***

   Demorei mais tempo que o habitual almoçando. Papai já havia saído para o trabalho e eu ainda
continuei à mesa. Tenho um apetite razoável para uma garota de vinte e um anos, magra e de estatura
mediana, mas hoje exagerei um pouquinho.

   Ajudo Maria a tirar a mesa e depois com a limpeza da louça. Ambas em silêncio, como máquinas
programadas, uma lava e a outra seca. Não consigo pronunciar uma única palavra, pensar em nenhum
assunto, raciocinar sobre nada. Um vazio me consome de novo.

   Enquanto enxugo os talheres, penso que eu sou a mesma de sempre nesta tarde, que minha vida até
agora é a mesma de sempre, mesmo me sentindo diferente. Como ninguém comentou nada sobre
ontem, começo a supor que eu esteja desenvolvendo alguma forma de sonambulismo.

   Maria foi afável comigo, como todos os dias; papai estava apressado mas nada de se estranhar;
minha melhor amiga também não comentou nada de extraordinário a meu respeito a não ser o puxão de
orelha merecido que me deu. Preciso entender o que se passou comigo para ter faltado a um
compromisso tão importante com ela.

   Eu estava sozinha na praia. Terei que me conformar com meu próprio testemunho e com os grãos
de areia em meus pés. Lembro perfeitamente que chorava. Por que não queria sair de lá, voltar para
casa? Por que eu chorava?

   Ocorre-me verificar se há areia dentro do carro. Corro até a garagem, abro a porta do meu Mini
Cooper S vermelho, tiro os tapetes, sacudo-os e nada: nem um grãozinho para esclarecer ao menos
como eu voltei para casa na noite de ontem. A pé? Bom, ainda teria sido pelo menos um quilômetro de
caminhada.

                                                   ***

   A aula da manhã já está perdida, mas ainda estou em tempo de assistir a da tarde. No
estacionamento da faculdade de medicina da Universidade Federal, bato a porta do carro com mais força
do que habitualmente, estressada pelo trânsito. Já foi o tempo em que não havia engarrafamento nesta
cidade. Eu não existia naquela época, mas meu pai enche a boca para dizer que o Rio de Janeiro já foi,




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                                                                                                  Lu Piras


além de um paraíso natural, um paraíso urbano. Eu sou deste tempo em que, a qualquer hora, em
qualquer lugar, há filas quilométricas para tudo.

    Estou me dirigindo à guarita do estacionamento quando ouço o roncar agressivo de uma moto e
sinto cheiro de combustível queimando. Tento inutilmente descobrir a direção de onde partem os sinais
desagradáveis enquanto continuo a caminhada acelerando mais o passo.

    Queria não pensar no pior, mas esse repentino frio na barriga só aparece quando uma determinada
pessoa está por perto. E nunca tenho tempo de fugir. Um sopro de vento ― por pouco não seria
exagero dizer tornado ― provoca uma onda de terra sobre mim. Em segundos, estou cega e imunda dos
pés à cabeça. Posso sentir a terra entranhada nos meus pulmões e mesmo sem ter aberto a boca estou
com um sabor horrível como se tivesse acabado de lamber pó de cimento. Cuspir e tossir não está
adiantando nada.

    Enquanto me enraiveço e abano a poeira ainda suspensa, eis que da névoa escura de pó, surge Jonas
Bauer, montado na sua Harley Davidson Heritage Softail. Ele ri, guturalmente, convencido e infantilóide
como sempre. A melhor parte da sua diversão deve ser esta, em que me assiste, na maioria das vezes
revoltosa, depois de terminar o seu número teatral. Ele está com aquela sua tradicional expressão, uma
espécie de sorriso para dentro, meio torto e meio desequilibrado entre o maníaco e o diabólico. Que
espécie de pensamentos paranóides terá esse garoto? Por mais que eu tente encontrar uma explicação
para toda a espécie de confusão que ele apronta e, principalmente, para sua implicância comigo desde a
aurora da infância, não consigo.

    Poderia ter a ver com a minha reação. Sem querer, eu poderia o estar incentivando. Para tirar a
dúvida, comecei a reagir aos seus ataques de várias formas diferentes. Houve vezes que o confrontei,
noutras saí correndo, já gritei de raiva, mostrei-lhe o dedo médio, lançei-lhe olhares sinistros, ri de mim
mesma. Nada o dissuade a largar do meu pé. Finalmente chegou o dia em que preciso assumir que,
independentemente de como eu reaja, por alguma razão provavelmente doentia, sou o perfil ideal de
vítima para ele. Por isso, desta vez, enquanto sua risada ainda ecoa, simplesmente dou as costas e limito-
me a fazer de conta que o ignoro.

   Ao fim do corredor do bloco A onde curso todas as disciplinas deste semestre, encontro meus
amigos Marcus e Jéssica, de mãos dadas. Quando os dois me cumprimentam, já perceberam pelo estado
lastimável da minha roupa e meu olhar vingativo, que cruzei com Jonas. Preferem não tecer comentários



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                                                                                               Lu Piras


e me deixar tirar a conclusão de suas expressões de solidariedade. Jess quis me arrastar até o banheiro,
mas estávamos atrasados para a minha aula preferida. Não seria por causa daquele garoto mimado que
eu perderia mais um minuto que fosse.

    Marcus e Jéssica são os responsáveis pelas cenas de romance agarradinho da faculdade. Começou há
dois anos, por conta de um trabalho de grupo sobre samambaias que fizemos no segundo ano. Tudo
bem, samambaias não têm nada de românticas, mas depois de horas encafuados nos corredores da
biblioteca nacional até um manual de direito administrativo pode se tornar um pretexto para esticar um
programinha. Desde então, são como pinhão e coroa numa engrenagem: inseparáveis. Para Jess, os
planos de morar juntos incluem um casal de filhos (de preferência, que ambos herdem o perfil leonino
de Marcus), um cachorro westie e uma casa tipo chalé com cercas brancas em Itaipava. Para Marcus,
bem, ele prefere apenas não discordar.

    A aula de Medicina Interna é imperdível, aquela que mais prende a minha atenção e por isso a que
passa mais depressa. Assim que nossa turma é dispensada, Jéssica se despede.             Eu e Marcus
permanecemos na mesma sala para a aula de Patologia Forense. Metade da turma conversa
animadamente e a outra metade está conectada no Facebook Móvel testando a paciência do professor,
até que ele encontra um bom motivo para testar nossa capacidade de ficar em silêncio e afastados das
redes sociais.

    E cá estamos nós, formando grupos para um trabalho valendo nota. A ausência de Christiane e
Jéssica nos deixa desfalcados mas, inesperadamente, senta-se Wotan ao meu lado. Ele praticamente
impõe a sua participação. Marcus não se importa com a intrusão do nosso estranho colega porque
Wotan é, por excelência, o CDF da turma.

    Wotan pertence a um grupo com mais dois rapazes, sendo que ele age como uma espécie de líder
dos outros dois. Estes, que fazem lembrar irmãos siameses, chamam-se Ahriman e Lugh. Intrigados por
seus nomes incomuns, alguns colegas ― que não tinham mais o que fazer ― pesquisaram e começaram a
referir-se aos três como pagãos. Como é de suspeitar, esta referência advém das origens de seus nomes,
deuses antigos da mitologia; O apelido tomou a boca do povo da universidade e os pagãos são
reconhecidos como a mais silenciosa e misteriosa panelinha da Universidade. Físicamente são muito
altos, magros e pálidos ― sendo Wotan o mais alto, medindo cerca de 1m90 ―. Bastariam estas razões
para sobressaírem entre os demais alunos, em sua maioria, cariocas sorridentes e bronzeados. Os pagãos




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                                                                                         A Primavera
                                                                                              Lu Piras


são anti-sociais, praticamente nunca falam com ninguém e se alguém se aproxima deles, encontram
sempre forma de espantarem essa pessoa ou de simplesmente desaparecerem.

   Portanto, é com a figurinha mais esquisita de todo o campus de medicina que trabalhamos neste
momento. Wotan mal pronuncia uma palavra, limitando-se a concordar com minhas audaciosas
sugestões e com as respostas certeiras de Marcus. Já é impossível ignorar a insistência do olhar
intimidador de Wotan sobre mim, mas Marcus não enxerga outra coisa senão as questões.

   Com o término da aula, arrumo depressa o caderno e o estojo na mochila e agarro Marcus pela
manga do casaco, arrastando-o comigo pelas escadas para ganhar distância de Wotan. Para nosso
espanto, ele nos intercepta no meio do caminho convidando-se para ir conosco. É estranho como
conseguiu nos alcançar sem darmos por isso e ainda mais estranho ouvi-lo pronunciar uma frase com
mais de três palavras; foi, talvez, a sua frase mais longa nos quatro anos que cursamos juntos esta
faculdade.

   A lanchonete do campus, Toca do Coelho, é o nosso point. O ‘coelho’ é um senhor baixinho, gordo,
de bochechas rosadas e fartos bigodes que atende pelo nome de... Seu Coelho, claro. Nos intervalos é
muito fácil encontrar aqui todas as tribos e etnias, numa miscigenação harmônica e desorganizada. É
uma confusão, uma barulheira, uma disputa para conseguir mesa, que é mais complicada durante os
intervalos da manhã, pois à tarde podemos sempre escolher. Preferi a mesa mais central do bar, aquela
que está cercada de todas as outras mesas ocupadas. Não costumo ser desconfiada, mas a súbita
aproximação de Wotan não me deixou alternativa.

   Avisto Christiane caminhando, leve e fagueira, em nossa direção. Neste momento, Wotan está de
costas para ela. Ela não disfarça a careta de perplexidade quando se apercebe que é Wotan que está
conosco, sentado de frente para mim. Pela primeira vez ― desde que ele grudou em nós ― consigo
exprimir um ar de riso. Com olhos fundos e inexpressivos, Wotan me observa, sorumbático e
hipnotizado. Marcus finalmente cai na real, percebe a situação embaraçosa e passa a encarar o branquelo
com mais austeridade. Wotan desvia a atenção de mim como se fizesse um favor em dirigir-se para
Marcus. Bastou um segundo nesse cruzamento de olhares, para que Marcus levantasse e derrubasse a
cadeira num estrondo arrastado de metal roçando o cimento.




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                                                                                           A Primavera
                                                                                               Lu Piras


    Agora que todos os presentes se voltaram para nossa mesa, Marcus e Wotan rasgam sorrisos para a
plateia. Pareceria mesmo vedetismo se eu já não conhecesse o sorriso zombeteiro de Marcus. Já o sorriso
de Wotan não é divertido, é irado.

    ― Qual é a tua, pagão? Descobriu o sexo oposto?

    Wotan ergue o queixo ensaiando um tom superior na resposta que não veio. A chegada triunfal de
Christiane é a saída de emergência que eu procurava. Trocamos olhares cúmplices e, agarrando-a pelo
braço, rebocamos Marcus e seguimos juntos em direção ao campo polidesportivo. Ao chegarmos à
primeira quadra onde um grupo entretido recolhe a rede de tênis, Chris começa o interrogatório:

    ― Vamos, desembuchem: que o Wotan estava fazendo com vocês na lanchonete? Você e o Wotan
iam se pegar, Marcus? O que foi que eu perdi, Clarinha?! Boiei! ― dispara ela sacudindo seus fartos
cachos dourados.

    ― Chris, não alimenta o estresse, ok? O pagão juntou-se à nós num trabalho de Patologia Forense e
depois nos seguiu até a Toca, sentou com a gente e ficou me encarando... foi só isso.

    Christiane arregala os já expressivos olhos verdes. Ela nem precisa externar seus pensamentos. Eu já
conheço todas as suas expressões e sei que lá vem disparate...

    ― Encarando você, amiga? Então um dos pagãos está afim de você? Urgh..., eu não queria estar na
sua pele!

    Qualquer descrição não fará jus à careta de Chris.

    ― Eu ia quebrar os dentes feios dele... ― resmunga Marcus com o maxilar endurecido.

    Coloco a mão em seu ombro e Chris se coloca entre nós, passando o braço por trás de nossas costas.
Seguimos mudos, lado a lado, contornando as quadras até chegarmos aos jardins do campus. Ele já está
repleto de flores prestes a desabrochar com a chegada da primavera dentro de uma semana.

    O celular de Marcus toca e, de um jeito meio alheio, ele se despede. Ele tem a expressão pesada e
ríspida, como quem resmunga para dentro. Então, ao me despedir afago-lhe o cabelo, um gesto que
tomei por hábito e que ele recebe sempre com um sorriso. Marcus faz um tipo meio torrão, mas tem o




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                                                                                           A Primavera
                                                                                                Lu Piras


coração mais mole que pudim. Jéssica, sua namorada, sabe se aproveitar disso; Se depender dele, os dois
nunca brigam.

    Eu e Chis nos acomodamos num banquinho. Ela segura sua bolsa no colo e procura o estojo de
batom. Quer me mostrar a cor que escolheu para usar no dia do casamento. Seu assunto preferido
atualmente são os preparativos, de modo que se a função da madrinha é a de, no mínimo, demonstrar
entusiasmo, eu já devia ter me demitido do cargo há muito tempo. Mas a verdade é que faço qualquer
sacrifício, ― até ser madrinha de casamento ― pela minha melhor amiga. Eu dei um pouco de corda e de
repente já estava quase me enforcando com ela. Chris começou a se empolgar, me questionou sobre ter
ou não alças no vestido de noiva, sobre o local da igreja, as cores e texturas dos convites (tons quentes
ou tons pastel? Ela prefere pastel), sobre o chef que está elaborando o menu do buffet, as flores da
estação, do book do fotógrafo e até sobre o formato dos guardanapos.

    De repente (não tão de repente assim), já passa das três da tarde e temos dois tempos de Medicina
Interna III, no grande auditório do Bloco A. Para alívio de uma turma já irriquieta nas carteiras, a aula
termina quinze minutos mais cedo, às quatro da tarde. Como habitualmente, nos despedimos no parque
de estacionamento. Cada uma no seu carro, partimos em direções opostas.

    Há algumas semanas faço o percurso até a minha casa ouvindo The Killers para levantar o astral,
mas desta vez não ouvi sequer metade das faixas do CD e já estou na Barra. Mas justamente onde menos
esperaria encontrar trânsito, é onde sou obrigada a reduzir a velocidade. Não avisto acidente nenhum,
mas ao me aproximar da entrada do condomínio dou com um aglomerado de pessoas; algumas paradas,
conversando, outras seguindo na mesma direção que eu.

    Ao passar pela guarita vazia, apercebo-me que essa movimentação toda vai dar exatamente na
terceira casa à direita da rua: a de fachada azul e janelas brancas. É a minha casa.




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Uma noite misteriosa e suas consequências

  • 1. Equinócio A Primavera Lu Piras CAPÍTULO DE DEGUSTAÇÃO PRIMEIRO CAPÍTULO TUDO NORMAL “ E a vida fez sentido até o dia seguinte” (Walt Whitman) A A Lua prateada reina sem súditos num céu sem estrelas. Sob esse véu negro e amparada pela maresia, caminho e deixo pegadas que aos poucos o mar desfaz. Sinto o vento roçar meu rosto, o sabor do salitre na língua, o cheiro do mar cada vez mais forte e a areia fria e dura sob os meus pés. Uma lágrima se mistura, contrastando com o sabor salgado. No peito, meu coração se agita como as ondas que encontram as rochas. Com os olhos marejados, só enxergo meus pés. De repente, uma densa névoa se forma ao meu redor e eu me vejo obrigada a parar de caminhar. Sento-me e colho um punhado de areia, que escapa entre meus dedos. Aqui ninguém pode ouvir, ninguém vai dizer nada. Estou só comigo mesma. A Lua Cheia desaparece por trás das nuvens. Faz frio, mas não tenho vontade de levantar e prosseguir. Prefiro ficar aqui até adormecer. Seria bom se eu sonhasse, se me transportasse para um lugar mais aconchegante, onde em vez do mar bravio, houvesse calmaria e onde o tempo não existisse. Os primeiros pingos de chuva lavam as lágrimas do meu rosto. Encolho o corpo abraçando os joelhos. De olhos fechados, saboreio a chuva. Até consigo sorrir por um breve instante. Apago. Página 1
  • 2. Equinócio A Primavera Lu Piras *** A brisa morna afasta a cortina e os raios de sol invadem o quarto me dificultando abrir os olhos. O celular insiste, mas não tenho pressa de levantar da cama e procurar por ele. O rádio-relógio marca onze em ponto. Para dormir tanto, eu devia estar cansada. Ao afastar o cobertor e pousar os pés no chão, reparo que há grãos de areia neles. De uma mecha de cabelo caído sobre os ombros sinto cheiro de maresia. Sinais de que eu estive mesmo numa praia, de que nada daquilo foi alucinação ou sonho. Não consigo lembrar por que fui parar lá nem como voltei para casa. Ligo o chuveiro e deixo a água correr pelo ralo até o vapor embaçar o espelho. Ao limpá-lo, vejo minha imagem turva. Esfrego os olhos até ver com clareza o rímel escorrido, manchando meu rosto. Vestígios de um dia que eu havia esquecido. Debaixo da água, fico imóvel, de olhos cerrados, deixando a pressão da ducha massagear meu corpo. O banho dura mais tempo do que de costume. Vou ao armário e escolho um jeans stretch e a camiseta azul clara que ganhei no meu último aniversário. Girls Just wanna Have Fun. Esta foi a música que escolhi para reconhecer de imediato as ligações de Christiane, minha melhor amiga. Pego no celular e pronuncio um alô arrastado. ― Clara! ― ela soa cansada e ofegante ― Onde você está, sua doida? ― pergunta com uma ponta de irritação. ― Em casa, Chris. Perdi completamente a noção das horas! ― Minha amiga bufa do outro lado. Silêncio vindo de Chris é perturbador. ― Mas porque “doida”? Tínhamos alguma coisa marcada? ― indago, temerosa, pois algo no fundo me diz que sim. ― Você ainda pergunta?! ― o timbre estridente me obriga a afastar o telefone ― A primeira prova do meu vestido de noiva, mulher! Meu casamento é daqui a três meses e você não está nem aí! Você é uma madrinha desnaturada, Clara. Desta vez sou eu quem fico em silêncio. Vindo de mim, o silêncio é natural, principalmente, quando me sinto uma irresponsável. A recriminação de Chris parte o meu coração, porque ela é a minha melhor amiga e nada poderia justificar o que eu fiz. Página 2
  • 3. Equinócio A Primavera Lu Piras ― Clara, eu te liguei várias vezes! Fiquei te esperando durante mais de uma hora até a estilista começar a surtar! Emudeço de novo diante da confusão dos meus pensamentos. Neste momento, tudo o que se ouve do outro lado da linha é o barulho do trânsito. ― Olha, eu não posso falar agora porque estou correndo para o dentista, às onze e meia. Já estou atrasadíssima! Depois a senhorita há de me explicar o que aconteceu. Como sou uma excelente amiga, acredito que você tenha uma boa explicação para ter me dado bolo justamente hoje! Adoraria poder lhe dar alguma explicação. E se eu a conheço, apesar da birra, ela não vai me cobrar explicação nenhuma porque sabe que neste momento estou muito mais chateada e inconformada do que ela. Um pedido de desculpas fica engasgado diante da chamada abruptamente interrompida. Olho atordoada para o telefone na minha mão. Durante alguns instantes, um vazio se alastra em minha mente e eu não sei o que fazer. Então guardo o celular na bolsa e automaticamente desço as escadas para a cozinha, onde, pelo cheiro de assado, está Maria, nossa abençoada fada do lar, preparando o almoço. ― Bom dia... Maria. ― digo com cautela, a espera de alguma reprovação da parte dela. ― Bom dia, querida! ― ela continua encostada à bancada cortando os tomates em rodelas, sem virar- se para mim ― Sua irmã já saiu para a escola e seu pai está conversando com o Dr. Walter no portão. O almoço vai sair em dez minutos. Põe estes pratos na mesa, por favor? Ela falou naturalmente, como se hoje fosse um dia normal como qualquer outro. ― Maria, está tudo bem? ― Tudo ótimo, querida. O assado cheira bem, não acha? ― vira-se de frente para mim com um sorriso lisonjeiro. Emudeci por alguns segundos. ― Sim, cheira bem. Página 3
  • 4. Equinócio A Primavera Lu Piras Pelo ronco na barriga, não devo comer há muitas horas. Maria volta-se para a panela de arroz e eu coloco o último prato à mesa, intrigada. ― Maria, você não estranha o fato de eu estar em casa a esta hora? Num dia em que eu deveria estar na faculdade... ― É verdade. ― vira-se novamente para mim ― Você nunca almoça em casa. Ahhhh... ― sua longa onomatopéia me deixa em suspense ― Eu devia ter preparado uma sobremesa! Você podia ter avisado com mais antecedência que ia almoçar em casa, meu bem. Ela devia ter me contestado e não pensado em me premiar. E eu devia saber que ela não me ajudaria a esclarecer nada sobre a noite misteriosa. Maria foi minha babá e também de Olívia, minha irmã mais nova de onze anos. Sempre foi como uma mãe. Dedica-se à nossa família desde quando minha mãe ainda era viva. Além de governanta, cozinheira, arrumadeira e secretária competente, ela ainda faz as vezes de Jó no jogo da paciência comigo e minha maninha. Em suma, Maria é o tronco da família Chevallier. Nossa indispensável governanta nasceu em 1960, em Araripe, no Ceará. Aos quatro anos de idade, com seus pais e sua irmã dois anos mais nova, Vilma, migrou para o Rio de Janeiro. A família morava numa casinha de alvenaria na Rocinha. Quando Maria completou sete anos, perdeu os pais num incêndio que começou no barraco vizinho e se alastrou. Seu pai conseguiu salvá-las, mas não resistiu. Maria e Vilma foram encaminhadas a um orfanato. Um ano depois, Vilma foi adotada e a família não quis ficar com Maria porque já estava muito crescida. Dois anos depois, um casal idoso a adotou. Eles lhe proporcionam estudos até o segundo grau e Maria cuidou deles até os dois falecerem. Nunca mais soube do paradeiro da irmã. Nos vinte e dois anos que ela convive com a minha família, nunca desistiu de procurar por Vilma. Ao contrário das desventuras pelas quais passou Maria, eu e Olívia tivemos uma infância com algum conforto. Vivemos toda a nossa vida num bairro de classe média da cidade do Rio de Janeiro, num condomínio de dezoito casas, cada uma com jardim, piscina e cercas baixas ― uma raridade nesta cidade. Papai senta-se à mesa a meu lado, me dá um beijo na testa e diz boa tarde sem muito entusiasmo. Espichando-se sobre o assado, começa a servir-se. Não comenta nada sobre minha presença e começo a achar que realmente está tudo normal, embora me sinta estranha. Página 4
  • 5. Equinócio A Primavera Lu Piras *** Demorei mais tempo que o habitual almoçando. Papai já havia saído para o trabalho e eu ainda continuei à mesa. Tenho um apetite razoável para uma garota de vinte e um anos, magra e de estatura mediana, mas hoje exagerei um pouquinho. Ajudo Maria a tirar a mesa e depois com a limpeza da louça. Ambas em silêncio, como máquinas programadas, uma lava e a outra seca. Não consigo pronunciar uma única palavra, pensar em nenhum assunto, raciocinar sobre nada. Um vazio me consome de novo. Enquanto enxugo os talheres, penso que eu sou a mesma de sempre nesta tarde, que minha vida até agora é a mesma de sempre, mesmo me sentindo diferente. Como ninguém comentou nada sobre ontem, começo a supor que eu esteja desenvolvendo alguma forma de sonambulismo. Maria foi afável comigo, como todos os dias; papai estava apressado mas nada de se estranhar; minha melhor amiga também não comentou nada de extraordinário a meu respeito a não ser o puxão de orelha merecido que me deu. Preciso entender o que se passou comigo para ter faltado a um compromisso tão importante com ela. Eu estava sozinha na praia. Terei que me conformar com meu próprio testemunho e com os grãos de areia em meus pés. Lembro perfeitamente que chorava. Por que não queria sair de lá, voltar para casa? Por que eu chorava? Ocorre-me verificar se há areia dentro do carro. Corro até a garagem, abro a porta do meu Mini Cooper S vermelho, tiro os tapetes, sacudo-os e nada: nem um grãozinho para esclarecer ao menos como eu voltei para casa na noite de ontem. A pé? Bom, ainda teria sido pelo menos um quilômetro de caminhada. *** A aula da manhã já está perdida, mas ainda estou em tempo de assistir a da tarde. No estacionamento da faculdade de medicina da Universidade Federal, bato a porta do carro com mais força do que habitualmente, estressada pelo trânsito. Já foi o tempo em que não havia engarrafamento nesta cidade. Eu não existia naquela época, mas meu pai enche a boca para dizer que o Rio de Janeiro já foi, Página 5
  • 6. Equinócio A Primavera Lu Piras além de um paraíso natural, um paraíso urbano. Eu sou deste tempo em que, a qualquer hora, em qualquer lugar, há filas quilométricas para tudo. Estou me dirigindo à guarita do estacionamento quando ouço o roncar agressivo de uma moto e sinto cheiro de combustível queimando. Tento inutilmente descobrir a direção de onde partem os sinais desagradáveis enquanto continuo a caminhada acelerando mais o passo. Queria não pensar no pior, mas esse repentino frio na barriga só aparece quando uma determinada pessoa está por perto. E nunca tenho tempo de fugir. Um sopro de vento ― por pouco não seria exagero dizer tornado ― provoca uma onda de terra sobre mim. Em segundos, estou cega e imunda dos pés à cabeça. Posso sentir a terra entranhada nos meus pulmões e mesmo sem ter aberto a boca estou com um sabor horrível como se tivesse acabado de lamber pó de cimento. Cuspir e tossir não está adiantando nada. Enquanto me enraiveço e abano a poeira ainda suspensa, eis que da névoa escura de pó, surge Jonas Bauer, montado na sua Harley Davidson Heritage Softail. Ele ri, guturalmente, convencido e infantilóide como sempre. A melhor parte da sua diversão deve ser esta, em que me assiste, na maioria das vezes revoltosa, depois de terminar o seu número teatral. Ele está com aquela sua tradicional expressão, uma espécie de sorriso para dentro, meio torto e meio desequilibrado entre o maníaco e o diabólico. Que espécie de pensamentos paranóides terá esse garoto? Por mais que eu tente encontrar uma explicação para toda a espécie de confusão que ele apronta e, principalmente, para sua implicância comigo desde a aurora da infância, não consigo. Poderia ter a ver com a minha reação. Sem querer, eu poderia o estar incentivando. Para tirar a dúvida, comecei a reagir aos seus ataques de várias formas diferentes. Houve vezes que o confrontei, noutras saí correndo, já gritei de raiva, mostrei-lhe o dedo médio, lançei-lhe olhares sinistros, ri de mim mesma. Nada o dissuade a largar do meu pé. Finalmente chegou o dia em que preciso assumir que, independentemente de como eu reaja, por alguma razão provavelmente doentia, sou o perfil ideal de vítima para ele. Por isso, desta vez, enquanto sua risada ainda ecoa, simplesmente dou as costas e limito- me a fazer de conta que o ignoro. Ao fim do corredor do bloco A onde curso todas as disciplinas deste semestre, encontro meus amigos Marcus e Jéssica, de mãos dadas. Quando os dois me cumprimentam, já perceberam pelo estado lastimável da minha roupa e meu olhar vingativo, que cruzei com Jonas. Preferem não tecer comentários Página 6
  • 7. Equinócio A Primavera Lu Piras e me deixar tirar a conclusão de suas expressões de solidariedade. Jess quis me arrastar até o banheiro, mas estávamos atrasados para a minha aula preferida. Não seria por causa daquele garoto mimado que eu perderia mais um minuto que fosse. Marcus e Jéssica são os responsáveis pelas cenas de romance agarradinho da faculdade. Começou há dois anos, por conta de um trabalho de grupo sobre samambaias que fizemos no segundo ano. Tudo bem, samambaias não têm nada de românticas, mas depois de horas encafuados nos corredores da biblioteca nacional até um manual de direito administrativo pode se tornar um pretexto para esticar um programinha. Desde então, são como pinhão e coroa numa engrenagem: inseparáveis. Para Jess, os planos de morar juntos incluem um casal de filhos (de preferência, que ambos herdem o perfil leonino de Marcus), um cachorro westie e uma casa tipo chalé com cercas brancas em Itaipava. Para Marcus, bem, ele prefere apenas não discordar. A aula de Medicina Interna é imperdível, aquela que mais prende a minha atenção e por isso a que passa mais depressa. Assim que nossa turma é dispensada, Jéssica se despede. Eu e Marcus permanecemos na mesma sala para a aula de Patologia Forense. Metade da turma conversa animadamente e a outra metade está conectada no Facebook Móvel testando a paciência do professor, até que ele encontra um bom motivo para testar nossa capacidade de ficar em silêncio e afastados das redes sociais. E cá estamos nós, formando grupos para um trabalho valendo nota. A ausência de Christiane e Jéssica nos deixa desfalcados mas, inesperadamente, senta-se Wotan ao meu lado. Ele praticamente impõe a sua participação. Marcus não se importa com a intrusão do nosso estranho colega porque Wotan é, por excelência, o CDF da turma. Wotan pertence a um grupo com mais dois rapazes, sendo que ele age como uma espécie de líder dos outros dois. Estes, que fazem lembrar irmãos siameses, chamam-se Ahriman e Lugh. Intrigados por seus nomes incomuns, alguns colegas ― que não tinham mais o que fazer ― pesquisaram e começaram a referir-se aos três como pagãos. Como é de suspeitar, esta referência advém das origens de seus nomes, deuses antigos da mitologia; O apelido tomou a boca do povo da universidade e os pagãos são reconhecidos como a mais silenciosa e misteriosa panelinha da Universidade. Físicamente são muito altos, magros e pálidos ― sendo Wotan o mais alto, medindo cerca de 1m90 ―. Bastariam estas razões para sobressaírem entre os demais alunos, em sua maioria, cariocas sorridentes e bronzeados. Os pagãos Página 7
  • 8. Equinócio A Primavera Lu Piras são anti-sociais, praticamente nunca falam com ninguém e se alguém se aproxima deles, encontram sempre forma de espantarem essa pessoa ou de simplesmente desaparecerem. Portanto, é com a figurinha mais esquisita de todo o campus de medicina que trabalhamos neste momento. Wotan mal pronuncia uma palavra, limitando-se a concordar com minhas audaciosas sugestões e com as respostas certeiras de Marcus. Já é impossível ignorar a insistência do olhar intimidador de Wotan sobre mim, mas Marcus não enxerga outra coisa senão as questões. Com o término da aula, arrumo depressa o caderno e o estojo na mochila e agarro Marcus pela manga do casaco, arrastando-o comigo pelas escadas para ganhar distância de Wotan. Para nosso espanto, ele nos intercepta no meio do caminho convidando-se para ir conosco. É estranho como conseguiu nos alcançar sem darmos por isso e ainda mais estranho ouvi-lo pronunciar uma frase com mais de três palavras; foi, talvez, a sua frase mais longa nos quatro anos que cursamos juntos esta faculdade. A lanchonete do campus, Toca do Coelho, é o nosso point. O ‘coelho’ é um senhor baixinho, gordo, de bochechas rosadas e fartos bigodes que atende pelo nome de... Seu Coelho, claro. Nos intervalos é muito fácil encontrar aqui todas as tribos e etnias, numa miscigenação harmônica e desorganizada. É uma confusão, uma barulheira, uma disputa para conseguir mesa, que é mais complicada durante os intervalos da manhã, pois à tarde podemos sempre escolher. Preferi a mesa mais central do bar, aquela que está cercada de todas as outras mesas ocupadas. Não costumo ser desconfiada, mas a súbita aproximação de Wotan não me deixou alternativa. Avisto Christiane caminhando, leve e fagueira, em nossa direção. Neste momento, Wotan está de costas para ela. Ela não disfarça a careta de perplexidade quando se apercebe que é Wotan que está conosco, sentado de frente para mim. Pela primeira vez ― desde que ele grudou em nós ― consigo exprimir um ar de riso. Com olhos fundos e inexpressivos, Wotan me observa, sorumbático e hipnotizado. Marcus finalmente cai na real, percebe a situação embaraçosa e passa a encarar o branquelo com mais austeridade. Wotan desvia a atenção de mim como se fizesse um favor em dirigir-se para Marcus. Bastou um segundo nesse cruzamento de olhares, para que Marcus levantasse e derrubasse a cadeira num estrondo arrastado de metal roçando o cimento. Página 8
  • 9. Equinócio A Primavera Lu Piras Agora que todos os presentes se voltaram para nossa mesa, Marcus e Wotan rasgam sorrisos para a plateia. Pareceria mesmo vedetismo se eu já não conhecesse o sorriso zombeteiro de Marcus. Já o sorriso de Wotan não é divertido, é irado. ― Qual é a tua, pagão? Descobriu o sexo oposto? Wotan ergue o queixo ensaiando um tom superior na resposta que não veio. A chegada triunfal de Christiane é a saída de emergência que eu procurava. Trocamos olhares cúmplices e, agarrando-a pelo braço, rebocamos Marcus e seguimos juntos em direção ao campo polidesportivo. Ao chegarmos à primeira quadra onde um grupo entretido recolhe a rede de tênis, Chris começa o interrogatório: ― Vamos, desembuchem: que o Wotan estava fazendo com vocês na lanchonete? Você e o Wotan iam se pegar, Marcus? O que foi que eu perdi, Clarinha?! Boiei! ― dispara ela sacudindo seus fartos cachos dourados. ― Chris, não alimenta o estresse, ok? O pagão juntou-se à nós num trabalho de Patologia Forense e depois nos seguiu até a Toca, sentou com a gente e ficou me encarando... foi só isso. Christiane arregala os já expressivos olhos verdes. Ela nem precisa externar seus pensamentos. Eu já conheço todas as suas expressões e sei que lá vem disparate... ― Encarando você, amiga? Então um dos pagãos está afim de você? Urgh..., eu não queria estar na sua pele! Qualquer descrição não fará jus à careta de Chris. ― Eu ia quebrar os dentes feios dele... ― resmunga Marcus com o maxilar endurecido. Coloco a mão em seu ombro e Chris se coloca entre nós, passando o braço por trás de nossas costas. Seguimos mudos, lado a lado, contornando as quadras até chegarmos aos jardins do campus. Ele já está repleto de flores prestes a desabrochar com a chegada da primavera dentro de uma semana. O celular de Marcus toca e, de um jeito meio alheio, ele se despede. Ele tem a expressão pesada e ríspida, como quem resmunga para dentro. Então, ao me despedir afago-lhe o cabelo, um gesto que tomei por hábito e que ele recebe sempre com um sorriso. Marcus faz um tipo meio torrão, mas tem o Página 9
  • 10. Equinócio A Primavera Lu Piras coração mais mole que pudim. Jéssica, sua namorada, sabe se aproveitar disso; Se depender dele, os dois nunca brigam. Eu e Chis nos acomodamos num banquinho. Ela segura sua bolsa no colo e procura o estojo de batom. Quer me mostrar a cor que escolheu para usar no dia do casamento. Seu assunto preferido atualmente são os preparativos, de modo que se a função da madrinha é a de, no mínimo, demonstrar entusiasmo, eu já devia ter me demitido do cargo há muito tempo. Mas a verdade é que faço qualquer sacrifício, ― até ser madrinha de casamento ― pela minha melhor amiga. Eu dei um pouco de corda e de repente já estava quase me enforcando com ela. Chris começou a se empolgar, me questionou sobre ter ou não alças no vestido de noiva, sobre o local da igreja, as cores e texturas dos convites (tons quentes ou tons pastel? Ela prefere pastel), sobre o chef que está elaborando o menu do buffet, as flores da estação, do book do fotógrafo e até sobre o formato dos guardanapos. De repente (não tão de repente assim), já passa das três da tarde e temos dois tempos de Medicina Interna III, no grande auditório do Bloco A. Para alívio de uma turma já irriquieta nas carteiras, a aula termina quinze minutos mais cedo, às quatro da tarde. Como habitualmente, nos despedimos no parque de estacionamento. Cada uma no seu carro, partimos em direções opostas. Há algumas semanas faço o percurso até a minha casa ouvindo The Killers para levantar o astral, mas desta vez não ouvi sequer metade das faixas do CD e já estou na Barra. Mas justamente onde menos esperaria encontrar trânsito, é onde sou obrigada a reduzir a velocidade. Não avisto acidente nenhum, mas ao me aproximar da entrada do condomínio dou com um aglomerado de pessoas; algumas paradas, conversando, outras seguindo na mesma direção que eu. Ao passar pela guarita vazia, apercebo-me que essa movimentação toda vai dar exatamente na terceira casa à direita da rua: a de fachada azul e janelas brancas. É a minha casa. Página 10