2. 1
Todos sabem
que meus lábios nunca
murmuraram uma oração.
Não procurei nunca
dissimular os meus pecados.
Ignoro se existem realmente
uma Justiça e uma
Misericórdia.
Mas, se existem, não
desespero delas: fui sempre
um homem sincero.
2
Que vale mais?
Fazer exame de consciência
sentado na taverna,
ou prosternado na mesquita?
Não me interessa saber
se tenho um Senhor
e o destino que me reserva.
3
Considera
com indugência os que
bebem até à embriaguez.
Lembra-te de que tens
defeitos maiores.
Se queres conhecer a paz
e a serenidade, pensa
nos miseráveis que padecem
os piores infortúnios, e...
acabarás por julgar-te feliz.
3. 4
Que a tua
sabedoria não seja
uma humilhação
para o teu próximo.
Guarda domínio sobre ti mesmo e nunca te
abandones à cólera.
Se aspiras à paz definitiva,
sorri ao Destino que te fere;
não firas ninguém.
5
Procura ser
feliz ainda hoje,
pois não sabes o que te reserva
o dia de amanhã.
Toma uma urna cheia de
vinho, senta-te ao clarão do
luar e monologa: "Talvez
amanhã a lua me procure
em vão."
6
Contenta-te
com poucos amigos.
Não busques prolongar a
simpatia que alguém te
inspirou.
Antes de apertares a mão
de um homem, considera se
ela um dia não se erguera
contra ti.
4. 7
O corão,
chamado o Livro supremo,
pode ser lido de vez em
quando; mas ninguém se
deleita na sua leitura,
sempre que o lê.
Na taça cheia de vinho está
gravado um texto, de tão
adorável sabedoria, que a
boca, à falta dos olhos,
lê sempre com delícia.
8
Este vaso
foi, outrora, um amante,
como eu, que sofria com a
indiferença de uma mulher...
A asa curva do vaso é o
braço que enlaçava
o pescoço da bem-amada.
9
Como é vil
o coração que,
incapaz de amar, não pode
conhecer o delírio da
paixão!...
Se não amas, és um indigno
do sol que te ilumina
da lua que te consola.
10
Sinto que
a minha mocidade refloresce.
Desejo aquele vinho
que me dá calor e alegria...
Quero vinho...
Dizes que é amargo?
Não importa.
Tem o gosto da vida.
5. 11
Inútil é
que te aflijas: nada
podes acerca do teu destino.
Se és prudente, aproveita
o momento atual.
O futuro?
Sabes o que ele te
reservará?...
12
Além da
Terra, além do Infinito,
eu procurava em vão o Céu
e o Inferno.
Mas uma voz me disse:
"O Céu e o Inferno estão em
ti mesmo."
13
Deixemo-nos
de palavras vãs.
Levanta-te e dá-me
um pouco de vinho.
Esta noite tua boca é a mais
bela rosa do mundo e basta
para todos os meus desejos.
Dá-me vinho.
Que ele seja corado como as
tuas faces, e o meu remorso
será leve como as tuas tranças.
6. 14
A brisa da
primavera renova
as rosas e, na sombra azul
do jardim, acaricia
o rosto de minha amada.
A despeito da ventura que
já gozei, sou tão feliz hoje
que não me lembro de ontem:
esqueço o passado...
É tão imperioso o prazer
deste momento...
15
Perderei
ainda muito tempo,
querendo encher o mar com
pedras?
Desprezo igualmente
os libertinos e os devotos.
Kháyyám, quem te poderá
assegurar que irás para o Céu
ou para o Inferno?
Que significam essas duas
palavras?... Conheces alguém
que já tenha visitado
esses países misteriosos?
16
Bebo, mas
ignoro quem te fez,
ó urna imensa!
Sei apenas que podes conter
três medidas de vinho e que
um dia a Morte te destruirá.
Mais tarde, indagarei por
quem foste criada, por que
foste feliz, por que não és mais
que poeira.
7. 17
Os dias
passam rápidos
como as águas do rio
ou o vento do deserto.
Dois há, em particular,
que me são indiferentes:
o que passou ontem,
o que virá amanhã.
18
Quando nasci?
Quando morrerei?
Nenhum homem pode evocar
o dia do seu nascimento
ou prever o de sua morte.
Vem, ó minha deliciosa amada!
Quero esquecer, na embriaguez,
a nossa incurável
ignorância.
19
Kháyyám!
Tecendo a tenda da sabedoria
caíste na fogueira da Dor
e ficaste reduzido a cinzas.
O anjo Azrael cortou as
cordas da tenda e a Morte
vendeu-a por uma canção.
20
Kháyyám!
Não se aflijas por seres
um grande pecador!
É inútil a tua tristeza.
Depois da morte virá o
Nada ou a Misericórdia.
8. 21
Nas igrejas,
nas sinagogas e nas
mesquitas buscam refúgio
os que temem o inferno.
Mas o homem que conhece
os segredos de Deus não
cultiva no seu coração as
sementes do terror e da
súplica.
22
Na primavera,
gosto de sentar-me
à orla de um campo florido.
Bebo o vinho que me
oferece uma linda rapariga e
não cuido de minha salvação.
Se tal pensamento me
ocupasse, eu valeria menos
que um pobre cão.
23
O imenso
mundo: um grão de
areia perdido no espaço.
Toda a ciência
dos homens: palavras.
Os povos, os animais e as
flores dos sete climas:
sombras.
O resultado de tua
meditação: nada.
9. 24
Eu cambaleava
de sono, e a
Sabedoria me disse: "Nunca,
no sono, a rosa da felicidade
floriu para ninguém.
Por que te abandonares a
esse irmão da Morte?
Bebe vinho?
Tens muitos
séculos para dormir!"
25
Meu coração
diz: "Quero saber!
Tenho um desejo
ardente de ciência!
Instrui-me, Kháyyám,
tu que tanto estudaste!"
Pronunciei a primeira letra
do alfabeto, e o meu coração
retrucou: "Agora, sei.
Um é o primeiro algarismo
do número que não acaba
nunca..."
26
Ninguém
desvendará
o que é misterioso.
Ninguém poderá ver o que
se oculta debaixo das
aparências.
Todas as nossas moradas
são provisórias, salvo a última,
no coração da terra.
Bebe o vinho amigo!
Basta de palavras
supérfluas.
10. 27
Admito que
tenhas resolvido
o enigma da criação.
E o teu destino?...
Convenho que tenhas
despido a Verdade
de todas as suas roupagens.
E o teu destino?...
Admito que tenhas vivido
cem anos felizes e ainda
restem outros cem a viver.
E o teu destino?...
28
Convence-te
bem do seguinte:
Um dia tua alma abandonará
o teu corpo e serás
arrastado para trás do véu
que flutua entre o universo
e o incognoscível.
Enquanto esperas,
cuida de ser feliz!
Não sabes de onde vens.
Não sabes para onde vais.
29
Os sábios
e os filósofos
mais ilustres caminharam
nas trevas da ignorância.
E eram os luzeiros
do seu tempo!...
Em suma, que fizeram eles?
Pronunciaram algumas
frases confusas
e adormeceram fatigados.
11. 30
A vida é um
jogo monótono
em que tens a certeza
de ganhar dois pontos:
a dor e a morte.
Feliz a criança que expirou
no dia do nascimento!...
Mais feliz ainda é o que
não veio a este mundo...
31
Na feira
que atravessas, não
tentes encontrar
nenhum amigo.
Não procures tampouco
um abrigo seguro.
Com alma serena, aceita
a dor sem esperança
de remédio, que não existe.
Sorri ao infortúnio e não
peças a ninguém que te
sorria: seria tempo perdido.
32
A rosa
gira descuidosa
dos cálculos dos sábios.
Renuncia à vaidade de
contar os astros e medita
antes sobre esta certeza:
deves morrer, não sonharás
mais e os vermes da terra
ou os cães vagabundos
devorarão o teu cadáver.
12. 33
O criador
do universo
e das estrelas excedeu-se
quando inventou a dor.
Lábios vermelhos como rubi,
cabeleiras embalsamadas,
quantos sois neste mundo?...
34
Nem sequer
entrevejo o Céu...
Meus olhos estão toldados
de lágrimas.
O fogo do Inferno é uma
chama ligeira comparado
às labaredas que me
devoram a alma.
O Céu é, para mim,
um instante de paz.
35
Sono sobre
a terra.
Sono debaixo da terra.
Sobre a terra, debaixo
da terra, homens deitados.
O nada em toda parte.
Deserto do nada.
Homens chegam.
Outros partem.
36
Velho mundo
que atravessa
a galope o cavalo branco
e negro do Dia e da Noite,
és o palácio triste onde
cem Djemchids sonharam com
a glória e cem Bahrâms
sonharam com o amor,
e todos despertaram chorando.
13. 37
O vento
do Sul crestou
a rosa a que o rouxinol
entoava um hino.
Devemos chorar o destino
da rosa, ou o nosso?
Quando a morte empalidecer
nossas faces, outras
rosas desabrocharão...
38
Esquece
que ontem
não lograste a recompensa
que merecias.
Sê feliz.
Não lamentes nada.
Não esperes nada.
Tudo que deve acontecer
está escrito no Livro
que o vento da Eternidade
folheia ao acaso.
39
Sempre que
ouço dissertar
sobre os gozos reservados
aos Eleitos, limito-me
a dizer: "Só tenho confiança
no vinho.
Moeda sonante,
e não promessas!
O ruído dos tambores
é belo a grande distância..."
14. 40
Bebe vinho!
Só ele te dará a mocidade,
ele é a vida eterna!
Divina estação das rosas,
do vinho e dos bons amigos!
Sê feliz um instante,
o instante fugitivo
que é a tua vida...
41
Bebe um
pouco de vinho
porque dormirás muito tempo
debaixo da terra, sem amigo.
sem camarada, sem mulher.
Confio-te um segredo:
as tulipas murchas
não reflorescem mais.
42
Baixinho,
a argila segredou
ao oleiro que a trabalhava:
"Não esqueças
que já fui como tu...
Não me maltrates..."
43
Oleiro,
se tu és perspicaz,
não mortifiques a argila
em que Adão foi modelado!
Vejo no torno que moves
a mão de Feridoun,
o coração de Khorsrou...
Que fizeste?...
15. 44
A tulipa
rubra nasce
no campo regado outrora
pelo sangue de um rei.
A violeta brota do sinal
de beleza que palpitava
no rosto de um adolescente.
45
Há miríades
de séculos as auroras
e os crepúsculos sucedem.
Há séculos e séculos
os astros fazem
a sua ronda de sempre.
Pisa a terra com cautela...
talvez o torrão que vais
esmagar tenha sido o olho
terno de um belo adolescente.
46
As raízes do
narciso, que balança à
beira do riacho, brotaram
dos lábios de uma mulher.
Pisa muito de leve
a relva macia!
Quem sabe se ela não
germinou nas cinzas
de rostos que eram belos
e brilhantes como
tulipas vermelhas?
16. 47
Vi ontem
um oleiro sentado
diante do seu torno,
modelando as alças e os
contornos de uma urna.
O barro que ele amassava
era feito de crânios
de sultões
e de mãos de mendigos.
48
O bem e o mal disputam
a primazia neste mundo.
O Céu não é responsável
pela felicidade ou pela
desventura que o destino
nos reserva.
Não agradeças, pois, ao
Céu, não o acuses também.
Ele é indiferente às tuas
alegrias, indiferente
aos teus pesares.
49
Se enxertaste
no teu coração
a rosa do Amor,
tua vida não foi inútil,
quer tenhas buscado ouvir
a voz de Deus, quer tenhas
sorridente empunhado
a taça do prazer.
50
Sê prudente, ó viajante!
Perigoso é o caminho
que palmilhas!
A espada do destino
é acerada.
Não colhas as amêndoas
doces que encontrares:
têm veneno.
17. 51
Um jardim,
uma rapariga ondulosa,
uma ânfora de vinho,
o meu desejo e minha
amargura: eis o meu
Paraíso e o meu Inferno!...
Quem sabe, porém, o que
é o Céu, que é o Inferno!?
52
Tu, cujas
faces tiveram
por modelos as flores
do campo, cujo rosto parece
o de um ídolo chinês,
saberás acaso que o teu
olhar de veludo fez o rei
da Babilônia igual ao
bispo do jogo de xadrez
que foge da rainha?...
53
A vida passa.
Que resta
de Bagdad e de Balk?
O choque mais ligeiro
é fatal à rosa completamente
desabrochada...
Bebe vinho e contempla
a lua, evocando as civilizações
que ela já viu morrer
54
Escuta a voz da
Sabedoria, que te repete
o dia inteiro: "A vida
é breve e tu não és como
as plantas que reverdecem
depois de podadas."
18. 55
Os professores
e os sábios silenciosos
morreram sem se entenderem
no tocante ao ser e ao não-ser.
Meus irmãos!
Ignorantes, continuemos
a saborear o suco dos
bons cachos e deixemos
que os grandes homens se
regalem com as passas.
56
Meu nascimento não trouxe
nenhum proveito ao universo.
MInha morte não lhe
diminuirá a imensidade,
nem a beleza.
Ninguém pode explicar-me
por que vim, por que me vou
embora.
57
No caminho do Amor
nos perderemos e o Destino
nos esmagará com o seu tacão.
Ó rapariga, ó minha taça
encantada, ergue-te e dá-me
de beber em teus lábios,
antes que eu me transforme
em poeira.
58
Só de nome conhecemos
a felicidade...
Nosso amigo mais velho
é o vinho novo.
Acaricia com o olhar
e com a mão o único bem
que não falha: a urna
cheia do sangue da vinha.
19. 59
Não busques a felicidade
A vida é breve como um suspiro.
As cinzas de Djemchid
e de Kai-Kobao giram
na poeira vermelha
que tolda o ar.
O universo é uma miragem.
A vida é um sonho.
60
Senta-te e bebe, que serás
mais feliz que Mahmud.
Escuta as melodias que
exalam as harpas dos amantes:
são os verdadeiros salmos
de David.
Não mergulhes no passado,
não sondes o futuro.
Que o teu pensamento não vá
além do momento presente:
eis o segredo da paz!...
61
Os homens
estreitos e orgulhosos
criaram diferenças
entre alma e corpo.
De mim, so afirmo uma coisa:
o vinho destrói os cuidados
que nos atormentam e
nos dá a quietude perfeita.
62
Que enigma,
os astros
que saltam no espaço!
Kháyyám, agarra-te
firmemente
à corda da Sabedoria.
Presta atenção à vertigem,
que faz cair, perto de ti,
os teus companheiros!
20. 63
Não temo a Morte:
prefiro esse fato inelutável
ao outro que me foi imposto
no dia do meu nascimento.
Que é a vida?
Um bem que me confiaram
sem me consultar e que
restituirei com indiferença.
64
A vida passa,
qual rápida caravana!
Toma as rédeas ao teu
corcel, pára e surpreende
o minuto de alegria...
Linda rapariga,
por que te afliges?
Dá-me um pouco de vinho.
A noite já vai acabar...
65
Ouço dizer
que os amantes do vinho
serão danados no Inferno.
Não há verdades, mas há
mentiras evidentes.
Se os que amam o vinho
e o amor vão para o inferno
o Paraíso deve estar vazio.
66
Estou velho,
e a paixão que me inspiraste
arrastar-me-á ao túmulo,
pois não cesso de encher
de vinho a grande taça.
Minha paixão por ti tem
razão contra mim mesmo...
E o tempo desfolha
a minha bela rosa...
21. 67
Podes obcecar-me,
ó miragem
de uma outra ventura!
Podeis modular vossas
encantações, ó vozes amorosas!
Contemplo a que já escolhi
e só quero ouvir a voz
que me seduziu.
Alguém me dirá:
"Deus te perdoará."
Recuso o perdão
que não pedi.
68
Um pouco de pão,
um pouco de água fresca,
a sombra de uma árvore
e os teus olhos!
Nenhum sultão
é mais feliz do que eu...
Nenhum mendigo
é mais triste....
69
Por que
tanta suavidade, tanta
ternura, no começo
do nosso amor?
Por que tantos carinhos,
tantas delícias, depois?
E...por que, hoje, o teu
único prazer é dilacerar
o meu coração?
Por quê?
22. 70
Vinho!
Eis o remédio de que carece
o meu coração doente!
Vinho com perfume
almiscarado!
Vinho cor de rosa!
Dá-me vinho para apagar
o incêndio da minha tristeza!
Vinho e o teu alaúde
de cordas de seda,
ó minha bem-amada!
71
Falas-me de
um Criador...
Pois ele só formou
as criaturas
para destruí-las?...
Por que são feias?
Por que são belas?
A quem cabe
a responsabilidade?
Não compreendo nada.
72
Todos os
homens pretendem
caminhar na estrada
do Conhecimento.
Essa estrada, uns a
procuram, outros
afirmam tê-la encontrado.
Um dia, porém, uma voz
proclamará: "Não há
caminho, nem atalho!"
23. 73
Oferece às
luzes da aurora
o vinho de tua taça,
semelhante à tulipa primaveril!
Dedica ao sorriso de um
adolescente o vinho de tua
taça, que é vermelho
como a tua boca!
Bebe e esquece que o
punho da dor breve te
derribará.
74
Vinho!
Vinho em torrentes!
Que ele palpite
nas minhas veias!
Que ele borbulhe
na minha cabeça!
Taças!...
Silêncio!
Tudo é mentira...
Taças...
Depressa!
Envelheci muito...
75
Um tal
odor de vinho
emanará do meu túmulo, que
embriagará os viandantes.
Uma serenidade tal
pairará sobre a minha
sepultura, que os amantes não
poderão afastar-se dela.
24. 76
No turbilhão
da vida só são
felizes os homens que,
presumindo saber tudo,
não buscam instruir-se.
Inclinei-me na
perscrutação de todos
os segredos do Universo,
e voltei à minha solidão,
invejando os cegos
que encontrei pelo caminho.
77
Dizem-me:
"Não bebas mais,
Kháyyám!"
E eu respondo:"Quando
bebo, ouço o que dizem as
rosas, tulipas
e os jasmins. Ouço mesmo
o que não me podem dizer
a minha bem-amada!"
78
Em que
pensas, amigo meu?
Em teus antepassados?
São o pó no pó.
Pensas nas virtudes
que tiveram?
Deixa-me sorrir...
Toma esta urna e bebamos,
escutando sem inquietação o
grande silêncio do Universo.
25. 79
Amigo:
não faças projeto
algum para amanhã.
Sabes acaso se poderás
concluir a frase
que vais começar?
Amanhã, estaremos talvez
muito longe desta
hospedaria, como os que já
se foram há sete mil anos.
80
Ó gladiador
de corações,
toma uma urna e uma taça!
Sentemos-nos à beira
da corrente cristalina.
Esbelto adolescente de
semblante luminoso, eu te
contemplo e imagino
a urna e a taça
que serás mais tarde!...
81
Há muito
tempo a minha mocidade jaz
entre as coisas mortas.
Primavera da minha vida,
estás hoje onde estão as
primaveras que passaram.
Mocidade minha! passaste
sem que eu me apercebesse!
Partiste, como aos poucos
se vão os melhores
dias da primavera.
26. 82
Delicia-te, ó
meu irmão, com
todos os perfumes, todas
as cores, todas as músicas.
Envolve de carícias
todas as mulheres.
Lembra-te de que a vida
é fugaz e que breve
voltará ao pó.
83
É loucura
aspirares
à paz neste mundo.
Loucura é creres num
repouso eterno: - depois
de tua morte, teu sono será
breve e renascerás num tufo
de ervas, que será pisado, ou
numa flor que o sol crestará.
84
Pergunto a mim mesmo
o que em verdade possuo.
Considero o que subsistirá
de mim depois
de minha morte.
Nossa vida é breve
como um incêndio.
Chama, que um leve sopro
apaga; cinzas, que o vento
dispersa: eis a existência
de um homem.
85
Convicção
e dúvida, erro e verdade -
são palavras tão vazias
como uma bolha de ar.
Irisada ou opaca, essa
bolha é a imagem
de tua vida.
27. 86
Mais vale
uma urna de vinho
que o poder,
a glória e as riquezas.
Respeito o amante que
geme de felicidade; detesto
o hipócrita
que murmura orações.
87
Escuta um
grande segredo:
quando a primeira aurora
iluminou o mundo, Adão já
era uma criatura dolorosa,
que pedia a noite,
que ansiava pela morte.
88
A Lua do Ramazam
apareceu.
Amanhã o sol banhará de
luz uma cidade silenciosa.
E os vinhos dormirão nas
suas urnas e as raparigas
à sombra dos bosques.
89
Não pedi
a vida a ninguém.
Esforço-me por acolher
sem espanto e sem cólera
tudo o que a vida me oferece.
Partirei sem indagar
o motivo da minha misteriosa
estada neste mundo.
28. 90
Colhe todos
os frutos da vida.
Busca todas as alegrias e
escolhe as taças maiores.
Não creias que Deus faça
a conta dos teus vícios
ou das tuas virtudes.
Não deixes escapar
o que te pode dar felicidade.
91
Não me preocupa saber
onde poderei comprar o manto
da Mentira e do Ardil.
Mas ando sempre à procura
do bom vinho.
Meus cabelos estão brancos.
Tenho setenta anos de idade.
Agarro hoje o momento da
felicidade, pois, amanhã,
talvez não me restem forças.
92
Que é feito
de todos
os nossos amigos?
Será que a morte os
derribou e pisou?
Que é feito
dos nossos amigos?
Ouço ainda suas cantigas
na taverna...
Morreram?
Estão embriagados?
29. 93
Quando eu não viver mais, não
haverá mais rosas, nem
ciprestes, nem lábios vermelhos,
nem vinhos perfumados.
Não haverá mais auroras,
nem crepúsculos, nem
alegrias, nem penas.
O universo não existirá
mais, pois tudo existe em
função do meu pensamento.
94
Eis a verdade
única: - somos
os peões da misteriosa
partida de xadrez, jogada
por Deus, que nos desloca,
nos pára, nos põe mais
adiante, e depois nos recolhe
um a um à caixa do Nada.
95
A abóbada celeste parece uma
taça emborcada, debaixo
da qual se agitam
em vão os sábios.
Que o teu amor à bem-amada
seja igual
ao da urna pela taça.
Olha bem: lábio colado a
lábio, elas se dão
o próprio sangue.
30. 96
Os sábios não te ensinaram
coisa alguma, mas a carícia
dos longos cílios de uma mulher
poderá revelar-te a felicidade.
Não esqueças que os teus
dias estão contados e que
serás em breve
a presa da terra.
Compra vinho e, recolhido
ao teu canto, busca
nele o consolo.
97
O vinho
dar-te-á o calor
que não possuis.
Libertar-te-ás das névoas
do passado
e das brumas do futuro.
Inundar-te-á de luz,
livrando-te dos grilhões
de prisioneiro.
98
Outrora,
quando eu freqüentava
as mesquitas, não fazia
orações, mas voltava à casa
rico de esperanças.
Ainda hoje, gosto
de sentar-me nas mesquitas.
Nelas, a sombra
é propícia ao sono.
31. 99
Na terra
multicor, caminha
um mortal, que não é
muçulmano, nem infiel, não
é rico, nem pobre.
Esse homem não venera
Deus, nem acata as leis;
não acredita na verdade,
nunca afirma coisa alguma...
Na terra sarapintada,
quem é esse homem
intrépido e triste?...
100
Antes que
possas afagar
um rosto macio como rosa,
quantos espinhos tens que
retirar de tua própria carne!
Olha este pente!
Era um pedaço de madeira.
Quando o cortaram,
que suplícios sofreu!
Mas depois, mergulhou
numa cabeleira profunda...
101
Quando a
brisa da manhã
entreabre as rosas e lhes
segreda que as violetas já
ostentam as suas vestes,
só é digno da vida o que
contempla ao seu lado,
adormecida, uma esbelta
rapariga, e toma da taça
e a esvazia,
e depois a atira ao chão.
32. 102
Queres saber
o que te
acontecerá amanhã?...
Erro!
Sê confiante, senão
o infortúnio não deixará
de justificar
as tuas apreensões.
Não te apegues a nada, não
interrogues nem os livros,
nem as pessoas: o nosso
destino é insondável.
103
Um dia,
numa taverna, pedi
a um velho notícias
dos que partiram.
e ele me respondeu:
"Não voltarão.
Eis tudo o que sei.
Bebe vinho!"
104
Olha!
Escuta!
Uma rosa treme
ao sopro da brisa.
E um rouxinol lhe entoa
um canto apaixonado.
Uma nuvem parou.
Bebamos vinho.
Esqueçamos que a brisa
desfolhou a rosa, e levará o
canto do rouxinol e a nuvem
que nos dá neste momento
uma sombra tão preciosa.
33. 105
A abóbada
celeste sob a qual
vivemos é comparável a uma
lanterna mágica,
de que o sol é a lâmpada.
E nós somos as figurinhas
que se movem.
106
Uma rosa dizia:
"Sou a maravilha do universo.
Será possível que um
perfumista tenha coragem
de fazer-me sofrer?"
Um rouxinol cantou:
"Um dia de felicidade
prepara um ano de lágrimas."
107
Logo à noite,
ou amanhã,
não existirás mais.
É tempo de pedires
um vinho cor de rosa.
Louco!
Cuidas por acaso que és um
tesouro e que os ladrões já
premeditam violar o teu
sepulcro
e roubar o teu cadáver?
34. 108
Sultão,
o teu destino
glorioso estava escrito
nas constelações onde brilha
o nome de Khosrou!
Desde o começo dos tempos,
o teu cavalo de ferraduras
de ouro galopava nos astros.
Quando passas,
um turbilhão de centelhas
te oculta de nossas vistas.
109
O amor que
não devasta
não é amor.
Um tição espalha
acaso o mesmo calor
que uma fogueira?
Noite e dia, durante
a vida inteira, o verdadeiro
amante se consome
na dor e no prazer.
110
Podes sondar
a noite que nos cerca.
Podes afundar
pelo mistério adentro.
Em vão!
Ó Adão e Eva!
Como deve ter sido amargo
o vosso primeiro beijo,
para que nos gerásseis
tão desesperados!...
35. 111
As flores
do céu deixam cair
as suas pétalas de ouro,
e não sei por que o meu
jardim ainda
não está todo atapetado.
Como o céu espalha as
flores sobre a terra,
eu encho a minha taça
de um vinho cor de rosa!...
112
Bebo o vinho
como a raiz
do salgueiro bebe
a água da corrente.
Deus só é Deus,
só Deus sabe tudo - dizes.
Pois bem: quando ele
me criou, sabia que eu
beberia vinho. Se me
tornasse abstêmio, a ciência
de Deus estaria errada.
113
Só o vinho
te libertará de
cuidados, só ele te impedirá
de ficar hesitante entre
as setenta e duas seitas.
Não abandones nunca
o mágico que tem
o condão de conduzir-te ao
doce país do esquecimento.
36. 114
Todas as
manhãs, o orvalho
pesa sobre as tulipas, os
jacintos e as violetas, até
que o sol venha aliviá-los
desse belo fardo.
Todas as manhãs, sinto o
coração mais pesado no meu
peito, mas logo o teu olhar
dissipa a minha tristeza.
115
Se queres
gozar a solidão
magnifica das estrelas e das
flores, rompe com todos os
homens, desliga-te
de todas as mulheres.
Não busques
a companhia de ninguém.
Não te inclines
sobre dor alguma.
Não participes
de alegria alheia.
116
O vinho tem
a cor das rosas.
O vinho não é talvez
o sangue das vinhas,
mas dos rosais.
Esta taça talvez não seja
de cristal, mas do próprio
azul do céu coagulado.
A noite é talvez
a pálpebra do dia.
37. 117
O vinho
proporciona aos
sábios uma embriaguez
semelhante à dos Eleitos;
dá-nos a mocidade,
restitui-nos o que perdêramos,
põe ao nosso alcance tudo
quanto desejamos.
118
Fecha o teu
Corão.
Pensa livremente
e livremente encara
o Céu e a Terra.
Ao pobre que passa,
dá a metade do que possuis.
Perdoa a todos os culpados.
Não entristeças ninguém.
E esconde-te para sorrir...
119
Como o
homem é fraco
e o destino inelutável!
Fazemos juramentos que
não cumprimos e nossa
própria humilhação nos é
indiferente.
Eu mesmo procedo
freqüentemente
como um desassisado.
Mas tenho uma escusa:
estou embriagado de amor.
38. 120
Homem, se
este mundo é uma miragem,
por que te desespera,
por que pensas sem tréguas
na tua miserável condição?
Abandona tua alma
à fantasia das horas.
Teu destino está escrito.
Nenhuma emenda
adiantará.
121
Aurora!
Felicidade e pureza!
Um imenso rubi cintila
em cada taça.
Toma estes dois
ramos de sândalo.
Transforma o maior numa
cítara e beija o outro, para
que o seu perfume
te embalsame.
122
Cansado
de interrogar
em vão os homens e os livros,
interroguei a taça.
Colei os meus lábios aos
seus lábios e murmurei:
"Para onde irei,
depois de morto?"
E a taça me respondeu:
"Bebe na minha boca.
Bebe longamente.
Não volverás
jamais a este mundo."
39. 123
Se bebes
um bom vinho,
Kháyyám, és feliz.
Se contemplas a tua
fresca namorada, és feliz...
Se sonhas que não existes
mais, és feliz,
pois a morte...é o nada.
124
Atravessava
eu um dia
a oficina de um oleiro
e havia duas mil urnas
que falavam baixinho.
De repente, uma delas
gritou: "Silêncio!
Permiti que esse homem
evoque os oleiros
e os compradores
de urnas que já fomos..."
125
Dizes que
o vinho
é o bálsamo único?
Traze-me todo o vinho
do universo! Meu coração
tem tantas feridas!...
Todo o vinho do universo,
e que meu coração
conserve as suas mágoas!
40. 126
É uma calma
delicada,
a do vinho!
Oleiro, para esta alma
tão fina, fazei urnas
de paredes macias.
Cinzeladores de taças,
arredondai-as com amor
para que o vinho se sinta
docemente acariciado
na sua alma voluptuosa.
127
Ignaro, que
cuidas ser sábio,
vejo-te sufocado entre
o infinito do passado
e o infinito do futuro.
Bem quiseras pôr um limite
entre esses infinitos
e parar...
Vai antes sentar-te
à sombra de uma árvore,
perto de uma ânfora de vinho,
que esquecerás a tua
impotência.
128
Contenta-te em saber que tudo
é mistério: a criação
do mundo e a tua, o destino
do mundo e o teu.
Sorri a esses mistérios
como a um perigo
que desprezasses.
Não cuides que saberás
alguma coisa mais quando
tiveres transposto
a porta da Morte.
Paz ao homem
no negro silêncio do Além!
41. 129
No meio do campo verde,
a sombra desta árvore
parece uma ilha.
Viandante, fica onde estás!
Entre o caminho que segues
e esta sombra que baloiça
lentamente há talvez
um abismo intransponível.
130
Que devo fazer hoje?
Irei à taverna?
Irei sentar-me num jardim,
ou passarei o dia curvado
sobre um livro?
Um pássaro voa. Aonde irá?
Perdi-o já de vista.
Ó embriaguez de um pássaro
no azul morno do céu!
Ó melancolia de um
homem na sombra fresca
de uma mesquita!...
131
Um pouco
mais de vinho,
ó minha amada.
Tuas faces não têm ainda
o brilho das rosas.
Um pouco mais de tristeza,
Kháyyám!...
Tua amada vai olhar-te...
vai sorrir...
42. 132
Nosso universo
é um caminho de rosas.
Nossos visitantes
são as borboletas.
Nossos músicos
são os rouxinóis.
Quando não há mais rosas,
nem folhas, as estrelas são
as minhas rosas e a tua
cabeleira é a minha floresta.
133
Servidores, não é mister
trazerder as lâmpadas, que
os meus convivas, extenuados,
adormeceram.
Vejo ainda claro para
notar-lhes a palidez.
Hirtos e frios, assim serão
eles na noite do túmulo.
Não é mister trazerdes
as lâmpadas, ó servidores:
os mortos não despertam.
134
Quando cambaleares ao peso
da dor, quando os teus
não tiverem mais lágrimas,
pensa nos campos de verdura
que brilham depois das chuvas.
Quando o esplendor do dia
te exasperar, quando desejares
que uma noite eterna desça
sobre o mundo,
pensa no despertar
de uma criança.
43. 135
Dissimulo as minhas tristezas,
como os pássaros feridos
se encondem para morrer.
Dá-me vinho!
Escuta os meus gracejos.
Quero vinho e rosas
e canto ao som da cítara,
a tua indiferença pela
minha dor, ó bem-amada!
136
Senhor!
Armaste mil ciladas invisíveis
no caminho que seguimos,
e disseste: "Desgraçado
o que não as evitar."
Tu vês tudo. Tu sabes tudo.
Nada acontece sem a tua
permissão. Seremos, pois,
responsáveis por nossos
pecados?
Farás um crime
da minha revolta?
137
Tive mestres eminentes.
Alegrei-me com os meus
progressos e triunfos.
Hoje, evocando o sábio
que era, comparo-me naquele
tempo à água que toma
a forma do vaso e à fumaça
que o vento dissipa.
44. 138
Para o sábio, a tristeza
e a alegria, o bem e o mal
valem a mesma coisa.
Para o sábio, tudo que
começou deve acabar.
Vê, pois, se convém ficares
alegre com a felicidade
que chega ou lamentares
a desgraça
que não esperavas.
139
Dervixe,
despe-te dessas
vestes coloridas de que tanto
te orgulhas e que não tinhas
ao nasceres.
Enverga o manto da pobreza.
Os viandantes não te
cumprimentarão mais,
mas todos os serafins
do céu cantarão em teu peito.
140
Bêbado ou sedento,
só quero dormir.
Renunciei saber o que
é o bem, o que é o mal.
Para mim, o prazer e a dor
são parecidos.
Quando me chega uma
felicidade, dou-lhe lugar
modesto, porque sei que uma
desgraça vem no seu encalço.
45. 141
Não é possível incendiar
o mar, nem convencer
o homem de que a ventura
é frágil
E o homem sabe que o
mais leve choque é fatal à
urna cheia e não causa
dano à urna vazia...
142
Olha em torno de ti.
Não verás senão aflições,
angústias e desesperos.
Morreram os teus
melhores amigos.
A tristeza é a tua
companheira única.
Ergue, porém, a cabeça,
abre as mãos e agarra o que
desejas e podes atingir.
O passado é um cadáver
que deves enterrar.
143
Vejo um cavalheiro
que se afasta na bruma da tarde.
Irá ele atravessar florestas,
ou planícies áridas?
Aonde vai?
Não sei.
Amanhã estarei deitado
sobre a terra
ou debaixo dela?
Não sei.
46. 144
Só vês
as aparências
das coisas e dos seres.
Sabes que é ignorante, mas
não queres renunciar ao amor.
Lembra-te de que Deus fez
o amor como fez
certas plantas venenosas.
145
Homem miserável,
nunca saberás coisa alguma.
Não elucidarás um só
dos mistérios que te cercam.
Posto que as religiões
te prometam o Paraíso, cuida
de criar um neste mundo,
que o outro é duvidoso.
146
Lâmpadas que se apagam,
esperanças
que se acendem: Aurora.
Lâmpadas que se acendem,
esperanças
que se apagam: Noite.
147
Todos os reinos por uma
taça de vinho precioso.
Todos os livros e toda
a ciência dos homens por
um perfume suave de vinho!
Todos os hinos de amor
pela canção do vinho que corre!
Toda a glória de Feridoun
pelos reflexos do vinho
na urna!
47. 148
Recebi o
golpe que esperava.
Abandonou-me a bem-amada.
Quando eu a possuía,
era-me tão fácil desprezar o
amor e exaltar todas
as renúncias!...
Junto de tua amada,
Kháyyám, como estavas só!
Sabes?
Ela se foi para que tu
possas refugiar-te nela...
149
Senhor!
Despedaçaste a minha alegria!
Senhor, ergueste uma
muralha entre o coração
da minha amada e o meu!
Minha bela colheita,
tu a destruíste...
Vou morrer...
Tu cambaleias!...embriagado.
150
Silêncio, ó dor da minha alma!
Deixa-me procurar um remédio.
É preciso que eu viva.
Os mortos não têm memória.
E eu quero rever
a minha bem-amada...
151
Cítaras, perfumes e taças,
lábios, cabeleiras e olhos
alongados - brinquedos
que o tempo destrói,
brinquedos!
Austeridade, solidão e labor,
meditação, súplicas e renúncias
- cinzas que o tempo espalha,
cinzas!
48. 152
A aurora encheu de rosas
a taça do Céu.
No ar de cristal ecoa o canto
do último rouxinol.
O perfume do vinho é mais
suave... Ó delícia!...
E dizer-se que
em momentos tais
há insensatos que sonham
com a glória e cuidam
de honrarias!
Tua cabeleira, ó minha
bem-amada,
é macia como a seda.
153
Noite. Silêncio. Imóveis
as folhas das árvores,
imóvel o meu pensamento.
Uma rosa, ao meu lado,
deixou cair a primeira pétala...
Onde estás, tu que me
ofereceste a taça e por quem
ainda suspiro?!
Certo, uma rosa não
se desfolha perto daquele
a quem tu, neste momento, sacias a sede:
mas sentes certamente a falta
do prazer amargo
que sei proporcionar-te
e que faz delirar.
49. 154
Se soubesses
como me interessam
pouco os quatro elementos
da natureza e as cinco
faculdades do homem!...
Dizes que certos filósofos
gregos podiam propor aos seus
auditores cem enigmas?
Tudo isso me é indiferente.
Traze-me um pouco de vinho,
e dedilha a cítara para que
as suas modulações me
sugiram a brisa, que passa
ligeira como nós todos!...
155
Quando a sombra da Morte
se alongar sobre mim, quando
o feixe dos meus dias estiver
atado, eu vos chamarei,
ó meus amigos, e vós me
transportareis para o meu
túmulo.
Tornado em pó, fareis uma urna
com as minhas cinzas e
a enchereis de vinho.
Talvez, então, assistais ao
milagre da minha ressureição.
50. 156
Senhor, ó Senhor,
responde-nos!
Deste-nos olhos e permitiste
que a beleza das tuas
criaturas nos deslumbrasse!...
Deste-nos a faculdade de
sermos felizes e queres que
renunciemos ao gozo
dos bens deste mundo!
Impossível!
Tão impossível como virar
uma taça sem derramar
o vinho que nela se contém!
157
Toma a resolução
de não mais contemplar o céu.
Cerca-te de belas raparigas
e deixa que elas te acariciem.
Hesitas ainda?
Tens ainda a tentação
de orar a Deus?
Antes de ti, outros homens
fizeram súplicas ardentes.
É certo que eles já
partiram deste mundo, mas tu
ignoras se Deus as escutou.
158
Mais uma aurora!
Como todas as manhãs,
descubro hoje o esplendor
do mundo e me aflijo por não
poder render graças
ao Criador dele...
Mas, há tantas rosas, que
me consolo, e tantos lábios
que se oferecem aos meus!...
Deixa tua cítara,
ó minha bem-amada:
os pássaros estão cantando...
51. 159
Aprendi muito
e esqueci muito,
voluntariamente.
Na minha memória, cada
coisa estava no seu lugar.
Por exemplo: o que estava
à direita não podia passar
para a esquerda.
Só conheci a paz no dia
em que rejeitei tudo com
desprezo: compreendera
afinal que é impossível
afirmar ou negar.
160
Visto que a
nossa sorte neste mundo
é sofrer e depois morrer,
devemos desejar que
o nosso corpo miserável
volte depressa à terra?
"E nossa alma?" - perguntais.
"Deus a espera para julgá-la
segundo seus méritos?..."
Dar-vos-ei a resposta
quando tiver notícias de
alguém de volta do
outro mundo.
52. 161
"Deus é grande!"
Este grito do moueddin
parece uma imensa queixa.
Cinco vezes por dia a
Terra geme inclinada para o
seu Criador indiferente.
Olha o riacho que brilha
no teu jardim.
Segue o meu exemplo,
cuida que vês o Kaouthar e
que estás no Paraíso.
Vai buscar tua amiga,
fresca como uma rosa.
162
És infeliz?
Não penses em tua dor,
e não sofrerás.
Se o teu sofrimento é muito
violento, lembra-te de que
todos os homens
têm sofrido inutilmente
desde a criação do mundo.
Escolhe uma mulher de
seios de neve, mas...cautela!
não ames essa mulher!...
E que ela também
seja incapaz de amar-te.