SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 52
Baixar para ler offline
Omar Khayyām

  Rubaiyat
1
       Todos sabem
   que meus lábios nunca
  murmuraram uma oração.
     Não procurei nunca
dissimular os meus pecados.
Ignoro se existem realmente
     uma Justiça e uma
        Misericórdia.
    Mas, se existem, não
desespero delas: fui sempre
     um homem sincero.

              2
       Que vale mais?
Fazer exame de consciência
     sentado na taverna,
ou prosternado na mesquita?
   Não me interessa saber
     se tenho um Senhor
 e o destino que me reserva.

              3
         Considera
   com indugência os que
  bebem até à embriaguez.
   Lembra-te de que tens
      defeitos maiores.
 Se queres conhecer a paz
   e a serenidade, pensa
nos miseráveis que padecem
  os piores infortúnios, e...
 acabarás por julgar-te feliz.
4
                Que a tua
           sabedoria não seja
             uma humilhação
           para o teu próximo.
Guarda domínio sobre ti mesmo e nunca te
          abandones à cólera.
       Se aspiras à paz definitiva,
      sorri ao Destino que te fere;
           não firas ninguém.

                       5
                Procura ser
              feliz ainda hoje,
     pois não sabes o que te reserva
             o dia de amanhã.
        Toma uma urna cheia de
       vinho, senta-te ao clarão do
         luar e monologa: "Talvez
        amanhã a lua me procure
                  em vão."

                   6
              Contenta-te
          com poucos amigos.
       Não busques prolongar a
        simpatia que alguém te
               inspirou.
       Antes de apertares a mão
      de um homem, considera se
       ela um dia não se erguera
               contra ti.
7
           O corão,
chamado o Livro supremo,
  pode ser lido de vez em
 quando; mas ninguém se
    deleita na sua leitura,
      sempre que o lê.
Na taça cheia de vinho está
 gravado um texto, de tão
 adorável sabedoria, que a
  boca, à falta dos olhos,
   lê sempre com delícia.

               8
          Este vaso
  foi, outrora, um amante,
 como eu, que sofria com a
indiferença de uma mulher...
  A asa curva do vaso é o
     braço que enlaçava
 o pescoço da bem-amada.

              9
         Como é vil
       o coração que,
incapaz de amar, não pode
   conhecer o delírio da
          paixão!...
Se não amas, és um indigno
    do sol que te ilumina
   da lua que te consola.

             10
          Sinto que
a minha mocidade refloresce.
    Desejo aquele vinho
 que me dá calor e alegria...
       Quero vinho...
    Dizes que é amargo?
        Não importa.
    Tem o gosto da vida.
11
           Inútil é
     que te aflijas: nada
 podes acerca do teu destino.
  Se és prudente, aproveita
      o momento atual.
          O futuro?
     Sabes o que ele te
        reservará?...

               12
           Além da
    Terra, além do Infinito,
  eu procurava em vão o Céu
          e o Inferno.
   Mas uma voz me disse:
 "O Céu e o Inferno estão em
          ti mesmo."

               13
         Deixemo-nos
        de palavras vãs.
      Levanta-te e dá-me
      um pouco de vinho.
 Esta noite tua boca é a mais
  bela rosa do mundo e basta
 para todos os meus desejos.
         Dá-me vinho.
 Que ele seja corado como as
 tuas faces, e o meu remorso
será leve como as tuas tranças.
14
           A brisa da
       primavera renova
 as rosas e, na sombra azul
       do jardim, acaricia
   o rosto de minha amada.
  A despeito da ventura que
  já gozei, sou tão feliz hoje
que não me lembro de ontem:
     esqueço o passado...
   É tão imperioso o prazer
       deste momento...

               15
            Perderei
      ainda muito tempo,
 querendo encher o mar com
            pedras?
    Desprezo igualmente
  os libertinos e os devotos.
  Kháyyám, quem te poderá
assegurar que irás para o Céu
       ou para o Inferno?
  Que significam essas duas
palavras?... Conheces alguém
     que já tenha visitado
  esses países misteriosos?

                 16
            Bebo, mas
       ignoro quem te fez,
          ó urna imensa!
 Sei apenas que podes conter
  três medidas de vinho e que
   um dia a Morte te destruirá.
    Mais tarde, indagarei por
   quem foste criada, por que
foste feliz, por que não és mais
            que poeira.
17
           Os dias
        passam rápidos
    como as águas do rio
    ou o vento do deserto.
    Dois há, em particular,
   que me são indiferentes:
     o que passou ontem,
      o que virá amanhã.

              18
        Quando nasci?
      Quando morrerei?
 Nenhum homem pode evocar
   o dia do seu nascimento
  ou prever o de sua morte.
Vem, ó minha deliciosa amada!
Quero esquecer, na embriaguez,
       a nossa incurável
          ignorância.

               19
           Kháyyám!
 Tecendo a tenda da sabedoria
   caíste na fogueira da Dor
  e ficaste reduzido a cinzas.
    O anjo Azrael cortou as
   cordas da tenda e a Morte
  vendeu-a por uma canção.

                20
          Kháyyám!
    Não se aflijas por seres
     um grande pecador!
     É inútil a tua tristeza.
    Depois da morte virá o
    Nada ou a Misericórdia.
21
         Nas igrejas,
   nas sinagogas e nas
mesquitas buscam refúgio
  os que temem o inferno.
Mas o homem que conhece
 os segredos de Deus não
 cultiva no seu coração as
  sementes do terror e da
           súplica.

              22
        Na primavera,
     gosto de sentar-me
 à orla de um campo florido.
    Bebo o vinho que me
oferece uma linda rapariga e
não cuido de minha salvação.
   Se tal pensamento me
 ocupasse, eu valeria menos
      que um pobre cão.

            23
         O imenso
    mundo: um grão de
 areia perdido no espaço.
      Toda a ciência
  dos homens: palavras.
 Os povos, os animais e as
  flores dos sete climas:
         sombras.
    O resultado de tua
     meditação: nada.
24
        Eu cambaleava
          de sono, e a
Sabedoria me disse: "Nunca,
no sono, a rosa da felicidade
     floriu para ninguém.
 Por que te abandonares a
   esse irmão da Morte?
          Bebe vinho?
          Tens muitos
    séculos para dormir!"

               25
         Meu coração
      diz: "Quero saber!
      Tenho um desejo
     ardente de ciência!
    Instrui-me, Kháyyám,
  tu que tanto estudaste!"
 Pronunciei a primeira letra
do alfabeto, e o meu coração
    retrucou: "Agora, sei.
 Um é o primeiro algarismo
 do número que não acaba
            nunca..."

              26
           Ninguém
         desvendará
      o que é misterioso.
  Ninguém poderá ver o que
    se oculta debaixo das
         aparências.
  Todas as nossas moradas
são provisórias, salvo a última,
     no coração da terra.
     Bebe o vinho amigo!
      Basta de palavras
          supérfluas.
27
        Admito que
      tenhas resolvido
    o enigma da criação.
     E o teu destino?...
    Convenho que tenhas
     despido a Verdade
de todas as suas roupagens.
     E o teu destino?...
  Admito que tenhas vivido
  cem anos felizes e ainda
 restem outros cem a viver.
     E o teu destino?...

              28
         Convence-te
      bem do seguinte:
Um dia tua alma abandonará
     o teu corpo e serás
 arrastado para trás do véu
 que flutua entre o universo
      e o incognoscível.
     Enquanto esperas,
      cuida de ser feliz!
 Não sabes de onde vens.
 Não sabes para onde vais.

              29
         Os sábios
        e os filósofos
 mais ilustres caminharam
 nas trevas da ignorância.
    E eram os luzeiros
      do seu tempo!...
Em suma, que fizeram eles?
  Pronunciaram algumas
      frases confusas
 e adormeceram fatigados.
30
         A vida é um
       jogo monótono
  em que tens a certeza
  de ganhar dois pontos:
      a dor e a morte.
Feliz a criança que expirou
 no dia do nascimento!...
 Mais feliz ainda é o que
 não veio a este mundo...

              31
           Na feira
    que atravessas, não
      tentes encontrar
       nenhum amigo.
  Não procures tampouco
     um abrigo seguro.
 Com alma serena, aceita
   a dor sem esperança
de remédio, que não existe.
  Sorri ao infortúnio e não
  peças a ninguém que te
sorria: seria tempo perdido.

             32
           A rosa
      gira descuidosa
  dos cálculos dos sábios.
  Renuncia à vaidade de
 contar os astros e medita
 antes sobre esta certeza:
deves morrer, não sonharás
 mais e os vermes da terra
  ou os cães vagabundos
 devorarão o teu cadáver.
33
          O criador
         do universo
 e das estrelas excedeu-se
   quando inventou a dor.
Lábios vermelhos como rubi,
 cabeleiras embalsamadas,
quantos sois neste mundo?...

              34
         Nem sequer
      entrevejo o Céu...
  Meus olhos estão toldados
         de lágrimas.
   O fogo do Inferno é uma
  chama ligeira comparado
    às labaredas que me
       devoram a alma.
     O Céu é, para mim,
     um instante de paz.

                35
          Sono sobre
             a terra.
    Sono debaixo da terra.
    Sobre a terra, debaixo
  da terra, homens deitados.
    O nada em toda parte.
       Deserto do nada.
       Homens chegam.
        Outros partem.

                36
          Velho mundo
         que atravessa
   a galope o cavalo branco
   e negro do Dia e da Noite,
     és o palácio triste onde
cem Djemchids sonharam com
    a glória e cem Bahrâms
     sonharam com o amor,
e todos despertaram chorando.
37
          O vento
      do Sul crestou
  a rosa a que o rouxinol
     entoava um hino.
 Devemos chorar o destino
   da rosa, ou o nosso?
Quando a morte empalidecer
   nossas faces, outras
  rosas desabrocharão...

             38
          Esquece
         que ontem
não lograste a recompensa
       que merecias.
          Sê feliz.
   Não lamentes nada.
    Não esperes nada.
 Tudo que deve acontecer
   está escrito no Livro
que o vento da Eternidade
     folheia ao acaso.

              39
         Sempre que
       ouço dissertar
sobre os gozos reservados
   aos Eleitos, limito-me
a dizer: "Só tenho confiança
          no vinho.
      Moeda sonante,
     e não promessas!
   O ruído dos tambores
é belo a grande distância..."
40
         Bebe vinho!
 Só ele te dará a mocidade,
     ele é a vida eterna!
 Divina estação das rosas,
do vinho e dos bons amigos!
    Sê feliz um instante,
      o instante fugitivo
      que é a tua vida...

              41
          Bebe um
      pouco de vinho
porque dormirás muito tempo
debaixo da terra, sem amigo.
sem camarada, sem mulher.
   Confio-te um segredo:
     as tulipas murchas
   não reflorescem mais.

              42
          Baixinho,
      a argila segredou
 ao oleiro que a trabalhava:
       "Não esqueças
    que já fui como tu...
    Não me maltrates..."

             43
          Oleiro,
    se tu és perspicaz,
  não mortifiques a argila
em que Adão foi modelado!
 Vejo no torno que moves
    a mão de Feridoun,
 o coração de Khorsrou...
      Que fizeste?...
44
          A tulipa
        rubra nasce
 no campo regado outrora
  pelo sangue de um rei.
  A violeta brota do sinal
  de beleza que palpitava
no rosto de um adolescente.

               45
          Há miríades
     de séculos as auroras
  e os crepúsculos sucedem.
     Há séculos e séculos
        os astros fazem
    a sua ronda de sempre.
  Pisa a terra com cautela...
    talvez o torrão que vais
  esmagar tenha sido o olho
terno de um belo adolescente.

              46
         As raízes do
   narciso, que balança à
 beira do riacho, brotaram
 dos lábios de uma mulher.
     Pisa muito de leve
        a relva macia!
   Quem sabe se ela não
    germinou nas cinzas
 de rostos que eram belos
      e brilhantes como
     tulipas vermelhas?
47
          Vi ontem
     um oleiro sentado
   diante do seu torno,
modelando as alças e os
 contornos de uma urna.
O barro que ele amassava
    era feito de crânios
         de sultões
 e de mãos de mendigos.

             48
 O bem e o mal disputam
 a primazia neste mundo.
 O Céu não é responsável
  pela felicidade ou pela
 desventura que o destino
       nos reserva.
 Não agradeças, pois, ao
Céu, não o acuses também.
 Ele é indiferente às tuas
   alegrias, indiferente
     aos teus pesares.

              49
        Se enxertaste
       no teu coração
       a rosa do Amor,
    tua vida não foi inútil,
quer tenhas buscado ouvir
a voz de Deus, quer tenhas
   sorridente empunhado
      a taça do prazer.

             50
 Sê prudente, ó viajante!
   Perigoso é o caminho
      que palmilhas!
   A espada do destino
         é acerada.
 Não colhas as amêndoas
  doces que encontrares:
        têm veneno.
51
         Um jardim,
   uma rapariga ondulosa,
    uma ânfora de vinho,
    o meu desejo e minha
     amargura: eis o meu
  Paraíso e o meu Inferno!...
  Quem sabe, porém, o que
  é o Céu, que é o Inferno!?

              52
           Tu, cujas
         faces tiveram
    por modelos as flores
 do campo, cujo rosto parece
    o de um ídolo chinês,
  saberás acaso que o teu
   olhar de veludo fez o rei
     da Babilônia igual ao
   bispo do jogo de xadrez
    que foge da rainha?...

               53
          A vida passa.
            Que resta
     de Bagdad e de Balk?
     O choque mais ligeiro
 é fatal à rosa completamente
        desabrochada...
    Bebe vinho e contempla
a lua, evocando as civilizações
      que ela já viu morrer

               54
       Escuta a voz da
  Sabedoria, que te repete
     o dia inteiro: "A vida
  é breve e tu não és como
 as plantas que reverdecem
    depois de podadas."
55
        Os professores
    e os sábios silenciosos
morreram sem se entenderem
no tocante ao ser e ao não-ser.
         Meus irmãos!
   Ignorantes, continuemos
     a saborear o suco dos
   bons cachos e deixemos
  que os grandes homens se
   regalem com as passas.

              56
  Meu nascimento não trouxe
 nenhum proveito ao universo.
     MInha morte não lhe
   diminuirá a imensidade,
        nem a beleza.
  Ninguém pode explicar-me
 por que vim, por que me vou
           embora.

              57
     No caminho do Amor
 nos perderemos e o Destino
nos esmagará com o seu tacão.
   Ó rapariga, ó minha taça
 encantada, ergue-te e dá-me
   de beber em teus lábios,
  antes que eu me transforme
          em poeira.

               58
  Só de nome conhecemos
        a felicidade...
   Nosso amigo mais velho
       é o vinho novo.
     Acaricia com o olhar
  e com a mão o único bem
    que não falha: a urna
  cheia do sangue da vinha.
59
    Não busques a felicidade
A vida é breve como um suspiro.
     As cinzas de Djemchid
     e de Kai-Kobao giram
       na poeira vermelha
         que tolda o ar.
  O universo é uma miragem.
       A vida é um sonho.

                60
  Senta-te e bebe, que serás
    mais feliz que Mahmud.
    Escuta as melodias que
exalam as harpas dos amantes:
  são os verdadeiros salmos
           de David.
  Não mergulhes no passado,
     não sondes o futuro.
 Que o teu pensamento não vá
  além do momento presente:
    eis o segredo da paz!...

                61
           Os homens
     estreitos e orgulhosos
       criaram diferenças
      entre alma e corpo.
 De mim, so afirmo uma coisa:
  o vinho destrói os cuidados
    que nos atormentam e
  nos dá a quietude perfeita.
                62
          Que enigma,
             os astros
    que saltam no espaço!
      Kháyyám, agarra-te
           firmemente
     à corda da Sabedoria.
  Presta atenção à vertigem,
    que faz cair, perto de ti,
    os teus companheiros!
63
     Não temo a Morte:
 prefiro esse fato inelutável
ao outro que me foi imposto
no dia do meu nascimento.
        Que é a vida?
Um bem que me confiaram
  sem me consultar e que
 restituirei com indiferença.

             64
      A vida passa,
  qual rápida caravana!
 Toma as rédeas ao teu
corcel, pára e surpreende
  o minuto de alegria...
     Linda rapariga,
    por que te afliges?
Dá-me um pouco de vinho.
  A noite já vai acabar...

            65
         Ouço dizer
  que os amantes do vinho
 serão danados no Inferno.
 Não há verdades, mas há
    mentiras evidentes.
  Se os que amam o vinho
e o amor vão para o inferno
o Paraíso deve estar vazio.

             66
         Estou velho,
e a paixão que me inspiraste
  arrastar-me-á ao túmulo,
  pois não cesso de encher
   de vinho a grande taça.
   Minha paixão por ti tem
 razão contra mim mesmo...
     E o tempo desfolha
     a minha bela rosa...
67
      Podes obcecar-me,
           ó miragem
    de uma outra ventura!
    Podeis modular vossas
encantações, ó vozes amorosas!
  Contemplo a que já escolhi
    e só quero ouvir a voz
       que me seduziu.
        Alguém me dirá:
      "Deus te perdoará."
       Recuso o perdão
         que não pedi.

               68
       Um pouco de pão,
   um pouco de água fresca,
    a sombra de uma árvore
        e os teus olhos!
        Nenhum sultão
    é mais feliz do que eu...
       Nenhum mendigo
        é mais triste....

               69
            Por que
    tanta suavidade, tanta
      ternura, no começo
        do nosso amor?
   Por que tantos carinhos,
   tantas delícias, depois?
    E...por que, hoje, o teu
   único prazer é dilacerar
        o meu coração?
           Por quê?
70
           Vinho!
Eis o remédio de que carece
   o meu coração doente!
     Vinho com perfume
        almiscarado!
     Vinho cor de rosa!
 Dá-me vinho para apagar
o incêndio da minha tristeza!
    Vinho e o teu alaúde
     de cordas de seda,
    ó minha bem-amada!

             71
       Falas-me de
       um Criador...
    Pois ele só formou
        as criaturas
    para destruí-las?...
    Por que são feias?
   Por que são belas?
       A quem cabe
   a responsabilidade?
  Não compreendo nada.

             72
          Todos os
     homens pretendem
    caminhar na estrada
     do Conhecimento.
    Essa estrada, uns a
      procuram, outros
 afirmam tê-la encontrado.
 Um dia, porém, uma voz
    proclamará: "Não há
   caminho, nem atalho!"
73
          Oferece às
       luzes da aurora
     o vinho de tua taça,
semelhante à tulipa primaveril!
   Dedica ao sorriso de um
  adolescente o vinho de tua
    taça, que é vermelho
      como a tua boca!
    Bebe e esquece que o
    punho da dor breve te
          derribará.

             74
           Vinho!
     Vinho em torrentes!
       Que ele palpite
      nas minhas veias!
      Que ele borbulhe
      na minha cabeça!
          Taças!...
          Silêncio!
      Tudo é mentira...
          Taças...
         Depressa!
      Envelheci muito...

              75
            Um tal
         odor de vinho
 emanará do meu túmulo, que
  embriagará os viandantes.
     Uma serenidade tal
    pairará sobre a minha
sepultura, que os amantes não
   poderão afastar-se dela.
76
         No turbilhão
        da vida só são
  felizes os homens que,
  presumindo saber tudo,
  não buscam instruir-se.
        Inclinei-me na
   perscrutação de todos
 os segredos do Universo,
  e voltei à minha solidão,
     invejando os cegos
que encontrei pelo caminho.

            77
        Dizem-me:
     "Não bebas mais,
        Kháyyám!"
 E eu respondo:"Quando
bebo, ouço o que dizem as
       rosas, tulipas
e os jasmins. Ouço mesmo
o que não me podem dizer
   a minha bem-amada!"

             78
          Em que
    pensas, amigo meu?
  Em teus antepassados?
      São o pó no pó.
    Pensas nas virtudes
       que tiveram?
      Deixa-me sorrir...
Toma esta urna e bebamos,
escutando sem inquietação o
grande silêncio do Universo.
79
          Amigo:
     não faças projeto
   algum para amanhã.
 Sabes acaso se poderás
      concluir a frase
    que vais começar?
Amanhã, estaremos talvez
     muito longe desta
hospedaria, como os que já
se foram há sete mil anos.

            80
        Ó gladiador
       de corações,
toma uma urna e uma taça!
   Sentemos-nos à beira
   da corrente cristalina.
  Esbelto adolescente de
 semblante luminoso, eu te
   contemplo e imagino
      a urna e a taça
  que serás mais tarde!...

              81
           Há muito
tempo a minha mocidade jaz
   entre as coisas mortas.
  Primavera da minha vida,
  estás hoje onde estão as
 primaveras que passaram.
 Mocidade minha! passaste
sem que eu me apercebesse!
 Partiste, como aos poucos
     se vão os melhores
     dias da primavera.
82
         Delicia-te, ó
      meu irmão, com
 todos os perfumes, todas
as cores, todas as músicas.
    Envolve de carícias
    todas as mulheres.
  Lembra-te de que a vida
    é fugaz e que breve
        voltará ao pó.

              83
          É loucura
          aspirares
     à paz neste mundo.
   Loucura é creres num
  repouso eterno: - depois
 de tua morte, teu sono será
breve e renascerás num tufo
de ervas, que será pisado, ou
numa flor que o sol crestará.

              84
   Pergunto a mim mesmo
 o que em verdade possuo.
 Considero o que subsistirá
       de mim depois
      de minha morte.
     Nossa vida é breve
     como um incêndio.
 Chama, que um leve sopro
 apaga; cinzas, que o vento
  dispersa: eis a existência
       de um homem.

              85
          Convicção
 e dúvida, erro e verdade -
  são palavras tão vazias
   como uma bolha de ar.
   Irisada ou opaca, essa
      bolha é a imagem
         de tua vida.
86
          Mais vale
     uma urna de vinho
        que o poder,
   a glória e as riquezas.
   Respeito o amante que
 geme de felicidade; detesto
         o hipócrita
   que murmura orações.

             87
          Escuta um
       grande segredo:
  quando a primeira aurora
 iluminou o mundo, Adão já
 era uma criatura dolorosa,
      que pedia a noite,
   que ansiava pela morte.

             88
     A Lua do Ramazam
          apareceu.
  Amanhã o sol banhará de
 luz uma cidade silenciosa.
  E os vinhos dormirão nas
 suas urnas e as raparigas
   à sombra dos bosques.

               89
           Não pedi
      a vida a ninguém.
   Esforço-me por acolher
  sem espanto e sem cólera
tudo o que a vida me oferece.
     Partirei sem indagar
o motivo da minha misteriosa
    estada neste mundo.
90
         Colhe todos
       os frutos da vida.
  Busca todas as alegrias e
  escolhe as taças maiores.
  Não creias que Deus faça
    a conta dos teus vícios
     ou das tuas virtudes.
     Não deixes escapar
 o que te pode dar felicidade.

               91
    Não me preocupa saber
onde poderei comprar o manto
     da Mentira e do Ardil.
  Mas ando sempre à procura
          do bom vinho.
 Meus cabelos estão brancos.
Tenho setenta anos de idade.
  Agarro hoje o momento da
   felicidade, pois, amanhã,
 talvez não me restem forças.

             92
         Que é feito
          de todos
    os nossos amigos?
    Será que a morte os
     derribou e pisou?
         Que é feito
    dos nossos amigos?
  Ouço ainda suas cantigas
        na taverna...
         Morreram?
    Estão embriagados?
93
 Quando eu não viver mais, não
     haverá mais rosas, nem
ciprestes, nem lábios vermelhos,
    nem vinhos perfumados.
    Não haverá mais auroras,
     nem crepúsculos, nem
      alegrias, nem penas.
     O universo não existirá
    mais, pois tudo existe em
  função do meu pensamento.

                94
          Eis a verdade
         única: - somos
    os peões da misteriosa
   partida de xadrez, jogada
  por Deus, que nos desloca,
    nos pára, nos põe mais
 adiante, e depois nos recolhe
  um a um à caixa do Nada.

                95
A abóbada celeste parece uma
   taça emborcada, debaixo
       da qual se agitam
      em vão os sábios.
Que o teu amor à bem-amada
           seja igual
     ao da urna pela taça.
   Olha bem: lábio colado a
       lábio, elas se dão
       o próprio sangue.
96
  Os sábios não te ensinaram
  coisa alguma, mas a carícia
dos longos cílios de uma mulher
 poderá revelar-te a felicidade.
   Não esqueças que os teus
   dias estão contados e que
         serás em breve
        a presa da terra.
   Compra vinho e, recolhido
      ao teu canto, busca
         nele o consolo.

                 97
              O vinho
          dar-te-á o calor
         que não possuis.
   Libertar-te-ás das névoas
           do passado
    e das brumas do futuro.
       Inundar-te-á de luz,
    livrando-te dos grilhões
          de prisioneiro.

              98
           Outrora,
    quando eu freqüentava
   as mesquitas, não fazia
 orações, mas voltava à casa
     rico de esperanças.
       Ainda hoje, gosto
 de sentar-me nas mesquitas.
       Nelas, a sombra
      é propícia ao sono.
99
            Na terra
      multicor, caminha
   um mortal, que não é
muçulmano, nem infiel, não
      é rico, nem pobre.
 Esse homem não venera
  Deus, nem acata as leis;
  não acredita na verdade,
nunca afirma coisa alguma...
   Na terra sarapintada,
    quem é esse homem
     intrépido e triste?...

             100
          Antes que
        possas afagar
um rosto macio como rosa,
quantos espinhos tens que
retirar de tua própria carne!
      Olha este pente!
Era um pedaço de madeira.
    Quando o cortaram,
    que suplícios sofreu!
  Mas depois, mergulhou
numa cabeleira profunda...

             101
          Quando a
      brisa da manhã
 entreabre as rosas e lhes
 segreda que as violetas já
 ostentam as suas vestes,
  só é digno da vida o que
   contempla ao seu lado,
 adormecida, uma esbelta
  rapariga, e toma da taça
        e a esvazia,
  e depois a atira ao chão.
102
        Queres saber
           o que te
   acontecerá amanhã?...
             Erro!
    Sê confiante, senão
  o infortúnio não deixará
         de justificar
    as tuas apreensões.
Não te apegues a nada, não
 interrogues nem os livros,
 nem as pessoas: o nosso
    destino é insondável.

           103
          Um dia,
   numa taverna, pedi
   a um velho notícias
    dos que partiram.
   e ele me respondeu:
      "Não voltarão.
    Eis tudo o que sei.
       Bebe vinho!"

            104
           Olha!
          Escuta!
      Uma rosa treme
     ao sopro da brisa.
  E um rouxinol lhe entoa
   um canto apaixonado.
    Uma nuvem parou.
      Bebamos vinho.
 Esqueçamos que a brisa
desfolhou a rosa, e levará o
canto do rouxinol e a nuvem
que nos dá neste momento
 uma sombra tão preciosa.
105
          A abóbada
      celeste sob a qual
vivemos é comparável a uma
       lanterna mágica,
  de que o sol é a lâmpada.
  E nós somos as figurinhas
        que se movem.

             106
       Uma rosa dizia:
"Sou a maravilha do universo.
    Será possível que um
  perfumista tenha coragem
    de fazer-me sofrer?"
     Um rouxinol cantou:
    "Um dia de felicidade
prepara um ano de lágrimas."

            107
       Logo à noite,
        ou amanhã,
     não existirás mais.
    É tempo de pedires
   um vinho cor de rosa.
           Louco!
Cuidas por acaso que és um
tesouro e que os ladrões já
  premeditam violar o teu
          sepulcro
  e roubar o teu cadáver?
108
            Sultão,
        o teu destino
   glorioso estava escrito
nas constelações onde brilha
    o nome de Khosrou!
Desde o começo dos tempos,
 o teu cavalo de ferraduras
de ouro galopava nos astros.
      Quando passas,
  um turbilhão de centelhas
 te oculta de nossas vistas.

              109
         O amor que
         não devasta
         não é amor.
      Um tição espalha
    acaso o mesmo calor
     que uma fogueira?
     Noite e dia, durante
 a vida inteira, o verdadeiro
    amante se consome
     na dor e no prazer.

           110
      Podes sondar
  a noite que nos cerca.
      Podes afundar
  pelo mistério adentro.
         Em vão!
      Ó Adão e Eva!
Como deve ter sido amargo
  o vosso primeiro beijo,
 para que nos gerásseis
   tão desesperados!...
111
         As flores
    do céu deixam cair
 as suas pétalas de ouro,
 e não sei por que o meu
       jardim ainda
 não está todo atapetado.
 Como o céu espalha as
   flores sobre a terra,
  eu encho a minha taça
de um vinho cor de rosa!...

             112
        Bebo o vinho
         como a raiz
      do salgueiro bebe
     a água da corrente.
      Deus só é Deus,
 só Deus sabe tudo - dizes.
    Pois bem: quando ele
   me criou, sabia que eu
    beberia vinho. Se me
tornasse abstêmio, a ciência
   de Deus estaria errada.

             113
         Só o vinho
       te libertará de
cuidados, só ele te impedirá
  de ficar hesitante entre
 as setenta e duas seitas.
   Não abandones nunca
     o mágico que tem
o condão de conduzir-te ao
doce país do esquecimento.
114
          Todas as
      manhãs, o orvalho
  pesa sobre as tulipas, os
  jacintos e as violetas, até
  que o sol venha aliviá-los
       desse belo fardo.
  Todas as manhãs, sinto o
coração mais pesado no meu
 peito, mas logo o teu olhar
   dissipa a minha tristeza.

             115
          Se queres
       gozar a solidão
magnifica das estrelas e das
flores, rompe com todos os
     homens, desliga-te
   de todas as mulheres.
        Não busques
 a companhia de ninguém.
       Não te inclines
     sobre dor alguma.
       Não participes
      de alegria alheia.

              116
         O vinho tem
       a cor das rosas.
    O vinho não é talvez
    o sangue das vinhas,
       mas dos rosais.
  Esta taça talvez não seja
  de cristal, mas do próprio
   azul do céu coagulado.
       A noite é talvez
      a pálpebra do dia.
117
             O vinho
         proporciona aos
   sábios uma embriaguez
  semelhante à dos Eleitos;
      dá-nos a mocidade,
restitui-nos o que perdêramos,
  põe ao nosso alcance tudo
       quanto desejamos.

            118
         Fecha o teu
           Corão.
     Pensa livremente
    e livremente encara
      o Céu e a Terra.
    Ao pobre que passa,
dá a metade do que possuis.
Perdoa a todos os culpados.
 Não entristeças ninguém.
 E esconde-te para sorrir...

              119
            Como o
        homem é fraco
    e o destino inelutável!
  Fazemos juramentos que
   não cumprimos e nossa
  própria humilhação nos é
          indiferente.
     Eu mesmo procedo
       freqüentemente
   como um desassisado.
   Mas tenho uma escusa:
 estou embriagado de amor.
120
         Homem, se
este mundo é uma miragem,
   por que te desespera,
por que pensas sem tréguas
na tua miserável condição?
     Abandona tua alma
    à fantasia das horas.
  Teu destino está escrito.
     Nenhuma emenda
         adiantará.

             121
            Aurora!
     Felicidade e pureza!
    Um imenso rubi cintila
         em cada taça.
       Toma estes dois
      ramos de sândalo.
 Transforma o maior numa
 cítara e beija o outro, para
      que o seu perfume
        te embalsame.

             122
          Cansado
        de interrogar
em vão os homens e os livros,
     interroguei a taça.
  Colei os meus lábios aos
  seus lábios e murmurei:
       "Para onde irei,
     depois de morto?"
  E a taça me respondeu:
   "Bebe na minha boca.
     Bebe longamente.
        Não volverás
   jamais a este mundo."
123
         Se bebes
       um bom vinho,
     Kháyyám, és feliz.
    Se contemplas a tua
fresca namorada, és feliz...
Se sonhas que não existes
       mais, és feliz,
  pois a morte...é o nada.

             124
        Atravessava
          eu um dia
   a oficina de um oleiro
  e havia duas mil urnas
  que falavam baixinho.
  De repente, uma delas
      gritou: "Silêncio!
 Permiti que esse homem
     evoque os oleiros
     e os compradores
 de urnas que já fomos..."

            125
         Dizes que
          o vinho
    é o bálsamo único?
  Traze-me todo o vinho
do universo! Meu coração
   tem tantas feridas!...
Todo o vinho do universo,
    e que meu coração
conserve as suas mágoas!
126
        É uma calma
           delicada,
          a do vinho!
   Oleiro, para esta alma
     tão fina, fazei urnas
     de paredes macias.
   Cinzeladores de taças,
  arredondai-as com amor
  para que o vinho se sinta
   docemente acariciado
  na sua alma voluptuosa.

               127
          Ignaro, que
       cuidas ser sábio,
    vejo-te sufocado entre
     o infinito do passado
     e o infinito do futuro.
 Bem quiseras pôr um limite
     entre esses infinitos
            e parar...
      Vai antes sentar-te
  à sombra de uma árvore,
perto de uma ânfora de vinho,
    que esquecerás a tua
          impotência.

              128
Contenta-te em saber que tudo
     é mistério: a criação
 do mundo e a tua, o destino
      do mundo e o teu.
   Sorri a esses mistérios
      como a um perigo
      que desprezasses.
   Não cuides que saberás
 alguma coisa mais quando
      tiveres transposto
       a porta da Morte.
        Paz ao homem
  no negro silêncio do Além!
129
 No meio do campo verde,
   a sombra desta árvore
      parece uma ilha.
Viandante, fica onde estás!
Entre o caminho que segues
 e esta sombra que baloiça
    lentamente há talvez
 um abismo intransponível.

               130
    Que devo fazer hoje?
        Irei à taverna?
 Irei sentar-me num jardim,
  ou passarei o dia curvado
       sobre um livro?
Um pássaro voa. Aonde irá?
      Perdi-o já de vista.
Ó embriaguez de um pássaro
    no azul morno do céu!
     Ó melancolia de um
  homem na sombra fresca
     de uma mesquita!...

             131
         Um pouco
       mais de vinho,
      ó minha amada.
 Tuas faces não têm ainda
     o brilho das rosas.
 Um pouco mais de tristeza,
        Kháyyám!...
  Tua amada vai olhar-te...
         vai sorrir...
132
        Nosso universo
   é um caminho de rosas.
      Nossos visitantes
      são as borboletas.
       Nossos músicos
       são os rouxinóis.
 Quando não há mais rosas,
 nem folhas, as estrelas são
   as minhas rosas e a tua
 cabeleira é a minha floresta.

                133
    Servidores, não é mister
  trazerder as lâmpadas, que
os meus convivas, extenuados,
         adormeceram.
     Vejo ainda claro para
      notar-lhes a palidez.
   Hirtos e frios, assim serão
    eles na noite do túmulo.
     Não é mister trazerdes
  as lâmpadas, ó servidores:
   os mortos não despertam.

               134
 Quando cambaleares ao peso
     da dor, quando os teus
   não tiverem mais lágrimas,
 pensa nos campos de verdura
que brilham depois das chuvas.
   Quando o esplendor do dia
te exasperar, quando desejares
  que uma noite eterna desça
         sobre o mundo,
      pensa no despertar
         de uma criança.
135
Dissimulo as minhas tristezas,
  como os pássaros feridos
 se encondem para morrer.
        Dá-me vinho!
  Escuta os meus gracejos.
     Quero vinho e rosas
  e canto ao som da cítara,
    a tua indiferença pela
  minha dor, ó bem-amada!

             136
           Senhor!
Armaste mil ciladas invisíveis
 no caminho que seguimos,
  e disseste: "Desgraçado
    o que não as evitar."
 Tu vês tudo. Tu sabes tudo.
  Nada acontece sem a tua
 permissão. Seremos, pois,
  responsáveis por nossos
          pecados?
       Farás um crime
      da minha revolta?

              137
   Tive mestres eminentes.
  Alegrei-me com os meus
     progressos e triunfos.
    Hoje, evocando o sábio
que era, comparo-me naquele
   tempo à água que toma
 a forma do vaso e à fumaça
      que o vento dissipa.
138
   Para o sábio, a tristeza
 e a alegria, o bem e o mal
   valem a mesma coisa.
   Para o sábio, tudo que
   começou deve acabar.
 Vê, pois, se convém ficares
   alegre com a felicidade
  que chega ou lamentares
         a desgraça
     que não esperavas.

             139
           Dervixe,
       despe-te dessas
vestes coloridas de que tanto
 te orgulhas e que não tinhas
         ao nasceres.
Enverga o manto da pobreza.
     Os viandantes não te
    cumprimentarão mais,
     mas todos os serafins
do céu cantarão em teu peito.

              140
     Bêbado ou sedento,
        só quero dormir.
    Renunciei saber o que
   é o bem, o que é o mal.
 Para mim, o prazer e a dor
         são parecidos.
   Quando me chega uma
   felicidade, dou-lhe lugar
modesto, porque sei que uma
desgraça vem no seu encalço.
141
    Não é possível incendiar
     o mar, nem convencer
   o homem de que a ventura
             é frágil
     E o homem sabe que o
   mais leve choque é fatal à
     urna cheia e não causa
       dano à urna vazia...

                142
      Olha em torno de ti.
   Não verás senão aflições,
    angústias e desesperos.
       Morreram os teus
       melhores amigos.
        A tristeza é a tua
      companheira única.
    Ergue, porém, a cabeça,
  abre as mãos e agarra o que
    desejas e podes atingir.
    O passado é um cadáver
      que deves enterrar.

               143
       Vejo um cavalheiro
que se afasta na bruma da tarde.
  Irá ele atravessar florestas,
      ou planícies áridas?
           Aonde vai?
             Não sei.
    Amanhã estarei deitado
          sobre a terra
        ou debaixo dela?
             Não sei.
144
            Só vês
        as aparências
   das coisas e dos seres.
 Sabes que é ignorante, mas
não queres renunciar ao amor.
 Lembra-te de que Deus fez
       o amor como fez
  certas plantas venenosas.

              145
       Homem miserável,
 nunca saberás coisa alguma.
     Não elucidarás um só
  dos mistérios que te cercam.
     Posto que as religiões
 te prometam o Paraíso, cuida
   de criar um neste mundo,
    que o outro é duvidoso.

            146
 Lâmpadas que se apagam,
        esperanças
  que se acendem: Aurora.
 Lâmpadas que se acendem,
        esperanças
   que se apagam: Noite.

              147
   Todos os reinos por uma
    taça de vinho precioso.
     Todos os livros e toda
   a ciência dos homens por
 um perfume suave de vinho!
    Todos os hinos de amor
pela canção do vinho que corre!
   Toda a glória de Feridoun
    pelos reflexos do vinho
            na urna!
148
           Recebi o
     golpe que esperava.
Abandonou-me a bem-amada.
    Quando eu a possuía,
 era-me tão fácil desprezar o
     amor e exaltar todas
        as renúncias!...
     Junto de tua amada,
 Kháyyám, como estavas só!
            Sabes?
     Ela se foi para que tu
   possas refugiar-te nela...

             149
           Senhor!
Despedaçaste a minha alegria!
    Senhor, ergueste uma
   muralha entre o coração
  da minha amada e o meu!
     Minha bela colheita,
      tu a destruíste...
        Vou morrer...
Tu cambaleias!...embriagado.

              150
Silêncio, ó dor da minha alma!
Deixa-me procurar um remédio.
    É preciso que eu viva.
 Os mortos não têm memória.
       E eu quero rever
    a minha bem-amada...

                151
   Cítaras, perfumes e taças,
    lábios, cabeleiras e olhos
     alongados - brinquedos
       que o tempo destrói,
           brinquedos!
  Austeridade, solidão e labor,
meditação, súplicas e renúncias
 - cinzas que o tempo espalha,
              cinzas!
152
       A aurora encheu de rosas
             a taça do Céu.
      No ar de cristal ecoa o canto
            do último rouxinol.
      O perfume do vinho é mais
           suave... Ó delícia!...
             E dizer-se que
           em momentos tais
       há insensatos que sonham
         com a glória e cuidam
              de honrarias!
        Tua cabeleira, ó minha
              bem-amada,
         é macia como a seda.

                    153
         Noite. Silêncio. Imóveis
          as folhas das árvores,
       imóvel o meu pensamento.
         Uma rosa, ao meu lado,
     deixou cair a primeira pétala...
         Onde estás, tu que me
      ofereceste a taça e por quem
              ainda suspiro?!
          Certo, uma rosa não
        se desfolha perto daquele
a quem tu, neste momento, sacias a sede:
     mas sentes certamente a falta
            do prazer amargo
         que sei proporcionar-te
            e que faz delirar.
154
          Se soubesses
      como me interessam
  pouco os quatro elementos
     da natureza e as cinco
   faculdades do homem!...
   Dizes que certos filósofos
gregos podiam propor aos seus
   auditores cem enigmas?
  Tudo isso me é indiferente.
 Traze-me um pouco de vinho,
  e dedilha a cítara para que
    as suas modulações me
  sugiram a brisa, que passa
   ligeira como nós todos!...

               155
   Quando a sombra da Morte
 se alongar sobre mim, quando
  o feixe dos meus dias estiver
     atado, eu vos chamarei,
    ó meus amigos, e vós me
   transportareis para o meu
             túmulo.
Tornado em pó, fareis uma urna
     com as minhas cinzas e
      a enchereis de vinho.
   Talvez, então, assistais ao
 milagre da minha ressureição.
156
      Senhor, ó Senhor,
        responde-nos!
 Deste-nos olhos e permitiste
     que a beleza das tuas
criaturas nos deslumbrasse!...
   Deste-nos a faculdade de
 sermos felizes e queres que
     renunciemos ao gozo
    dos bens deste mundo!
          Impossível!
  Tão impossível como virar
    uma taça sem derramar
 o vinho que nela se contém!

               157
        Toma a resolução
de não mais contemplar o céu.
  Cerca-te de belas raparigas
e deixa que elas te acariciem.
         Hesitas ainda?
      Tens ainda a tentação
         de orar a Deus?
  Antes de ti, outros homens
   fizeram súplicas ardentes.
       É certo que eles já
partiram deste mundo, mas tu
 ignoras se Deus as escutou.

             158
      Mais uma aurora!
   Como todas as manhãs,
 descubro hoje o esplendor
do mundo e me aflijo por não
     poder render graças
      ao Criador dele...
  Mas, há tantas rosas, que
 me consolo, e tantos lábios
que se oferecem aos meus!...
       Deixa tua cítara,
    ó minha bem-amada:
os pássaros estão cantando...
159
        Aprendi muito
       e esqueci muito,
       voluntariamente.
  Na minha memória, cada
 coisa estava no seu lugar.
 Por exemplo: o que estava
 à direita não podia passar
      para a esquerda.
  Só conheci a paz no dia
  em que rejeitei tudo com
  desprezo: compreendera
   afinal que é impossível
      afirmar ou negar.

              160
          Visto que a
  nossa sorte neste mundo
   é sofrer e depois morrer,
    devemos desejar que
   o nosso corpo miserável
    volte depressa à terra?
"E nossa alma?" - perguntais.
 "Deus a espera para julgá-la
  segundo seus méritos?..."
     Dar-vos-ei a resposta
   quando tiver notícias de
      alguém de volta do
         outro mundo.
161
      "Deus é grande!"
  Este grito do moueddin
parece uma imensa queixa.
   Cinco vezes por dia a
Terra geme inclinada para o
  seu Criador indiferente.
  Olha o riacho que brilha
        no teu jardim.
  Segue o meu exemplo,
cuida que vês o Kaouthar e
   que estás no Paraíso.
   Vai buscar tua amiga,
  fresca como uma rosa.

             162
          És infeliz?
  Não penses em tua dor,
       e não sofrerás.
 Se o teu sofrimento é muito
 violento, lembra-te de que
      todos os homens
   têm sofrido inutilmente
 desde a criação do mundo.
  Escolhe uma mulher de
seios de neve, mas...cautela!
  não ames essa mulher!...
      E que ela também
  seja incapaz de amar-te.

Mais conteúdo relacionado

Semelhante a Omar Khayyam - Rubaiyat

Semelhante a Omar Khayyam - Rubaiyat (20)

15 a grande surpresa
15   a grande surpresa15   a grande surpresa
15 a grande surpresa
 
Filipa Duarte
Filipa Duarte Filipa Duarte
Filipa Duarte
 
Ana Cristina César / a teus pés
Ana Cristina César / a teus pésAna Cristina César / a teus pés
Ana Cristina César / a teus pés
 
Poemas de vários autores
Poemas de vários autoresPoemas de vários autores
Poemas de vários autores
 
Desejos obscuros livro v
Desejos obscuros livro vDesejos obscuros livro v
Desejos obscuros livro v
 
Livro Completo de Poesias: ALÉM DA ESCURIDÃO
Livro Completo de Poesias: ALÉM DA ESCURIDÃOLivro Completo de Poesias: ALÉM DA ESCURIDÃO
Livro Completo de Poesias: ALÉM DA ESCURIDÃO
 
Poemas del -portugal
Poemas   del -portugalPoemas   del -portugal
Poemas del -portugal
 
O Maior Milagre Do Mundo
O Maior Milagre Do MundoO Maior Milagre Do Mundo
O Maior Milagre Do Mundo
 
16 chico xavieremmanuel-renúncia
16 chico xavieremmanuel-renúncia16 chico xavieremmanuel-renúncia
16 chico xavieremmanuel-renúncia
 
Labirintos
LabirintosLabirintos
Labirintos
 
Labirintos
Labirintos Labirintos
Labirintos
 
Evangelho Cap Vi O Cristo...
Evangelho Cap Vi O Cristo...Evangelho Cap Vi O Cristo...
Evangelho Cap Vi O Cristo...
 
Alma inquieta - Olavo Bilac
Alma inquieta - Olavo BilacAlma inquieta - Olavo Bilac
Alma inquieta - Olavo Bilac
 
Memorando de Deus
Memorando de DeusMemorando de Deus
Memorando de Deus
 
Calendário Mensal: Julho 2010
Calendário Mensal: Julho 2010Calendário Mensal: Julho 2010
Calendário Mensal: Julho 2010
 
Alexandre herculano mocidade e morte
Alexandre herculano   mocidade e morteAlexandre herculano   mocidade e morte
Alexandre herculano mocidade e morte
 
Floral de Phoenix
Floral de PhoenixFloral de Phoenix
Floral de Phoenix
 
(Livro Boa nova) Cap. 20 Maria de Magdala
(Livro Boa nova) Cap. 20   Maria de Magdala(Livro Boa nova) Cap. 20   Maria de Magdala
(Livro Boa nova) Cap. 20 Maria de Magdala
 
Folhas caidas
Folhas caidasFolhas caidas
Folhas caidas
 
Renúncia
RenúnciaRenúncia
Renúncia
 

Omar Khayyam - Rubaiyat

  • 1. Omar Khayyām Rubaiyat
  • 2. 1 Todos sabem que meus lábios nunca murmuraram uma oração. Não procurei nunca dissimular os meus pecados. Ignoro se existem realmente uma Justiça e uma Misericórdia. Mas, se existem, não desespero delas: fui sempre um homem sincero. 2 Que vale mais? Fazer exame de consciência sentado na taverna, ou prosternado na mesquita? Não me interessa saber se tenho um Senhor e o destino que me reserva. 3 Considera com indugência os que bebem até à embriaguez. Lembra-te de que tens defeitos maiores. Se queres conhecer a paz e a serenidade, pensa nos miseráveis que padecem os piores infortúnios, e... acabarás por julgar-te feliz.
  • 3. 4 Que a tua sabedoria não seja uma humilhação para o teu próximo. Guarda domínio sobre ti mesmo e nunca te abandones à cólera. Se aspiras à paz definitiva, sorri ao Destino que te fere; não firas ninguém. 5 Procura ser feliz ainda hoje, pois não sabes o que te reserva o dia de amanhã. Toma uma urna cheia de vinho, senta-te ao clarão do luar e monologa: "Talvez amanhã a lua me procure em vão." 6 Contenta-te com poucos amigos. Não busques prolongar a simpatia que alguém te inspirou. Antes de apertares a mão de um homem, considera se ela um dia não se erguera contra ti.
  • 4. 7 O corão, chamado o Livro supremo, pode ser lido de vez em quando; mas ninguém se deleita na sua leitura, sempre que o lê. Na taça cheia de vinho está gravado um texto, de tão adorável sabedoria, que a boca, à falta dos olhos, lê sempre com delícia. 8 Este vaso foi, outrora, um amante, como eu, que sofria com a indiferença de uma mulher... A asa curva do vaso é o braço que enlaçava o pescoço da bem-amada. 9 Como é vil o coração que, incapaz de amar, não pode conhecer o delírio da paixão!... Se não amas, és um indigno do sol que te ilumina da lua que te consola. 10 Sinto que a minha mocidade refloresce. Desejo aquele vinho que me dá calor e alegria... Quero vinho... Dizes que é amargo? Não importa. Tem o gosto da vida.
  • 5. 11 Inútil é que te aflijas: nada podes acerca do teu destino. Se és prudente, aproveita o momento atual. O futuro? Sabes o que ele te reservará?... 12 Além da Terra, além do Infinito, eu procurava em vão o Céu e o Inferno. Mas uma voz me disse: "O Céu e o Inferno estão em ti mesmo." 13 Deixemo-nos de palavras vãs. Levanta-te e dá-me um pouco de vinho. Esta noite tua boca é a mais bela rosa do mundo e basta para todos os meus desejos. Dá-me vinho. Que ele seja corado como as tuas faces, e o meu remorso será leve como as tuas tranças.
  • 6. 14 A brisa da primavera renova as rosas e, na sombra azul do jardim, acaricia o rosto de minha amada. A despeito da ventura que já gozei, sou tão feliz hoje que não me lembro de ontem: esqueço o passado... É tão imperioso o prazer deste momento... 15 Perderei ainda muito tempo, querendo encher o mar com pedras? Desprezo igualmente os libertinos e os devotos. Kháyyám, quem te poderá assegurar que irás para o Céu ou para o Inferno? Que significam essas duas palavras?... Conheces alguém que já tenha visitado esses países misteriosos? 16 Bebo, mas ignoro quem te fez, ó urna imensa! Sei apenas que podes conter três medidas de vinho e que um dia a Morte te destruirá. Mais tarde, indagarei por quem foste criada, por que foste feliz, por que não és mais que poeira.
  • 7. 17 Os dias passam rápidos como as águas do rio ou o vento do deserto. Dois há, em particular, que me são indiferentes: o que passou ontem, o que virá amanhã. 18 Quando nasci? Quando morrerei? Nenhum homem pode evocar o dia do seu nascimento ou prever o de sua morte. Vem, ó minha deliciosa amada! Quero esquecer, na embriaguez, a nossa incurável ignorância. 19 Kháyyám! Tecendo a tenda da sabedoria caíste na fogueira da Dor e ficaste reduzido a cinzas. O anjo Azrael cortou as cordas da tenda e a Morte vendeu-a por uma canção. 20 Kháyyám! Não se aflijas por seres um grande pecador! É inútil a tua tristeza. Depois da morte virá o Nada ou a Misericórdia.
  • 8. 21 Nas igrejas, nas sinagogas e nas mesquitas buscam refúgio os que temem o inferno. Mas o homem que conhece os segredos de Deus não cultiva no seu coração as sementes do terror e da súplica. 22 Na primavera, gosto de sentar-me à orla de um campo florido. Bebo o vinho que me oferece uma linda rapariga e não cuido de minha salvação. Se tal pensamento me ocupasse, eu valeria menos que um pobre cão. 23 O imenso mundo: um grão de areia perdido no espaço. Toda a ciência dos homens: palavras. Os povos, os animais e as flores dos sete climas: sombras. O resultado de tua meditação: nada.
  • 9. 24 Eu cambaleava de sono, e a Sabedoria me disse: "Nunca, no sono, a rosa da felicidade floriu para ninguém. Por que te abandonares a esse irmão da Morte? Bebe vinho? Tens muitos séculos para dormir!" 25 Meu coração diz: "Quero saber! Tenho um desejo ardente de ciência! Instrui-me, Kháyyám, tu que tanto estudaste!" Pronunciei a primeira letra do alfabeto, e o meu coração retrucou: "Agora, sei. Um é o primeiro algarismo do número que não acaba nunca..." 26 Ninguém desvendará o que é misterioso. Ninguém poderá ver o que se oculta debaixo das aparências. Todas as nossas moradas são provisórias, salvo a última, no coração da terra. Bebe o vinho amigo! Basta de palavras supérfluas.
  • 10. 27 Admito que tenhas resolvido o enigma da criação. E o teu destino?... Convenho que tenhas despido a Verdade de todas as suas roupagens. E o teu destino?... Admito que tenhas vivido cem anos felizes e ainda restem outros cem a viver. E o teu destino?... 28 Convence-te bem do seguinte: Um dia tua alma abandonará o teu corpo e serás arrastado para trás do véu que flutua entre o universo e o incognoscível. Enquanto esperas, cuida de ser feliz! Não sabes de onde vens. Não sabes para onde vais. 29 Os sábios e os filósofos mais ilustres caminharam nas trevas da ignorância. E eram os luzeiros do seu tempo!... Em suma, que fizeram eles? Pronunciaram algumas frases confusas e adormeceram fatigados.
  • 11. 30 A vida é um jogo monótono em que tens a certeza de ganhar dois pontos: a dor e a morte. Feliz a criança que expirou no dia do nascimento!... Mais feliz ainda é o que não veio a este mundo... 31 Na feira que atravessas, não tentes encontrar nenhum amigo. Não procures tampouco um abrigo seguro. Com alma serena, aceita a dor sem esperança de remédio, que não existe. Sorri ao infortúnio e não peças a ninguém que te sorria: seria tempo perdido. 32 A rosa gira descuidosa dos cálculos dos sábios. Renuncia à vaidade de contar os astros e medita antes sobre esta certeza: deves morrer, não sonharás mais e os vermes da terra ou os cães vagabundos devorarão o teu cadáver.
  • 12. 33 O criador do universo e das estrelas excedeu-se quando inventou a dor. Lábios vermelhos como rubi, cabeleiras embalsamadas, quantos sois neste mundo?... 34 Nem sequer entrevejo o Céu... Meus olhos estão toldados de lágrimas. O fogo do Inferno é uma chama ligeira comparado às labaredas que me devoram a alma. O Céu é, para mim, um instante de paz. 35 Sono sobre a terra. Sono debaixo da terra. Sobre a terra, debaixo da terra, homens deitados. O nada em toda parte. Deserto do nada. Homens chegam. Outros partem. 36 Velho mundo que atravessa a galope o cavalo branco e negro do Dia e da Noite, és o palácio triste onde cem Djemchids sonharam com a glória e cem Bahrâms sonharam com o amor, e todos despertaram chorando.
  • 13. 37 O vento do Sul crestou a rosa a que o rouxinol entoava um hino. Devemos chorar o destino da rosa, ou o nosso? Quando a morte empalidecer nossas faces, outras rosas desabrocharão... 38 Esquece que ontem não lograste a recompensa que merecias. Sê feliz. Não lamentes nada. Não esperes nada. Tudo que deve acontecer está escrito no Livro que o vento da Eternidade folheia ao acaso. 39 Sempre que ouço dissertar sobre os gozos reservados aos Eleitos, limito-me a dizer: "Só tenho confiança no vinho. Moeda sonante, e não promessas! O ruído dos tambores é belo a grande distância..."
  • 14. 40 Bebe vinho! Só ele te dará a mocidade, ele é a vida eterna! Divina estação das rosas, do vinho e dos bons amigos! Sê feliz um instante, o instante fugitivo que é a tua vida... 41 Bebe um pouco de vinho porque dormirás muito tempo debaixo da terra, sem amigo. sem camarada, sem mulher. Confio-te um segredo: as tulipas murchas não reflorescem mais. 42 Baixinho, a argila segredou ao oleiro que a trabalhava: "Não esqueças que já fui como tu... Não me maltrates..." 43 Oleiro, se tu és perspicaz, não mortifiques a argila em que Adão foi modelado! Vejo no torno que moves a mão de Feridoun, o coração de Khorsrou... Que fizeste?...
  • 15. 44 A tulipa rubra nasce no campo regado outrora pelo sangue de um rei. A violeta brota do sinal de beleza que palpitava no rosto de um adolescente. 45 Há miríades de séculos as auroras e os crepúsculos sucedem. Há séculos e séculos os astros fazem a sua ronda de sempre. Pisa a terra com cautela... talvez o torrão que vais esmagar tenha sido o olho terno de um belo adolescente. 46 As raízes do narciso, que balança à beira do riacho, brotaram dos lábios de uma mulher. Pisa muito de leve a relva macia! Quem sabe se ela não germinou nas cinzas de rostos que eram belos e brilhantes como tulipas vermelhas?
  • 16. 47 Vi ontem um oleiro sentado diante do seu torno, modelando as alças e os contornos de uma urna. O barro que ele amassava era feito de crânios de sultões e de mãos de mendigos. 48 O bem e o mal disputam a primazia neste mundo. O Céu não é responsável pela felicidade ou pela desventura que o destino nos reserva. Não agradeças, pois, ao Céu, não o acuses também. Ele é indiferente às tuas alegrias, indiferente aos teus pesares. 49 Se enxertaste no teu coração a rosa do Amor, tua vida não foi inútil, quer tenhas buscado ouvir a voz de Deus, quer tenhas sorridente empunhado a taça do prazer. 50 Sê prudente, ó viajante! Perigoso é o caminho que palmilhas! A espada do destino é acerada. Não colhas as amêndoas doces que encontrares: têm veneno.
  • 17. 51 Um jardim, uma rapariga ondulosa, uma ânfora de vinho, o meu desejo e minha amargura: eis o meu Paraíso e o meu Inferno!... Quem sabe, porém, o que é o Céu, que é o Inferno!? 52 Tu, cujas faces tiveram por modelos as flores do campo, cujo rosto parece o de um ídolo chinês, saberás acaso que o teu olhar de veludo fez o rei da Babilônia igual ao bispo do jogo de xadrez que foge da rainha?... 53 A vida passa. Que resta de Bagdad e de Balk? O choque mais ligeiro é fatal à rosa completamente desabrochada... Bebe vinho e contempla a lua, evocando as civilizações que ela já viu morrer 54 Escuta a voz da Sabedoria, que te repete o dia inteiro: "A vida é breve e tu não és como as plantas que reverdecem depois de podadas."
  • 18. 55 Os professores e os sábios silenciosos morreram sem se entenderem no tocante ao ser e ao não-ser. Meus irmãos! Ignorantes, continuemos a saborear o suco dos bons cachos e deixemos que os grandes homens se regalem com as passas. 56 Meu nascimento não trouxe nenhum proveito ao universo. MInha morte não lhe diminuirá a imensidade, nem a beleza. Ninguém pode explicar-me por que vim, por que me vou embora. 57 No caminho do Amor nos perderemos e o Destino nos esmagará com o seu tacão. Ó rapariga, ó minha taça encantada, ergue-te e dá-me de beber em teus lábios, antes que eu me transforme em poeira. 58 Só de nome conhecemos a felicidade... Nosso amigo mais velho é o vinho novo. Acaricia com o olhar e com a mão o único bem que não falha: a urna cheia do sangue da vinha.
  • 19. 59 Não busques a felicidade A vida é breve como um suspiro. As cinzas de Djemchid e de Kai-Kobao giram na poeira vermelha que tolda o ar. O universo é uma miragem. A vida é um sonho. 60 Senta-te e bebe, que serás mais feliz que Mahmud. Escuta as melodias que exalam as harpas dos amantes: são os verdadeiros salmos de David. Não mergulhes no passado, não sondes o futuro. Que o teu pensamento não vá além do momento presente: eis o segredo da paz!... 61 Os homens estreitos e orgulhosos criaram diferenças entre alma e corpo. De mim, so afirmo uma coisa: o vinho destrói os cuidados que nos atormentam e nos dá a quietude perfeita. 62 Que enigma, os astros que saltam no espaço! Kháyyám, agarra-te firmemente à corda da Sabedoria. Presta atenção à vertigem, que faz cair, perto de ti, os teus companheiros!
  • 20. 63 Não temo a Morte: prefiro esse fato inelutável ao outro que me foi imposto no dia do meu nascimento. Que é a vida? Um bem que me confiaram sem me consultar e que restituirei com indiferença. 64 A vida passa, qual rápida caravana! Toma as rédeas ao teu corcel, pára e surpreende o minuto de alegria... Linda rapariga, por que te afliges? Dá-me um pouco de vinho. A noite já vai acabar... 65 Ouço dizer que os amantes do vinho serão danados no Inferno. Não há verdades, mas há mentiras evidentes. Se os que amam o vinho e o amor vão para o inferno o Paraíso deve estar vazio. 66 Estou velho, e a paixão que me inspiraste arrastar-me-á ao túmulo, pois não cesso de encher de vinho a grande taça. Minha paixão por ti tem razão contra mim mesmo... E o tempo desfolha a minha bela rosa...
  • 21. 67 Podes obcecar-me, ó miragem de uma outra ventura! Podeis modular vossas encantações, ó vozes amorosas! Contemplo a que já escolhi e só quero ouvir a voz que me seduziu. Alguém me dirá: "Deus te perdoará." Recuso o perdão que não pedi. 68 Um pouco de pão, um pouco de água fresca, a sombra de uma árvore e os teus olhos! Nenhum sultão é mais feliz do que eu... Nenhum mendigo é mais triste.... 69 Por que tanta suavidade, tanta ternura, no começo do nosso amor? Por que tantos carinhos, tantas delícias, depois? E...por que, hoje, o teu único prazer é dilacerar o meu coração? Por quê?
  • 22. 70 Vinho! Eis o remédio de que carece o meu coração doente! Vinho com perfume almiscarado! Vinho cor de rosa! Dá-me vinho para apagar o incêndio da minha tristeza! Vinho e o teu alaúde de cordas de seda, ó minha bem-amada! 71 Falas-me de um Criador... Pois ele só formou as criaturas para destruí-las?... Por que são feias? Por que são belas? A quem cabe a responsabilidade? Não compreendo nada. 72 Todos os homens pretendem caminhar na estrada do Conhecimento. Essa estrada, uns a procuram, outros afirmam tê-la encontrado. Um dia, porém, uma voz proclamará: "Não há caminho, nem atalho!"
  • 23. 73 Oferece às luzes da aurora o vinho de tua taça, semelhante à tulipa primaveril! Dedica ao sorriso de um adolescente o vinho de tua taça, que é vermelho como a tua boca! Bebe e esquece que o punho da dor breve te derribará. 74 Vinho! Vinho em torrentes! Que ele palpite nas minhas veias! Que ele borbulhe na minha cabeça! Taças!... Silêncio! Tudo é mentira... Taças... Depressa! Envelheci muito... 75 Um tal odor de vinho emanará do meu túmulo, que embriagará os viandantes. Uma serenidade tal pairará sobre a minha sepultura, que os amantes não poderão afastar-se dela.
  • 24. 76 No turbilhão da vida só são felizes os homens que, presumindo saber tudo, não buscam instruir-se. Inclinei-me na perscrutação de todos os segredos do Universo, e voltei à minha solidão, invejando os cegos que encontrei pelo caminho. 77 Dizem-me: "Não bebas mais, Kháyyám!" E eu respondo:"Quando bebo, ouço o que dizem as rosas, tulipas e os jasmins. Ouço mesmo o que não me podem dizer a minha bem-amada!" 78 Em que pensas, amigo meu? Em teus antepassados? São o pó no pó. Pensas nas virtudes que tiveram? Deixa-me sorrir... Toma esta urna e bebamos, escutando sem inquietação o grande silêncio do Universo.
  • 25. 79 Amigo: não faças projeto algum para amanhã. Sabes acaso se poderás concluir a frase que vais começar? Amanhã, estaremos talvez muito longe desta hospedaria, como os que já se foram há sete mil anos. 80 Ó gladiador de corações, toma uma urna e uma taça! Sentemos-nos à beira da corrente cristalina. Esbelto adolescente de semblante luminoso, eu te contemplo e imagino a urna e a taça que serás mais tarde!... 81 Há muito tempo a minha mocidade jaz entre as coisas mortas. Primavera da minha vida, estás hoje onde estão as primaveras que passaram. Mocidade minha! passaste sem que eu me apercebesse! Partiste, como aos poucos se vão os melhores dias da primavera.
  • 26. 82 Delicia-te, ó meu irmão, com todos os perfumes, todas as cores, todas as músicas. Envolve de carícias todas as mulheres. Lembra-te de que a vida é fugaz e que breve voltará ao pó. 83 É loucura aspirares à paz neste mundo. Loucura é creres num repouso eterno: - depois de tua morte, teu sono será breve e renascerás num tufo de ervas, que será pisado, ou numa flor que o sol crestará. 84 Pergunto a mim mesmo o que em verdade possuo. Considero o que subsistirá de mim depois de minha morte. Nossa vida é breve como um incêndio. Chama, que um leve sopro apaga; cinzas, que o vento dispersa: eis a existência de um homem. 85 Convicção e dúvida, erro e verdade - são palavras tão vazias como uma bolha de ar. Irisada ou opaca, essa bolha é a imagem de tua vida.
  • 27. 86 Mais vale uma urna de vinho que o poder, a glória e as riquezas. Respeito o amante que geme de felicidade; detesto o hipócrita que murmura orações. 87 Escuta um grande segredo: quando a primeira aurora iluminou o mundo, Adão já era uma criatura dolorosa, que pedia a noite, que ansiava pela morte. 88 A Lua do Ramazam apareceu. Amanhã o sol banhará de luz uma cidade silenciosa. E os vinhos dormirão nas suas urnas e as raparigas à sombra dos bosques. 89 Não pedi a vida a ninguém. Esforço-me por acolher sem espanto e sem cólera tudo o que a vida me oferece. Partirei sem indagar o motivo da minha misteriosa estada neste mundo.
  • 28. 90 Colhe todos os frutos da vida. Busca todas as alegrias e escolhe as taças maiores. Não creias que Deus faça a conta dos teus vícios ou das tuas virtudes. Não deixes escapar o que te pode dar felicidade. 91 Não me preocupa saber onde poderei comprar o manto da Mentira e do Ardil. Mas ando sempre à procura do bom vinho. Meus cabelos estão brancos. Tenho setenta anos de idade. Agarro hoje o momento da felicidade, pois, amanhã, talvez não me restem forças. 92 Que é feito de todos os nossos amigos? Será que a morte os derribou e pisou? Que é feito dos nossos amigos? Ouço ainda suas cantigas na taverna... Morreram? Estão embriagados?
  • 29. 93 Quando eu não viver mais, não haverá mais rosas, nem ciprestes, nem lábios vermelhos, nem vinhos perfumados. Não haverá mais auroras, nem crepúsculos, nem alegrias, nem penas. O universo não existirá mais, pois tudo existe em função do meu pensamento. 94 Eis a verdade única: - somos os peões da misteriosa partida de xadrez, jogada por Deus, que nos desloca, nos pára, nos põe mais adiante, e depois nos recolhe um a um à caixa do Nada. 95 A abóbada celeste parece uma taça emborcada, debaixo da qual se agitam em vão os sábios. Que o teu amor à bem-amada seja igual ao da urna pela taça. Olha bem: lábio colado a lábio, elas se dão o próprio sangue.
  • 30. 96 Os sábios não te ensinaram coisa alguma, mas a carícia dos longos cílios de uma mulher poderá revelar-te a felicidade. Não esqueças que os teus dias estão contados e que serás em breve a presa da terra. Compra vinho e, recolhido ao teu canto, busca nele o consolo. 97 O vinho dar-te-á o calor que não possuis. Libertar-te-ás das névoas do passado e das brumas do futuro. Inundar-te-á de luz, livrando-te dos grilhões de prisioneiro. 98 Outrora, quando eu freqüentava as mesquitas, não fazia orações, mas voltava à casa rico de esperanças. Ainda hoje, gosto de sentar-me nas mesquitas. Nelas, a sombra é propícia ao sono.
  • 31. 99 Na terra multicor, caminha um mortal, que não é muçulmano, nem infiel, não é rico, nem pobre. Esse homem não venera Deus, nem acata as leis; não acredita na verdade, nunca afirma coisa alguma... Na terra sarapintada, quem é esse homem intrépido e triste?... 100 Antes que possas afagar um rosto macio como rosa, quantos espinhos tens que retirar de tua própria carne! Olha este pente! Era um pedaço de madeira. Quando o cortaram, que suplícios sofreu! Mas depois, mergulhou numa cabeleira profunda... 101 Quando a brisa da manhã entreabre as rosas e lhes segreda que as violetas já ostentam as suas vestes, só é digno da vida o que contempla ao seu lado, adormecida, uma esbelta rapariga, e toma da taça e a esvazia, e depois a atira ao chão.
  • 32. 102 Queres saber o que te acontecerá amanhã?... Erro! Sê confiante, senão o infortúnio não deixará de justificar as tuas apreensões. Não te apegues a nada, não interrogues nem os livros, nem as pessoas: o nosso destino é insondável. 103 Um dia, numa taverna, pedi a um velho notícias dos que partiram. e ele me respondeu: "Não voltarão. Eis tudo o que sei. Bebe vinho!" 104 Olha! Escuta! Uma rosa treme ao sopro da brisa. E um rouxinol lhe entoa um canto apaixonado. Uma nuvem parou. Bebamos vinho. Esqueçamos que a brisa desfolhou a rosa, e levará o canto do rouxinol e a nuvem que nos dá neste momento uma sombra tão preciosa.
  • 33. 105 A abóbada celeste sob a qual vivemos é comparável a uma lanterna mágica, de que o sol é a lâmpada. E nós somos as figurinhas que se movem. 106 Uma rosa dizia: "Sou a maravilha do universo. Será possível que um perfumista tenha coragem de fazer-me sofrer?" Um rouxinol cantou: "Um dia de felicidade prepara um ano de lágrimas." 107 Logo à noite, ou amanhã, não existirás mais. É tempo de pedires um vinho cor de rosa. Louco! Cuidas por acaso que és um tesouro e que os ladrões já premeditam violar o teu sepulcro e roubar o teu cadáver?
  • 34. 108 Sultão, o teu destino glorioso estava escrito nas constelações onde brilha o nome de Khosrou! Desde o começo dos tempos, o teu cavalo de ferraduras de ouro galopava nos astros. Quando passas, um turbilhão de centelhas te oculta de nossas vistas. 109 O amor que não devasta não é amor. Um tição espalha acaso o mesmo calor que uma fogueira? Noite e dia, durante a vida inteira, o verdadeiro amante se consome na dor e no prazer. 110 Podes sondar a noite que nos cerca. Podes afundar pelo mistério adentro. Em vão! Ó Adão e Eva! Como deve ter sido amargo o vosso primeiro beijo, para que nos gerásseis tão desesperados!...
  • 35. 111 As flores do céu deixam cair as suas pétalas de ouro, e não sei por que o meu jardim ainda não está todo atapetado. Como o céu espalha as flores sobre a terra, eu encho a minha taça de um vinho cor de rosa!... 112 Bebo o vinho como a raiz do salgueiro bebe a água da corrente. Deus só é Deus, só Deus sabe tudo - dizes. Pois bem: quando ele me criou, sabia que eu beberia vinho. Se me tornasse abstêmio, a ciência de Deus estaria errada. 113 Só o vinho te libertará de cuidados, só ele te impedirá de ficar hesitante entre as setenta e duas seitas. Não abandones nunca o mágico que tem o condão de conduzir-te ao doce país do esquecimento.
  • 36. 114 Todas as manhãs, o orvalho pesa sobre as tulipas, os jacintos e as violetas, até que o sol venha aliviá-los desse belo fardo. Todas as manhãs, sinto o coração mais pesado no meu peito, mas logo o teu olhar dissipa a minha tristeza. 115 Se queres gozar a solidão magnifica das estrelas e das flores, rompe com todos os homens, desliga-te de todas as mulheres. Não busques a companhia de ninguém. Não te inclines sobre dor alguma. Não participes de alegria alheia. 116 O vinho tem a cor das rosas. O vinho não é talvez o sangue das vinhas, mas dos rosais. Esta taça talvez não seja de cristal, mas do próprio azul do céu coagulado. A noite é talvez a pálpebra do dia.
  • 37. 117 O vinho proporciona aos sábios uma embriaguez semelhante à dos Eleitos; dá-nos a mocidade, restitui-nos o que perdêramos, põe ao nosso alcance tudo quanto desejamos. 118 Fecha o teu Corão. Pensa livremente e livremente encara o Céu e a Terra. Ao pobre que passa, dá a metade do que possuis. Perdoa a todos os culpados. Não entristeças ninguém. E esconde-te para sorrir... 119 Como o homem é fraco e o destino inelutável! Fazemos juramentos que não cumprimos e nossa própria humilhação nos é indiferente. Eu mesmo procedo freqüentemente como um desassisado. Mas tenho uma escusa: estou embriagado de amor.
  • 38. 120 Homem, se este mundo é uma miragem, por que te desespera, por que pensas sem tréguas na tua miserável condição? Abandona tua alma à fantasia das horas. Teu destino está escrito. Nenhuma emenda adiantará. 121 Aurora! Felicidade e pureza! Um imenso rubi cintila em cada taça. Toma estes dois ramos de sândalo. Transforma o maior numa cítara e beija o outro, para que o seu perfume te embalsame. 122 Cansado de interrogar em vão os homens e os livros, interroguei a taça. Colei os meus lábios aos seus lábios e murmurei: "Para onde irei, depois de morto?" E a taça me respondeu: "Bebe na minha boca. Bebe longamente. Não volverás jamais a este mundo."
  • 39. 123 Se bebes um bom vinho, Kháyyám, és feliz. Se contemplas a tua fresca namorada, és feliz... Se sonhas que não existes mais, és feliz, pois a morte...é o nada. 124 Atravessava eu um dia a oficina de um oleiro e havia duas mil urnas que falavam baixinho. De repente, uma delas gritou: "Silêncio! Permiti que esse homem evoque os oleiros e os compradores de urnas que já fomos..." 125 Dizes que o vinho é o bálsamo único? Traze-me todo o vinho do universo! Meu coração tem tantas feridas!... Todo o vinho do universo, e que meu coração conserve as suas mágoas!
  • 40. 126 É uma calma delicada, a do vinho! Oleiro, para esta alma tão fina, fazei urnas de paredes macias. Cinzeladores de taças, arredondai-as com amor para que o vinho se sinta docemente acariciado na sua alma voluptuosa. 127 Ignaro, que cuidas ser sábio, vejo-te sufocado entre o infinito do passado e o infinito do futuro. Bem quiseras pôr um limite entre esses infinitos e parar... Vai antes sentar-te à sombra de uma árvore, perto de uma ânfora de vinho, que esquecerás a tua impotência. 128 Contenta-te em saber que tudo é mistério: a criação do mundo e a tua, o destino do mundo e o teu. Sorri a esses mistérios como a um perigo que desprezasses. Não cuides que saberás alguma coisa mais quando tiveres transposto a porta da Morte. Paz ao homem no negro silêncio do Além!
  • 41. 129 No meio do campo verde, a sombra desta árvore parece uma ilha. Viandante, fica onde estás! Entre o caminho que segues e esta sombra que baloiça lentamente há talvez um abismo intransponível. 130 Que devo fazer hoje? Irei à taverna? Irei sentar-me num jardim, ou passarei o dia curvado sobre um livro? Um pássaro voa. Aonde irá? Perdi-o já de vista. Ó embriaguez de um pássaro no azul morno do céu! Ó melancolia de um homem na sombra fresca de uma mesquita!... 131 Um pouco mais de vinho, ó minha amada. Tuas faces não têm ainda o brilho das rosas. Um pouco mais de tristeza, Kháyyám!... Tua amada vai olhar-te... vai sorrir...
  • 42. 132 Nosso universo é um caminho de rosas. Nossos visitantes são as borboletas. Nossos músicos são os rouxinóis. Quando não há mais rosas, nem folhas, as estrelas são as minhas rosas e a tua cabeleira é a minha floresta. 133 Servidores, não é mister trazerder as lâmpadas, que os meus convivas, extenuados, adormeceram. Vejo ainda claro para notar-lhes a palidez. Hirtos e frios, assim serão eles na noite do túmulo. Não é mister trazerdes as lâmpadas, ó servidores: os mortos não despertam. 134 Quando cambaleares ao peso da dor, quando os teus não tiverem mais lágrimas, pensa nos campos de verdura que brilham depois das chuvas. Quando o esplendor do dia te exasperar, quando desejares que uma noite eterna desça sobre o mundo, pensa no despertar de uma criança.
  • 43. 135 Dissimulo as minhas tristezas, como os pássaros feridos se encondem para morrer. Dá-me vinho! Escuta os meus gracejos. Quero vinho e rosas e canto ao som da cítara, a tua indiferença pela minha dor, ó bem-amada! 136 Senhor! Armaste mil ciladas invisíveis no caminho que seguimos, e disseste: "Desgraçado o que não as evitar." Tu vês tudo. Tu sabes tudo. Nada acontece sem a tua permissão. Seremos, pois, responsáveis por nossos pecados? Farás um crime da minha revolta? 137 Tive mestres eminentes. Alegrei-me com os meus progressos e triunfos. Hoje, evocando o sábio que era, comparo-me naquele tempo à água que toma a forma do vaso e à fumaça que o vento dissipa.
  • 44. 138 Para o sábio, a tristeza e a alegria, o bem e o mal valem a mesma coisa. Para o sábio, tudo que começou deve acabar. Vê, pois, se convém ficares alegre com a felicidade que chega ou lamentares a desgraça que não esperavas. 139 Dervixe, despe-te dessas vestes coloridas de que tanto te orgulhas e que não tinhas ao nasceres. Enverga o manto da pobreza. Os viandantes não te cumprimentarão mais, mas todos os serafins do céu cantarão em teu peito. 140 Bêbado ou sedento, só quero dormir. Renunciei saber o que é o bem, o que é o mal. Para mim, o prazer e a dor são parecidos. Quando me chega uma felicidade, dou-lhe lugar modesto, porque sei que uma desgraça vem no seu encalço.
  • 45. 141 Não é possível incendiar o mar, nem convencer o homem de que a ventura é frágil E o homem sabe que o mais leve choque é fatal à urna cheia e não causa dano à urna vazia... 142 Olha em torno de ti. Não verás senão aflições, angústias e desesperos. Morreram os teus melhores amigos. A tristeza é a tua companheira única. Ergue, porém, a cabeça, abre as mãos e agarra o que desejas e podes atingir. O passado é um cadáver que deves enterrar. 143 Vejo um cavalheiro que se afasta na bruma da tarde. Irá ele atravessar florestas, ou planícies áridas? Aonde vai? Não sei. Amanhã estarei deitado sobre a terra ou debaixo dela? Não sei.
  • 46. 144 Só vês as aparências das coisas e dos seres. Sabes que é ignorante, mas não queres renunciar ao amor. Lembra-te de que Deus fez o amor como fez certas plantas venenosas. 145 Homem miserável, nunca saberás coisa alguma. Não elucidarás um só dos mistérios que te cercam. Posto que as religiões te prometam o Paraíso, cuida de criar um neste mundo, que o outro é duvidoso. 146 Lâmpadas que se apagam, esperanças que se acendem: Aurora. Lâmpadas que se acendem, esperanças que se apagam: Noite. 147 Todos os reinos por uma taça de vinho precioso. Todos os livros e toda a ciência dos homens por um perfume suave de vinho! Todos os hinos de amor pela canção do vinho que corre! Toda a glória de Feridoun pelos reflexos do vinho na urna!
  • 47. 148 Recebi o golpe que esperava. Abandonou-me a bem-amada. Quando eu a possuía, era-me tão fácil desprezar o amor e exaltar todas as renúncias!... Junto de tua amada, Kháyyám, como estavas só! Sabes? Ela se foi para que tu possas refugiar-te nela... 149 Senhor! Despedaçaste a minha alegria! Senhor, ergueste uma muralha entre o coração da minha amada e o meu! Minha bela colheita, tu a destruíste... Vou morrer... Tu cambaleias!...embriagado. 150 Silêncio, ó dor da minha alma! Deixa-me procurar um remédio. É preciso que eu viva. Os mortos não têm memória. E eu quero rever a minha bem-amada... 151 Cítaras, perfumes e taças, lábios, cabeleiras e olhos alongados - brinquedos que o tempo destrói, brinquedos! Austeridade, solidão e labor, meditação, súplicas e renúncias - cinzas que o tempo espalha, cinzas!
  • 48. 152 A aurora encheu de rosas a taça do Céu. No ar de cristal ecoa o canto do último rouxinol. O perfume do vinho é mais suave... Ó delícia!... E dizer-se que em momentos tais há insensatos que sonham com a glória e cuidam de honrarias! Tua cabeleira, ó minha bem-amada, é macia como a seda. 153 Noite. Silêncio. Imóveis as folhas das árvores, imóvel o meu pensamento. Uma rosa, ao meu lado, deixou cair a primeira pétala... Onde estás, tu que me ofereceste a taça e por quem ainda suspiro?! Certo, uma rosa não se desfolha perto daquele a quem tu, neste momento, sacias a sede: mas sentes certamente a falta do prazer amargo que sei proporcionar-te e que faz delirar.
  • 49. 154 Se soubesses como me interessam pouco os quatro elementos da natureza e as cinco faculdades do homem!... Dizes que certos filósofos gregos podiam propor aos seus auditores cem enigmas? Tudo isso me é indiferente. Traze-me um pouco de vinho, e dedilha a cítara para que as suas modulações me sugiram a brisa, que passa ligeira como nós todos!... 155 Quando a sombra da Morte se alongar sobre mim, quando o feixe dos meus dias estiver atado, eu vos chamarei, ó meus amigos, e vós me transportareis para o meu túmulo. Tornado em pó, fareis uma urna com as minhas cinzas e a enchereis de vinho. Talvez, então, assistais ao milagre da minha ressureição.
  • 50. 156 Senhor, ó Senhor, responde-nos! Deste-nos olhos e permitiste que a beleza das tuas criaturas nos deslumbrasse!... Deste-nos a faculdade de sermos felizes e queres que renunciemos ao gozo dos bens deste mundo! Impossível! Tão impossível como virar uma taça sem derramar o vinho que nela se contém! 157 Toma a resolução de não mais contemplar o céu. Cerca-te de belas raparigas e deixa que elas te acariciem. Hesitas ainda? Tens ainda a tentação de orar a Deus? Antes de ti, outros homens fizeram súplicas ardentes. É certo que eles já partiram deste mundo, mas tu ignoras se Deus as escutou. 158 Mais uma aurora! Como todas as manhãs, descubro hoje o esplendor do mundo e me aflijo por não poder render graças ao Criador dele... Mas, há tantas rosas, que me consolo, e tantos lábios que se oferecem aos meus!... Deixa tua cítara, ó minha bem-amada: os pássaros estão cantando...
  • 51. 159 Aprendi muito e esqueci muito, voluntariamente. Na minha memória, cada coisa estava no seu lugar. Por exemplo: o que estava à direita não podia passar para a esquerda. Só conheci a paz no dia em que rejeitei tudo com desprezo: compreendera afinal que é impossível afirmar ou negar. 160 Visto que a nossa sorte neste mundo é sofrer e depois morrer, devemos desejar que o nosso corpo miserável volte depressa à terra? "E nossa alma?" - perguntais. "Deus a espera para julgá-la segundo seus méritos?..." Dar-vos-ei a resposta quando tiver notícias de alguém de volta do outro mundo.
  • 52. 161 "Deus é grande!" Este grito do moueddin parece uma imensa queixa. Cinco vezes por dia a Terra geme inclinada para o seu Criador indiferente. Olha o riacho que brilha no teu jardim. Segue o meu exemplo, cuida que vês o Kaouthar e que estás no Paraíso. Vai buscar tua amiga, fresca como uma rosa. 162 És infeliz? Não penses em tua dor, e não sofrerás. Se o teu sofrimento é muito violento, lembra-te de que todos os homens têm sofrido inutilmente desde a criação do mundo. Escolhe uma mulher de seios de neve, mas...cautela! não ames essa mulher!... E que ela também seja incapaz de amar-te.