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Padre Jacques D’ARCY, S. pss




   INTRODUÇÃO À METAFISICA
(Adaptação do curso do Padre Peter Henrici SJ)




SEMINARIO MAIOR NOSSA SENHORA DE FATIMA
              BRASILIA DF
       PRIMEIRO SEMESTRE DE 2004
2
                                                     ÍNDICE
INTRODUÇÃO:
O que é a metafísica na busca de uma definição provisional?
0.1     No âmbito da filosofia
0.2     No âmbito do saber humano
0.3     No âmbito da existência cristã

CAPITULO I:
MODELOS DE APROXIMAÇÃO À METAFÍSICA

1.1    SÓCRATES E O VALOR ÉTICO INCONDICIONADO
       1.1.1 O método socrático
       1.1.2 O diálogo de Eutifrón
       1.1.3 A norma do agir
       1.1.4 Sócrates e nós: valor da via socrática para a metafísica

1.2    PLATÃO E O AMOR Á BELEZA
       1.2.1 A doutrina das idéias
       1.2.2 A idéia do Bem
       1.2.3 O conhecimento do Bem
       1.2.4 Platão e nós: valor da via platônica para a metafísica

1.3    ARISTÓTELES E O FUNDAMENTO « DAQUILO QUE É VERDADEIRO »
             I       O que é o « ser »
       1.3.1 A ciência e o ser
       1.3.2 Analise semântica de « é assim »
       1.3.3 A analogia do ser
       1.3.4 As categorias do ser
             II      A constituição dos seres concretos
       1.3.5 O ser-múltiplo e a composição de forma e matéria
       1.3.6 O ser-em-devir e a composição de ato e potência
       1.3.7 As causas do devir
       1.3.8 O Deus de Aristóteles
             III     Resumo sintético

CAPITULO II:
A ONTOLOGIA DO SER CRIADO E A METAFÍSICA DO ATO DE SER

0.1    A TRANSFORMAÇÃO DA ONTOLOGIA ARISTOTÉLICA: A COMPOSIÇÃO REAL DO
       SER (ESSE) E DA ESSÊNCIA
       2.1.1 Os comentadores árabes e hebreus de Aristóteles
       2.1.2 A distinção real entre a essência e seu ser (Santo Tomás de Aquino)
       0.1.2 Como se devem conceber a essência e o ser: distinção real e composição
       2.1.4 A importância metafísica da doutrina tomista

2.2    O SER ENQUANTO ATO DE SER E A RELEITURA DE ARISTÓTELES
       2.2.1 O ser enquanto verbo e enquanto « atualidade »
       2.2.2 Filosofia do ser e não da “ousía”
             2.2.3 Reinterpretarão das categorias aristotélicas: substância, acidente, ação, relação, etc.
             2.2.4 Síntese dos seres deste mundo: comunicação do tipo e da existência aos indivíduos
       2.2.5 O Deus de Santo Tomás (“Ipsum Esse subsistens”)
       0.1.2 A analogia do ser


2.3    O SER ENQUANTO SER-UNO E O PRINCÍPIO DE NÃO-CONTRADIÇÃO
       2.3.1 As propriedades transcendentais do ser
       2.3.2 Os primeiros princípios
       2.3.3 A unidade enquanto recolhimento em si
       2.3.4 O princípio de não-contradição
3

2.4   O SER ENQUANTO SER-VERDADEIRO E O PRINCÍPIO DE CAUSALIDADE
      2.4.1 Verdade lógica e verdade ontológica
      2.4.2 Identidade de ser e de verdade
      2.4.3 Os princípios do fundamento: de razão de ser e de causalidade
      2.4.4 A falsidade, o erro e a mentira

2.5   O SER ENQUANTO SER-BOM, O VALOR E O PRINCÍPIO DE FINALIDADE
      2.5.1 o ser-bom
      2.5.2 O valor
      2.5.3 Prova metafísica do ser enquanto bom
      2.5.4 O princípio de finalidade

2.6   O SER ENQUANTO SER-BELO E A UNIDADE DOS TRANSCENDENTAIS
      2.6.1 Descrição do belo
      2.6.2 A beleza enquanto perfeição dos transcendentais
      2.6.3 A beleza transcendente (Deus)
      2.6.4 Os transcendentais e o ser pessoal

2.7   RESUMO SINTÉTICO

CAPITULO III:
A CRISE METAFÍSICA E UM ENSAIO DE RELEITURA PERSONALISTA

3.1   A CRISE DA METAFÍSICA NOS TEMPOS MODERNOS
      3.1.1 Racionalismo e empirismo
      3.1.2 Nominalismo
      3.1.3 Kant e o idealismo alemão
      3.1.4 O fim da metafísica

3.2   ATÉ O REDESCOBRIMENTO DO SER: TU ES, EU SOU, NÓS SOMOS, ELE É
      3.2.1 Teu ser
      3.2.2 O ‘eu sou’
      3.3.3 O ‘nós somos’
      3.3.4 O ser de nosso mundo

3.3   A FINITUDE DOS SERES E A DIFERENÇA ONTOLÓGICA
      3.3.1 A precariedade do “nós somos” e a composição de matéria e forma
      3.3.2 A distinção entre tu e o teu, e a composição de substância e acidente
      3.3.3 A temporalidade do eu sou e a composição de ser e essência
      3.3.4 A ambivalência do « ele é » e a diferença ontológica

3.4   OS LÍMITES ABSOLUTOS DO « TU ES - EU SOU - NÓS SOMOS » E A
      POSSIBILIDADE DE UM ALÉM
      3.4.1 Tua morte
      3.4.2 Minha culpa
      3.4.3 A esperança de uma salvação
      3.4.4 A fundação da esperança no Transcendente
4
                                          BIBLIOGRAFIA GERAL

MANUAIS:
ALVIRA, T. /CLAVELL, L. /MELENDO, T., Metafísica, Eumsa, Pamplona 1989.
GRENET, P., Ontología, Herder, Barcelona 1973.
HENRICI, P., Introducción a la metafísica, Rosario (Argentina), Gregoriana, Roma 1982.
JOLIVET, R., Tratado de filosofia, t. III: la metafísica, Carlos Lohles, Buenos Aires 1957.
RAEEMAEKER, L., Filosofia del ser, Gredos, Madrid 1968.
DE AQUINO, T., De ente et essentia, Aguilar, Buenos Aires 1970.
VAN STEENBERGHEN,F., Ontología, Gredos, Madrid 1965,
WAHL, J., Tratado de metafísica: ontología, col. BHF 1961.
WEISSMAHR, B., Ontología, Herder, Barcelona 1986.

OBRAS FILOSÓFICAS:
ARANGUREN, J-L., Implicaciones de la filosofia en la vida comtemporánea, Tauros.
BOCHENSKI, J-M., Introducción al pensamento filosófico, Herder, Barcelona 1976.
BLONDEL, M., El punto de partida de la investigación filosófica.
DEMPF, A., Filosofia cristiana.
DEMPF, A., Metafísica de la edad media, Gredos, Madrid 1957.
FABRO, C., Introducción al tomismo, Rialp, Madrid 1967.
FABRO, C., E OTROS., Las razones del tomismo, Eumsa, Pamplona 1980.
GARRIGOU-LAGRANGE, R., La síntesis tomista, DDB, Buenos Aires 1947.
GARRIGOU-LAGRANGE, R., El realismo del principio de finalidad, DDB, B. Aires 1947.
GARRIGOU-LAGRANGE, R., El sentido común, DDB, Buenos Aires, 1949.
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GILSON, E., El ser e la essência, DDB, Buenos Aires 1951.
GILSON, E., El tomismo, Eumsa, Pamplona 1978.
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GILSON, E., El filósofo e la teología, Guadarrama, Madrid 1962.
GILSON, E., La unidad de la experiência filosófica, Rialp, Madrid 1960.
GONZÁLEZ, A.L., Ser e participación, Eumsa, Pamplona 1979.
JOLIVET, R., El homem metafísico, col eo se-eo creo.
MARCEL, G., Diario metafísico, Losada, Madrid 1957.
MARCEL, G., La filosofia comcreta, Revista Occidente, Madrid 1957.
MARCEL, G., El misterio del ser, suramericana, Buenos Aires 1964.
MARCEL, G., En búsqueda de la verdad e de la justicia, Herder, Barcelona 1967.
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MARITAIN, J., Los grados del saber, DDB, Madrid.
MARITAIN, J., Siete lecciones sobre el ser, DDB, Buenos Aires 1943.
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MARITAIN, J., De Bergson a santo Tomás de Aquino.
MILLÁN-PUELLES, A., Fundamentos de filosofia, Rialp, Madrid 1967.
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RASSAM, J., Introducción a la filosofia de Santo Tomás, Rialp, Madrid 1980.
SERTILLANGES, A-D., Santo Tomás de Aquino, DDB, Buenos Aires 1966.
SERTILLANGES, A-D., Las grandes tesis de la filosofia tomista, DDB, Buenos Aires 1949.
SERTILLANGES, A-D., La idea de creación e sus resonancias filosóficas, B. Aires 1969.
SCIACCA, M-F., El acto e el ser, Miracle, 1961.
SCIACCA, M-F., La filosofia e el comcepto de la filosofia, Troquel, buenos Aires 1962.
TRESMONTANT, C., Orígenes de la filosofia cristiana.
TRESMONTANT, C., Las ideas maestras de la metafísica cristiana.
5
                                                INTRODUÇAO

                                         O que é a metafísica?
                           (À busca de uma definição preliminar e provisória1)


O.1      NO ÂMBITO DA FILOSOFIA

0.1.1 A definição etimológica de FILOSOFIA provém de um termo de origem grega. Nossa a-
tual civilização técnica científica tem suas origens no pensamento grego. São os gregos os que
têm criado a "filosofia" sobre cujos conceitos se fundam a primeira pregação misionária do
cristianismo e a elaboração da teologia cristã: dois motivos muitos válidos para ocuparmos desta
filosofia.

De fato, a filosofia parece ser um fenômeno tipicamente grego (ou indoeuropeu?). Todas as
outras civilizações tiveram e têm sua "sabedoria", mas só na Grécia (e na Índia) a mesma tem sido
elaborada em forma especificamente "filosófica". (Está, talvez, este fenômeno vinculado à
estrutura particular das línguas indoeuropeas?). "Filosofia" = amor ou desejo da sabedoria.
Palavra usada por Sócrates na polêmica com os Sofistas, os quais, durante a crise cultural grega
dos séculos V-IV a. C. (ascensão ao poder, dos comerciantes: novos ricos; democratização e
dessacralização da vida pública, das leis; crise das tradições e da religião mítica) comerciavam
com uma « sabedoria » utilitária: a arte do discurso que sabia persuadir permitindo obter
vantagem nas assembléias e diante dos tribunais.

Em contraposição com eles, Sócrates não tinha a pretensão de « possuir » a sabedoria, senão a de
se colocar somente na sua busca, demonstrando assim que a verdadeira sabedoria está além
da técnica do discurso ensinado pelos Sofistas: es algo que o homem não poderia jamais
« possuir » nem « dominar » plenamente.

0.1.2            Enquanto Sabedoria2, a filosofia consiste num saber não somente teórico,
         abstrato, parcial, senão num saber útil para a orientação total da vida, um saber que
         não tem só um valor de utilidade técnica imediata, senão que se funda sobre valores. O
         saber filosófico, "sapiencial", implica:

       - uma certa distância crítica com relação aos acontecimentos, com relação às
experiências imediatas (« tomar as coisas com filosofia »);
       - uma visão global que permite situar as coisas no seu lugar;

1
 Para este curso de Introduçao à Metafísica, seguiremos o texto do Padre Peter Henrici usado na Universidade
Gregoriana. Nos permitimos acrescentar algumas referências e complementos.

2
  Cf. Brugger W. DICCIONARIO DE FILOSOFÍA, Biblio. Herder, art. Sabiduría pg.459-460: « A sabedoria não é
um saber qualquer, senão um saber que versa sobre o essencial, sobre as causas e os fins últimos do ente, é uma
consideração e apreciação do terreno à luz da eternidade (sub espécie aeternitatis), um saber que dá prova de
fecundidade porque assina a todas as coisas o lugar que lhes corresponde na ordenação hierárquica do universo,
segundo a sentencia de santo Tomás de Aquino freqüentemente repetida:« Sapientis est ordenare »: ordenar é uma
coisa própria do sábio. A forma científica não é essencial à sabedoria, mas si a conformidade do agir e do saber.
Santo Tomás distingue três graus de sabedoria: o primeiro, é a intelecção modeladora da vida resultante da
meditação filosófica, sobre tudo a metafísica. Acima se encontra a sabedoria procedente da fé e da ciência teológica,
a qual ordena todas as coisas no conjunto do mundo sobrenatural que compreende céu e terra. O terceiro grau o
constitui a sabedoria enquanto dom do Espírito Santo; com essa o homem que ama Deus já não compreende só com
o esforço próprio, senão que à luz da divina inspiração, « experimentando o divino », sente-se aderido a ele e
persegue com amoroso gozo a ordem que Deus tem querido em todas as coisas. -- De Vries ». Olhar também cf.
Gardeil, H-D, INITIATION À LA PHILOSOPHIE DE SAINT TOMAS D'AQUIN, T. IV (Métaphysique), ed. Cerf,
Paris 1966, pg.11-17; cf. Floucat, Yves, « A crise contemporânea da verdade e a unidade da sabedoria cristã »,
na Revista REVUE THOMISTE, Novembre 1983, pg.5-46.
6
        - a busca do "porque", que permite dar razão das coisas e dos acontecimentos, explicar o
sentido, todo aquilo pelo qual orienta-se a própria vida e regula-se o próprio comportamento.

Em quanta sabedoria, a filosofia distingue-se, por tanto, das ciências, que se ocupam somente
dos aspectos particulares da realidade. As ciências, por sua natureza, são diversas e
especializadas; a filosofia, no fundo, é uma sô. As ciências não podem senão constatar fatos
(necessários): "É assim", "será sempre necessariamente assim", sem poder formular juízos de
valor e de sentido: « aquilo deve ou deveria ser assim», « está bem que seja assim », etc.

Em quanto ser que coloca continuamente a questão do sentido (« porque? ») -- como as
perguntas da criança, a busca do sentido por parte do adolescente (« qual sentido pode ter tudo
isso? », qual es o sentido da minha vida? »), a crise da idade madura (« no fundo por que tenho
vivido desta maneira? ») --, o homem, por tanto, jamais ficará satisfeito pelos únicos resultados e
pelas respostas das ciências. Por outra parte, uma civilização exclusivamente técnica, fundada só
no saber científico, resultaria totalmente inumana e absurda3.

0.1.3 A filosofia enquanto discurso racional. Respeito às outras « respostas sapienciais »
(contidas nos mitos, nas religiões, nas artes...), a filosofia distingue-se por seu método4: mediante
um discurso racional, coerente, no fundo necessário, segundo as regras da lógica, a filosofia
conduz à sabedoria. Portanto, ela utilizará unicamente meios conceituais (não imagens, símbolos,
parábolas, ou provérbios, etc.) rigorosamente controláveis e accessíveis a qualquer que esteja na
posse da faculdade de pensar, portanto virtualmente universais (porquanto as outras sabedorias
são, mais do que a filosofia, culturalmente condicionadas).

Enquanto só « busca » da sabedoria, o discurso filosófico não pretende dar respostas
preconstituídas nem comunicar conhecimentos novos (fatos), senão só dirigir o pensamento, de
tal maneira que, procedendo de questionamento em questionamento, situadas convenientemente

3
  Cf. Huxley, A., LAS ANTI-UTOPÍAS y EL MEJOR DE LOS MUNDOS; Wells, H-G., LA CRISIS ECOLÓGICA
Y ENERGÉTICA DE LA CIVILIZACIÓN NORTATLÁNTICA, 1984; etc.
4

 Cf. Jolivet, Régis, COURS DE PHILOSOPHIE, Editeur Emmanuel Vitte, Paris-Leon 1959, pg.9-10: « El método
de la filosofía:
1. O método depende do objeto formal. – Chama-se « método » o conjunto dos procedimentos a utilizar para
chegar ao conhecimento ou à demonstração da verdade. O método de uma ciência depende do objeto mesmo
desta ciência. Não se usa, no estudo dos seres vivos, os mesmos procedimentos que no estudo dos seres inorgânicos,
e a química procede de maneira diferente da física. É assim como é a partir da definição e do objeto da filosofia que
se pode deduzir o método que mais lhe convém.

2. O método filosófico é ao mesmo tempo experimental e racional. Temos definido a filosofia como a ciência das
coisas por suas causas supremas. Daí segue-se que:
- a filosofia parte da experiência. Se a filosofia é ante tudo « ciência das coisas » quer dizer, do homem, do mundo
de Deus, deve-se começar por conhecer as coisas que queremos explicar; quer dizer que nosso ponto de partida será
normalmente tomado da experiência. Com efeito, é partindo das propriedades das coisas que podemos conhecer sua
natureza, e ditas propriedades às podemos descobrir mediante a experiência (vulgar ou científica). É também pelos
efeitos da potência divina que nos podemos elevar até a Causa primeira do universo, seja para afirmar sua existência
necessária, seja para determinar sua natureza e seus atributos, e seus efeitos são também objeto da experiência.
Assim, o método filosófico será primeiramente experimental, neste sentido de que o ponto de partida da filosofia
toma-se da experiência.
- A filosofia enfoca, pela luz natural da razão, o além da experiência . Mas como a filosofia é, por seus fins,
essencialmente metafísica, quer dizer que buscar ir além da experiência sensível e chegar até as causas primeiras,
ela fará uso da razão, já que estas causas primeiras, o homem não as vê e não as toca com seus sentidos, nem as pode
alcançar senão por uma faculdade superior aos sentidos. Por isso, o método filosófico é também um método
racional.

3. A filosofia não usa senão da razão natural. Se a filosofia usa da razão, é unicamente da razão natural. Desta
maneira ela distingue-se da Teologia sobrenatural, que se apóia, como sobre seus primeiros princípios, isto é, sobre
as verdades reveladas, enquanto que a filosofia não usa senão as únicas luzes naturais da razão. Seu critério de
verdade, não é, como na teologia, a autoridade de Deus revelador, senão a evidência de seu objeto: o ser das coisas ».
7
as perguntas e segundo uma conexão necessária, chega-se entrever em qual direção deve-se
buscar uma resposta à pergunta sobre o sentido último (porque esta resposta, disse-nos Sócrates,
está além daquilo do qual o homem pode tomar posse, ainda desde o ponto de vista intelectual).

0.1.4 À diferentes tipos de respostas correspondem diferentes tipos de « por quês ». Por outra
parte, a pergunta « por que » pode receber muitíssimos tipos de respostas, segundo os diversos
significados que ela pode ter:

        a.     Eu posso perguntar: « por que eu posso dizer: isso es verdadeiramente assim? »,
e a resposta pode se referir às possibilidades seguintes:

       -- seja a minha possibilidade de dizer-o (portanto de conhecê-lo); resposta da qual se
encarrega a EPISTEMOLOGIA (a filosofia do conhecimento) com suas diferentes ramas:
(fenomenologia do conhecimento, crítica do conhecimento, filosofia da linguagem etc.);

       -- seja a possibilidade, de fato, de que isso seja assim (que seja possível, real,
cognoscível), resposta da qual se ocupa a ONTOLOGIA (filosofia do ser, dos seres, segundo
sua possibilidade de ser) nos sus diferentes níveis:

       • o nível dos entes particulares, considerados segundo suas diferenças especificas
         (ontologias « regionais »: filosofia DA NATUREZA ou cosmologia filosófica, DO
         HOMEM ou antropologia filosófica, DA ALMA HUMANA ou psicologia racional);

       • o nível do ser enquanto tal, da possibilidade de ser qualquer ente particular
         (ONTOLOGIA GERAL, que coloca questões como essas: « que significa ver-
         dadeiramente dizer ser? », « como es possível que algo exista? », « qual tipo de coisas
         são? », etc.).

       b.     Mais profundamente ainda, eu posso perguntar: « em definitiva, por que existe
algo em vez que nada? », « por que eu posso perguntar, isto é, formular questões? ». Portanto, a
pergunta sobre o ser mesmo é uma pergunta sobre a pergunta. Ela implica que eu possa
prever que uma resposta seja ao menos possível, que o ser (isso é, o fato de que algo exista) não
seja um puro fato, inexplicável, que não possa ser interrogado, senão que possa encontrar uma
explicação, um porque, um sentido último, que proporciona a última explicação possível.

Esta pergunta e esta resposta pertencem ao âmbito da Metafísica. Sabemos que este nome foi
dado por Andrónicus de Rodas (século I a. C.) aos livros de Aristóteles, que ele tinha situado
« depois dos livros da filosofia natural, a física » (tà metà tà phusikà): é uma coleção de 14 livros
cujo conteúdo pareceria seguir logicamente aquela seção dos livros da física. Aristóteles mesmo
não tinha falado, para designar este conjunto, senão de Filosofia primeira ou de Teologia natural.

Aristóteles, pelo contrário, a tinha chamada « filosofia primeira », porque ela fala do primeiro
fundamento, da « causa primeira » da qual depende todo aquilo que é tratado nas outras partes
da filosofia teorética.

Porém, o termo « metafísica », em suo significado etimológico, es rico de sentido: se a
« phusis » é toda dada da experiência, e a « física », a busca filosófica, a interrogação destes
dados por parte do pensamento, a « meta-física » indica uma investigação ulterior que utiliza os
mesmos métodos, mas que vai além daquilo que es dado (ou pode ser dado) na experiência.

Esse além dos dados da experiência pode ser provisoriamente definido mediante três
características:
8
                                                     5
        -- a metafísica fala de tudo o que é (enquanto que a experiência, e portanto a « física »,
não se refere senão a entes particulares, específicos).
        -- ela investiga aquilo que faz realmente possível tudo o que é (por quanto que a
experiência não pode constatar senão aquilo que é, e a « física » em que modo é « pensável », isto
é que não está em contraste com as leis da lógica).

         -- ela espera encontrar assim o último fundamento, o sentido último de tudo aquilo que
é, aquilo que responde ao último « por que » possível (porquanto a experiência é sempre factual,
e a « física » não pode, portanto, senão descobrir necessidades de fato).


5
 Cf. Gardeil, H-D., Initiation à la philosophie de Saint Thomas d'Aquin, T.IV- Métaphysique, Ed. Cerf, Paris 1966,
pp.9-11 (tradução do Pe. Jacques D'Arcy S. pss): « Na linguagem filosófica universal o termo ‘metafísica’ designa a
parte superior da filosofia, isto é, aquela que entende dar as razoes últimas e os princípios últimos das coisas....

O objeto próprio da metafísica será o ser enquanto tal e suas propriedades. Mas esta definição que reterá Santo
Tomás de Aquino não ressalta imediatamente da leitura da obra de Aristóteles (Metà tà physikà). Um primeiro
inventario permite descobrir nela, com efeito, três conceições sucessivas desta ciência e dos vínculos orgânicos que
as relacionam entre si, mas que não se revelam a primeira vista. Santo Tomás, que tinha tomado plena consciência
desta ambigüidade, apresenta da seguinte maneira, no Proemium do seu comentário à Metafísica de Aristóteles,
esta tríplice conceição:

1. Por oposição às outras ciências, que não remontam senão às causas ou aos princípios mais imediatos, a metafísica
aparece ante tudo como a ciência das primeiras causas e dos primeiros princípios. Esta definição vincula-se
manifestamente à conceição geral da ciência, conhecimento pelas causas, que é um dos primeríssimos axiomas do
peripatetismo. A denominação de « Filosofia primeira » relaciona-se a este aspecto da metafísica que domina no
Livro A.

2. A metafísica afirma-se, logo, como a ciência do ser enquanto ser e dos atributos do ser enquanto ser . Visto
subeste ângulo, apresenta-se como tendo o objeto mais universal de todos, as outras ciências não consideram senão
um campo particular do ser. Esta conceição toma consistência no Livro G da coleção de Aristóteles e parece impor-
se mais adiante. É a ela que responde propriamente o vocábulo de « Metafísica ».

3. Finalmente, a metafísica pode-se definir como a ciência daquilo que é imóvel e separado, à diferença da física e
da matemática que consideram seu objeto sempre subum certo condicionamento da matéria. Desde este ponto de
vista, a mais eminente das substâncias separadas sendo Deus, a metafísica pose revin dicar a apelação de « Teologia
(natural) ». Este aspecto prevalece na obra aristotélica a partir do Livro E.

Este prólogo de Santo Tomás é demasiado importante para não ser apresentado a continuação. A metafísica, à que
pertence regentar todas as outras ciências, não pode ter evidentemente por objeto senão os mais inteligíveis e não
pode ser senão a mais intelectual das ciências. Pois bem, pode-se considerar a mais inteligível desde três pontos de
vista diferentes:

« Em primeiro lugar, segundo a ordem do conhecimento. Com efeito, as coisas a partir das quais o intelecto adquire
a certeza, parecem ser as mais inteligíveis. Assim, como a certeza da ciência dependendo da inteligência adquirisse
a partir das causas, o conhecimento das causas bem parece ser o mais intelectual e, em conseqüência, a ciência que
considera as primeiras causas é, segundo parece, ao máximo reguladora das outras.

« Em segundo lugar, desde o ponto de vista da comparação da inteligência e do sen tido; já que, o sentido tendo por
objeto os particulares, a inteligência parece diferir dele enquanto abrange os universais. A ciência mais intelectual é,
pois, aquela que se refere aos princípios mais universais, os quais são o ser e o que é consecutivo ao ser tal como o
uno e o múltiplo, a potência e o ato. Pois bem, ditas noções não devem permanecer completamente indeterminadas...
nem estudiar-se numa ciência particular... Elas devem ser tratadas, pois, numa ciência única e comum que, sendo a
mais intelectual, será reguladora das outras.

« Em terceiro lugar, desde o ponto de vista mesmo do conhecimento intelectual. Se uma coisa tem virtude intelectiva
pelo fato de ser desproveste de matéria, é necessário que seja a mais inelegível aquilo que está às más separado da
matéria...Pois bem, as coisas mais separadas da matéria são aquelas que não abstraem somente de tal matéria
determinada... senão totalmente da matéria sensível: e isso não só segundo a razão, como os objetos das
matemáticas, senão desde o ponto de vista do ser, como Deus e os espíritos. A ciência que trata destas coisas parece,
em conseqüência, ser a mais intelectual e gozar com respeito às outras do direito da primazia e da regência ».
9
                                                                         6
0.1.5 A importância e a urgência da reflexão metafísica . Contrariamente àquilo que alguns
têm dito, a metafísica não é um jogo para diletantes, tampouco uma arte para fugir da vida e de
suas dificuldades; ela não é ilusória, nem mentirosa, nem sofisticada. Ela se radica
verdadeiramente naquilo que há de mais natural na vida do espírito. Pelo mesmo fato, ela é o que
se impõe da maneira mais profunda; já que se a inteligência está essencialmente ordenada ao
conhecimento do ser, só o descobrimento do ser pode lhe permitir chegar a ser verdadeiramente si
mesma.

Mas pode-se provar que a inteligência está essencialmente ordenada ao conhecimento do ser?
Para prová-lo, faria falta ir além deste conhecimento; pois, precisamente, o conhecimento do ser é
o mais profundo, o mais primitivo, aquilo que pressupõem todos os demais. Então não se pode
provar que a inteligência está essencialmente ordenada ao ser; mas isso não quer dizer que não
seja verdade! Sabe-se que só as verdades secundárias podem provar-se, e que as primeiras, as
mais fundamentais, não o podem. Há que descobrir-las como tais, e então elas impõem-se por si
mesmas com toda evidência (é precisamente um dos objetivos da crítica do conhecimento mostrar
que o ser é o fundamento do conhecer). Aqui é o caso. Desde o momento que a inteligência
descobre aquilo que é enquanto ser, ela capta porque está radicalmente feita: está feita para
conhecer a realidade existente naquilo que tem de mais próprio, no seu ser.

O sinal disso, disse Aristóteles, é o gozo que temos ao ver, ao olhar (Cf. Métaphysique, A, 1,
980 a 21 ss); já que este gozo mostra que o conhecimento possui em si mesmo sua própria
finalidade. Se for assim para o conhecimento visual, o conhecimento mais radical, o mais
profundo, aquilo do ser possui ainda mais profundamente sua própria finalidade. Por conseguinte,
conhecendo o que é o ser, a inteligência se descobre a si mesma, e se descobre essencialmente
feita para isso.

A última confirmação consiste no fato que só o conhecimento do ser permite ao homem descobrir
a existência do Ser primeiro, Deus, e afirmar que esse Ser primeiro é, na realidade, é a fonte de
todo ser. É então o conhecimento do ser que permite à inteligência do homem descobrir sua fonte
primeira, e o que, na realidade, é o último. Por conseguinte, é este conhecimento metafísico do
ser que permite a nossa inteligência descobrir-se enquanto inteligência. Sô a filosofia primeira
permite a nossa inteligência ser plenamente ela mesma e se reconhecer como tal.

Dessa maneira, a inteligência descobre sua Autonomia RADICAL: ela não depende imediata e
conscientemente senão do ser, daquilo que é enquanto ser. A opinião dos homens e sua
autoridade, por mais importantes que possam ser, não podem se impor diretamente a nossa
inteligência e medir-la. Desde o ponto de vista filosófico, a autoridade dos homens é a última das
razoes; não se pode filosofar realmente, nem tampouco entrar no conhecimento metafísico,
ficando ao nível da opinião dos homens e dos filósofos. A opinião dos homens e dos filósofos
pode ajudar a colocar um problema, ou indicar a rota a seguir, mas não pode ser a solução
filosófica; faz falta voltar à realidade, à experiência daquilo que é. Porém, os homens vivem ao
nível da publicidade (ou propaganda) e das opiniões dos demais, mas faz falta que nossa
inteligência, para poder respirar plenamente e ser si mesma plenamente, compreender sua
autonomia radical e viver-la. Se não, ela se enfraquecerá progressivamente, por falta de exercício
intelectual ao nível que lhe é próprio. Pode-se afogar intelectualmente sub o peso das opiniões


Ciência das primeiras causas e dos primeiros princípios, quer dizer sabedoria, ciência do ser enquanto ser, ciência
daquilo que é absolutamente separado da matéria, tal se revela a nos a metafísica... Assim a elaboração aristotélica
nos aparece, ao mesmo tempo que uma obra de especulação rigorosa, como o ponto de chegada e a síntese da
reflexão sobre os princípios dos três séculos que o têm precedido ».
6

 Sobre este aspecto da metafísica, tenho resumido e traduzido o pensamento do Padre M. D. Philippe na sua obra
titulada: ¿UME PHILOSOPHIE DE L'ÊTRE EST-ELLE ENCORE POSSIBLE?, t.1 (Signification de la
métaphysique), ed., P.Téqui, Paris 1975, pp.142-145.
10
dos demais; uma amplíssima erudição histórica pode perfeitamente impedir à inteligência viver
enquanto inteligência.

Só o descobrimento do ser permite à inteligência captar sua autonomia radical, isso lhe revela
também sua fraqueza congênita. Feita para o ser, ela permanece, porém, no seu exercício, ligada à
imaginação e, por esta, ao mundo sensível que com freqüência lhe impede se elevar até o ser.

É este mesmo perigo, característico do descobrimento do ser, que nos faz entender quão
importante é aceitar a ajuda daqueles que têm penetrado mais profundamente no descobrimento
metafísico, de olhá-los como amigos e companheiros de busca, capazes de nos indicar algumas
pistas, para evitar nos perder e, assim, perder menos tempo. Quem conhece mais profundamente
sua autonomia é mais livre e aceita mais facilmente esta ajuda do que aquele que, não tendo ainda
descoberto a verdadeira fonte de sua autonomia, tem sempre medo de ser influenciado.

O conhecimento metafísico é, por conseguinte, o único que permite a nossa inteligência descobrir
sua finalidade própria e última, aquela pela qual está feita: a contemplação. O conhecimento
metafísico do ser é, pois, para nossa inteligência, absolutamente vital; sem ele, nossa inteligência
fica errante e, sem descobrir sua finalidade, ela se arrisca a se considerar como inútil, vã, o que
pode conduzir-la ao suicídio.

Descobrindo a existência do Ser primeiro, do Bem primeiro, supremo, o conhecimento metafísico
nos permite captar que nossa alma espiritual é imortal; e, dessa maneira, proporciona à filosofia
moral seu fundamento último. Permite-lhe também à filosofia moral se desenvolver em filosofia
religiosa; pois o descobrimento da existência do Ser primeiro, Criador de nossa alma espiritual,
exige de nossa parte a adoração.

O conhecimento metafísico do ser implica o verdadeiro descobrimento do ato e da potência,
descobrimento que, por sua vez, permite captar o que é movimento, o que é a operação vital o,
mais radicalmente ainda, o que é a alma relativamente ao corpo.

O conhecimento metafísico do ser não pode ser, pois, algo supérfluo, ou secundário; e ainda
muito menos num mundo que tende a relativizar tudo, sendo cada vez mais dominado pelo
progresso das ciências e das técnicas. O progresso das ciências, com efeito, não espiritualiza
realmente ao homem, precisamente porque o mantem sempre submergido num mundo sensível e
quantitativo. Então, é necessário que o homem compreenda o perigo que corre seu espírito: um
perigo de anemia progressiva num ambiente que não pode já vivificá-lo profundamente.
Anemiando-se cada vez mais, ele toma o risco de não ter já suficiente vigor para reagir e, deste
modo, deixar-se inteiramente dominar. Em lugar de ter a força de remontar até sua fonte para que
ela seja si mesma e possa descobrir sua significação profunda, a inteligência deixa-se levar rio a
baixo, para « fazer como todo o mundo », para seguir a moda atual renunciando buscar sempre a
verdade - e sabemos que a moda intelectual é a mais terrível das modas que exista!

0.1.6 CONCLUSÃO: quem faz metafísica, quem coloca também só o problema metafísico,
pressupõe, portanto, que o ser (simplesmente o fato de que algo exista) não seja um puro fato,
inexplicável, mas algo que é fundado e tem um sentido, que pode ser explicado por nosso
pensamento; em síntese, que esse fato não se reduz àquilo que pode ser cientificamente
constatável ou analisável, mas que tem uma dimensão mais profunda que pertence ao âmbito do
valor e do dever-ser.

A conseqüência que segue, pois, naturalmente da metafísica (e só dela) é, portanto uma filosofia
do dever-ser, uma ética. Que o pressuposto da metafísica seja legítimo pode-se provar somente
fazendo metafísica, e fazendo-la com êxito; igual como não se pode provar a possibilidade do
movimento (contra Zenón) senão caminhando...
11

Uma precisão sobre a nomenclatura impõe-se: o termo ontologia remonta ao século XVII, e foi,
num primeiro momento, usado como sinônimo de metafísica. O filósofo racionalista Christian
Wolff (1679-1757), quem teve uma influência considerável sobre a neo-escolástica, distingue a
« metafísica geral » ou « ontologia », --que trata do ser enquanto tal--, da « metafísica especial »
que ele divide, de acordo às três grandes espécies de ser: seja em « cosmologia racional », em
« psicologia racional » e em « teologia natural ». Certamente, esta divisão é pouca aprovada, por
quanto Deus não constitui uma « espécie de ser », senão que, ao contrário, é seu fundamento e
seu sentido último. Aristóteles o tinha compreendido perfeitamente, assinando a sua « primeira
filosofia » o nome de « theologikè » (ciência do divino).

0.2     NO ÁMBITO DO SABER HUMANO

O que nos temos visto pode-se enunciar de maneira mais técnica, recorrendo à doutrina clássica
dos três graus de abstração 7 de Aristóteles.
7
 Cf. Gardeil, H-D., INITIATION À LA PHILOSOPHIE DE SAINT THOMAS D'AQUIN, T.VI, éditions du Cerf,
Paris 1966, pp.17-19:

1. Origem da doutrina da separação.

A metafísica é a ciência daquilo que é absolutamente separado da matéria. Esta doutrina é o ponto de chegada de um
longo esforço de reflexão filosófica.

Entre os Gregos, parece que é Anaxágoras a quem convém atribuir a honra de ter, o primeiro, sepa rado o espírito da
matéria. Sem duvida, o “NOUS” que propõe a nossas meditações, não se distingue clara mente ainda dos objetos
corporais, e sua ação sobre estes permanece ainda mal definida, mas um primeiro passo no sentido da separação de
um elemento superior realizou-se. Platão ao chegar é quem, para assegurar ao conhecimento intelectual um objeto
estável e idêntico, postulará o mundo das idéias, isto é, realidades puras de toda matéria, às quais a verdadeira
ciência poderá referir-se.

Sabemos que Aristóteles, ao mesmo tempo em que acolhia as idéias de Platão, por fidelidade maior à experiência, as
colocou na matéria: as coisas corporais são por sua vez matéria e forma. Porém, com ele encontrarão-se ainda
substâncias inteiramente separadas, e sobre tudo, na sua filosofia do conhecimento, o princípio de abstração da
matéria conserva todo seu valor: a inteligência, faculdade espiritual, não pode diretamente alcançar a
« quiddidade » ou a essência abstrata; e um objeto é tanto mais inteligível em si quanto está mais libera do das
condições da matéria. O fundamento da intelecção, dirá Santo Tomás de Aquino, é a imaterialidade, dando a estas
afirmações todo seu alcance. Fica por precisar como subeste ângulo apresenta-se o conhecimento metafísico!

2. Os três graus de abstração.

Contemplando o conjunto das ciências especulativas, Aristóteles tem distinguido três tipos ou três graus de
imaterialidade nos objetos para conhecer e, correlativamente, nas operações intelectuais que lhes são
proporcionadas. Estes três graus correspondem aos três grupos admitidos por todos e que são: as ciências físicas, as
matemáticas e a metafísica. A lógica nos ensina que cada um destes graus caracteriza-se em função da matéria
noética abandonada (deixada de lado) pela operação abstrativa ou, inversamente, em função do aspecto material que
permanece implicado nas definições das noções mandando as demonstrações.

Assim, ao nível da especulação física, se abstrai (extrai) da matéria, enquanto ela é principio de individuação, a
“materia signata”, mas conserva-se a matéria que está na raiz das qualidades sensíveis, quer dizer a “ materia
sensibilis”; conservando as qualidades guarda-se, pelo mesmo fato, o aspecto da mobilidade das coisas. Ao nível
(grau) matemático, se abstrai desta matéria sensibilis tudo, conservando este fundamento material da quantidade
que o peripatetismo tem denominado “materia intelligibilis”. Finalmente, na metafísica se abstrai absolutamente
toda matéria e todo movimento; estamos então na imaterialidade pura que compreende, por sua vez, as realidades
espirituais (Deus e os anjos), e as noções primeiras (o ser, os transcendentais, etc.), estas últimas sendo
independentes dos corpos neste sentido de que se podem realizar fora deles. (Sobre esta doutrina geral dos graus de
abstração em Santo Tomás, ver: Metafísica, VI, I.1.; De Trinitate, q.5, a.1 e 3; Ia Pars, q. 85, a.1 ad 2).

3. Características próprias da abstração metafísica.

Tenderemos a ocasião mais adiante, estudando a noção de ser, de precisar o tipo particular desta abstração. De
maneira um pouco superficial poder-se-ia representar a atividade mediante a qual o espírito se eleva sucessivamente
12
0.2.1 Todo saber nosso é necessariamente abstrato, pelo simples fato de usar (ao menos
implicitamente) conceitos universais abstratos. Todo saber transcende o dado imediato,
concreto, da experiência singular por algo universal, comunicável, « é válido » além desta
experiência determinada e sempre fugitiva. Nossa linguagem, que expressa a experiência,
apresenta-se sempre inevitavelmente universal e abstrata.

0.2.2 Num primeiro grau, não se abstrai (ou extrai) das experiências concretas senão aquilo
que é comum (ou que tem qualidades comuns) a varias delas, sem considerar as circunstâncias
completamente individuais de cada uma delas. Assim se constituem, por exemplo, a medicina, a
partir da observação de algumas regularidades que se sucedem inevitavelmente nos diversos casos
de enfermidade; a história (como ciência), observando as conexões entre os fatos como simples
crônica); a crítica literária ou artística, intentando formular um juízo segundo critérios univer-
salmente admitidos (e, portanto válidos para todos e criticáveis por todos), e não somente
segundo o gosto pessoal do crítico, etc.

0.2.3 Num segundo grau, se abstrai (ou extrai) dos fenômenos observáveis aquilo que pode
ser submetido a uma operação racional: seu aspecto quantitativo é objeto de uma elaboração
matemática. É mais abstrato, mais inteligível, mais universal e mais « impessoal ». Deste jeito
constituem-se as ciências propriamente ditas, que intentam, de maneira ou outra, encontrar leis
matematicamente formuláveis acerca de seus objetos. Porem, a matemática permanece ainda
vinculada à imaginação, ao imaginável, à representação do espaço (geometria, mecânica pura,
etc.) ou do tempo (« contar » sucessivamente...).

Surge o interrogante de saber se não existe um grau mais « abstrato » de conhecimento que se
situe imediatamente acima de todo aquilo que é sensível e imaginável e sobre qualquer experiência
possível, no âmbito do inteligível puro.

0.2.4 Este terceiro grau de abstração é necessário para fundar ainda as ciências matemáticas
mesmas: essas supõem e implicam a constância e a seletividade de suas regras e, em
conseqüência, uma necessidade absoluta (« é necessariamente assim » e não somente: « é
sempre assim ») que não pode se fundar sobre a experiência, nem tampouco ser extraída (a
experiência não nos oferece senão a constância dos fenômenos, não sua necessidade).

Esse fundamento da possibilidade mesma das ciências não poderá-se descobrir considerando os
fatos, senão sua « pensabilidade », isto é, sua inteligibilidade (eu devo os considerar como
ordenados, como carregados de sentido, susceptíveis de ser considerados segundo regras
imutáveis, etc.). Esse é propriamente o conhecimento de tipo metafísico8, que não prolonga nem
amplia o discurso das ciências, mas situa-se acima deste: perguntando-se de qual modo este
mesmo discurso é simplesmente possível.

0.2.5 Deste modo vemos de qual maneira o discurso metafísico, ainda que não se refere a
nenhum « objeto » de experiência (sensível, imaginável, descritível), porem não é um discurso
vazio, nem carente de sentido (« meaningless », como dizem os analistas da linguagem). Esse
aos três graus de imaterialidade como uma operação do mesmo gênero uniformemente repetida, enquanto que entre
os três procedimentos existe de fato uma simples analogia. Em cada caso, trata-se de um desprendimento da
matéria, mas este não se realiza da mesma maneira. Um termo especial, aquele de « SEPARATIO », é reservado
por Santo Tomás para designar a abstração metafísica.

Pode-se dizer porém, desde agora, para evitar se perder, que « abstrato », « separado » quando relacionam-se ao
nível da reflexão metafísica, não significam de nenhuma maneira isolado ou separado da existência, senão só
liberado das condições materiais desta existência. O ser, objeto da metafísica, é eminentemente concreto. O
metafísico é, em sentido pleno da palavra, o mais realista dos sábios, seja que considere desde o ponto de vista do ser
a universalidade das coisas, seja que se eleve aos objetos mais reais: os espíritos puros e Deus.
8
  Cf. Forest, A., DU COMSENTEMENT À L'ÊTRE, p.265: « Nos elevamo-nos à metafísica, quando não rejeitamos
pensar expressamente aquilo que é a condição graças à qual pensamos todo o resto ».
13
discurso tem um significado preciso, enquanto coloca perguntas, que não se podem evitar ou
não formular, buscando sempre as respostas. Em conseqüência, não existe um saber metafísico
preconstituído, uma doutrina metafísica transmissível e comunicável tal qual (que se possa
apreender de memória). Igual que a matemática não é suficiente « conhecer de memória » as
fórmulas, senão que es preciso saber-las deduzir e demonstrar, com maior razão, não pode-se
indicar no ensinamento da metafísica mais do que um método, um « itinerário de pensamento »
que cada um deve seguir por conta própria.

Neste curso indicaremos itinerários de pensamento já assinalados na história do pensamento
metafísico ocidental, desde os gregos até a idade media e os modernos, tratando de re-elaborar
os discursos e os razoamentos de alguns grandes mestres do pensamento.

0.2.6 O ponto de partida de dito discurso metafísico será qualquer ocasião, qualquer
experiência, na qual jorra ou pode aparecer uma pergunta de fundo, uma interrogação; isto é,
tudo aquilo que se poderia chamar os lugares do estupor, da admiração: o absoluto do imperativo
ético (igual como para Sócrates e Kant), a beleza (igual como para Platão), nossa capacidade de
conhecer a verdade (igual como para Aristóteles e Tomás de Aquino), a angustia existencial
(igual como para Kierkegaard, Heidegger, Sartre ou Marcel), a pessoa humana (igual como para
Munier, Nesdoncel, Marcel, etc.).

Isto significa que a metafísica, longe de ser um discurso « escuro », um discurso « entre as
nuvens », « fora da vida concreta », pelo contrário, é o discurso mais humano que há. No fundo,
todo homem de acordo a seu jeito « é metafísico9 », porque é capaz de se maravilhar, de se fazer
perguntas, ainda radicais, e cada um do seu modo, encontra também respostas e tem seus pontos
de vista sobre o « sentido último ». Neste curso, trataremos de clarificar esta metafísica
implícita10, vivida (« transformando aquilo vivido em pensamento »: Jean Lacroix), de expressar
num discurso conceitual rigoroso, controlável, criticável e comunicável.

0.3     NO ÂMBITO DA EXISTÊNCIA CRISTÃ

0.3.1 A parte mais importante desta metafísica vivida é, para nos cristãos, nossa fé cristã e as
respostas sensatas que ela nos dai. Pertence, portanto ao âmbito metafísico; as afirmações de fé
referem-se a verdades, ou a realidades que se situam além de toda experiência possível (por
exemplo, que o mundo é criado por um Deus de amor, que Jesus Cristo é o Filho de Deus, etc.),
e estas afirmações contêm um sentido último, diante do qual não é possível nem necessário
colocar ulteriores questões ou interrogantes.

Pertencendo ao âmbito do mistério revelado, é claro que esta metafísica vivida do cristianismo
não poderia ser explicada nem « recuperada » por meio de um discurso filosófico. Ainda que
pode-se perfeitamente ser cristão sem « fazer metafísica », porem, a fé cristã por duas razões
exige11 o discurso metafísico da filosofia.


9
 Cf. a obrazinha do Pe. Régis Jolivet, titulada EL HOMBRE METAFÍSICO, colección (Yo sé-yo creo), Libreria
Arthème Fayard, Paris 1958.
10

 Cf. M. Merleau-Ponte, Sentido e no sentido, pg.188ss: « A consciência metafísica não tem outros objetos senão a
experiência quotidiana: este mundo, os outros, a história humana, a verdade, a cultura. Mas, em vez de considerar-
los já existentes, como conseqüências sem premissas, e como se procedessem de si mesmos, ela (consciência)
redescobrir sua estraneidade (extrañeza) fundamental e o milagre de sua aparição. Assim entendida, a metafísica é o
contrário do sistema. Se um sistema é uma disposição ordenada de conceitos que faz imediatamente conciliáveis,
compatíveis entre si todos os aspectos da experiência, dito sistema suprime a consciência metafísica ».
11

 Recomenda-se fortemente para ampliar este aspecto ler o capítulo titulado filosofia, cristianismo, monacato de
H.U. Von Balthasar en ENSAYOS TEOLÓGICOS: Sponsa Verbi T. II, Editorial, Cristiandad, pg.405-449.
14
0.3.2 Para possuir a fé, o homem deve ao menos ter descoberto a dimensão metafísica de sua
existência; não tudo se reduz aos dados da experiência, ao quotidiano, ao factual, mas existem
questões que se situam além desta mesma experiência. Mas, na nossa civilização industrial e post-
industrial, esta dimensão metafísica é com freqüência esquecida, obstaculizada, e inclusive
negada; portanto é pre-evangelizar, saber indicar os « lugares do assombro » e os acessos que
eles abrem à metafísica (por exemplo, de que modo toda crença religiosa pressupõe que tenha
sido realizada a experiência de um amor pessoal do pai ou da mãe).

0.3.3 Para « expressar » nossa fé, para articular-la conceitualmente (e, portanto, de modo que
possa-se falar também com os não-crentes) é necessário uma « linguagem » conceitual que não se
limite só aos dados da experiência, senão que também seja capaz de dizer aquilo que está além da
mesma, isto é, uma linguagem de caráter metafísico.

Por conseguinte a metafísica é, por sua vez, algo muito pessoal que alcança o fundo mesmo de
nossa existência, mas que não pode ser feita « de maneira pessoal » ou « existencial » (isto é
referendo-se, por exemplo, à vivência imediata), senão logicamente da maneira mais « impessoal »
possível, com um esforço de trabalho lógico e conceitual (o « trabalho do conceito » daquele
que fala Hegel).
15
CAPÍTULO I:
MODELOS DE APROXIMAÇAO À METAFÍSICA


1.1       SÓCRATES E O VALOR ÉTICO INCONDICIONADO

Com Sócrates, e não com os pré-socráticos, começa a grande tradição da metafísica grega, que
continuará interrompida até o medievo. Depois da crise sofista (utilitarismo e relativismo dum
discurso, "logos", reduzido a ser somente um falar persuasivo), Sócrates, ainda adotando a
perspectiva antropológica (e não mais a cosmológica) dos sofistas, aponta sobre a possibilidade
do homem de conhecer um absoluto, um indizível, e sobre a necessidade de orientar a própria
conduta moral segundo este absoluto. Como é já sabido, Sócrates não tem deixado nada por
escrito; portanto, através dos diálogos de Platão, sobre tudo os do primeiro período, nos devemos
reconstruir sua figura e seu ensinamento (não sua doutrina, porque dá a impressão de não ter
tido). A personalidade de Sócrates se revelará então mais importante do que seu ensinamento
para a metafísica.

1.1.1 Sócrates, em geral, aparece sobre tudo como um verdadeiro educador; enquanto que a
educação grega clássica apontava de modo particular à destreza física (esportes, "arte" =
técnicas), Sócrates se preocupa unicamente da psychè, isto é da "alma", daquilo que governa ou
orienta os atos12.

Esta educação da alma se desenvolve essencialmente segundo duas etapas:

         -- a primeira consiste no libertar a alma da ignorância e de uma falsa aparência de saber
("dóxa") por meio duma crise purificadora13, com o fim de estimulá-la à busca da verdade, ao
aprofundamento ulterior do saber (cf. a conclusão dos diversos diálogos: « Disso nos voltaremos
a falar outra vez »).

       -- a segunda etapa, "maieutica"14 fará descobrir ao interlocutor e ao leitor do diálogo um
saber que, sem o saber ele, já possuía. Saber de ordem prática que serve para dirigir os atos
("areté", traduzido imperfeitamente como "virtude").

 1.1.2 O diálogo de Eutifrón pode servir de exemplo15. O sacerdote Eutifrón, enquanto acusava
a seu pai de ter deixado morrer por negligência a um delinquênte, acusação que ele considerava
seu dever religioso ("hosión"), encontra frente ao tribunal a Sócrates, acusado de impiedade por
Melito. Os dois, Eutifrón e Melito, portanto, devem saber exatamente o que é e o que no é
religioso ("hosión"). Intenta-se de definir e fixar este saber num diálogo que se desenvolve
através das seguintes fases:
        - 1ª O religioso deve sempre ser igual, idêntico a si mesmo e sempre diferenciado do seu
contrário (5c-d) por um caráter único, pelo qual cada ato ímpio é ímpio e cada ato religioso é
religioso (6d-e).

        - 2ª Eutifrón define o religioso metodologicamente: consiste em agir seguindo o exemplo
dos Deuses (5d-a), é « aquilo que é grato aos Deuses » (6e), mas Sócrates não aceita estas
"historietas" (6a-c), e, por outra parte, os mesmos Deuses (mitológicos) estão divididos entre si
(7b; 8a-b).
12
     Cf. APOLOGÍA, 29d-30b; CÁRMIDES, 154d-e; ALCIBÍADES, 128a-130e.
13

Cf. SOFISTA, 230b-c.
14

Cf.TEETETO, 148e-150d.
15

Olhar o comentário de Romano Guardini, LA MORTE DE SÓCRATES.
16

       - 3ª Semelhante dissensão é possível, porque não se trata de fatos verificáveis, senão de
valores (7b-d); e é necessário demais acrescentar que a discussão não se refere à consideração
desses valores em si, senão da consideração dos atos particulares, enquanto correspondem ou
não a esses valores (8d-e).

        - 4ª Se para evitar a dificuldade, se define o religioso como aquilo que é « aprovado por
todos os Deuses » (9d-e) o problema se volve a situar sobre o fundamento deste consenso;
« aquilo que é religioso ¿é aprovado pelos Deuses porque é religioso, ou mas bem é religioso pelo
fato que os Deuses o aprovam? » (10).

Agora, já que é claro que uma coisa é amada pelo fato de que é amável, e não é amável porque
ela é amada (de fato), deduz-se então que o religioso é amado pelos Deuses devido a sua
própria natureza; isso se impõe, por dizer-o assim, aos Deuses mesmos, e será necessário,
portanto, definir esta mesma natureza, esta essência ("ousía" isto é o ser) do religioso (10d-11b).

        - 5ª A definição que se intenta segundo o gênero e a espécie ("uma espécie de justo")
recorre novamente, mediante uma longa volta (« aquilo que é correto segundo o ritual »), « àquilo
que é grato aos Deuses » (15a-e) para definir a espécie de justiça da qual se trata: o círculo
vicioso se fecha.

        - 6ª Neste ponto Eutifrón abandona o discurso, ainda que Sócrates estes comvencido de
que ele sabe perfeitamente porque ele atua assim (estando próximo a acusar a seu pai :15d).

1.1.3 Este diálogo nos faz assistir em pleno à crise da religião mitológica enquanto norma de
comportamento: porquanto, ela resulta incapaz não só de fixar normais de ação que se-soster
frente à razão (cf. 2º), senão que conduz demais a Eutifrón a uma ação que será desaprovada pela
maior parte dos homens (6a) e, a Melito, a acusar a Sócrates.

Sócrates no contrapõe a esta religião outro tipo de saber; nem o juízo da maior parte dos
homens, nem uma simples definição em nível da manipulação da palavra à maneira dos sofistas
(cf. 5º); senão que se remite àquilo que se encontra no fundo mesmo da religião mitológica: isto é,
uma lei que se impõe também aos Deuses (cf. 4º) e que jorra da natureza, do ser mesmo que
se trata de julgar (cf. 1º, 3º, 4º).

A natureza mesma do "religioso" não se alcança expressar, definir (também o discurso se mostra
inadequado frente a esta realidade), mas não é algo sem importância; na base mesma do diálogo
está a firme convicção de que o religioso existe, com sua natureza bem definida (que se opõe
de modo determinado e imutável ao ímpio) e que, enquanto tal, é norma para a ação.

Com efeito, é no agir de maneira decidida e definida onde Eutifrón, Melito e Sócrates mostram
que eles sabem o que é religioso e como se deve comportar -- em absoluto, até a morte -- o
religioso, mais bem que ímpio.

Existe, portanto, um saber certo, inserido na ação, um saber "vivido", que não se deixa
expressar ou explicar, porque ele se refere precisamente àquilo que se encontra além daquilo do
qual pode-se dispor com o discurso (daquilo que se pode "manipular" expressando-se de uma
maneira ou de outra): uma norma absoluta que se impõe também aos Deuses míticos, isto é,
que dá fundamento ao mito mesmo.

N.B.: - 1º A ironia socrática (dizer o contrário daquilo que se quer dizer, ou mais bem, utilizar a
linguagem comum de maneira tal que sua inadequação para expressar o que se pretende dizer
sobressalta aos olhos de todos) é um meio para dizer de algum modo, ou melhor, para fazer
17
entrever precisamente este indizível que Sócrates quer mostrar. Para que a ironia não seja uma
simples caricatura, ela deve ser, por assim dizer-lo, recíproca ou humilde: por quanto, aquele
mesmo que utiliza a ironia deve deixar-se questionar.

        - 2º No diálogo "Eutifrón", a ironia se desenvolve, por dizer-lo assim, sobre dois níveis:
deixando entrever que o saber a propósito do religioso que possuem Eutifrón e Melito é falso;
Platão insinua que é Sócrates, o acusado, quem conhece a verdadeira religiosidade. Nos outros
diálogos do mesmo período a coisa é mais simples. É evidente que Laqué, famoso e valioso
general, sabe efetivamente que é a coragem, ainda que seja incapaz de expressar-lo16; que
Cármides, adolescente de boa família excepcionalmente dotado para a filosofia, possui a
sabedoria, ainda que não alcança definir-la17; Lisis, jovem fascinado pela amizade, sabe que é
um amigo, ainda que no alcance precisá-lo18. A tese socrática do saber implícito e inexplicável se
mostra com mais clareza.

1.1.4 Qual é para nos hoje, para nossa metafísica, o valor desta via socrática? Ela nos faz
compreender três coisas:

        - que existe um saber inexprimível, que nosso saber não termina onde encontra seus
limites nossa possibilidade de discorrer, senão que existem algumas certezas que se possuem sem
ter a possibilidade expressar-las e de explicar-las, nem de justificar-las com um discurso lógico.
        - que este saber é implícito em nosso modo de agir; que nos exercemos na prática um
saber que não somos capazes de explicar teoricamente, porque, enquanto seres humanos, não
atuamos cegamente, mas sabemos o que fazemos (aqui está a verdadeira substância da famosa
tese socrática de que o vicio não é mais do que erro ou ignorância).

       - que, pelo contrário, esse saber inexprimível é norma e regra de nossa ação; nos
apresenta o absoluto dos valores da obrigação moral. A moral, consiste em dizer o saber que
existem valores e normas que devem ser absolutamente respeitados, é portanto, a primeira
aproximação que se abre para nos e para qualquer homem ainda além da experiência, além de
tudo o que se pode dizer ou explicar com um discurso puramente teórico. Isto significa, por outra
parte, que toda metafísica, qualquer que seja, possuirá inevitavelmente um caráter prático,
moral, ainda político (como Sócrates que colocava seus interrogantes com um objetivo
evidentemente político: com vista a formar bons cidadãos numa situação de crise).

1.2       PLATÃO E O AMOR À BELEZA

Platão persegue com seu pensamento a mesma finalidade política de Sócrates: a de promover o
bem-estar da cidade por meio da educação; mas, procurando fazer-lo com um ensinamento mais
continua e sistemática, e através obras escritas, Platão é conduzido a encontrar repostas às
questões de Sócrates que pertenciam abertas, e transformar em doutrina metafísica a pura
busca socrática.

O "explicar" o saber descoberto por Sócrates com a teoria da preexistência da alma e da
reminiscência ("anamnesis"19). Existem sobre tudo três doutrinas platônicas que nos interessam:

16
     Cf. LAQUES, 193e-194b.
17

Cf. CÁRMIDES, 175e-176a.
18

 Cf. LISIS, 223b.
19
   Cf. MENÓN, 82-86. Cf. Mondin, B., DIZIONARIO ENCICLOPEDICO DI FILOSOFIA TEOLOGIA E MORALE,
ed. Massimo, Milano 1989; cf. o termo « anámnesis », pg.31: « Anámnesis significa reminiscência, como o quer
dizer a etimologia grega anámnesis. Está vinculada à filosofia platônica, onde o conhecimento intelectivo do
homem explica-se como uma reminiscência de um conhecimento já adquirido pela alma numa vida anterior,
quando, antes de tornar-se pesada e cair num corpo, tinha tido uma visão direta das Idéias no "Iperuranio". A
18

1.2.1 A DOUTRINA DAS "IDÉIAS" pode remontar-se, porquanto a terminologia, a Sócrates
mesmo20, onde "idéia" indica uma certa configuração visível (de "ideîn"21, ver) fixa e
característica, à luz da qual se reconhece uma coisa (por exemplo, uma virtude) por aquilo que ela
é. Em Platão a idéia chega a ser uma realidade ontológica, isto é, uma espécie de ser, que se
pode explicitar da maneira seguinte:

         a.     Um protótipo (não só um exemplar), ao qual deve-se assemelhar todos os seres
(ações virtuosas, figuras geométricas, existentes) de uma ou outra espécie; é, portanto, o uno
(isto é, a natureza, o caráter único) que funda (realmente, ontologicamente, explicando o porque
é assim) o múltiplo (isto é, as diversas ações religiosas, os diversos triângulos, etc.). É o dever-
ser, então, a norma ontológica que se encontra acima dos fatos da experiência, do qual derivam
estes fatos. Esse protótipo é caracterizado como:

        b.     "Em si mesmo", "sempre o mesmo" ("auto to...", "auto kath'hauton": o mesmo
em si mesmo = "é propriamente isso"), querendo significar com isso que não deve ser definido
nem em relação com aquele que conhece (contra os sofistas), nem como variável (agora
assim, agora diversamente, contra Heráclito) senão que é "imóvel" (isto é, não está sujeito ao
cambio, entendendo por "movimento" --"kínêsis"-- qualquer espécie de mudança ou de devir).
Platão recupera com isso alguns traços do ser imóvel de Parmênides.

        c.       A idéia se denomina também "o verdadeiro ser", "a realidade mais real" ("ontôs
on"), em oposição à simples aparência ("dóxa"), que recobre agora todo o sensível, todo o mundo
das experiências. Pelo contrário, portanto, a nosso modo corrente de falar ("não é mais que uma
idéia"), a idéia é, para Platão, algo mais real, mais existente do que as coisas materiais e do que
os dados da experiência. Ela é tal enquanto é imóvel, não sendo o devir senão uma maneira
insuficiente de ser (o que devem não é ainda plenamente).

Nos trataremos de compreender este modo de ser de Platão, lembrando que toda norma
verdadeira para nosso agir deve ser "realista", isto é, adequado à realidade. O dever-ser impõe sua
lei também ao ser; é, portanto, mais real do que o realizado na experiência. Neste sentido, a idéia
platônica é:

experiência sensível não produz as idéias na mente, mas serve, porém para acordar-las do recordo. Proveniente da
tradição órfico-pitagórica, a doutrina da anámnesis foi adotada por Platão para demonstrar, no FEDÓN, a tese da
imortalidade da alma e para explicar a formação do conhecimento filosófico e matemático.

Uma das doutrinas mais extraordinárias da filosofia platônica é sua doutrina da reminiscência. Ela afirma que nosso
conhecimento não é outro que um recordar. A ocasião de este recordar é encontro com as coisas deste mundo
material, as quais não são senão copias das Idéias.

O encontro com as coisas deste mundo desperta na alma o recordo (lembrança) das Idéias; p.ex. vendo as coisas
belas desperta-se em nos a Idéia de Beleza; vendo as coisas justas, desperta-se em nos a Idéia de Justiça, etc.
Além disso, no plano geral do sistema platônico, a doutrina da reminiscência desempenha três funções muito
importantes: proporciona uma prova da preexistência, da espiritualidade e da imortalidade da alma; estabelece uma
ponte entre a vida anterior e a vida presente; e dá um valor ao conhecimento sensitivo, enquanto se lhe reconhece a
este o mérito de suscitar o recordo das Idéias ».
20

Cf. EUTIFRÓN, 5d; 6d.: "Minha idéia": "um caráter único".
21

 A idéia significa primeiramente o aspecto manifesto de uma coisa segundo seus traços característicos; em segundo
lugar, designa sobre tudo o aspecto interior ou conteúdo essencial que nele se revela. Enquanto o conceito segue o
ser das coisas e representa sua essência, a idéia lhe precede como eterno e perfeito arquétipo, conforme ao qual têm
sido elas conformadas. Assim a idéia é essencialmente causa exemplar ou arquetípica. Apreendida pelo
entendimento, converte-se em norma (cânon) que serve para julgar as coisas que se lhe apresentam ou se guia na
realização da idéia.
Platão considerará as idéias como realidades independentes supramundanas que representam um reino próprio por
debaixo da idéia suprema do Bem.
19

        d.     "Supra-sensível", isto é, algo distinto daquilo que pode ser objeto de experiência,
puramente inteligível, que não se vê senão com o pensamento (não com os sentidos). Com tudo
isto Platão nos ensina que existe algo real mais real do que aquilo que nos consideramos
habitualmente como a única e sola realidade; mais real do que o que se apresenta a nossos
sentidos, do que pode ser visto, ou escutado, etc. (também mais real do que pode ser percebido
através de experiências supra-sensíveis, parapsicológicas ou espiritistas; a idéia platônica não se
conhece senão com o puro pensamento).

Esse « mais real do que o que nos vemos habitualmente », é descrito de maneira mais clara por
Platão na famosa alegoria da caverna22: desde as sombras projetadas sobre a parede pode-se
remontar aos objetos dos quais estas são as sombras e, à luz do fogo que as projeta, finalmente,
ao sol que é ainda mais "luminoso" do que o fogo.

1.2.2 A IDÉIA DO BEM 23 é, por dizer-lo assim, a idéia das idéias, isto é, o princípio supremo
do qual estas mesmas idéias tomam seu próprio valor e sua inteligibilidade. De fato, nenhuma
virtude é virtude, nenhum prazer é prazer, se não é um prazer "bom", uma maneira de agir
"boa"24, e para conhecer-lo é necessário, em primeiro lugar, conhecer o bem enquanto tal25,
conhecimento ante tudo necessário para aqueles que são responsáveis de governar a cidade26. A
idéia do Bem é, portanto, o principio supremo de unificação do múltiplo; e já que as idéias não
são somente princípios de conhecimento (aquilo pelo qual se reconhece uma ação como justa,
etc.), senão princípios ontológicos (uma ação é justa por sua semelhança com a idéia de justiça,
etc.), a idéia do Bem é o principio ontológico supremo: aquilo do qual tudo o que é (bom) toma
seu ser, seu valor; o que explica, em última instância, o "porque" de tudo o que é.

Enquanto tal, a idéia do Bem está « além daquilo que pode ser » ("epékina tês ousías"27) e "reina"
sobre o mundo inteligível das idéias28. A idéia do Bem assume assim traços divinos, e a
metafísica, posto que leva a conhecer por meio do discurso (o "logos") esta idéia do Bem, se
converte numa "teologia" (o nome mesmo desta ciência remonta ao mesmo Platão).

Agora, enquanto visível à inteligência e ao pensamento, o Bem se identifica com o Belo (a justa
medida, a harmonia, a ordem interna do ser); tanto mais facilmente por quanto que para os
Gregos virtude e bondade constituem uma mesma realidade ("kalokagathia" - "beleza-bondade",
"uma bela ação"), enquanto o vicio é "feio", "vergonhoso".
1.2.3 Para chegar ao conhecimento da idéia do Bem, para "vê-la", a "psychè" do homem deve
sair deste mundo dos sentidos e da aparência (de acordo à alegoria da caverna), ao limite
morrer; morte a qual a filosofia arrasta29 e que ela antecipa com uma purificação progressiva
que liberta a alma das cadeias que a atam ao corpo. Platão propõe dois caminhos de purificaçao-
ascençao:


22
     Cf. REPÚBLICA, 514a-516c.
23

Cf. REPÚBLICA, 517b-e.
24

Cf. REPÚBLUCA, 505c-d.
25

Cf. REPÚBLICA, 505a-b.
26

Cf. REPÚBLICA, 505e-506a.
27
  Cf. REPÚBLICA, 509b.
28

Cf. REPÚBLICA, 509d.
29

Cf. FEDÓN, 661b-d.
20
                                                   30
         a.     Por meio do amor ("eros" ) que, atraído pela Beleza, transcende as tendências
instintivas da alma, que a empurram até o baixo31. Esse amor é descrito no discurso de iniciação
de Diotima no Simpisio, onde Sócrates é iniciado neste amor que, filho de Poros (Abundancia) e
de Penia (Pobreza), está na busca do Belo e do saber32 e que, atraído pela beleza deste mundo,
se eleva até a « Beleza que existe em si mesma e por si mesma, simples e eterna, da qual
participam todas as outras coisas belas »33. O cume desta ascensão seria a êxtase mística diante
esta Beleza divina.

        b.     Agora, a metafísica, não sendo nem experiência mística nem êxtase, deve tratar
de recuperar mediante um discurso conceitual, dialético ("deuteros ploûs": o "segundo tipo de
navegação", isto é, remando a força de braços quando o vento não sopra mais34) o que o eros faz
ver diretamente. Nos não seguiremos mais a Platão neste modo de razoar por meio de proporções
e harmonias (e portanto ainda de tipo estético), isso o volveremos a encontrar em Aristóteles,
subuma forma mais criticamente elaborada.

1.2.4 CONCLUSÃO.               O que devemos apreender de Platão é o que ele transmitiu a toda
a tradição filosófica e teológica (e também cultural) de Ocidente: isto é, a experiência não só de
um saber senão de uma realidade metafísica, mais real do que aquela mesma que nos vemos e
tocamos. Existem, portanto, graus de realidade, mais o menos reais, e a realidade suprema,
divina, que é o fundamento de tudo o que existe de bom e de belo neste mundo e, em primeiro
lugar, no mundo humano.

Com efeito, enquanto a aproximação ética de Sócrates se poderia contentar com um saber sobre
normas e regras morais absolutas, a aproximação estética e amante de Platão à realidade, nos
descobre valores reais de beleza e de bondade, que transcendem as coisas materiais que os
representam (isto é, melhores, mais absolutos que essas mesmas coisas). Esses valores nos fazem
entrever uma realidade que se situa além do simples dado, e que o mundo da experiência não
alcançará jamais encarnar ou representar perfeitamente.

Tenhamos presente que a experiência estética e o amor abrem um caminho privilegiado ao campo
metafísico.

Finalmente, ainda que o mundo supra-sensível de Platão não se deve conceber de maneira
espiritista, como um mundo de espíritos, os mitos platônicos sobre a preexistência e a
supervivência da alma, mostram que Platão tomou crenças tradicionais, órficas, que recuperam
transformando-las num discurso filosófico.

1.3 ARISTÓTELES E O FUNDAMENTO "DAQUILO QUE É VERDADEIRO"


30

 É conveniente lembrar a significação do termo amor, ainda se Platão se referirá ao primeiro tipo de amor (enquanto
« Eros »), no caso que nos interessa. Amor é o nome comum dado a todas as inclinações até qual quer bem.
Distinguem-se três tipos fundamentais de amor: amor de concupiscência, de dileção e de benevolência. O amor de
concupiscência presente na cultura clássica com o termo Eros, se caracteriza pelo desejo de possuir o objeto amado,
pelo qual alguém é atraído por suas qualidades estéticas (quer dizer por aquilo que tem: beleza, juventude etc.).
Caracteriza-se pela ternura (carinho); é exclusivista e cioso, mas tende a se-esgotar uma vez satisfeito o desejo de
possessão.
31

Cf. FEDRO, 237d-238c, 253c-254e.
32

Cf. SEMPOSIO, 203c-204d.
33

Cf. SEMPOSIO, 209e-212a.
34

Cf. FEDÓN, 99d.
21
A "filosofia primeira" de Aristóteles deu à metafísica não só o nome, senão também seu conteúdo
e suas estruturas fundamentais. Como a Lógica de Aristóteles, durante mais de dois mil anos, era
a Lógica simplesmente, do mesmo modo, a Metafísica de Aristóteles chegou a ser a metafísica.
Nossa presente exposição não intentará fazer uma reconstrução histórica daquilo que pudesse ser
a metafísica para Aristóteles, senão nos ajudará a fazermos repensar sistematicamente, re-
elaborando por nossa própria conta, as doutrinas fundamentais desta metafísica.


                                         I        O QUE É "SER"

1.3.1 A "epistesme" o "ciência", à que aspirava Aristóteles em toda sua obra, significa um
saber fundado, isto é, um saber que sabe que é necessariamente (e, portanto sempre,
"eternamente") assim, porque conhece o porque daquilo que é conhecido, seu fundamento
último, sua "causa". Dito saber se adquire por meio do silogismo que relaciona a verdade da
conclusão com suas premissas (a proposição maior). Assim, eu sei que sou mortal pelo fato de
que todos os homens são mortais, e que todos os homens são mortais porque qualquer vivente
que é composto de partes pode deixar de viver, etc. Agora, o silogismo se compõe de juízos que
enunciam um "ser": "é assim", enquanto que os conceitos dos quais se compõem o juízo dizem o
que é (assim). O lugar próprio da verdade (científica) é, portanto, o ser (assim) daquilo que
é, ou, em outros termos, daquilo que é enquanto é ("on hê on", "ens qua ens")... A ciência
fundamental, a "filosofia primeira", deverá, portanto, considerar "o que é enquanto é", ou bem, o
"ser dos seres"; essa ciência será uma filosofia do ser, daquilo que "é assim".

N.B. Deve-se sinalar que isto só vale para todos os juízos. Com efeito, existem outras expressões
lingüísticas, ainda que igualmente completas, que não são juízos e, por este motivo, não são os
lugares de um saber fundado nem do ser: por exemplo, a exclamação, a invocação, a ordem, etc.
Porem, o que Aristóteles encontra mediante a análise do juízo poderia além disso descobrir-se
com uma análise da interrogação, porque esta espera um é assim como resposta. De fato, o
saber humano se apresenta, na maioria dos casos, mais sub a forma de interrogação do que de
afirmação.

1.3.2 Uma rápida análise semântica35 deste "ser" mostra que o "é assim" diz-se em modos
diferentes ("to on pollachôs légetai"):

        a.     No caso principal, quando se trata de um saber verdadeiramente científico,
necessário e fundado, ser significa o que o sujeito do juízo é em si mesmo, sua essência, ou o que
a este lhe pertence necessariamente e enquanto próprio; dizendo "é" se enuncia à verdade
profunda daquilo sobre o qual se fala, p. ex., "o homem é mortal". Aristóteles o chama "o ser
por essência", em latim, "per se".

        b.     Podem ser verdadeiros também os juízos que não se fundam sobre esta essência,
que não têm nada de necessário (nem de "demonstrável"), senão que se encontram como
verdadeiros de fato; por exemplo, "Pedro está resfriado", "este arquiteto é um bom músico".
Aristóteles o chama "o ser por acidente", em latim "per accidens" ("o que acontece --accidit--
como verdadeiro").


35
    Cf. Mondin, B., DIZIONARIO ENCICLOPEDICO DI FILOSOFIA TEOLOGIA E MORALE, Ed. Massimo,
Milano 1989; cf. o termo Semántica, pg.688 : « Com este termo indica-se, em geral, aquela parte da lingüística que
se ocupa do significado das palavras, quer dizer da correspondêcia entre os sinais e o que estes representam. Em
Lógica matemática, a semântica é a teoria da interpretação de um sistema formal, no qual um significado pode ser
atribuído aos símbolos formais de dito sistema. Pode-se distinguir uma semântica sincrônica: esta define o
significado de um termo com respeito aos outros (como acontece no estruturalismo) e uma semântica diacrônica ou
histórica: esta estuda as variações dos significados da mesma palavra ao longo do correr dos séculos ».
22
        c.     Podem ser verdadeiros igualmente os juízos que não se apóiam sobre algo que é
realmente o caso, senão que pode realmente ser o caso: um poder-ser-real; p. ex., "Pedro toca
bem o piano", "ele é um excelente pianista", ainda que não o toca neste momento, mas pode
tocar-lo; do mesmo modo: "esta montanha é visível desde muito longe", ainda que durante a
maior parte do tempo há uma nuvem que a esconde. Isso é para Aristóteles, "o ser em potência",
em latim "in potência".

       d.      Finalmente, "é assim", pode também servir para afirmar o que não existe ou não
pode ser o caso, p. ex., "o latim era desconhecido por Sócrates" ou "uma velocidade superior à
da luz es impossível". O verbo "ser" tem então uma função puramente lógica, e serve para
manifestar ainda uma negação, sem significar de nenhum modo uma existência, um ser; ele não
faz senão relacionar, e de maneira absoluta ("copula"), o predicado com o sujeito. Aristóteles o
chama "o ser enquanto verdadeiro" (e "o não ser enquanto falso"); em latim "essere copulae",
"secundum compositionem et divisionem".

A confrontação dos três primeiros significados com o último mostra que se "ser" tem sempre um
caráter de afirmação absoluta ("verdadeira" para todos, em qualquer hipótese, simplesmente),
esse significa normalmente também uma existência, segundo as diferentes modalidades sub as
quais algo pode "ser o caso" = existir. A lógica manifesta o "ontológico", o "modo no qual se
encontra existindo verdadeiramente o mundo real".

1.3.3 A analogia36 do ser deve ser compreendida nesta dimensão ontológica. As análises
anteriores têm mostrado que "ser" diz-se de maneira mais ou menos própria: existem portanto
diferentes graus de ser (como em Platão), então diferentes maneiras de ser (isto é, de existir)
realmente; o que pode ser "é" de modo diverso àquilo que é necessariamente ou que é "per
accidens" (não existe senão como um puro fato).

Portanto, o termo "ser" não é nem unívoco (como animal diz-se do cachorro e do peixe) nem
equívoco (um puro homônimo, como banco enquanto instituição e banco enquanto assento),
senão que é usado num sentido análogo segundo significações diferentes que, porem, tem uma
certa relação entre elas (do grego "anàlogon": segundo uma relação). Assim, sano se diz
propriamente do bem-estar físico (saúde) do homem, mas um alimento, um clima são "sanos"
porque favorecem a saúde, a cor porque a manifesta, e uma leitura porque procura à alma o que a
saúde representa para o corpo. Das realidades assim indicadas mediante a palavra "ser", esta
convém de modo próprio ao ser por essência ("ousía": "o que é") e de maneira derivada aos
outros, conforme à relação com este ser por essência ("é como se...", "aquilo pode ser...").
Portanto, elas são (no plano ontológico), só analogicamente. Podemos notar que o ser por
excelência, "o que é propriamente", não é mais em Aristóteles um "ontos on" que está além do
mundo da experiência, senão a ousía mesma, "o que é" dos seres deste mundo.




36
   Cf. Mandem, B., Piccolo dizionario dei termini filosofici fondamentali, in IL SISTEMA FILOSOFICO DI
TOMMASO D'AQUINO, ed. Massimo, Milano 1992, pg.271: « O termo (analogia) deriva do grego (analogon,
analogia) e, en geral, significa semelhança. Em Lógica designa seja uma espécie de razoamento (o razoamento por
analogia), seja um tipo de predicação (predicação por analogia). Como tipo de predicação a analogia distin gue-se da
univocidade. Enquanto que na univocidade um termo vem aplicado a muitos sujeitos em sentido idêntico, e na
equivocidade em sentido totalmente diverso, na analogia um termo é aplicado em sentido parcialmente igual e
parcialmente diverso. Em geral, distinguem-se dois tipos de analogia: uma de atribuição e outra de proporcionali -
dade. A atribuição subdivide-se, por sua vez, em intrínseca e extrínseca, enquanto a de proporcionalidade subdivide-
se também em própria e metafórica. Santo Tomás de Aquino é um dos máximos defensores da importância do
principio da analogia, e a considera indispensável para determinar o significado da linguagem religiosa e
metafísica ».
23
                           37
1.3.4 As categorias designam, entoa, os modos de ser da (ou na) ousía mesma. Elas se
deduzem de novo dum fato lingüístico, da maneira como se enuncia ("Kategoreîn" -enunciar) "o
que é", isto é do juízo, sempre composto de um sujeito e dos predicados.
O sujeito designa o que é propriamente, a ousía enquanto tal, a "substância" (o que "sustém",
"substat" todo o ser; ou bem, o que "é em si mesmo", "ens in se").

Pelos predicados Aristóteles distingue nove aspectos, baixo os quais pode-ser considerar o ser
enquanto tal de um sujeito e, portanto, nove maneiras de ser da substância: quantidade (quanto),
qualidade (como), relação (com relação a qualquer coisa), lugar (onde), tempo (quando), posição
(em qual posição: de pé, sentado, encurvado), ter (provisto de qual coisa), atividade e
passividade. Essas maneiras de ser não existem "em si mesmas", senão só "em outro" ("entia in
alio"), isto é, na substância, como "aquilo que lhe ocorre ser" (accidente).

Portanto, as dez categorias (substância mais nove categorias de acidentes 38) são os gêneros
supremos de tudo o que é (ou pode ser). Porem, o elenco das categorias de acidentes, varia no
mesmo Aristóteles, já que foi estabelecido de maneira totalmente empírica, e não deve ser
considerado nem necessário nem exaustivo. Kant intentará estabelecer de maneira mais decidida
uma lista de 12 categorias, não partindo mais do sujeito e do predicado, senão do modo no qual
esses se relacionam entre si e, portanto, afirmam-se no juízo; da maneira, numa palavra, como
eles são.

                      II        A CONSTITUIÇAO DOS SERES CONCRETOS

À luz destes princípios ontológicos, descobertos mediante uma análise lógica "daquilo que é
verdadeiro", podemos agora considerar os seres concretos, dados na experiência. Neste ponto, no
limite com a física, se apresentam as maiores dificuldades que deve superar a metafísica
aristotélica. Com efeito, os conteûdos do saber verdadeiro, são, (e devem ser) universais e
necessários, e o "ser" que funda este saber deve, portanto, ser também universal e necessário.
Agora, os seres dados na experiência se apresentam a nos sempre e exclusivamente singulares e
variáveis (isto é em devir). Como, portanto, e de qual maneira as estruturas ontológicas
fundamentais são e podem ser verdadeiras para os seres dados na experiência? De qual modo é
necessário conceber estes seres à luz daquilo que nos temos descoberto sobre o ser (o poder-ser-
objeito de ciência certa) enquanto tal?



37

 Cf. Mondin, B., IBIDEM, o termo categoria, pg.128: « A categoria significa as classes de predicados (ou
predicamentos). Aristóteles foi o primeiro em fixar-lhes a classificação, definindo as categorias como idéias gerais
que não são reduzíveis a nenhuma outra. Para Aristóteles há 10 categorias: substância, qualidade, quantidade, ação,
paixão, relação, tempo, lugar, posição e o hábito. Para Kant e a escola kantiana, as categorias são os conceitos
fundamentais do intelecto puro, formas a priori de nosso conhecimento, que fazem possíveis todas as funções do
pensamento discursivo.

Portanto, por quanto em Aristóteles as categorias têm uma dupla função: lógica (gnosiológica) e ontológica, elas são
então modalidades fundamentais seja do pensamento seja do ser (e assim, p.ex., substância e causalidade não são
simplesmente princípios reguladores do pensamento, senão condições efetivas da realidade); em Kant, estas
alcançam apenas a uma função gnosiológica (lógica): são formas que o pensamento impõe aos dados da experiência,
a forma da quantidade, da qualidade, da substância, da relação, etc. São formas universais, comuns a todos os
intelectos humanos e, neste sentido, podem-se dizer objetivas, mas são formas impostas pelo sujeito ao mundo
caótico da experiência e, neste sentido, são de fato subjetivas ».
38
   Cf. Mondin, B., IBIDEM, o termo “acidente”, pg.10: «O acidente, segundo a definição aristotélica, é todo o que
acompanha a substância como algo de não necessário. À diferença da substância, que tem seu próprio ato de ser e,
portanto, subsiste em si mesma, o acidente não é um “in se”, não dispõe de um ato próprio de ser, mas o recebe pela
substância na qual está inerente. Segundo a classificação de Aristóteles, todas as substâncias materiais estão
acompanhadas de nove acidentes principais: quantidade, qualidade, relação, ação, paixão, lugar, tempo, situação,
hábito ».
24
Aristóteles buscou responder a estas questões considerando preferentemente os seres viventes
(de fato, seu pai era médico, e ele mesmo sobre tudo zoólogo). Com efeito, os viventes, são os
seres que melhor conhecemos, isto é, que reconhecemos mais facilmente enquanto tal ser (um
cachorro ou um pássaro, um corvo ou um mirlo), e dos quais é evidente que este individuo
permanece sempre idêntico a si mesmo através de todas suas mudanças (esse pino será sempre
este pino, desde seu primeiro brote até quando seja derribado).

1.3.5 A composição de "forma" e de "matéria" nos seres singulares responde à pergunta:
de qual modo podemos saber que este ser é tal ser? Com efeito, nos reconhecemos um ser
singular pelo que ele é segundo um certo aspecto exterior, característico, sempre o mesmo, e
que tem em comum com os outros seres da mesma espécie. Um gato se distingue de um cachorro
por sua talha, seu cabelo, por seus movimentos que são comuns a todos os gatos. Sua forma
("morphè") especifica, o conjunto estruturado de traços característicos que formam um todo, é
algo mais e algo diverso da suma (ou da união) de suas partes (assim, no plano fonético, a sílaba
"de" tem uma forma significativa que é algo mais e algo diverso da simples união de uma "d" e de
uma "e").

Considerando o argumento mais a fundo, se encontrará que este ser deve ter um principio
interno de unidade, em virtude do qual esse apresenta sempre este aspecto específico: é um
gato, e não só se assemelha a um gato.

Para os viventes, é seu "principio vital" ("psychè"39) ou "entélécheia" (literalmente "o ser
completo"); os produtos artificiais da técnica humana, pelo contrário, não têm nem sequer uma
"morphè"; pois, sua "forma" não é senão um "esquema" (uma certa disposição característica das
partes, como por exemplo, a de uma mesa ou a de uma cadeira que não estão dotados de unidade
interna).

Agora, a "forma" de um vivente não é própria do individuo, enquanto que ele a comparte com
todos os indivíduos da mesma espécie. Portanto, de qual modo se distingue de seus similares?
Para responder a esta pergunta, Aristóteles recorre insolitamente ao modelo dos produtos
artificiais. Assim como se pode multiplicar o mesmo objeto, reproduzindo a mesma "forma" (de
uma mesa, de uma estatua, etc.) com material sempre novo ("materia", "A", literalmente: "ma-
deira de construção"), assim aconteceria com os viventes: cada indivíduo seria um todo com-




39
   Psychè significa alma. Aristóteles foi o primeiro em elaborar uma doutrina sistemática da alma, tratava nela de
todos os graus de vida terrestre (vegetativa, sensitivo-animal e intelectual e olhava na alma o principio vital, formal,
substancial dos processos vitais).
25
                                     40                                                       41
posto ("senolon") de "forma" (idêntica para toda a espécie) e de matéria individual. Esta
teoria se chama "hilemorfismo"42 (de "hylè" + "morphè").

Portanto, o que é, o que existe verdadeiramente, não é nem a forma nem a matéria somente,
senão o todo, o ser concreto; mas é assim, tal como é, em virtude da forma. E é por isso que se
pode dizer que a forma dê o ser. A matéria enquanto tal, tomada em si mesma não é nada, (nem
"este" nem "o outro", e, portanto, nem sequer existente), é um puro poder-ser (em latim,
"potência pura").

1.3.6 Os seres mudáveis e em devir (como o são todos os seres dados em nossa experiência)
colocam um problema ulterior. Para explicar como eles podem ser verdadeiros, é necessário não
somente responder às dificuldades bem conhecidas de Parmênides e dos eleatas (o que é não
devem e o que devem não é), senão também fazer ver de qual modo um ser possa permanecer o
mesmo, ainda chegando a ser outro, e de qual modo possa-se afirmar sua forma de maneira
absoluta, ainda que se, enquanto mudável, o individuo não alcança jamais igualar-la
perfeitamente. A estas perguntas Aristóteles responde analisando o modo no qual nos podemos e
devemos pensar o devir ("kínêsis", "movimento"). Pode-se sintetizar o pensamento de
Aristóteles sobre o como pensar o problema do devir43 em os seis pontos seguintes:

       a.     Para que aconteça o devir, é preciso, ante tudo, algo que devem, que ainda
mudando, permanece porem sempre o mesmo (de outra forma não se trataria de um ser que
devem senão de uma substituição de um ser por outro). Portanto, é necessário em todo devir um
substrato ("hepokeimenon").

40

 Cf.Brugger, W., Diccionario de filosofía : cf. o termo forma, pg.248-250: « (Em latim: forma, em grego: morphè).
Esta palavra designa originalmente a configuração exterior, o contorno, a figura, a estrutura visível de um corpo.
Desta maneira a forma, neste sentido, oferece dentro do mundo corpóreo uma importante base de diferenciação e
determinação, por isso a « morfologia » lhe dedica especial atenção... »; cf. Mondin, B., IBIDEM, cf. forma,
pg.306-307: « É um dos termos chaves da metafísica aristotélica, onde designa "a essência de cada coisa e a
substância primeira", quer dizer "o ato primeiro de um corpo". Segundo Aristóteles, todas as coisas materiais são
constituídas por dos princípios fundamentais: a matéria que es o principio passivo, e a forma, que es o principio
ativo (daí a definição: "ato primeiro de um corpo"). Na filosofia moderna o termo forma tem adquirido um
significado menos técnico e tem chegado a ser sinônimo de figura e ainda de estrutura ».
41

 Cf. Mondin, B., IBIDEM, o termo matéria, pg.462: « Segundo o significado mais comum, matéria diz todo o
conjunto dos corpos extensos. No significado técnico de origem aristotélica e escolástica, a matéria denota o que
num ser representa o elemento potencial, indeterminado, em oposição à forma que representa o elemento de
determinação e atualização. No uso moderno, matéria opoe-se seja à forma seja ao espírito.

A matéria, não em seu aspecto de entidade experimentável pelos sentidos e pelos instrumentos científicos, senão
enquanto constitutiva de cada coisa real física, natural, é uma das máximas conquistas do gênio filosófico de Aristó -
teles. Ele trata amplamente dela na FÍSICA e na METAFÍSICA, e a apresenta como elemento essencial para a
explicação do fenômeno do devir; tema bem discutido e polemizado pelos filósofos anteriores a Aristóteles, sobre
tudo, Heráclito e Parmênides... »
42

 Cf. Mondin, B., IBIDEM, o temo hilemorfismo, pg.371: « O hilemorfismo é a doutrina aristotélica que considera
cada substância material como constituída de matéria (heles) e de forma (morphè). Aristóteles tem introduzido esta
doutrina para explicar, por uma parte, o devir das coisas materiais, um devir que supõe um substrato estável,
permanente (e isso se deve à matéria) e, por outro lado, a identidade específica entre muitos indivíduos (e isso se
deve à forma). Alguns pensadores medievais têm usado esta doutrina para explicar a finitude das criaturas: isso se
deve ao fato que todas as criaturas, inclusive os anjos, estão compostas de matéria e de forma. Só Deus é sem
matéria, espírito puríssimo. Tomás nega a necessidade de estender o hilemorfismo ao mundo angelical para explicar
a finitude dos anjos, porque essa, em sua filosofia, explica-se adequadamente com a composição (ou distinção) de
essência e de ato de ser (esse) ».
43

 Para mais informação e uma boa apresentação sobre a pensabilidade do devir, olhar o artigo devir nos dois
dicionários seguintes: Brugger, W., DICCIONARIO FILOSÓFICO, pg.154-157; Mondin, B., DIZIONARIO
ENCICLOPEDICO DI FILOSOFIA TEOLOGIA E MORALE, pg.218-219.
26
        b.      Todo devir desenvolve-se entre dos termos: um termo inicial e um termo final
(por ex., a semente que devem a árvore, a ignorância que se torna saber metafísico, etc.). O
primeiro se caracteriza pela ausência ("stérêsis": "privação") daquilo que se encontra ("héxis":
"ter") no termo final: uma perfeição, um "ser-efetivamente-assim" ("enérgeia": "ato",
"atividade"; a terminologia mostra que Aristóteles tinha em vista sobre tudo as perfeições ativas, a
vida dos viventes; isso fica expressado claramente nele "efetivamente").

        c.      No termo inicial, porem, não existe só a ausência deste "ato". Porque o substrato
o terá no termo final, ainda permanecendo o mesmo, pode tê-lo desde o principio; ainda mais,
está destinado a ter-lo (enquanto o devir se desenvolve de maneira ordenada, numa sola
direção: por ex., o ovo não pode chegar a ser qualquer coisa, senão uma galinha, ou um ovo
frito). Portanto, no termo inicial do-devir encontra-se um poder-ser determinado ("denamis":
"potência"; a terminologia nos remite, de novo, à capacidade de atuar ou agir dos viventes), que
se deve descrever não só como o que não é o ato, senão como o que pode passar ao ato, ao qual
está ordenado. Portanto, é a partir do ato como se define o poder-ser ou a potência: o ato é
"anterior" à potência, mais fundamental do que a potência.

       d.     Portanto, tudo o que devem está composto de ato e de potência (de ser-
efetivamente e de poder-ser) que não só se sucedem (primeiro está a potência, depois o ato),
senão que se dão simultaneamente, porque o devir efetivo não elimina o poder-ser senão
somente a ausência do ato que se encontra no termo inicial. O poder-ser, pelo contrário,
permanece o mesmo, sendo pouco a pouco realizado, "atualizado". (O homem que poe-se em
caminho, no ato de caminhar realiza, "atualiza" o poder-caminhar).

        e.     Uma análise mais profunda do ser em devir servirá para sublinhar esta
simultaneidade do ato e da potência naquilo que devem. Com efeito, o que devem não se encontra
nem no termo inicial nem no termo final de seu devir, senão entre os dois, isso quer dizer, que
tudo o que está em devir, já tem devido ou devirá ainda. Portanto, em cada momento (parte de
um movimento) de seu devir, ele se encontrará ao mesmo tempo na situação ontológica de
termino final e na de termino inicial (por. ex., como um trem que passa direto a uma estação,
parte de ela no mesmo instante no qual chega). Com isso nos compreendemos a definição
aristotélica do devir: é "o ato de um ser em potência enquanto está ainda em potência"; isto é, é
já uma atualização da potência --já não está no termino inicial-- mas esta atualização mesma está
ainda em potência em relação ao termino inicial.

        f.      Em conclusão, ato e potência são distintos como a perfeição e o poder-ser-
perfeito: eles são contrários, mas relativo um ao outro. Ainda que distintos, eles não se sucedem
senão que existem simultaneamente: o ato de um ser em devir é o ato que "atualiza" uma
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  • 1. Padre Jacques D’ARCY, S. pss INTRODUÇÃO À METAFISICA (Adaptação do curso do Padre Peter Henrici SJ) SEMINARIO MAIOR NOSSA SENHORA DE FATIMA BRASILIA DF PRIMEIRO SEMESTRE DE 2004
  • 2. 2 ÍNDICE INTRODUÇÃO: O que é a metafísica na busca de uma definição provisional? 0.1 No âmbito da filosofia 0.2 No âmbito do saber humano 0.3 No âmbito da existência cristã CAPITULO I: MODELOS DE APROXIMAÇÃO À METAFÍSICA 1.1 SÓCRATES E O VALOR ÉTICO INCONDICIONADO 1.1.1 O método socrático 1.1.2 O diálogo de Eutifrón 1.1.3 A norma do agir 1.1.4 Sócrates e nós: valor da via socrática para a metafísica 1.2 PLATÃO E O AMOR Á BELEZA 1.2.1 A doutrina das idéias 1.2.2 A idéia do Bem 1.2.3 O conhecimento do Bem 1.2.4 Platão e nós: valor da via platônica para a metafísica 1.3 ARISTÓTELES E O FUNDAMENTO « DAQUILO QUE É VERDADEIRO » I O que é o « ser » 1.3.1 A ciência e o ser 1.3.2 Analise semântica de « é assim » 1.3.3 A analogia do ser 1.3.4 As categorias do ser II A constituição dos seres concretos 1.3.5 O ser-múltiplo e a composição de forma e matéria 1.3.6 O ser-em-devir e a composição de ato e potência 1.3.7 As causas do devir 1.3.8 O Deus de Aristóteles III Resumo sintético CAPITULO II: A ONTOLOGIA DO SER CRIADO E A METAFÍSICA DO ATO DE SER 0.1 A TRANSFORMAÇÃO DA ONTOLOGIA ARISTOTÉLICA: A COMPOSIÇÃO REAL DO SER (ESSE) E DA ESSÊNCIA 2.1.1 Os comentadores árabes e hebreus de Aristóteles 2.1.2 A distinção real entre a essência e seu ser (Santo Tomás de Aquino) 0.1.2 Como se devem conceber a essência e o ser: distinção real e composição 2.1.4 A importância metafísica da doutrina tomista 2.2 O SER ENQUANTO ATO DE SER E A RELEITURA DE ARISTÓTELES 2.2.1 O ser enquanto verbo e enquanto « atualidade » 2.2.2 Filosofia do ser e não da “ousía” 2.2.3 Reinterpretarão das categorias aristotélicas: substância, acidente, ação, relação, etc. 2.2.4 Síntese dos seres deste mundo: comunicação do tipo e da existência aos indivíduos 2.2.5 O Deus de Santo Tomás (“Ipsum Esse subsistens”) 0.1.2 A analogia do ser 2.3 O SER ENQUANTO SER-UNO E O PRINCÍPIO DE NÃO-CONTRADIÇÃO 2.3.1 As propriedades transcendentais do ser 2.3.2 Os primeiros princípios 2.3.3 A unidade enquanto recolhimento em si 2.3.4 O princípio de não-contradição
  • 3. 3 2.4 O SER ENQUANTO SER-VERDADEIRO E O PRINCÍPIO DE CAUSALIDADE 2.4.1 Verdade lógica e verdade ontológica 2.4.2 Identidade de ser e de verdade 2.4.3 Os princípios do fundamento: de razão de ser e de causalidade 2.4.4 A falsidade, o erro e a mentira 2.5 O SER ENQUANTO SER-BOM, O VALOR E O PRINCÍPIO DE FINALIDADE 2.5.1 o ser-bom 2.5.2 O valor 2.5.3 Prova metafísica do ser enquanto bom 2.5.4 O princípio de finalidade 2.6 O SER ENQUANTO SER-BELO E A UNIDADE DOS TRANSCENDENTAIS 2.6.1 Descrição do belo 2.6.2 A beleza enquanto perfeição dos transcendentais 2.6.3 A beleza transcendente (Deus) 2.6.4 Os transcendentais e o ser pessoal 2.7 RESUMO SINTÉTICO CAPITULO III: A CRISE METAFÍSICA E UM ENSAIO DE RELEITURA PERSONALISTA 3.1 A CRISE DA METAFÍSICA NOS TEMPOS MODERNOS 3.1.1 Racionalismo e empirismo 3.1.2 Nominalismo 3.1.3 Kant e o idealismo alemão 3.1.4 O fim da metafísica 3.2 ATÉ O REDESCOBRIMENTO DO SER: TU ES, EU SOU, NÓS SOMOS, ELE É 3.2.1 Teu ser 3.2.2 O ‘eu sou’ 3.3.3 O ‘nós somos’ 3.3.4 O ser de nosso mundo 3.3 A FINITUDE DOS SERES E A DIFERENÇA ONTOLÓGICA 3.3.1 A precariedade do “nós somos” e a composição de matéria e forma 3.3.2 A distinção entre tu e o teu, e a composição de substância e acidente 3.3.3 A temporalidade do eu sou e a composição de ser e essência 3.3.4 A ambivalência do « ele é » e a diferença ontológica 3.4 OS LÍMITES ABSOLUTOS DO « TU ES - EU SOU - NÓS SOMOS » E A POSSIBILIDADE DE UM ALÉM 3.4.1 Tua morte 3.4.2 Minha culpa 3.4.3 A esperança de uma salvação 3.4.4 A fundação da esperança no Transcendente
  • 4. 4 BIBLIOGRAFIA GERAL MANUAIS: ALVIRA, T. /CLAVELL, L. /MELENDO, T., Metafísica, Eumsa, Pamplona 1989. GRENET, P., Ontología, Herder, Barcelona 1973. HENRICI, P., Introducción a la metafísica, Rosario (Argentina), Gregoriana, Roma 1982. JOLIVET, R., Tratado de filosofia, t. III: la metafísica, Carlos Lohles, Buenos Aires 1957. RAEEMAEKER, L., Filosofia del ser, Gredos, Madrid 1968. DE AQUINO, T., De ente et essentia, Aguilar, Buenos Aires 1970. VAN STEENBERGHEN,F., Ontología, Gredos, Madrid 1965, WAHL, J., Tratado de metafísica: ontología, col. BHF 1961. WEISSMAHR, B., Ontología, Herder, Barcelona 1986. OBRAS FILOSÓFICAS: ARANGUREN, J-L., Implicaciones de la filosofia en la vida comtemporánea, Tauros. BOCHENSKI, J-M., Introducción al pensamento filosófico, Herder, Barcelona 1976. BLONDEL, M., El punto de partida de la investigación filosófica. DEMPF, A., Filosofia cristiana. DEMPF, A., Metafísica de la edad media, Gredos, Madrid 1957. FABRO, C., Introducción al tomismo, Rialp, Madrid 1967. FABRO, C., E OTROS., Las razones del tomismo, Eumsa, Pamplona 1980. GARRIGOU-LAGRANGE, R., La síntesis tomista, DDB, Buenos Aires 1947. GARRIGOU-LAGRANGE, R., El realismo del principio de finalidad, DDB, B. Aires 1947. GARRIGOU-LAGRANGE, R., El sentido común, DDB, Buenos Aires, 1949. GARCÍA LÓPEZ, J., Estudio de metafísica tomista, Eumsa, Pamplona 1976. GILSON, E., El ser e la essência, DDB, Buenos Aires 1951. GILSON, E., El tomismo, Eumsa, Pamplona 1978. GILSON, E., El ser e los filósofos, Eumsa, Pamplona 1979. GILSON, E., El filósofo e la teología, Guadarrama, Madrid 1962. GILSON, E., La unidad de la experiência filosófica, Rialp, Madrid 1960. GONZÁLEZ, A.L., Ser e participación, Eumsa, Pamplona 1979. JOLIVET, R., El homem metafísico, col eo se-eo creo. MARCEL, G., Diario metafísico, Losada, Madrid 1957. MARCEL, G., La filosofia comcreta, Revista Occidente, Madrid 1957. MARCEL, G., El misterio del ser, suramericana, Buenos Aires 1964. MARCEL, G., En búsqueda de la verdad e de la justicia, Herder, Barcelona 1967. MARC, A., El ser e el espíritu, Gredos, Madrid 1962. MARITAIN, J., Los grados del saber, DDB, Madrid. MARITAIN, J., Siete lecciones sobre el ser, DDB, Buenos Aires 1943. MARITAIN, J., Breve tratado acerca de la existência e de los existentes, DDB, B. Aires 1949. MARITAIN, J., De Bergson a santo Tomás de Aquino. MILLÁN-PUELLES, A., Fundamentos de filosofia, Rialp, Madrid 1967. PIEPER, J., Defensa dela filosofia, Herder, Barcelona 1973. PIEPER, J., El descobrimento de la realidade, Rialp, Madrid 1974. RASSAM, J., Introducción a la filosofia de Santo Tomás, Rialp, Madrid 1980. SERTILLANGES, A-D., Santo Tomás de Aquino, DDB, Buenos Aires 1966. SERTILLANGES, A-D., Las grandes tesis de la filosofia tomista, DDB, Buenos Aires 1949. SERTILLANGES, A-D., La idea de creación e sus resonancias filosóficas, B. Aires 1969. SCIACCA, M-F., El acto e el ser, Miracle, 1961. SCIACCA, M-F., La filosofia e el comcepto de la filosofia, Troquel, buenos Aires 1962. TRESMONTANT, C., Orígenes de la filosofia cristiana. TRESMONTANT, C., Las ideas maestras de la metafísica cristiana.
  • 5. 5 INTRODUÇAO O que é a metafísica? (À busca de uma definição preliminar e provisória1) O.1 NO ÂMBITO DA FILOSOFIA 0.1.1 A definição etimológica de FILOSOFIA provém de um termo de origem grega. Nossa a- tual civilização técnica científica tem suas origens no pensamento grego. São os gregos os que têm criado a "filosofia" sobre cujos conceitos se fundam a primeira pregação misionária do cristianismo e a elaboração da teologia cristã: dois motivos muitos válidos para ocuparmos desta filosofia. De fato, a filosofia parece ser um fenômeno tipicamente grego (ou indoeuropeu?). Todas as outras civilizações tiveram e têm sua "sabedoria", mas só na Grécia (e na Índia) a mesma tem sido elaborada em forma especificamente "filosófica". (Está, talvez, este fenômeno vinculado à estrutura particular das línguas indoeuropeas?). "Filosofia" = amor ou desejo da sabedoria. Palavra usada por Sócrates na polêmica com os Sofistas, os quais, durante a crise cultural grega dos séculos V-IV a. C. (ascensão ao poder, dos comerciantes: novos ricos; democratização e dessacralização da vida pública, das leis; crise das tradições e da religião mítica) comerciavam com uma « sabedoria » utilitária: a arte do discurso que sabia persuadir permitindo obter vantagem nas assembléias e diante dos tribunais. Em contraposição com eles, Sócrates não tinha a pretensão de « possuir » a sabedoria, senão a de se colocar somente na sua busca, demonstrando assim que a verdadeira sabedoria está além da técnica do discurso ensinado pelos Sofistas: es algo que o homem não poderia jamais « possuir » nem « dominar » plenamente. 0.1.2 Enquanto Sabedoria2, a filosofia consiste num saber não somente teórico, abstrato, parcial, senão num saber útil para a orientação total da vida, um saber que não tem só um valor de utilidade técnica imediata, senão que se funda sobre valores. O saber filosófico, "sapiencial", implica: - uma certa distância crítica com relação aos acontecimentos, com relação às experiências imediatas (« tomar as coisas com filosofia »); - uma visão global que permite situar as coisas no seu lugar; 1 Para este curso de Introduçao à Metafísica, seguiremos o texto do Padre Peter Henrici usado na Universidade Gregoriana. Nos permitimos acrescentar algumas referências e complementos. 2 Cf. Brugger W. DICCIONARIO DE FILOSOFÍA, Biblio. Herder, art. Sabiduría pg.459-460: « A sabedoria não é um saber qualquer, senão um saber que versa sobre o essencial, sobre as causas e os fins últimos do ente, é uma consideração e apreciação do terreno à luz da eternidade (sub espécie aeternitatis), um saber que dá prova de fecundidade porque assina a todas as coisas o lugar que lhes corresponde na ordenação hierárquica do universo, segundo a sentencia de santo Tomás de Aquino freqüentemente repetida:« Sapientis est ordenare »: ordenar é uma coisa própria do sábio. A forma científica não é essencial à sabedoria, mas si a conformidade do agir e do saber. Santo Tomás distingue três graus de sabedoria: o primeiro, é a intelecção modeladora da vida resultante da meditação filosófica, sobre tudo a metafísica. Acima se encontra a sabedoria procedente da fé e da ciência teológica, a qual ordena todas as coisas no conjunto do mundo sobrenatural que compreende céu e terra. O terceiro grau o constitui a sabedoria enquanto dom do Espírito Santo; com essa o homem que ama Deus já não compreende só com o esforço próprio, senão que à luz da divina inspiração, « experimentando o divino », sente-se aderido a ele e persegue com amoroso gozo a ordem que Deus tem querido em todas as coisas. -- De Vries ». Olhar também cf. Gardeil, H-D, INITIATION À LA PHILOSOPHIE DE SAINT TOMAS D'AQUIN, T. IV (Métaphysique), ed. Cerf, Paris 1966, pg.11-17; cf. Floucat, Yves, « A crise contemporânea da verdade e a unidade da sabedoria cristã », na Revista REVUE THOMISTE, Novembre 1983, pg.5-46.
  • 6. 6 - a busca do "porque", que permite dar razão das coisas e dos acontecimentos, explicar o sentido, todo aquilo pelo qual orienta-se a própria vida e regula-se o próprio comportamento. Em quanta sabedoria, a filosofia distingue-se, por tanto, das ciências, que se ocupam somente dos aspectos particulares da realidade. As ciências, por sua natureza, são diversas e especializadas; a filosofia, no fundo, é uma sô. As ciências não podem senão constatar fatos (necessários): "É assim", "será sempre necessariamente assim", sem poder formular juízos de valor e de sentido: « aquilo deve ou deveria ser assim», « está bem que seja assim », etc. Em quanto ser que coloca continuamente a questão do sentido (« porque? ») -- como as perguntas da criança, a busca do sentido por parte do adolescente (« qual sentido pode ter tudo isso? », qual es o sentido da minha vida? »), a crise da idade madura (« no fundo por que tenho vivido desta maneira? ») --, o homem, por tanto, jamais ficará satisfeito pelos únicos resultados e pelas respostas das ciências. Por outra parte, uma civilização exclusivamente técnica, fundada só no saber científico, resultaria totalmente inumana e absurda3. 0.1.3 A filosofia enquanto discurso racional. Respeito às outras « respostas sapienciais » (contidas nos mitos, nas religiões, nas artes...), a filosofia distingue-se por seu método4: mediante um discurso racional, coerente, no fundo necessário, segundo as regras da lógica, a filosofia conduz à sabedoria. Portanto, ela utilizará unicamente meios conceituais (não imagens, símbolos, parábolas, ou provérbios, etc.) rigorosamente controláveis e accessíveis a qualquer que esteja na posse da faculdade de pensar, portanto virtualmente universais (porquanto as outras sabedorias são, mais do que a filosofia, culturalmente condicionadas). Enquanto só « busca » da sabedoria, o discurso filosófico não pretende dar respostas preconstituídas nem comunicar conhecimentos novos (fatos), senão só dirigir o pensamento, de tal maneira que, procedendo de questionamento em questionamento, situadas convenientemente 3 Cf. Huxley, A., LAS ANTI-UTOPÍAS y EL MEJOR DE LOS MUNDOS; Wells, H-G., LA CRISIS ECOLÓGICA Y ENERGÉTICA DE LA CIVILIZACIÓN NORTATLÁNTICA, 1984; etc. 4 Cf. Jolivet, Régis, COURS DE PHILOSOPHIE, Editeur Emmanuel Vitte, Paris-Leon 1959, pg.9-10: « El método de la filosofía: 1. O método depende do objeto formal. – Chama-se « método » o conjunto dos procedimentos a utilizar para chegar ao conhecimento ou à demonstração da verdade. O método de uma ciência depende do objeto mesmo desta ciência. Não se usa, no estudo dos seres vivos, os mesmos procedimentos que no estudo dos seres inorgânicos, e a química procede de maneira diferente da física. É assim como é a partir da definição e do objeto da filosofia que se pode deduzir o método que mais lhe convém. 2. O método filosófico é ao mesmo tempo experimental e racional. Temos definido a filosofia como a ciência das coisas por suas causas supremas. Daí segue-se que: - a filosofia parte da experiência. Se a filosofia é ante tudo « ciência das coisas » quer dizer, do homem, do mundo de Deus, deve-se começar por conhecer as coisas que queremos explicar; quer dizer que nosso ponto de partida será normalmente tomado da experiência. Com efeito, é partindo das propriedades das coisas que podemos conhecer sua natureza, e ditas propriedades às podemos descobrir mediante a experiência (vulgar ou científica). É também pelos efeitos da potência divina que nos podemos elevar até a Causa primeira do universo, seja para afirmar sua existência necessária, seja para determinar sua natureza e seus atributos, e seus efeitos são também objeto da experiência. Assim, o método filosófico será primeiramente experimental, neste sentido de que o ponto de partida da filosofia toma-se da experiência. - A filosofia enfoca, pela luz natural da razão, o além da experiência . Mas como a filosofia é, por seus fins, essencialmente metafísica, quer dizer que buscar ir além da experiência sensível e chegar até as causas primeiras, ela fará uso da razão, já que estas causas primeiras, o homem não as vê e não as toca com seus sentidos, nem as pode alcançar senão por uma faculdade superior aos sentidos. Por isso, o método filosófico é também um método racional. 3. A filosofia não usa senão da razão natural. Se a filosofia usa da razão, é unicamente da razão natural. Desta maneira ela distingue-se da Teologia sobrenatural, que se apóia, como sobre seus primeiros princípios, isto é, sobre as verdades reveladas, enquanto que a filosofia não usa senão as únicas luzes naturais da razão. Seu critério de verdade, não é, como na teologia, a autoridade de Deus revelador, senão a evidência de seu objeto: o ser das coisas ».
  • 7. 7 as perguntas e segundo uma conexão necessária, chega-se entrever em qual direção deve-se buscar uma resposta à pergunta sobre o sentido último (porque esta resposta, disse-nos Sócrates, está além daquilo do qual o homem pode tomar posse, ainda desde o ponto de vista intelectual). 0.1.4 À diferentes tipos de respostas correspondem diferentes tipos de « por quês ». Por outra parte, a pergunta « por que » pode receber muitíssimos tipos de respostas, segundo os diversos significados que ela pode ter: a. Eu posso perguntar: « por que eu posso dizer: isso es verdadeiramente assim? », e a resposta pode se referir às possibilidades seguintes: -- seja a minha possibilidade de dizer-o (portanto de conhecê-lo); resposta da qual se encarrega a EPISTEMOLOGIA (a filosofia do conhecimento) com suas diferentes ramas: (fenomenologia do conhecimento, crítica do conhecimento, filosofia da linguagem etc.); -- seja a possibilidade, de fato, de que isso seja assim (que seja possível, real, cognoscível), resposta da qual se ocupa a ONTOLOGIA (filosofia do ser, dos seres, segundo sua possibilidade de ser) nos sus diferentes níveis: • o nível dos entes particulares, considerados segundo suas diferenças especificas (ontologias « regionais »: filosofia DA NATUREZA ou cosmologia filosófica, DO HOMEM ou antropologia filosófica, DA ALMA HUMANA ou psicologia racional); • o nível do ser enquanto tal, da possibilidade de ser qualquer ente particular (ONTOLOGIA GERAL, que coloca questões como essas: « que significa ver- dadeiramente dizer ser? », « como es possível que algo exista? », « qual tipo de coisas são? », etc.). b. Mais profundamente ainda, eu posso perguntar: « em definitiva, por que existe algo em vez que nada? », « por que eu posso perguntar, isto é, formular questões? ». Portanto, a pergunta sobre o ser mesmo é uma pergunta sobre a pergunta. Ela implica que eu possa prever que uma resposta seja ao menos possível, que o ser (isso é, o fato de que algo exista) não seja um puro fato, inexplicável, que não possa ser interrogado, senão que possa encontrar uma explicação, um porque, um sentido último, que proporciona a última explicação possível. Esta pergunta e esta resposta pertencem ao âmbito da Metafísica. Sabemos que este nome foi dado por Andrónicus de Rodas (século I a. C.) aos livros de Aristóteles, que ele tinha situado « depois dos livros da filosofia natural, a física » (tà metà tà phusikà): é uma coleção de 14 livros cujo conteúdo pareceria seguir logicamente aquela seção dos livros da física. Aristóteles mesmo não tinha falado, para designar este conjunto, senão de Filosofia primeira ou de Teologia natural. Aristóteles, pelo contrário, a tinha chamada « filosofia primeira », porque ela fala do primeiro fundamento, da « causa primeira » da qual depende todo aquilo que é tratado nas outras partes da filosofia teorética. Porém, o termo « metafísica », em suo significado etimológico, es rico de sentido: se a « phusis » é toda dada da experiência, e a « física », a busca filosófica, a interrogação destes dados por parte do pensamento, a « meta-física » indica uma investigação ulterior que utiliza os mesmos métodos, mas que vai além daquilo que es dado (ou pode ser dado) na experiência. Esse além dos dados da experiência pode ser provisoriamente definido mediante três características:
  • 8. 8 5 -- a metafísica fala de tudo o que é (enquanto que a experiência, e portanto a « física », não se refere senão a entes particulares, específicos). -- ela investiga aquilo que faz realmente possível tudo o que é (por quanto que a experiência não pode constatar senão aquilo que é, e a « física » em que modo é « pensável », isto é que não está em contraste com as leis da lógica). -- ela espera encontrar assim o último fundamento, o sentido último de tudo aquilo que é, aquilo que responde ao último « por que » possível (porquanto a experiência é sempre factual, e a « física » não pode, portanto, senão descobrir necessidades de fato). 5 Cf. Gardeil, H-D., Initiation à la philosophie de Saint Thomas d'Aquin, T.IV- Métaphysique, Ed. Cerf, Paris 1966, pp.9-11 (tradução do Pe. Jacques D'Arcy S. pss): « Na linguagem filosófica universal o termo ‘metafísica’ designa a parte superior da filosofia, isto é, aquela que entende dar as razoes últimas e os princípios últimos das coisas.... O objeto próprio da metafísica será o ser enquanto tal e suas propriedades. Mas esta definição que reterá Santo Tomás de Aquino não ressalta imediatamente da leitura da obra de Aristóteles (Metà tà physikà). Um primeiro inventario permite descobrir nela, com efeito, três conceições sucessivas desta ciência e dos vínculos orgânicos que as relacionam entre si, mas que não se revelam a primeira vista. Santo Tomás, que tinha tomado plena consciência desta ambigüidade, apresenta da seguinte maneira, no Proemium do seu comentário à Metafísica de Aristóteles, esta tríplice conceição: 1. Por oposição às outras ciências, que não remontam senão às causas ou aos princípios mais imediatos, a metafísica aparece ante tudo como a ciência das primeiras causas e dos primeiros princípios. Esta definição vincula-se manifestamente à conceição geral da ciência, conhecimento pelas causas, que é um dos primeríssimos axiomas do peripatetismo. A denominação de « Filosofia primeira » relaciona-se a este aspecto da metafísica que domina no Livro A. 2. A metafísica afirma-se, logo, como a ciência do ser enquanto ser e dos atributos do ser enquanto ser . Visto subeste ângulo, apresenta-se como tendo o objeto mais universal de todos, as outras ciências não consideram senão um campo particular do ser. Esta conceição toma consistência no Livro G da coleção de Aristóteles e parece impor- se mais adiante. É a ela que responde propriamente o vocábulo de « Metafísica ». 3. Finalmente, a metafísica pode-se definir como a ciência daquilo que é imóvel e separado, à diferença da física e da matemática que consideram seu objeto sempre subum certo condicionamento da matéria. Desde este ponto de vista, a mais eminente das substâncias separadas sendo Deus, a metafísica pose revin dicar a apelação de « Teologia (natural) ». Este aspecto prevalece na obra aristotélica a partir do Livro E. Este prólogo de Santo Tomás é demasiado importante para não ser apresentado a continuação. A metafísica, à que pertence regentar todas as outras ciências, não pode ter evidentemente por objeto senão os mais inteligíveis e não pode ser senão a mais intelectual das ciências. Pois bem, pode-se considerar a mais inteligível desde três pontos de vista diferentes: « Em primeiro lugar, segundo a ordem do conhecimento. Com efeito, as coisas a partir das quais o intelecto adquire a certeza, parecem ser as mais inteligíveis. Assim, como a certeza da ciência dependendo da inteligência adquirisse a partir das causas, o conhecimento das causas bem parece ser o mais intelectual e, em conseqüência, a ciência que considera as primeiras causas é, segundo parece, ao máximo reguladora das outras. « Em segundo lugar, desde o ponto de vista da comparação da inteligência e do sen tido; já que, o sentido tendo por objeto os particulares, a inteligência parece diferir dele enquanto abrange os universais. A ciência mais intelectual é, pois, aquela que se refere aos princípios mais universais, os quais são o ser e o que é consecutivo ao ser tal como o uno e o múltiplo, a potência e o ato. Pois bem, ditas noções não devem permanecer completamente indeterminadas... nem estudiar-se numa ciência particular... Elas devem ser tratadas, pois, numa ciência única e comum que, sendo a mais intelectual, será reguladora das outras. « Em terceiro lugar, desde o ponto de vista mesmo do conhecimento intelectual. Se uma coisa tem virtude intelectiva pelo fato de ser desproveste de matéria, é necessário que seja a mais inelegível aquilo que está às más separado da matéria...Pois bem, as coisas mais separadas da matéria são aquelas que não abstraem somente de tal matéria determinada... senão totalmente da matéria sensível: e isso não só segundo a razão, como os objetos das matemáticas, senão desde o ponto de vista do ser, como Deus e os espíritos. A ciência que trata destas coisas parece, em conseqüência, ser a mais intelectual e gozar com respeito às outras do direito da primazia e da regência ».
  • 9. 9 6 0.1.5 A importância e a urgência da reflexão metafísica . Contrariamente àquilo que alguns têm dito, a metafísica não é um jogo para diletantes, tampouco uma arte para fugir da vida e de suas dificuldades; ela não é ilusória, nem mentirosa, nem sofisticada. Ela se radica verdadeiramente naquilo que há de mais natural na vida do espírito. Pelo mesmo fato, ela é o que se impõe da maneira mais profunda; já que se a inteligência está essencialmente ordenada ao conhecimento do ser, só o descobrimento do ser pode lhe permitir chegar a ser verdadeiramente si mesma. Mas pode-se provar que a inteligência está essencialmente ordenada ao conhecimento do ser? Para prová-lo, faria falta ir além deste conhecimento; pois, precisamente, o conhecimento do ser é o mais profundo, o mais primitivo, aquilo que pressupõem todos os demais. Então não se pode provar que a inteligência está essencialmente ordenada ao ser; mas isso não quer dizer que não seja verdade! Sabe-se que só as verdades secundárias podem provar-se, e que as primeiras, as mais fundamentais, não o podem. Há que descobrir-las como tais, e então elas impõem-se por si mesmas com toda evidência (é precisamente um dos objetivos da crítica do conhecimento mostrar que o ser é o fundamento do conhecer). Aqui é o caso. Desde o momento que a inteligência descobre aquilo que é enquanto ser, ela capta porque está radicalmente feita: está feita para conhecer a realidade existente naquilo que tem de mais próprio, no seu ser. O sinal disso, disse Aristóteles, é o gozo que temos ao ver, ao olhar (Cf. Métaphysique, A, 1, 980 a 21 ss); já que este gozo mostra que o conhecimento possui em si mesmo sua própria finalidade. Se for assim para o conhecimento visual, o conhecimento mais radical, o mais profundo, aquilo do ser possui ainda mais profundamente sua própria finalidade. Por conseguinte, conhecendo o que é o ser, a inteligência se descobre a si mesma, e se descobre essencialmente feita para isso. A última confirmação consiste no fato que só o conhecimento do ser permite ao homem descobrir a existência do Ser primeiro, Deus, e afirmar que esse Ser primeiro é, na realidade, é a fonte de todo ser. É então o conhecimento do ser que permite à inteligência do homem descobrir sua fonte primeira, e o que, na realidade, é o último. Por conseguinte, é este conhecimento metafísico do ser que permite a nossa inteligência descobrir-se enquanto inteligência. Sô a filosofia primeira permite a nossa inteligência ser plenamente ela mesma e se reconhecer como tal. Dessa maneira, a inteligência descobre sua Autonomia RADICAL: ela não depende imediata e conscientemente senão do ser, daquilo que é enquanto ser. A opinião dos homens e sua autoridade, por mais importantes que possam ser, não podem se impor diretamente a nossa inteligência e medir-la. Desde o ponto de vista filosófico, a autoridade dos homens é a última das razoes; não se pode filosofar realmente, nem tampouco entrar no conhecimento metafísico, ficando ao nível da opinião dos homens e dos filósofos. A opinião dos homens e dos filósofos pode ajudar a colocar um problema, ou indicar a rota a seguir, mas não pode ser a solução filosófica; faz falta voltar à realidade, à experiência daquilo que é. Porém, os homens vivem ao nível da publicidade (ou propaganda) e das opiniões dos demais, mas faz falta que nossa inteligência, para poder respirar plenamente e ser si mesma plenamente, compreender sua autonomia radical e viver-la. Se não, ela se enfraquecerá progressivamente, por falta de exercício intelectual ao nível que lhe é próprio. Pode-se afogar intelectualmente sub o peso das opiniões Ciência das primeiras causas e dos primeiros princípios, quer dizer sabedoria, ciência do ser enquanto ser, ciência daquilo que é absolutamente separado da matéria, tal se revela a nos a metafísica... Assim a elaboração aristotélica nos aparece, ao mesmo tempo que uma obra de especulação rigorosa, como o ponto de chegada e a síntese da reflexão sobre os princípios dos três séculos que o têm precedido ». 6 Sobre este aspecto da metafísica, tenho resumido e traduzido o pensamento do Padre M. D. Philippe na sua obra titulada: ¿UME PHILOSOPHIE DE L'ÊTRE EST-ELLE ENCORE POSSIBLE?, t.1 (Signification de la métaphysique), ed., P.Téqui, Paris 1975, pp.142-145.
  • 10. 10 dos demais; uma amplíssima erudição histórica pode perfeitamente impedir à inteligência viver enquanto inteligência. Só o descobrimento do ser permite à inteligência captar sua autonomia radical, isso lhe revela também sua fraqueza congênita. Feita para o ser, ela permanece, porém, no seu exercício, ligada à imaginação e, por esta, ao mundo sensível que com freqüência lhe impede se elevar até o ser. É este mesmo perigo, característico do descobrimento do ser, que nos faz entender quão importante é aceitar a ajuda daqueles que têm penetrado mais profundamente no descobrimento metafísico, de olhá-los como amigos e companheiros de busca, capazes de nos indicar algumas pistas, para evitar nos perder e, assim, perder menos tempo. Quem conhece mais profundamente sua autonomia é mais livre e aceita mais facilmente esta ajuda do que aquele que, não tendo ainda descoberto a verdadeira fonte de sua autonomia, tem sempre medo de ser influenciado. O conhecimento metafísico é, por conseguinte, o único que permite a nossa inteligência descobrir sua finalidade própria e última, aquela pela qual está feita: a contemplação. O conhecimento metafísico do ser é, pois, para nossa inteligência, absolutamente vital; sem ele, nossa inteligência fica errante e, sem descobrir sua finalidade, ela se arrisca a se considerar como inútil, vã, o que pode conduzir-la ao suicídio. Descobrindo a existência do Ser primeiro, do Bem primeiro, supremo, o conhecimento metafísico nos permite captar que nossa alma espiritual é imortal; e, dessa maneira, proporciona à filosofia moral seu fundamento último. Permite-lhe também à filosofia moral se desenvolver em filosofia religiosa; pois o descobrimento da existência do Ser primeiro, Criador de nossa alma espiritual, exige de nossa parte a adoração. O conhecimento metafísico do ser implica o verdadeiro descobrimento do ato e da potência, descobrimento que, por sua vez, permite captar o que é movimento, o que é a operação vital o, mais radicalmente ainda, o que é a alma relativamente ao corpo. O conhecimento metafísico do ser não pode ser, pois, algo supérfluo, ou secundário; e ainda muito menos num mundo que tende a relativizar tudo, sendo cada vez mais dominado pelo progresso das ciências e das técnicas. O progresso das ciências, com efeito, não espiritualiza realmente ao homem, precisamente porque o mantem sempre submergido num mundo sensível e quantitativo. Então, é necessário que o homem compreenda o perigo que corre seu espírito: um perigo de anemia progressiva num ambiente que não pode já vivificá-lo profundamente. Anemiando-se cada vez mais, ele toma o risco de não ter já suficiente vigor para reagir e, deste modo, deixar-se inteiramente dominar. Em lugar de ter a força de remontar até sua fonte para que ela seja si mesma e possa descobrir sua significação profunda, a inteligência deixa-se levar rio a baixo, para « fazer como todo o mundo », para seguir a moda atual renunciando buscar sempre a verdade - e sabemos que a moda intelectual é a mais terrível das modas que exista! 0.1.6 CONCLUSÃO: quem faz metafísica, quem coloca também só o problema metafísico, pressupõe, portanto, que o ser (simplesmente o fato de que algo exista) não seja um puro fato, inexplicável, mas algo que é fundado e tem um sentido, que pode ser explicado por nosso pensamento; em síntese, que esse fato não se reduz àquilo que pode ser cientificamente constatável ou analisável, mas que tem uma dimensão mais profunda que pertence ao âmbito do valor e do dever-ser. A conseqüência que segue, pois, naturalmente da metafísica (e só dela) é, portanto uma filosofia do dever-ser, uma ética. Que o pressuposto da metafísica seja legítimo pode-se provar somente fazendo metafísica, e fazendo-la com êxito; igual como não se pode provar a possibilidade do movimento (contra Zenón) senão caminhando...
  • 11. 11 Uma precisão sobre a nomenclatura impõe-se: o termo ontologia remonta ao século XVII, e foi, num primeiro momento, usado como sinônimo de metafísica. O filósofo racionalista Christian Wolff (1679-1757), quem teve uma influência considerável sobre a neo-escolástica, distingue a « metafísica geral » ou « ontologia », --que trata do ser enquanto tal--, da « metafísica especial » que ele divide, de acordo às três grandes espécies de ser: seja em « cosmologia racional », em « psicologia racional » e em « teologia natural ». Certamente, esta divisão é pouca aprovada, por quanto Deus não constitui uma « espécie de ser », senão que, ao contrário, é seu fundamento e seu sentido último. Aristóteles o tinha compreendido perfeitamente, assinando a sua « primeira filosofia » o nome de « theologikè » (ciência do divino). 0.2 NO ÁMBITO DO SABER HUMANO O que nos temos visto pode-se enunciar de maneira mais técnica, recorrendo à doutrina clássica dos três graus de abstração 7 de Aristóteles. 7 Cf. Gardeil, H-D., INITIATION À LA PHILOSOPHIE DE SAINT THOMAS D'AQUIN, T.VI, éditions du Cerf, Paris 1966, pp.17-19: 1. Origem da doutrina da separação. A metafísica é a ciência daquilo que é absolutamente separado da matéria. Esta doutrina é o ponto de chegada de um longo esforço de reflexão filosófica. Entre os Gregos, parece que é Anaxágoras a quem convém atribuir a honra de ter, o primeiro, sepa rado o espírito da matéria. Sem duvida, o “NOUS” que propõe a nossas meditações, não se distingue clara mente ainda dos objetos corporais, e sua ação sobre estes permanece ainda mal definida, mas um primeiro passo no sentido da separação de um elemento superior realizou-se. Platão ao chegar é quem, para assegurar ao conhecimento intelectual um objeto estável e idêntico, postulará o mundo das idéias, isto é, realidades puras de toda matéria, às quais a verdadeira ciência poderá referir-se. Sabemos que Aristóteles, ao mesmo tempo em que acolhia as idéias de Platão, por fidelidade maior à experiência, as colocou na matéria: as coisas corporais são por sua vez matéria e forma. Porém, com ele encontrarão-se ainda substâncias inteiramente separadas, e sobre tudo, na sua filosofia do conhecimento, o princípio de abstração da matéria conserva todo seu valor: a inteligência, faculdade espiritual, não pode diretamente alcançar a « quiddidade » ou a essência abstrata; e um objeto é tanto mais inteligível em si quanto está mais libera do das condições da matéria. O fundamento da intelecção, dirá Santo Tomás de Aquino, é a imaterialidade, dando a estas afirmações todo seu alcance. Fica por precisar como subeste ângulo apresenta-se o conhecimento metafísico! 2. Os três graus de abstração. Contemplando o conjunto das ciências especulativas, Aristóteles tem distinguido três tipos ou três graus de imaterialidade nos objetos para conhecer e, correlativamente, nas operações intelectuais que lhes são proporcionadas. Estes três graus correspondem aos três grupos admitidos por todos e que são: as ciências físicas, as matemáticas e a metafísica. A lógica nos ensina que cada um destes graus caracteriza-se em função da matéria noética abandonada (deixada de lado) pela operação abstrativa ou, inversamente, em função do aspecto material que permanece implicado nas definições das noções mandando as demonstrações. Assim, ao nível da especulação física, se abstrai (extrai) da matéria, enquanto ela é principio de individuação, a “materia signata”, mas conserva-se a matéria que está na raiz das qualidades sensíveis, quer dizer a “ materia sensibilis”; conservando as qualidades guarda-se, pelo mesmo fato, o aspecto da mobilidade das coisas. Ao nível (grau) matemático, se abstrai desta matéria sensibilis tudo, conservando este fundamento material da quantidade que o peripatetismo tem denominado “materia intelligibilis”. Finalmente, na metafísica se abstrai absolutamente toda matéria e todo movimento; estamos então na imaterialidade pura que compreende, por sua vez, as realidades espirituais (Deus e os anjos), e as noções primeiras (o ser, os transcendentais, etc.), estas últimas sendo independentes dos corpos neste sentido de que se podem realizar fora deles. (Sobre esta doutrina geral dos graus de abstração em Santo Tomás, ver: Metafísica, VI, I.1.; De Trinitate, q.5, a.1 e 3; Ia Pars, q. 85, a.1 ad 2). 3. Características próprias da abstração metafísica. Tenderemos a ocasião mais adiante, estudando a noção de ser, de precisar o tipo particular desta abstração. De maneira um pouco superficial poder-se-ia representar a atividade mediante a qual o espírito se eleva sucessivamente
  • 12. 12 0.2.1 Todo saber nosso é necessariamente abstrato, pelo simples fato de usar (ao menos implicitamente) conceitos universais abstratos. Todo saber transcende o dado imediato, concreto, da experiência singular por algo universal, comunicável, « é válido » além desta experiência determinada e sempre fugitiva. Nossa linguagem, que expressa a experiência, apresenta-se sempre inevitavelmente universal e abstrata. 0.2.2 Num primeiro grau, não se abstrai (ou extrai) das experiências concretas senão aquilo que é comum (ou que tem qualidades comuns) a varias delas, sem considerar as circunstâncias completamente individuais de cada uma delas. Assim se constituem, por exemplo, a medicina, a partir da observação de algumas regularidades que se sucedem inevitavelmente nos diversos casos de enfermidade; a história (como ciência), observando as conexões entre os fatos como simples crônica); a crítica literária ou artística, intentando formular um juízo segundo critérios univer- salmente admitidos (e, portanto válidos para todos e criticáveis por todos), e não somente segundo o gosto pessoal do crítico, etc. 0.2.3 Num segundo grau, se abstrai (ou extrai) dos fenômenos observáveis aquilo que pode ser submetido a uma operação racional: seu aspecto quantitativo é objeto de uma elaboração matemática. É mais abstrato, mais inteligível, mais universal e mais « impessoal ». Deste jeito constituem-se as ciências propriamente ditas, que intentam, de maneira ou outra, encontrar leis matematicamente formuláveis acerca de seus objetos. Porem, a matemática permanece ainda vinculada à imaginação, ao imaginável, à representação do espaço (geometria, mecânica pura, etc.) ou do tempo (« contar » sucessivamente...). Surge o interrogante de saber se não existe um grau mais « abstrato » de conhecimento que se situe imediatamente acima de todo aquilo que é sensível e imaginável e sobre qualquer experiência possível, no âmbito do inteligível puro. 0.2.4 Este terceiro grau de abstração é necessário para fundar ainda as ciências matemáticas mesmas: essas supõem e implicam a constância e a seletividade de suas regras e, em conseqüência, uma necessidade absoluta (« é necessariamente assim » e não somente: « é sempre assim ») que não pode se fundar sobre a experiência, nem tampouco ser extraída (a experiência não nos oferece senão a constância dos fenômenos, não sua necessidade). Esse fundamento da possibilidade mesma das ciências não poderá-se descobrir considerando os fatos, senão sua « pensabilidade », isto é, sua inteligibilidade (eu devo os considerar como ordenados, como carregados de sentido, susceptíveis de ser considerados segundo regras imutáveis, etc.). Esse é propriamente o conhecimento de tipo metafísico8, que não prolonga nem amplia o discurso das ciências, mas situa-se acima deste: perguntando-se de qual modo este mesmo discurso é simplesmente possível. 0.2.5 Deste modo vemos de qual maneira o discurso metafísico, ainda que não se refere a nenhum « objeto » de experiência (sensível, imaginável, descritível), porem não é um discurso vazio, nem carente de sentido (« meaningless », como dizem os analistas da linguagem). Esse aos três graus de imaterialidade como uma operação do mesmo gênero uniformemente repetida, enquanto que entre os três procedimentos existe de fato uma simples analogia. Em cada caso, trata-se de um desprendimento da matéria, mas este não se realiza da mesma maneira. Um termo especial, aquele de « SEPARATIO », é reservado por Santo Tomás para designar a abstração metafísica. Pode-se dizer porém, desde agora, para evitar se perder, que « abstrato », « separado » quando relacionam-se ao nível da reflexão metafísica, não significam de nenhuma maneira isolado ou separado da existência, senão só liberado das condições materiais desta existência. O ser, objeto da metafísica, é eminentemente concreto. O metafísico é, em sentido pleno da palavra, o mais realista dos sábios, seja que considere desde o ponto de vista do ser a universalidade das coisas, seja que se eleve aos objetos mais reais: os espíritos puros e Deus. 8 Cf. Forest, A., DU COMSENTEMENT À L'ÊTRE, p.265: « Nos elevamo-nos à metafísica, quando não rejeitamos pensar expressamente aquilo que é a condição graças à qual pensamos todo o resto ».
  • 13. 13 discurso tem um significado preciso, enquanto coloca perguntas, que não se podem evitar ou não formular, buscando sempre as respostas. Em conseqüência, não existe um saber metafísico preconstituído, uma doutrina metafísica transmissível e comunicável tal qual (que se possa apreender de memória). Igual que a matemática não é suficiente « conhecer de memória » as fórmulas, senão que es preciso saber-las deduzir e demonstrar, com maior razão, não pode-se indicar no ensinamento da metafísica mais do que um método, um « itinerário de pensamento » que cada um deve seguir por conta própria. Neste curso indicaremos itinerários de pensamento já assinalados na história do pensamento metafísico ocidental, desde os gregos até a idade media e os modernos, tratando de re-elaborar os discursos e os razoamentos de alguns grandes mestres do pensamento. 0.2.6 O ponto de partida de dito discurso metafísico será qualquer ocasião, qualquer experiência, na qual jorra ou pode aparecer uma pergunta de fundo, uma interrogação; isto é, tudo aquilo que se poderia chamar os lugares do estupor, da admiração: o absoluto do imperativo ético (igual como para Sócrates e Kant), a beleza (igual como para Platão), nossa capacidade de conhecer a verdade (igual como para Aristóteles e Tomás de Aquino), a angustia existencial (igual como para Kierkegaard, Heidegger, Sartre ou Marcel), a pessoa humana (igual como para Munier, Nesdoncel, Marcel, etc.). Isto significa que a metafísica, longe de ser um discurso « escuro », um discurso « entre as nuvens », « fora da vida concreta », pelo contrário, é o discurso mais humano que há. No fundo, todo homem de acordo a seu jeito « é metafísico9 », porque é capaz de se maravilhar, de se fazer perguntas, ainda radicais, e cada um do seu modo, encontra também respostas e tem seus pontos de vista sobre o « sentido último ». Neste curso, trataremos de clarificar esta metafísica implícita10, vivida (« transformando aquilo vivido em pensamento »: Jean Lacroix), de expressar num discurso conceitual rigoroso, controlável, criticável e comunicável. 0.3 NO ÂMBITO DA EXISTÊNCIA CRISTÃ 0.3.1 A parte mais importante desta metafísica vivida é, para nos cristãos, nossa fé cristã e as respostas sensatas que ela nos dai. Pertence, portanto ao âmbito metafísico; as afirmações de fé referem-se a verdades, ou a realidades que se situam além de toda experiência possível (por exemplo, que o mundo é criado por um Deus de amor, que Jesus Cristo é o Filho de Deus, etc.), e estas afirmações contêm um sentido último, diante do qual não é possível nem necessário colocar ulteriores questões ou interrogantes. Pertencendo ao âmbito do mistério revelado, é claro que esta metafísica vivida do cristianismo não poderia ser explicada nem « recuperada » por meio de um discurso filosófico. Ainda que pode-se perfeitamente ser cristão sem « fazer metafísica », porem, a fé cristã por duas razões exige11 o discurso metafísico da filosofia. 9 Cf. a obrazinha do Pe. Régis Jolivet, titulada EL HOMBRE METAFÍSICO, colección (Yo sé-yo creo), Libreria Arthème Fayard, Paris 1958. 10 Cf. M. Merleau-Ponte, Sentido e no sentido, pg.188ss: « A consciência metafísica não tem outros objetos senão a experiência quotidiana: este mundo, os outros, a história humana, a verdade, a cultura. Mas, em vez de considerar- los já existentes, como conseqüências sem premissas, e como se procedessem de si mesmos, ela (consciência) redescobrir sua estraneidade (extrañeza) fundamental e o milagre de sua aparição. Assim entendida, a metafísica é o contrário do sistema. Se um sistema é uma disposição ordenada de conceitos que faz imediatamente conciliáveis, compatíveis entre si todos os aspectos da experiência, dito sistema suprime a consciência metafísica ». 11 Recomenda-se fortemente para ampliar este aspecto ler o capítulo titulado filosofia, cristianismo, monacato de H.U. Von Balthasar en ENSAYOS TEOLÓGICOS: Sponsa Verbi T. II, Editorial, Cristiandad, pg.405-449.
  • 14. 14 0.3.2 Para possuir a fé, o homem deve ao menos ter descoberto a dimensão metafísica de sua existência; não tudo se reduz aos dados da experiência, ao quotidiano, ao factual, mas existem questões que se situam além desta mesma experiência. Mas, na nossa civilização industrial e post- industrial, esta dimensão metafísica é com freqüência esquecida, obstaculizada, e inclusive negada; portanto é pre-evangelizar, saber indicar os « lugares do assombro » e os acessos que eles abrem à metafísica (por exemplo, de que modo toda crença religiosa pressupõe que tenha sido realizada a experiência de um amor pessoal do pai ou da mãe). 0.3.3 Para « expressar » nossa fé, para articular-la conceitualmente (e, portanto, de modo que possa-se falar também com os não-crentes) é necessário uma « linguagem » conceitual que não se limite só aos dados da experiência, senão que também seja capaz de dizer aquilo que está além da mesma, isto é, uma linguagem de caráter metafísico. Por conseguinte a metafísica é, por sua vez, algo muito pessoal que alcança o fundo mesmo de nossa existência, mas que não pode ser feita « de maneira pessoal » ou « existencial » (isto é referendo-se, por exemplo, à vivência imediata), senão logicamente da maneira mais « impessoal » possível, com um esforço de trabalho lógico e conceitual (o « trabalho do conceito » daquele que fala Hegel).
  • 15. 15 CAPÍTULO I: MODELOS DE APROXIMAÇAO À METAFÍSICA 1.1 SÓCRATES E O VALOR ÉTICO INCONDICIONADO Com Sócrates, e não com os pré-socráticos, começa a grande tradição da metafísica grega, que continuará interrompida até o medievo. Depois da crise sofista (utilitarismo e relativismo dum discurso, "logos", reduzido a ser somente um falar persuasivo), Sócrates, ainda adotando a perspectiva antropológica (e não mais a cosmológica) dos sofistas, aponta sobre a possibilidade do homem de conhecer um absoluto, um indizível, e sobre a necessidade de orientar a própria conduta moral segundo este absoluto. Como é já sabido, Sócrates não tem deixado nada por escrito; portanto, através dos diálogos de Platão, sobre tudo os do primeiro período, nos devemos reconstruir sua figura e seu ensinamento (não sua doutrina, porque dá a impressão de não ter tido). A personalidade de Sócrates se revelará então mais importante do que seu ensinamento para a metafísica. 1.1.1 Sócrates, em geral, aparece sobre tudo como um verdadeiro educador; enquanto que a educação grega clássica apontava de modo particular à destreza física (esportes, "arte" = técnicas), Sócrates se preocupa unicamente da psychè, isto é da "alma", daquilo que governa ou orienta os atos12. Esta educação da alma se desenvolve essencialmente segundo duas etapas: -- a primeira consiste no libertar a alma da ignorância e de uma falsa aparência de saber ("dóxa") por meio duma crise purificadora13, com o fim de estimulá-la à busca da verdade, ao aprofundamento ulterior do saber (cf. a conclusão dos diversos diálogos: « Disso nos voltaremos a falar outra vez »). -- a segunda etapa, "maieutica"14 fará descobrir ao interlocutor e ao leitor do diálogo um saber que, sem o saber ele, já possuía. Saber de ordem prática que serve para dirigir os atos ("areté", traduzido imperfeitamente como "virtude"). 1.1.2 O diálogo de Eutifrón pode servir de exemplo15. O sacerdote Eutifrón, enquanto acusava a seu pai de ter deixado morrer por negligência a um delinquênte, acusação que ele considerava seu dever religioso ("hosión"), encontra frente ao tribunal a Sócrates, acusado de impiedade por Melito. Os dois, Eutifrón e Melito, portanto, devem saber exatamente o que é e o que no é religioso ("hosión"). Intenta-se de definir e fixar este saber num diálogo que se desenvolve através das seguintes fases: - 1ª O religioso deve sempre ser igual, idêntico a si mesmo e sempre diferenciado do seu contrário (5c-d) por um caráter único, pelo qual cada ato ímpio é ímpio e cada ato religioso é religioso (6d-e). - 2ª Eutifrón define o religioso metodologicamente: consiste em agir seguindo o exemplo dos Deuses (5d-a), é « aquilo que é grato aos Deuses » (6e), mas Sócrates não aceita estas "historietas" (6a-c), e, por outra parte, os mesmos Deuses (mitológicos) estão divididos entre si (7b; 8a-b). 12 Cf. APOLOGÍA, 29d-30b; CÁRMIDES, 154d-e; ALCIBÍADES, 128a-130e. 13 Cf. SOFISTA, 230b-c. 14 Cf.TEETETO, 148e-150d. 15 Olhar o comentário de Romano Guardini, LA MORTE DE SÓCRATES.
  • 16. 16 - 3ª Semelhante dissensão é possível, porque não se trata de fatos verificáveis, senão de valores (7b-d); e é necessário demais acrescentar que a discussão não se refere à consideração desses valores em si, senão da consideração dos atos particulares, enquanto correspondem ou não a esses valores (8d-e). - 4ª Se para evitar a dificuldade, se define o religioso como aquilo que é « aprovado por todos os Deuses » (9d-e) o problema se volve a situar sobre o fundamento deste consenso; « aquilo que é religioso ¿é aprovado pelos Deuses porque é religioso, ou mas bem é religioso pelo fato que os Deuses o aprovam? » (10). Agora, já que é claro que uma coisa é amada pelo fato de que é amável, e não é amável porque ela é amada (de fato), deduz-se então que o religioso é amado pelos Deuses devido a sua própria natureza; isso se impõe, por dizer-o assim, aos Deuses mesmos, e será necessário, portanto, definir esta mesma natureza, esta essência ("ousía" isto é o ser) do religioso (10d-11b). - 5ª A definição que se intenta segundo o gênero e a espécie ("uma espécie de justo") recorre novamente, mediante uma longa volta (« aquilo que é correto segundo o ritual »), « àquilo que é grato aos Deuses » (15a-e) para definir a espécie de justiça da qual se trata: o círculo vicioso se fecha. - 6ª Neste ponto Eutifrón abandona o discurso, ainda que Sócrates estes comvencido de que ele sabe perfeitamente porque ele atua assim (estando próximo a acusar a seu pai :15d). 1.1.3 Este diálogo nos faz assistir em pleno à crise da religião mitológica enquanto norma de comportamento: porquanto, ela resulta incapaz não só de fixar normais de ação que se-soster frente à razão (cf. 2º), senão que conduz demais a Eutifrón a uma ação que será desaprovada pela maior parte dos homens (6a) e, a Melito, a acusar a Sócrates. Sócrates no contrapõe a esta religião outro tipo de saber; nem o juízo da maior parte dos homens, nem uma simples definição em nível da manipulação da palavra à maneira dos sofistas (cf. 5º); senão que se remite àquilo que se encontra no fundo mesmo da religião mitológica: isto é, uma lei que se impõe também aos Deuses (cf. 4º) e que jorra da natureza, do ser mesmo que se trata de julgar (cf. 1º, 3º, 4º). A natureza mesma do "religioso" não se alcança expressar, definir (também o discurso se mostra inadequado frente a esta realidade), mas não é algo sem importância; na base mesma do diálogo está a firme convicção de que o religioso existe, com sua natureza bem definida (que se opõe de modo determinado e imutável ao ímpio) e que, enquanto tal, é norma para a ação. Com efeito, é no agir de maneira decidida e definida onde Eutifrón, Melito e Sócrates mostram que eles sabem o que é religioso e como se deve comportar -- em absoluto, até a morte -- o religioso, mais bem que ímpio. Existe, portanto, um saber certo, inserido na ação, um saber "vivido", que não se deixa expressar ou explicar, porque ele se refere precisamente àquilo que se encontra além daquilo do qual pode-se dispor com o discurso (daquilo que se pode "manipular" expressando-se de uma maneira ou de outra): uma norma absoluta que se impõe também aos Deuses míticos, isto é, que dá fundamento ao mito mesmo. N.B.: - 1º A ironia socrática (dizer o contrário daquilo que se quer dizer, ou mais bem, utilizar a linguagem comum de maneira tal que sua inadequação para expressar o que se pretende dizer sobressalta aos olhos de todos) é um meio para dizer de algum modo, ou melhor, para fazer
  • 17. 17 entrever precisamente este indizível que Sócrates quer mostrar. Para que a ironia não seja uma simples caricatura, ela deve ser, por assim dizer-lo, recíproca ou humilde: por quanto, aquele mesmo que utiliza a ironia deve deixar-se questionar. - 2º No diálogo "Eutifrón", a ironia se desenvolve, por dizer-lo assim, sobre dois níveis: deixando entrever que o saber a propósito do religioso que possuem Eutifrón e Melito é falso; Platão insinua que é Sócrates, o acusado, quem conhece a verdadeira religiosidade. Nos outros diálogos do mesmo período a coisa é mais simples. É evidente que Laqué, famoso e valioso general, sabe efetivamente que é a coragem, ainda que seja incapaz de expressar-lo16; que Cármides, adolescente de boa família excepcionalmente dotado para a filosofia, possui a sabedoria, ainda que não alcança definir-la17; Lisis, jovem fascinado pela amizade, sabe que é um amigo, ainda que no alcance precisá-lo18. A tese socrática do saber implícito e inexplicável se mostra com mais clareza. 1.1.4 Qual é para nos hoje, para nossa metafísica, o valor desta via socrática? Ela nos faz compreender três coisas: - que existe um saber inexprimível, que nosso saber não termina onde encontra seus limites nossa possibilidade de discorrer, senão que existem algumas certezas que se possuem sem ter a possibilidade expressar-las e de explicar-las, nem de justificar-las com um discurso lógico. - que este saber é implícito em nosso modo de agir; que nos exercemos na prática um saber que não somos capazes de explicar teoricamente, porque, enquanto seres humanos, não atuamos cegamente, mas sabemos o que fazemos (aqui está a verdadeira substância da famosa tese socrática de que o vicio não é mais do que erro ou ignorância). - que, pelo contrário, esse saber inexprimível é norma e regra de nossa ação; nos apresenta o absoluto dos valores da obrigação moral. A moral, consiste em dizer o saber que existem valores e normas que devem ser absolutamente respeitados, é portanto, a primeira aproximação que se abre para nos e para qualquer homem ainda além da experiência, além de tudo o que se pode dizer ou explicar com um discurso puramente teórico. Isto significa, por outra parte, que toda metafísica, qualquer que seja, possuirá inevitavelmente um caráter prático, moral, ainda político (como Sócrates que colocava seus interrogantes com um objetivo evidentemente político: com vista a formar bons cidadãos numa situação de crise). 1.2 PLATÃO E O AMOR À BELEZA Platão persegue com seu pensamento a mesma finalidade política de Sócrates: a de promover o bem-estar da cidade por meio da educação; mas, procurando fazer-lo com um ensinamento mais continua e sistemática, e através obras escritas, Platão é conduzido a encontrar repostas às questões de Sócrates que pertenciam abertas, e transformar em doutrina metafísica a pura busca socrática. O "explicar" o saber descoberto por Sócrates com a teoria da preexistência da alma e da reminiscência ("anamnesis"19). Existem sobre tudo três doutrinas platônicas que nos interessam: 16 Cf. LAQUES, 193e-194b. 17 Cf. CÁRMIDES, 175e-176a. 18 Cf. LISIS, 223b. 19 Cf. MENÓN, 82-86. Cf. Mondin, B., DIZIONARIO ENCICLOPEDICO DI FILOSOFIA TEOLOGIA E MORALE, ed. Massimo, Milano 1989; cf. o termo « anámnesis », pg.31: « Anámnesis significa reminiscência, como o quer dizer a etimologia grega anámnesis. Está vinculada à filosofia platônica, onde o conhecimento intelectivo do homem explica-se como uma reminiscência de um conhecimento já adquirido pela alma numa vida anterior, quando, antes de tornar-se pesada e cair num corpo, tinha tido uma visão direta das Idéias no "Iperuranio". A
  • 18. 18 1.2.1 A DOUTRINA DAS "IDÉIAS" pode remontar-se, porquanto a terminologia, a Sócrates mesmo20, onde "idéia" indica uma certa configuração visível (de "ideîn"21, ver) fixa e característica, à luz da qual se reconhece uma coisa (por exemplo, uma virtude) por aquilo que ela é. Em Platão a idéia chega a ser uma realidade ontológica, isto é, uma espécie de ser, que se pode explicitar da maneira seguinte: a. Um protótipo (não só um exemplar), ao qual deve-se assemelhar todos os seres (ações virtuosas, figuras geométricas, existentes) de uma ou outra espécie; é, portanto, o uno (isto é, a natureza, o caráter único) que funda (realmente, ontologicamente, explicando o porque é assim) o múltiplo (isto é, as diversas ações religiosas, os diversos triângulos, etc.). É o dever- ser, então, a norma ontológica que se encontra acima dos fatos da experiência, do qual derivam estes fatos. Esse protótipo é caracterizado como: b. "Em si mesmo", "sempre o mesmo" ("auto to...", "auto kath'hauton": o mesmo em si mesmo = "é propriamente isso"), querendo significar com isso que não deve ser definido nem em relação com aquele que conhece (contra os sofistas), nem como variável (agora assim, agora diversamente, contra Heráclito) senão que é "imóvel" (isto é, não está sujeito ao cambio, entendendo por "movimento" --"kínêsis"-- qualquer espécie de mudança ou de devir). Platão recupera com isso alguns traços do ser imóvel de Parmênides. c. A idéia se denomina também "o verdadeiro ser", "a realidade mais real" ("ontôs on"), em oposição à simples aparência ("dóxa"), que recobre agora todo o sensível, todo o mundo das experiências. Pelo contrário, portanto, a nosso modo corrente de falar ("não é mais que uma idéia"), a idéia é, para Platão, algo mais real, mais existente do que as coisas materiais e do que os dados da experiência. Ela é tal enquanto é imóvel, não sendo o devir senão uma maneira insuficiente de ser (o que devem não é ainda plenamente). Nos trataremos de compreender este modo de ser de Platão, lembrando que toda norma verdadeira para nosso agir deve ser "realista", isto é, adequado à realidade. O dever-ser impõe sua lei também ao ser; é, portanto, mais real do que o realizado na experiência. Neste sentido, a idéia platônica é: experiência sensível não produz as idéias na mente, mas serve, porém para acordar-las do recordo. Proveniente da tradição órfico-pitagórica, a doutrina da anámnesis foi adotada por Platão para demonstrar, no FEDÓN, a tese da imortalidade da alma e para explicar a formação do conhecimento filosófico e matemático. Uma das doutrinas mais extraordinárias da filosofia platônica é sua doutrina da reminiscência. Ela afirma que nosso conhecimento não é outro que um recordar. A ocasião de este recordar é encontro com as coisas deste mundo material, as quais não são senão copias das Idéias. O encontro com as coisas deste mundo desperta na alma o recordo (lembrança) das Idéias; p.ex. vendo as coisas belas desperta-se em nos a Idéia de Beleza; vendo as coisas justas, desperta-se em nos a Idéia de Justiça, etc. Além disso, no plano geral do sistema platônico, a doutrina da reminiscência desempenha três funções muito importantes: proporciona uma prova da preexistência, da espiritualidade e da imortalidade da alma; estabelece uma ponte entre a vida anterior e a vida presente; e dá um valor ao conhecimento sensitivo, enquanto se lhe reconhece a este o mérito de suscitar o recordo das Idéias ». 20 Cf. EUTIFRÓN, 5d; 6d.: "Minha idéia": "um caráter único". 21 A idéia significa primeiramente o aspecto manifesto de uma coisa segundo seus traços característicos; em segundo lugar, designa sobre tudo o aspecto interior ou conteúdo essencial que nele se revela. Enquanto o conceito segue o ser das coisas e representa sua essência, a idéia lhe precede como eterno e perfeito arquétipo, conforme ao qual têm sido elas conformadas. Assim a idéia é essencialmente causa exemplar ou arquetípica. Apreendida pelo entendimento, converte-se em norma (cânon) que serve para julgar as coisas que se lhe apresentam ou se guia na realização da idéia. Platão considerará as idéias como realidades independentes supramundanas que representam um reino próprio por debaixo da idéia suprema do Bem.
  • 19. 19 d. "Supra-sensível", isto é, algo distinto daquilo que pode ser objeto de experiência, puramente inteligível, que não se vê senão com o pensamento (não com os sentidos). Com tudo isto Platão nos ensina que existe algo real mais real do que aquilo que nos consideramos habitualmente como a única e sola realidade; mais real do que o que se apresenta a nossos sentidos, do que pode ser visto, ou escutado, etc. (também mais real do que pode ser percebido através de experiências supra-sensíveis, parapsicológicas ou espiritistas; a idéia platônica não se conhece senão com o puro pensamento). Esse « mais real do que o que nos vemos habitualmente », é descrito de maneira mais clara por Platão na famosa alegoria da caverna22: desde as sombras projetadas sobre a parede pode-se remontar aos objetos dos quais estas são as sombras e, à luz do fogo que as projeta, finalmente, ao sol que é ainda mais "luminoso" do que o fogo. 1.2.2 A IDÉIA DO BEM 23 é, por dizer-lo assim, a idéia das idéias, isto é, o princípio supremo do qual estas mesmas idéias tomam seu próprio valor e sua inteligibilidade. De fato, nenhuma virtude é virtude, nenhum prazer é prazer, se não é um prazer "bom", uma maneira de agir "boa"24, e para conhecer-lo é necessário, em primeiro lugar, conhecer o bem enquanto tal25, conhecimento ante tudo necessário para aqueles que são responsáveis de governar a cidade26. A idéia do Bem é, portanto, o principio supremo de unificação do múltiplo; e já que as idéias não são somente princípios de conhecimento (aquilo pelo qual se reconhece uma ação como justa, etc.), senão princípios ontológicos (uma ação é justa por sua semelhança com a idéia de justiça, etc.), a idéia do Bem é o principio ontológico supremo: aquilo do qual tudo o que é (bom) toma seu ser, seu valor; o que explica, em última instância, o "porque" de tudo o que é. Enquanto tal, a idéia do Bem está « além daquilo que pode ser » ("epékina tês ousías"27) e "reina" sobre o mundo inteligível das idéias28. A idéia do Bem assume assim traços divinos, e a metafísica, posto que leva a conhecer por meio do discurso (o "logos") esta idéia do Bem, se converte numa "teologia" (o nome mesmo desta ciência remonta ao mesmo Platão). Agora, enquanto visível à inteligência e ao pensamento, o Bem se identifica com o Belo (a justa medida, a harmonia, a ordem interna do ser); tanto mais facilmente por quanto que para os Gregos virtude e bondade constituem uma mesma realidade ("kalokagathia" - "beleza-bondade", "uma bela ação"), enquanto o vicio é "feio", "vergonhoso". 1.2.3 Para chegar ao conhecimento da idéia do Bem, para "vê-la", a "psychè" do homem deve sair deste mundo dos sentidos e da aparência (de acordo à alegoria da caverna), ao limite morrer; morte a qual a filosofia arrasta29 e que ela antecipa com uma purificação progressiva que liberta a alma das cadeias que a atam ao corpo. Platão propõe dois caminhos de purificaçao- ascençao: 22 Cf. REPÚBLICA, 514a-516c. 23 Cf. REPÚBLICA, 517b-e. 24 Cf. REPÚBLUCA, 505c-d. 25 Cf. REPÚBLICA, 505a-b. 26 Cf. REPÚBLICA, 505e-506a. 27 Cf. REPÚBLICA, 509b. 28 Cf. REPÚBLICA, 509d. 29 Cf. FEDÓN, 661b-d.
  • 20. 20 30 a. Por meio do amor ("eros" ) que, atraído pela Beleza, transcende as tendências instintivas da alma, que a empurram até o baixo31. Esse amor é descrito no discurso de iniciação de Diotima no Simpisio, onde Sócrates é iniciado neste amor que, filho de Poros (Abundancia) e de Penia (Pobreza), está na busca do Belo e do saber32 e que, atraído pela beleza deste mundo, se eleva até a « Beleza que existe em si mesma e por si mesma, simples e eterna, da qual participam todas as outras coisas belas »33. O cume desta ascensão seria a êxtase mística diante esta Beleza divina. b. Agora, a metafísica, não sendo nem experiência mística nem êxtase, deve tratar de recuperar mediante um discurso conceitual, dialético ("deuteros ploûs": o "segundo tipo de navegação", isto é, remando a força de braços quando o vento não sopra mais34) o que o eros faz ver diretamente. Nos não seguiremos mais a Platão neste modo de razoar por meio de proporções e harmonias (e portanto ainda de tipo estético), isso o volveremos a encontrar em Aristóteles, subuma forma mais criticamente elaborada. 1.2.4 CONCLUSÃO. O que devemos apreender de Platão é o que ele transmitiu a toda a tradição filosófica e teológica (e também cultural) de Ocidente: isto é, a experiência não só de um saber senão de uma realidade metafísica, mais real do que aquela mesma que nos vemos e tocamos. Existem, portanto, graus de realidade, mais o menos reais, e a realidade suprema, divina, que é o fundamento de tudo o que existe de bom e de belo neste mundo e, em primeiro lugar, no mundo humano. Com efeito, enquanto a aproximação ética de Sócrates se poderia contentar com um saber sobre normas e regras morais absolutas, a aproximação estética e amante de Platão à realidade, nos descobre valores reais de beleza e de bondade, que transcendem as coisas materiais que os representam (isto é, melhores, mais absolutos que essas mesmas coisas). Esses valores nos fazem entrever uma realidade que se situa além do simples dado, e que o mundo da experiência não alcançará jamais encarnar ou representar perfeitamente. Tenhamos presente que a experiência estética e o amor abrem um caminho privilegiado ao campo metafísico. Finalmente, ainda que o mundo supra-sensível de Platão não se deve conceber de maneira espiritista, como um mundo de espíritos, os mitos platônicos sobre a preexistência e a supervivência da alma, mostram que Platão tomou crenças tradicionais, órficas, que recuperam transformando-las num discurso filosófico. 1.3 ARISTÓTELES E O FUNDAMENTO "DAQUILO QUE É VERDADEIRO" 30 É conveniente lembrar a significação do termo amor, ainda se Platão se referirá ao primeiro tipo de amor (enquanto « Eros »), no caso que nos interessa. Amor é o nome comum dado a todas as inclinações até qual quer bem. Distinguem-se três tipos fundamentais de amor: amor de concupiscência, de dileção e de benevolência. O amor de concupiscência presente na cultura clássica com o termo Eros, se caracteriza pelo desejo de possuir o objeto amado, pelo qual alguém é atraído por suas qualidades estéticas (quer dizer por aquilo que tem: beleza, juventude etc.). Caracteriza-se pela ternura (carinho); é exclusivista e cioso, mas tende a se-esgotar uma vez satisfeito o desejo de possessão. 31 Cf. FEDRO, 237d-238c, 253c-254e. 32 Cf. SEMPOSIO, 203c-204d. 33 Cf. SEMPOSIO, 209e-212a. 34 Cf. FEDÓN, 99d.
  • 21. 21 A "filosofia primeira" de Aristóteles deu à metafísica não só o nome, senão também seu conteúdo e suas estruturas fundamentais. Como a Lógica de Aristóteles, durante mais de dois mil anos, era a Lógica simplesmente, do mesmo modo, a Metafísica de Aristóteles chegou a ser a metafísica. Nossa presente exposição não intentará fazer uma reconstrução histórica daquilo que pudesse ser a metafísica para Aristóteles, senão nos ajudará a fazermos repensar sistematicamente, re- elaborando por nossa própria conta, as doutrinas fundamentais desta metafísica. I O QUE É "SER" 1.3.1 A "epistesme" o "ciência", à que aspirava Aristóteles em toda sua obra, significa um saber fundado, isto é, um saber que sabe que é necessariamente (e, portanto sempre, "eternamente") assim, porque conhece o porque daquilo que é conhecido, seu fundamento último, sua "causa". Dito saber se adquire por meio do silogismo que relaciona a verdade da conclusão com suas premissas (a proposição maior). Assim, eu sei que sou mortal pelo fato de que todos os homens são mortais, e que todos os homens são mortais porque qualquer vivente que é composto de partes pode deixar de viver, etc. Agora, o silogismo se compõe de juízos que enunciam um "ser": "é assim", enquanto que os conceitos dos quais se compõem o juízo dizem o que é (assim). O lugar próprio da verdade (científica) é, portanto, o ser (assim) daquilo que é, ou, em outros termos, daquilo que é enquanto é ("on hê on", "ens qua ens")... A ciência fundamental, a "filosofia primeira", deverá, portanto, considerar "o que é enquanto é", ou bem, o "ser dos seres"; essa ciência será uma filosofia do ser, daquilo que "é assim". N.B. Deve-se sinalar que isto só vale para todos os juízos. Com efeito, existem outras expressões lingüísticas, ainda que igualmente completas, que não são juízos e, por este motivo, não são os lugares de um saber fundado nem do ser: por exemplo, a exclamação, a invocação, a ordem, etc. Porem, o que Aristóteles encontra mediante a análise do juízo poderia além disso descobrir-se com uma análise da interrogação, porque esta espera um é assim como resposta. De fato, o saber humano se apresenta, na maioria dos casos, mais sub a forma de interrogação do que de afirmação. 1.3.2 Uma rápida análise semântica35 deste "ser" mostra que o "é assim" diz-se em modos diferentes ("to on pollachôs légetai"): a. No caso principal, quando se trata de um saber verdadeiramente científico, necessário e fundado, ser significa o que o sujeito do juízo é em si mesmo, sua essência, ou o que a este lhe pertence necessariamente e enquanto próprio; dizendo "é" se enuncia à verdade profunda daquilo sobre o qual se fala, p. ex., "o homem é mortal". Aristóteles o chama "o ser por essência", em latim, "per se". b. Podem ser verdadeiros também os juízos que não se fundam sobre esta essência, que não têm nada de necessário (nem de "demonstrável"), senão que se encontram como verdadeiros de fato; por exemplo, "Pedro está resfriado", "este arquiteto é um bom músico". Aristóteles o chama "o ser por acidente", em latim "per accidens" ("o que acontece --accidit-- como verdadeiro"). 35 Cf. Mondin, B., DIZIONARIO ENCICLOPEDICO DI FILOSOFIA TEOLOGIA E MORALE, Ed. Massimo, Milano 1989; cf. o termo Semántica, pg.688 : « Com este termo indica-se, em geral, aquela parte da lingüística que se ocupa do significado das palavras, quer dizer da correspondêcia entre os sinais e o que estes representam. Em Lógica matemática, a semântica é a teoria da interpretação de um sistema formal, no qual um significado pode ser atribuído aos símbolos formais de dito sistema. Pode-se distinguir uma semântica sincrônica: esta define o significado de um termo com respeito aos outros (como acontece no estruturalismo) e uma semântica diacrônica ou histórica: esta estuda as variações dos significados da mesma palavra ao longo do correr dos séculos ».
  • 22. 22 c. Podem ser verdadeiros igualmente os juízos que não se apóiam sobre algo que é realmente o caso, senão que pode realmente ser o caso: um poder-ser-real; p. ex., "Pedro toca bem o piano", "ele é um excelente pianista", ainda que não o toca neste momento, mas pode tocar-lo; do mesmo modo: "esta montanha é visível desde muito longe", ainda que durante a maior parte do tempo há uma nuvem que a esconde. Isso é para Aristóteles, "o ser em potência", em latim "in potência". d. Finalmente, "é assim", pode também servir para afirmar o que não existe ou não pode ser o caso, p. ex., "o latim era desconhecido por Sócrates" ou "uma velocidade superior à da luz es impossível". O verbo "ser" tem então uma função puramente lógica, e serve para manifestar ainda uma negação, sem significar de nenhum modo uma existência, um ser; ele não faz senão relacionar, e de maneira absoluta ("copula"), o predicado com o sujeito. Aristóteles o chama "o ser enquanto verdadeiro" (e "o não ser enquanto falso"); em latim "essere copulae", "secundum compositionem et divisionem". A confrontação dos três primeiros significados com o último mostra que se "ser" tem sempre um caráter de afirmação absoluta ("verdadeira" para todos, em qualquer hipótese, simplesmente), esse significa normalmente também uma existência, segundo as diferentes modalidades sub as quais algo pode "ser o caso" = existir. A lógica manifesta o "ontológico", o "modo no qual se encontra existindo verdadeiramente o mundo real". 1.3.3 A analogia36 do ser deve ser compreendida nesta dimensão ontológica. As análises anteriores têm mostrado que "ser" diz-se de maneira mais ou menos própria: existem portanto diferentes graus de ser (como em Platão), então diferentes maneiras de ser (isto é, de existir) realmente; o que pode ser "é" de modo diverso àquilo que é necessariamente ou que é "per accidens" (não existe senão como um puro fato). Portanto, o termo "ser" não é nem unívoco (como animal diz-se do cachorro e do peixe) nem equívoco (um puro homônimo, como banco enquanto instituição e banco enquanto assento), senão que é usado num sentido análogo segundo significações diferentes que, porem, tem uma certa relação entre elas (do grego "anàlogon": segundo uma relação). Assim, sano se diz propriamente do bem-estar físico (saúde) do homem, mas um alimento, um clima são "sanos" porque favorecem a saúde, a cor porque a manifesta, e uma leitura porque procura à alma o que a saúde representa para o corpo. Das realidades assim indicadas mediante a palavra "ser", esta convém de modo próprio ao ser por essência ("ousía": "o que é") e de maneira derivada aos outros, conforme à relação com este ser por essência ("é como se...", "aquilo pode ser..."). Portanto, elas são (no plano ontológico), só analogicamente. Podemos notar que o ser por excelência, "o que é propriamente", não é mais em Aristóteles um "ontos on" que está além do mundo da experiência, senão a ousía mesma, "o que é" dos seres deste mundo. 36 Cf. Mandem, B., Piccolo dizionario dei termini filosofici fondamentali, in IL SISTEMA FILOSOFICO DI TOMMASO D'AQUINO, ed. Massimo, Milano 1992, pg.271: « O termo (analogia) deriva do grego (analogon, analogia) e, en geral, significa semelhança. Em Lógica designa seja uma espécie de razoamento (o razoamento por analogia), seja um tipo de predicação (predicação por analogia). Como tipo de predicação a analogia distin gue-se da univocidade. Enquanto que na univocidade um termo vem aplicado a muitos sujeitos em sentido idêntico, e na equivocidade em sentido totalmente diverso, na analogia um termo é aplicado em sentido parcialmente igual e parcialmente diverso. Em geral, distinguem-se dois tipos de analogia: uma de atribuição e outra de proporcionali - dade. A atribuição subdivide-se, por sua vez, em intrínseca e extrínseca, enquanto a de proporcionalidade subdivide- se também em própria e metafórica. Santo Tomás de Aquino é um dos máximos defensores da importância do principio da analogia, e a considera indispensável para determinar o significado da linguagem religiosa e metafísica ».
  • 23. 23 37 1.3.4 As categorias designam, entoa, os modos de ser da (ou na) ousía mesma. Elas se deduzem de novo dum fato lingüístico, da maneira como se enuncia ("Kategoreîn" -enunciar) "o que é", isto é do juízo, sempre composto de um sujeito e dos predicados. O sujeito designa o que é propriamente, a ousía enquanto tal, a "substância" (o que "sustém", "substat" todo o ser; ou bem, o que "é em si mesmo", "ens in se"). Pelos predicados Aristóteles distingue nove aspectos, baixo os quais pode-ser considerar o ser enquanto tal de um sujeito e, portanto, nove maneiras de ser da substância: quantidade (quanto), qualidade (como), relação (com relação a qualquer coisa), lugar (onde), tempo (quando), posição (em qual posição: de pé, sentado, encurvado), ter (provisto de qual coisa), atividade e passividade. Essas maneiras de ser não existem "em si mesmas", senão só "em outro" ("entia in alio"), isto é, na substância, como "aquilo que lhe ocorre ser" (accidente). Portanto, as dez categorias (substância mais nove categorias de acidentes 38) são os gêneros supremos de tudo o que é (ou pode ser). Porem, o elenco das categorias de acidentes, varia no mesmo Aristóteles, já que foi estabelecido de maneira totalmente empírica, e não deve ser considerado nem necessário nem exaustivo. Kant intentará estabelecer de maneira mais decidida uma lista de 12 categorias, não partindo mais do sujeito e do predicado, senão do modo no qual esses se relacionam entre si e, portanto, afirmam-se no juízo; da maneira, numa palavra, como eles são. II A CONSTITUIÇAO DOS SERES CONCRETOS À luz destes princípios ontológicos, descobertos mediante uma análise lógica "daquilo que é verdadeiro", podemos agora considerar os seres concretos, dados na experiência. Neste ponto, no limite com a física, se apresentam as maiores dificuldades que deve superar a metafísica aristotélica. Com efeito, os conteûdos do saber verdadeiro, são, (e devem ser) universais e necessários, e o "ser" que funda este saber deve, portanto, ser também universal e necessário. Agora, os seres dados na experiência se apresentam a nos sempre e exclusivamente singulares e variáveis (isto é em devir). Como, portanto, e de qual maneira as estruturas ontológicas fundamentais são e podem ser verdadeiras para os seres dados na experiência? De qual modo é necessário conceber estes seres à luz daquilo que nos temos descoberto sobre o ser (o poder-ser- objeito de ciência certa) enquanto tal? 37 Cf. Mondin, B., IBIDEM, o termo categoria, pg.128: « A categoria significa as classes de predicados (ou predicamentos). Aristóteles foi o primeiro em fixar-lhes a classificação, definindo as categorias como idéias gerais que não são reduzíveis a nenhuma outra. Para Aristóteles há 10 categorias: substância, qualidade, quantidade, ação, paixão, relação, tempo, lugar, posição e o hábito. Para Kant e a escola kantiana, as categorias são os conceitos fundamentais do intelecto puro, formas a priori de nosso conhecimento, que fazem possíveis todas as funções do pensamento discursivo. Portanto, por quanto em Aristóteles as categorias têm uma dupla função: lógica (gnosiológica) e ontológica, elas são então modalidades fundamentais seja do pensamento seja do ser (e assim, p.ex., substância e causalidade não são simplesmente princípios reguladores do pensamento, senão condições efetivas da realidade); em Kant, estas alcançam apenas a uma função gnosiológica (lógica): são formas que o pensamento impõe aos dados da experiência, a forma da quantidade, da qualidade, da substância, da relação, etc. São formas universais, comuns a todos os intelectos humanos e, neste sentido, podem-se dizer objetivas, mas são formas impostas pelo sujeito ao mundo caótico da experiência e, neste sentido, são de fato subjetivas ». 38 Cf. Mondin, B., IBIDEM, o termo “acidente”, pg.10: «O acidente, segundo a definição aristotélica, é todo o que acompanha a substância como algo de não necessário. À diferença da substância, que tem seu próprio ato de ser e, portanto, subsiste em si mesma, o acidente não é um “in se”, não dispõe de um ato próprio de ser, mas o recebe pela substância na qual está inerente. Segundo a classificação de Aristóteles, todas as substâncias materiais estão acompanhadas de nove acidentes principais: quantidade, qualidade, relação, ação, paixão, lugar, tempo, situação, hábito ».
  • 24. 24 Aristóteles buscou responder a estas questões considerando preferentemente os seres viventes (de fato, seu pai era médico, e ele mesmo sobre tudo zoólogo). Com efeito, os viventes, são os seres que melhor conhecemos, isto é, que reconhecemos mais facilmente enquanto tal ser (um cachorro ou um pássaro, um corvo ou um mirlo), e dos quais é evidente que este individuo permanece sempre idêntico a si mesmo através de todas suas mudanças (esse pino será sempre este pino, desde seu primeiro brote até quando seja derribado). 1.3.5 A composição de "forma" e de "matéria" nos seres singulares responde à pergunta: de qual modo podemos saber que este ser é tal ser? Com efeito, nos reconhecemos um ser singular pelo que ele é segundo um certo aspecto exterior, característico, sempre o mesmo, e que tem em comum com os outros seres da mesma espécie. Um gato se distingue de um cachorro por sua talha, seu cabelo, por seus movimentos que são comuns a todos os gatos. Sua forma ("morphè") especifica, o conjunto estruturado de traços característicos que formam um todo, é algo mais e algo diverso da suma (ou da união) de suas partes (assim, no plano fonético, a sílaba "de" tem uma forma significativa que é algo mais e algo diverso da simples união de uma "d" e de uma "e"). Considerando o argumento mais a fundo, se encontrará que este ser deve ter um principio interno de unidade, em virtude do qual esse apresenta sempre este aspecto específico: é um gato, e não só se assemelha a um gato. Para os viventes, é seu "principio vital" ("psychè"39) ou "entélécheia" (literalmente "o ser completo"); os produtos artificiais da técnica humana, pelo contrário, não têm nem sequer uma "morphè"; pois, sua "forma" não é senão um "esquema" (uma certa disposição característica das partes, como por exemplo, a de uma mesa ou a de uma cadeira que não estão dotados de unidade interna). Agora, a "forma" de um vivente não é própria do individuo, enquanto que ele a comparte com todos os indivíduos da mesma espécie. Portanto, de qual modo se distingue de seus similares? Para responder a esta pergunta, Aristóteles recorre insolitamente ao modelo dos produtos artificiais. Assim como se pode multiplicar o mesmo objeto, reproduzindo a mesma "forma" (de uma mesa, de uma estatua, etc.) com material sempre novo ("materia", "A", literalmente: "ma- deira de construção"), assim aconteceria com os viventes: cada indivíduo seria um todo com- 39 Psychè significa alma. Aristóteles foi o primeiro em elaborar uma doutrina sistemática da alma, tratava nela de todos os graus de vida terrestre (vegetativa, sensitivo-animal e intelectual e olhava na alma o principio vital, formal, substancial dos processos vitais).
  • 25. 25 40 41 posto ("senolon") de "forma" (idêntica para toda a espécie) e de matéria individual. Esta teoria se chama "hilemorfismo"42 (de "hylè" + "morphè"). Portanto, o que é, o que existe verdadeiramente, não é nem a forma nem a matéria somente, senão o todo, o ser concreto; mas é assim, tal como é, em virtude da forma. E é por isso que se pode dizer que a forma dê o ser. A matéria enquanto tal, tomada em si mesma não é nada, (nem "este" nem "o outro", e, portanto, nem sequer existente), é um puro poder-ser (em latim, "potência pura"). 1.3.6 Os seres mudáveis e em devir (como o são todos os seres dados em nossa experiência) colocam um problema ulterior. Para explicar como eles podem ser verdadeiros, é necessário não somente responder às dificuldades bem conhecidas de Parmênides e dos eleatas (o que é não devem e o que devem não é), senão também fazer ver de qual modo um ser possa permanecer o mesmo, ainda chegando a ser outro, e de qual modo possa-se afirmar sua forma de maneira absoluta, ainda que se, enquanto mudável, o individuo não alcança jamais igualar-la perfeitamente. A estas perguntas Aristóteles responde analisando o modo no qual nos podemos e devemos pensar o devir ("kínêsis", "movimento"). Pode-se sintetizar o pensamento de Aristóteles sobre o como pensar o problema do devir43 em os seis pontos seguintes: a. Para que aconteça o devir, é preciso, ante tudo, algo que devem, que ainda mudando, permanece porem sempre o mesmo (de outra forma não se trataria de um ser que devem senão de uma substituição de um ser por outro). Portanto, é necessário em todo devir um substrato ("hepokeimenon"). 40 Cf.Brugger, W., Diccionario de filosofía : cf. o termo forma, pg.248-250: « (Em latim: forma, em grego: morphè). Esta palavra designa originalmente a configuração exterior, o contorno, a figura, a estrutura visível de um corpo. Desta maneira a forma, neste sentido, oferece dentro do mundo corpóreo uma importante base de diferenciação e determinação, por isso a « morfologia » lhe dedica especial atenção... »; cf. Mondin, B., IBIDEM, cf. forma, pg.306-307: « É um dos termos chaves da metafísica aristotélica, onde designa "a essência de cada coisa e a substância primeira", quer dizer "o ato primeiro de um corpo". Segundo Aristóteles, todas as coisas materiais são constituídas por dos princípios fundamentais: a matéria que es o principio passivo, e a forma, que es o principio ativo (daí a definição: "ato primeiro de um corpo"). Na filosofia moderna o termo forma tem adquirido um significado menos técnico e tem chegado a ser sinônimo de figura e ainda de estrutura ». 41 Cf. Mondin, B., IBIDEM, o termo matéria, pg.462: « Segundo o significado mais comum, matéria diz todo o conjunto dos corpos extensos. No significado técnico de origem aristotélica e escolástica, a matéria denota o que num ser representa o elemento potencial, indeterminado, em oposição à forma que representa o elemento de determinação e atualização. No uso moderno, matéria opoe-se seja à forma seja ao espírito. A matéria, não em seu aspecto de entidade experimentável pelos sentidos e pelos instrumentos científicos, senão enquanto constitutiva de cada coisa real física, natural, é uma das máximas conquistas do gênio filosófico de Aristó - teles. Ele trata amplamente dela na FÍSICA e na METAFÍSICA, e a apresenta como elemento essencial para a explicação do fenômeno do devir; tema bem discutido e polemizado pelos filósofos anteriores a Aristóteles, sobre tudo, Heráclito e Parmênides... » 42 Cf. Mondin, B., IBIDEM, o temo hilemorfismo, pg.371: « O hilemorfismo é a doutrina aristotélica que considera cada substância material como constituída de matéria (heles) e de forma (morphè). Aristóteles tem introduzido esta doutrina para explicar, por uma parte, o devir das coisas materiais, um devir que supõe um substrato estável, permanente (e isso se deve à matéria) e, por outro lado, a identidade específica entre muitos indivíduos (e isso se deve à forma). Alguns pensadores medievais têm usado esta doutrina para explicar a finitude das criaturas: isso se deve ao fato que todas as criaturas, inclusive os anjos, estão compostas de matéria e de forma. Só Deus é sem matéria, espírito puríssimo. Tomás nega a necessidade de estender o hilemorfismo ao mundo angelical para explicar a finitude dos anjos, porque essa, em sua filosofia, explica-se adequadamente com a composição (ou distinção) de essência e de ato de ser (esse) ». 43 Para mais informação e uma boa apresentação sobre a pensabilidade do devir, olhar o artigo devir nos dois dicionários seguintes: Brugger, W., DICCIONARIO FILOSÓFICO, pg.154-157; Mondin, B., DIZIONARIO ENCICLOPEDICO DI FILOSOFIA TEOLOGIA E MORALE, pg.218-219.
  • 26. 26 b. Todo devir desenvolve-se entre dos termos: um termo inicial e um termo final (por ex., a semente que devem a árvore, a ignorância que se torna saber metafísico, etc.). O primeiro se caracteriza pela ausência ("stérêsis": "privação") daquilo que se encontra ("héxis": "ter") no termo final: uma perfeição, um "ser-efetivamente-assim" ("enérgeia": "ato", "atividade"; a terminologia mostra que Aristóteles tinha em vista sobre tudo as perfeições ativas, a vida dos viventes; isso fica expressado claramente nele "efetivamente"). c. No termo inicial, porem, não existe só a ausência deste "ato". Porque o substrato o terá no termo final, ainda permanecendo o mesmo, pode tê-lo desde o principio; ainda mais, está destinado a ter-lo (enquanto o devir se desenvolve de maneira ordenada, numa sola direção: por ex., o ovo não pode chegar a ser qualquer coisa, senão uma galinha, ou um ovo frito). Portanto, no termo inicial do-devir encontra-se um poder-ser determinado ("denamis": "potência"; a terminologia nos remite, de novo, à capacidade de atuar ou agir dos viventes), que se deve descrever não só como o que não é o ato, senão como o que pode passar ao ato, ao qual está ordenado. Portanto, é a partir do ato como se define o poder-ser ou a potência: o ato é "anterior" à potência, mais fundamental do que a potência. d. Portanto, tudo o que devem está composto de ato e de potência (de ser- efetivamente e de poder-ser) que não só se sucedem (primeiro está a potência, depois o ato), senão que se dão simultaneamente, porque o devir efetivo não elimina o poder-ser senão somente a ausência do ato que se encontra no termo inicial. O poder-ser, pelo contrário, permanece o mesmo, sendo pouco a pouco realizado, "atualizado". (O homem que poe-se em caminho, no ato de caminhar realiza, "atualiza" o poder-caminhar). e. Uma análise mais profunda do ser em devir servirá para sublinhar esta simultaneidade do ato e da potência naquilo que devem. Com efeito, o que devem não se encontra nem no termo inicial nem no termo final de seu devir, senão entre os dois, isso quer dizer, que tudo o que está em devir, já tem devido ou devirá ainda. Portanto, em cada momento (parte de um movimento) de seu devir, ele se encontrará ao mesmo tempo na situação ontológica de termino final e na de termino inicial (por. ex., como um trem que passa direto a uma estação, parte de ela no mesmo instante no qual chega). Com isso nos compreendemos a definição aristotélica do devir: é "o ato de um ser em potência enquanto está ainda em potência"; isto é, é já uma atualização da potência --já não está no termino inicial-- mas esta atualização mesma está ainda em potência em relação ao termino inicial. f. Em conclusão, ato e potência são distintos como a perfeição e o poder-ser- perfeito: eles são contrários, mas relativo um ao outro. Ainda que distintos, eles não se sucedem senão que existem simultaneamente: o ato de um ser em devir é o ato que "atualiza" uma