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Homo Serviens
“Sirvo à vida, sou feliz!”
Pe. Jaci Rocha Gonçalves, Dr.
Roma 1996
3
Dedico este serviço, um dos escritos que fiz em
Trento (Itália) para o doutorado em Teologia e
Culturas, no inverno de 1995,
a Janaina, minha esposa,
a Luan, Jonas, Moara e Luna,
minha família,
aberta à construção
do divino no humano.
Dedico também às inúmeras redes de
comunidades com quem tenho partilhado meu
cotidiano no Brasil, África, Europa e mundo virtual
sem fronteiras.
(Palhoça, 2013)
4
Introdução
Direito humano e divino:
tornar-se Homo serviens
Paulo escreve com carinho aos Filipenses. É a carta da alegria:
“Levai à plenitude a minha alegria
nada fazendo por competição e vanglória,
mas com humildade,
julgando cada um aos outros superiores a si mesmo,
nem cuidando cada um só do que é seu,
mas também do que é dos outros.
Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus.»
Logo que me pus a pesquisar sobre a novidade cristã num mundo em
crise e os direitos humanos lembrei-me do grande filósofo Eric Fromm,
sábio descendente judeu, da terra de Jesus. Ele escreve num dos livros de
sua fecunda senilidade, que a natureza, o cosmos, a nossa época, enfim,
com sua crise de essencial «gemem como mulher em dores de parto,
suspirando pelo amadurecimento, na humanidade, do ‘Homo serviens’»1
-
ou seja, - aquela pessoa cuja identidade e missão é viver para servir. E
servir vida qualitativa para todos e tudo, com o tempero lúdico.
É nesta trilha quenotípica, isto é, opção por um jeito de ser que abdica
de quaisquer privilégios, exceto o de “amar até o fim”, portanto, uma opção
de esvaziamento, de humildade, escolhida por Jesus Cristo, que
trabalharemos algumas questões em torno da busca de direitos essenciais
do homem e da mulher de hoje, que estão cruzando um novo milênio. É
impressionante como as pessoas se mostram famintas do sagrado, de
sentido para viver e de como viver.
É neste jeito que Jesus adotou para revelar a identidade de Deus que
existe a novidade cristã fundamental para hoje, como o foi nos primeiros
tempos cristãos. É aí que se fundam as razões para a festa do ano dois mil
que está às portas. Por que este perfil “Homo serviens” é ainda uma
novidade fundamental?
Porque esta verdade é exaustivamente repetida nos escritos e na
prática das comunidades cristãs antigas: a maior glória deste Deus é ver
acontecer a salvação, isto é, a sua vida em abundância para todos e tudo
1
FROMM, Erich. A revolução da esperança. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. Do latim
“homo = homem; humano”; “serviens = que está a serviço”.
5
tem sabor de novidade para nós, bombardeados pelas insistentes
propagandas de lucro fácil, sucesso, protagonismo e prestígio a qualquer
preço, como o foi também para eles.
A revelação desta identidade de Deus como Homo serviens (pessoa
servidora), e da comunidade Trinitária divina de pessoas servidoras, era tão
fundamental que virou poema e hino nas liturgias cristãs mais antigas.
Desta forma ficou como fonte de memória viva nas crises em meio às
perseguições judaica, grega e romana.
Repare só que consciência clara e criativa, os primeiros cristãos
mostram nesta continuação da mesma carta aos Filipenses:
«Jesus tinha a condição divina, e não considerou o ser igual
a Deus como algo a que se apegar com ciúmes,
ao contrário, esvaziou-se a si mesmo tomando a
semelhança humana. E, achado em figura de homem,
humilhou-se e foi obediente até a morte e morte de cruz»2
Este poema, curtido, então, pelas comunidades perseguidas dos
primeiros tempos do cristianismo, rediz a história de Jesus como servidor
da vida. Este foi inclusive o jeito de ser messias que Ele escolheu: servidor.
Portanto, uma escolha quenotípica, isto é, de kenosis (um esvaziamento de
toda a sua prerrogativa divina) levando o amor de entrega por nós (agapé)
até às últimas conseqüências. Ontem, hoje e sempre atual este perfil divino
e humano, um perfil direito de todos – homens e mulheres – às portas do
Terceiro Milênio.
Seguindo a orientação do professor, de unir estudo e vida, apresento
junto a esta pesquisa acadêmica, alguns fatos da vida pastoral vividos
nestes últimos trinta e três anos com nosso povo-comunidade de batizados
e não-batizados, em vários países, mas sobretudo no Brasil e com a grande
família cujo único sobrenome é humano, e em cujas vidas a história ousada
de Jesus se repete, de forma bem especial, no anonimato e heróico mundo
dos excluídos. Excluídos dos direitos humanos à vida e à liberdade.
2
Paulo aos Filipenses, 2, 1ss. Trad. da Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Ed. Paulinas,
1985.
IDENTIDADE DE DEUS:
SER COMUNIDADE SERVIDORA
DA QUALIDADE
DE VIDA PARA TUDO E TODOS!
6
Capítulo um
Direito à desculpa
1. Na sabedoria dos simples, o perdão é a resposta.
Onze de março de 1993, tempo de retorno das férias de
verão. Era por volta do meio-dia. O «Jornal do Almoço» é
o programa de TV líder de audiência no Estado de Santa
Catarina, sul do Brasil. A geração de imagens é nos
estúdios da Rede mais importante no mercado de Mídia
regional, no Morro da Cruz em Florianópolis, capital do
Estado e do turismo dos países do Cone-Sul da América
Latina. Torna-se cada vez mais um dos pólos do Mercosul,
inaugurado em janeiro de 1995.
Estamos na véspera do 3o. aniversário de fundação da
Orionópolis Catarinense3
, uma pequena vila que, sob a
inspiração de D. Orione,4
procura oportunizar aos cidadãos
de qualquer classe social, ideologia, religião ou etnia, o
exercício da solidariedade pelo voluntariado. Na
Orionópolis são acolhidos os considerados inúteis sociais
porque já são velhos, ou/e portadores de deficiências
múltiplas, sem ninguém a seu favor, nem mesmo a mãe
natureza; sem capacidade de produção. São pessoas que
viviam rolando pelas calçadas e praças, nas ruas e
viadutos, ou apodrecendo em algum mangue, barraco de
favela, rancho de canoa ou feito bicho do mato em
abandono
Os âncoras do programa televisivo, encaminham a
rubrica «entrevista». Após a rolagem de um tape com
imagens dos moradores da vila, perguntam: «-Padre, qual é
3
O endereço da Orionópolis Catarinense é Rua Frederico Afonso, 5568. CEP 88 104-
000 - São José - SC-Brasil. Tel. (048) 3343-0087. A Orionópolis Catarinense, anima
com outras forças da comunidade o resgate cultural dos guarani, junto à aldeia Mbyá-
Guarani e o Projeto Turminha, um centro alternativo para crianças pobres, “ditas de
rua”, em Capoeiras, Florianópolis, SC, Brasil.
4
São Luís Orione, conhecido como D. Orione, é santo fundador da congregação dos
Filhos da Divina Providência, com 1200 religiosos, das Pequenas Missionárias da
Caridade e Irmãs Sacramentinas Cegas com 900 religiosas. Todos se dedicam à
evangelização através da caridade.
7
a maior alegria a ser festejada neste terceiro aniversário da
Orionópolis?» A resposta saltou espontânea: «-Todos os
que morreram, morreram amando! Todos os 12 moradores
já falecidos tinham mil razões para morrer maldizendo a
vida, a sociedade e até a si mesmos. Mas morreram
perdoando, amando, como que para deixar-nos a notícia de
que ‘amor com amor se paga, e ódio com amor também se
paga.’ Esta é a maior alegria que temos para comemorar
com todos vocês».5
Escolhi este fato extraído da micro-história do meu povo que deixei
além-mares, para ser honesto com ele, pois, páginas como esta que
raramente se tornam notícias na Mídia da terra, continuam a escrever hoje o
que nós cristãos chamamos de História da Salvação ou construção do Reino
da Fraternidade cujo protagonismo dos pobres é sinal inegável de sua
presença. Quando eles, os pobres, evangelizam, o Reino está presente.
Cabe-nos, pois, a obrigação de dar o máximo de espaço a estes pobres
de Javé, teimosos em sua maneira quase sempre absurda de crer no Deus da
vida; porque o seu grito de fé vem de um contexto histórico superlotado de
desafios.
Eles convivem com estruturas de morte lenta desde a vida pré-natal, e
quando conseguem nascer, vão até o morrer, em geral com velhice precoce
e doença rara, uma verdadeira tortura permeando-lhes o cotidiano. É
impressionante como a fé lhes dá fôlego, resistência e persistência
instancáveis. É a sabedoria dos humildes. Eles sempre elegem o perdão, a
desculpa, como elemento inicial para crer de novo na força do amor.
5
Cf. Gravação de videotape in Arquivo CCDO- informatizado. São José-SC, Brasil:
Orionópolis Catarinense, 1993.
8
Patrick no ofertório da missa de Páscoa, com Padre Jaci e sua madrinha. Faleceu
aos 15 anos, desafiando os prognósticos médicos de óbito aos dois anos de idade.
Usava apenas a linguagem térmica da febre para dizer: “Toquem-me, quero
viver!”. Foi o primeiro jovem a morrer no Lar São José da Orionópolis. Outro
menino herdou seu nome como símbolo de jovem biocrático, ou seja, que se deixa
governar pelo valor inestimável da vida.
2. Na agenda dos sábios, também não há festa sem
perdão.
Coragem de Papa! João Paulo II mandou uma carta apostólica
convidando toda a humanidade e não só os batizados na fé em Jesus Cristo,
a abrir o Terceiro Milênio, com a coragem do perdão. Fazendo assim deste
evento razão para uma festa que não seja apenas mais uma expressão de
consumo comercial, e sim, oportunidade para uma grande avaliação
conjunta. Convida, então, a preparar a casa do mundo para a festa. Na
agenda que havia apresentado aos cardeais (reunidos em consistório em
junho de ‘94, com presença maciça, dos que ainda são atuantes) obteve
resposta entusiástica para todo o projeto, exceto para a agenda do «perdão».
Na carta Apostólica de preparação ao Jubileu do Ano Dois Mil com o
título Tertio millenio adveniente, nº 33, quando trata da primeira fase da
preparação, João Paulo II escreve:
9
“É justo, portanto, que enquanto o
Segundo Milênio do cristianismo
está terminando, a Igreja assuma
com a mais viva tomada de
consciência dos pecados de seus
filhos ao lembrar todas aquelas
circunstâncias nas quais, no arco de
sua história, eles se afastaram do
espírito de Cristo e de seu
Evangelho, dando ao mundo, em vez
do testemunho de uma vida
inspirada nos valores da fé, o
espetáculo de modos de pensar e de
agir que eram verdadeiras formas
de contra-testemunho e de
escândalo.
A Igreja, mesmo sendo santa pela sua incorporação a
Cristo, não se cansa de fazer penitência: ela reconhece
como próprios, diante de Deus e diante dos homens, os
filhos pecadores. Ela não pode atravessar o novo milênio
sem exigir de seus filhos a purificação, pelo
arrependimento, dos erros, infidelidades, incoerências e
atrasos. Reconhecer as quedas de ontem é ato de lealdade e
de coragem que nos ajuda a reforçar a nossa fé, e nos torna
vigilantes e atentos no enfrentamento das tentações e das
dificuldades de hoje.”
Muitos cardeais viam nesta exigência, excesso de tolerância e de
bondade. Mas o Papa foi inflexível. Segundo alguns analistas, talvez seja
este o gesto mais profético de seu pontificado. Não arredou o pé do pedido
de perdão, começando a admitir culpas de ontem e de hoje, a partir da
própria Igreja e dos cristãos. Para Ele, não haverá festa autêntica sem
fechar a porta do milênio com arrependimento, conversão da própria vida
ao amor, ao perdão, à desculpa sincera.
Assim, o confiteor da Igreja Católica, antes, posto timidamente em
roda pé, como no documento de Puebla nº 6, sobre a cumplicidade cristã
com respeito à escravidão dos afro-americanos, agora brota como atividade
essencial, com simplicidade e coragem evangélicas, antes da festa de
aniversário de dois mil anos do nascimento de Cristo.
10
3. A ciência filosófica e a crise do essencial:
os sábios encontram os simples.
Os dados científico-históricos que procuram dar suporte ao balanço
dos resultados da aventura humana no planeta nos últimos mil anos e na
iminência do Terceiro Milênio da Encarnação de Jesus Cristo, apresentam
avaliações mescladas de luzes e sombras. E sobretudo no século XX,
podemos medir até onde somos devedores de crescimento na arte mais
divina em Deus e mais humana no homem: a arte de viver amando, e, de
amar morrendo.
O amor e a filosofia
Não é aí neste fato do amor ou desamor onde tem desaguado até as
correntes filosóficas mais recentes como o existencialismo? Baste-nos o
exemplo da escola de Martin Heidegger. Na visão heideggeriana o
ontológico humano, aparece descrito no seu jeito de ser como «Da-Sein»
(ser que está aí e sabe-que-está aí), diferenciando-se dos seres ônticos
(Sein), isto é, os seres que estão aí, mas não tem consciência de existirem.
E o «Da-Sein» (ser humano) realiza a sua hominidade na esfera do
relacional adequado. E ao que os humanos chamam de amor é o resultado
do exercício do relacional adequado, maturado, consigo, com os outros,
com o Outro e com o mundo, reflete o filósofo.
O homem é, na verdade, este nó de relações vitais e é desta ação que
dependem sua felicidade e sentido de vida. Nesta aproximação com a
alteridade deverá correr os riscos de uma aproximação onde o outro seja
uma simples atração biofísica para ser usado e voltar a si mesmo (eros,
dizem os filósofos), ou pode ser uma relação de amizade íntima (filia) em
profundidade, ou uma relação de companhia, num caminho conjunto
(koinonia), pode arriscar-se, enfim, numa relação de agapé, ou seja, uma
interrelação a serviço de um Projeto de vida comum que inclui oblação,
entrega, sofrimento. Amor, então, é agapé, não eros. Deus é amor e o amor
é direito humano essencial.
O amor e a experiência histórica
Num outro eixo de reflexão sobre nossas milenares buscas humanas, o
do estudo histórico, podemos lembrar o depoimento de um dos grandes
historiadores, falecido recentemente, o inglês, Arnold Toynbee. Após o
estudo de 27 civilizações, avaliava que a frustração nas ciências-base de
11
todas as culturas, ou sejam, a economia, política e ética destes povos,
sempre determinou ciclos críticos agudos, que pareciam intransponíveis. A
superação, a ultrapassagem, destes ciclos caóticos, por novos tempos de
esperança ocorreu em geral na instância do espiritual. Na última entrevista
antes de morrer, Toynbee, que se declarava sem religião, expressou este
desejo: nossa época necessita urgentemente de pessoas à semelhança de
Francisco de Assis.
O amor e o etnocentrismo cultural
É inegável que as culturas que compõem hoje nossa civilização
passam por duras provas diante de fenômenos novos e de difícil adequação,
sobretudo devido à interdependência dos povos e o despreparo destes para
a convivência adequada com o diferente. É inegável que o etnocentrismo,
essa espécie de egoísmo cultural, tem sido marca registrada na maioria das
relações humanas individuais e entre os países.6
Um exemplo representativo a esse respeito, encontra-se na conclusão
da Assembléia Geral de todos os jesuítas do mundo, uma marcante força da
Igreja Católica na história dos últimos 500 anos. A assembléia avalia nossa
situação mundial como devedora ao extremo da relação adequada com a
alteridade. O documento final assinala que a questão do outro, do diferente,
continua a ser um desafio novo. Este se impõe à Igreja e à sociedade a
partir da consciência crescente do pluralismo como característica de uma
mentalidade que se faz cada vez mais generalizada. O mundo sempre foi
plural, mas não pluralista. E explica a diferença entre o plural e o
pluralismo: «Este, o pluralismo, acrescenta à pluralidade sua aceitação
consciente e procurada, por reconhecê-la como fomentadora da riqueza
humana e construtora de convivência mais harmônica.»7
Como a opção pelo pobre se traduz em busca de justiça, a opção pelo
outro se concretiza em diálogo. A ascese de superação do etnocentrismo
faz-nos aproximar do outro com simpatia, sem opiniões pré-concebidas,
dispostos a ouvir e aprender. Exprime o nosso reconhecimento do outro em
sua alteridade. O diálogo abre os horizontes e supõe corações abertos.
Quem tudo sabe, não dialoga; só ensina. Quem se considera melhor, não
dialoga, só julga. A essa atitude de humildade nos convida a opção pelo
outro enquanto outro.
O outro, o diferente é o culturalmente outro. São as milenares culturas
asiáticas e africanas, com as religiões que moldaram suas escalas de
6
Cf. Editorial: Deus chegou antes... A propósito da XXIV Congregação Geral da
Companhia de Jesus in Perspectiva Teológica , 27 (1995) 149-154.
7
Idem, p. 150.
12
valores, direitos e deveres. São as culturas indígenas que resistem nos
diversos continentes a séculos de opressão, respeitando o meio ambiente,
inspirados numa religião animista. A inculturação revela-se como dimensão
intrínseca da evangelização. O amor agápico cristão é abertura
incondicional ao outro, é uma relação de total «inclusão» da alteridade.
Portanto, continuamos devedores de muito cultivo até o desabrochar
desta verdadeira essência humana e divina, como vimos acima: o amor.
Agora, apoiados na afirmação de Toynbee, e respeitando a estreiteza de
espaço e os objetivos deste tipo de partilha. Façamos uma digressão
resumida nas ciências em geral, na economia e política em relação com a
ética e a revelação de Cristo. Ao mesmo tempo, avaliemos o uso dos
poderes correspondentes às ciências: o poder de saber, de serviço de
autoridade e poder de administração dos bens da terra.
Ontem e hoje, é essencial às ciências, a sabedoria de lavar os pés.
13
Capítulo dois
Direito de saber para servir à vida
1. Lauro e Irene
Dois nomes que marcam minha caminhada pastoral junto dos
marginalizados sociais. O primeiro é de Lauro. Chegou no dia 8 de
março de 1991, por volta das 9:00 horas na Orionópolis
Catarinense, trazido pelo padre Carlos e um leigo comprometido
da cidade de Palhoça-SC. Após dois meses de luta por recuperá-lo,
não houve jeito, veio a falecer no Hospital Florianópolis. Seu corpo
não pesava mais que 20 quilos. Tinha 58 anos. Algumas semanas
após seu óbito chegou-nos o resultado da tomografia
computadorizada mostrando vários carcinomas, inclusive no
cérebro.
E o que mais chamou a atenção, foi a sua impossibilidade de
assimilação dos alimentos. Lauro provinha da fome, uma fome
crônica que o levou à morte. Em sua carteira de trabalho, trazia a
profissão de servente de pedreiro. Foi encontrado num rancho de
mangue em condições subumanas. Choramos um choro doído
naquele enterro realizado ao meio-dia no Cemitério do Passa
Vinte. Nas orações, uma meditação especial sobre seu nome:
Lauro, certamente do radical latino, “aurum”, que quer dizer ouro.
O ouro de Deus.
Depois, sempre na Orionópolis, a morte da primeira mulher.
Encontrei-a, em Capoeiras, um bairro classe média da capital do
Estado de Santa Catarina, num barraco do qual estava sendo
despejada. Seu velho não tinha muito jeito de gente, de tão
minguado, parecia-se a certos estereótipos de Jeca Tatu. A relação
entre eles, de convivência impossível, as relações com o filho
também especial, não dá para descrever aqui. Interessa o seu
nome: Irene, que da proveniência grega significa paz. Mas ela era
o protótipo da guerra, da neurose aloprada. Depois sofreu
derrame. Foi convertida ao amor pela dedicação de amor. Quando
morreu, era o símbolo da alegria, da paz alegre, reconciliada.
Lauro e Irene, a lembrança de que todo o masculino e feminino,
são sagrados.
14
2. Na intimidade da mesa, o máximo de novidade
Haverá grito, clamor maior nos nossos ouvidos, e mais chocantes do
que o clamor dos Lauros e Irenes que aos milhões apodrecem nos infernos
da exclusão, do abandono, da solidão, da fome? Se viemos para amar,
nossa história é a história de nosso coração, viemos para promover relações
adequadas a fim de que todos tenham vida e vida qualitativa. De
propósito, após a descrição existencialista do amor, proponho agora uma
rápida viagem ao mundo do saber e da economia, bem como a alguns
aspectos da finalidade salvadora do cristianismo, assumida na vivência
paradigmática de Jesus de Nazaré.
Comecemos por Jesus. É no contexto da passagem bíblica do
evangelho de João, dos capítulos 13 a 17. Na intimidade do último jantar
com seus alunos escolhidos. Jesus reparte com eles todos os segredos, não
deixa nada para trás. É a famosa última ceia. Os artistas raramente pintam a
primeira cena desta última ceia. A ceia onde Jesus lava os pés de seus
alunos. Leva aquela bronca de São Pedro porque estava quebrando todas as
etiquetas e se rebaixando demais. Jesus, porém, é irreversível. «Para que
saibais que grande no meu Reino é aquele que vive para servir, como já
lhes expliquei tantas vezes. Quem quiser ser o maior, seja o servidor de
todos. Os que tem poder no mundo usam-no para a dominação, entre vós
não deverá ser assim.” Autoridade é diaconia, serviço à vida de todos.
Eucaristia: a mais revolucionária lição de economia
Depois, Jesus serve-lhes o pão e o vinho, e deixa-nos a suprema e
mais revolucionária lição de economia: a Eucaristia. Várias vezes Jesus
lhes pedira para saciar a fome do povo. Agora o pão os lembrará que a
semelhança do trigo Ele também será triturado por amor; como uva
esmagada dará até sua última gota de sangue por amor. Assim será e
ninguém poderá mudar. Jesus deixa a Memória de sua presença viva, na
mesa da história para saciar todas as dimensões de fome de justiça, amor e
paz. Quem divide, quem mata, quem trafica drogas, quem vende armas,
desperdiça alimento, profana a Eucaristia, quebra o pacto, a nova e eterna
Aliança com o Deus da vida para todos. Não será por isso que o Papa foi
intransigente com os cardeais a respeito do perdão, já que neste milênio
temos nos apresentado divididos. João Paulo chama a isto de «escândalo
dos cristãos»?
Novidade cristã no advérbio de modo: “como”
Então Jesus, após falar-lhes de coragem e de consolo, de um amigo, o
Espírito Santo, que Ele enviará mais tarde, resume toda lei, todas as
15
páginas da Bíblia, todas as declarações sobre a dignidade das pessoas, todas
as novidades de cada cultura, de cada religião, nesta única novidade: «Eu
vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros como Eu vos
amei!»8
. Esta é a novidade que atinge a revelação essencial de Deus sobre
nós, os humanos. Jesus define a medida das possibilidades humanas, já
atingido por Ele, na doação da sua vida e no resgate de nossa salvação.
Garante-nos um horizonte de otimismo e de compromisso: amar do jeito
como Ele amou. A novidade está no jeito de amar, neste pequeno advérbio
de modo: «como».
A revelação deste valor dos humanos, ou seja, de serem tão amados e
considerados por Deus como criaturas sagradas, é um novo horizonte de
sentido, é a verdade sobre o homem que a Igreja zela como princípio ético
fundamental, como o referencial mais precioso revelado por Cristo. Cada
ser humano é o templo vivo de Deus. A única vez que Jesus se enfezou, foi
para exigir respeito a esse templo, a esta casa do Pai. Falava do templo do
seu corpo, diz o evangelista João. Vós sois o templo vivo de Deus, afirma
Paulo. Deus tem amor «zeloso pela sua casa», Deus tem amor «ciumento»
pelos seus Lauros e suas Irenes; cada ser é raro e precioso aos seus olhos.
Cada ser humano é a menina dos seus olhos.
3. Sabedoria de quem sabe: saber para servir à
vida
Cada povo, em geral, tem no campus universitário, ou outras formas e
nomes de lugar de pesquisa de acordo com a própria cultura, o seu lugar
privilegiado de buscar respostas aos questionamentos que a vida vai
apresentando com vários matizes na sucessão das gerações. A esse respeito,
tive várias oportunidades de participar ativamente em debates e fóruns
universitários no meu país a respeito da interdisciplinaridade e a religação
do campus universitário e comunidade.
Nos últimos vinte anos, participando como convidado a animar as
celebrações eucarísticas de fins de cursos das mais variadas faculdades: da
medicina à engenharia, da psicologia e serviço social às ciências contábeis
e computação, pude constatar o ar de surpresa geral, quando convidava os
formandos a pedirmos perdão aos grandes financiadores dos diplomas, com
percentuais de participação em torno até dos 80%. Provocados ao diálogo,
era raro ouvir resposta clara de que era o povo o maior «sponsor”, o maior
patrocinador de seus diplomas.
8
Cf.Jo.15,12ss
16
E, provavelmente, tal ignorância é devido à ocorrência deste divórcio,
gerado pela própria instituição universitária, entre os que tem acesso ao
poder de saber e o povo, ao qual deveriam aprender a servir com os
diplomas financiados às custas e sacrifícios do dinheiro popular.
«Estude para vencer na vida?!?!»
Por que este objetivo de estudar para servir é uma novidade? Não será
porque insistimos tanto numa visão pedagógica deturpada de concorrência
e que se inicia desde o pré-escolar quando incutimos nas crianças a
necessidade de «estudar para vencer na vida» em vez de «estudar para
servir à vida?». Se ampliada esta constatação para outras áreas geográficas,
não será esta uma das grandes geradoras da mega-crise que atravessa a
nossa civilização?
As ciências existem para responder às nossas necessidades vitais,
estão a serviço da grande e única família humana, a serviço do
desenvolvimento, da proteção e do sentido da vida, de todas as vidas
humanas, mas também dos outros seres vivos, do ecossistema, do cosmos,
enfim. Do contrário, a quem servem as ciências? Nas análises mais
aprofundadas daqui por diante com a digressão no estudo da economia,
Comunicação Social e Ética nos daremos conta dos porquês e das
conseqüências pérfidas deste tipo de comportamento.
O saber para matar: alguns números da cultura da morte
É aí, no serviço à vida, que alguns poucos sábios, verdadeiros profetas
da ciência econômica começam a fazer o balanço neste fim de milênio,
embora a grande maioria dos entendidos neste campo busquem a evasiva
de que há uma «científica separação metodológica que os
desresponsabiliza ética ou moralmente». Pior cegueira é de quem não quer
enxergar. Na verdade, nunca produzimos tanto e em tão pouco tempo,
graças a tecnologias ultra-avançadas. Então, por que nossa sociedade
aparentemente tão desenvolvida, a cada ano, colhe cifras astronômicas da
morte pela fome? Nunca matamos tanto, e tão impiedosamente, e em tão
pouco tempo.
A situação do mundo no fim de nosso século registra surpreendentes
contrastes: uma minoria da população do Planeta possui uma notável
capacidade de acúmulo de riqueza o que lhe permite usufruir um exagerado
bem-estar material; ao mesmo tempo, uma imensa maioria de habitantes do
17
globo, luta para sobreviver em condições de indigência. No finado ano de
1995, por exemplo, produzimos 61 milhões de mortos pela fome no
planeta.9
Não obstante o enorme incremento do PIB (Produto Interno
Bruto) mundial nos últimos 50 anos, (pós-fim da guerra de 1939-1945), são
cerca de 20 a 25% dos habitantes da terra que vivem abaixo do nível da
pobreza.10
Convivemos com imensas regiões do mundo nas quais a maioria dos
habitantes se debate e se consome na luta pela sobrevivência. O preço pago
é altíssimo. Este quadro de miséria é, sobretudo, escandaloso se se compara
à vida opulenta daqueles que dispõem das vantagens oferecidas pela
riqueza e bem-estar. Aprofundemos um pouco mais as causas desta chacina
anual de nossos dias, este grito silencioso dos famintos que clama ao Deus
da Vida por justiça. Na verdade, são os novos sacrifícios humanos ao deus-
capital. São 40.000 crianças vítimas mortas por dia em seu holocausto.
O saber ópio do povo: anestesiados pelo Pensamento Único
Segundo o analista de economia Inácio Ramonet11
, cresce sempre
mais na democracia atual, o número de cidadãos que ainda tem sede de
liberdade e se sentem dopados, anestesiados por uma espécie de doutrina
gelatinosa que insensivelmente neutraliza qualquer raciocínio de sã
rebeldia, de indignação afirmativa. Confunde-os, paralisa-os até sufocá-los:
o pensamento único, único autorizado a expressar-se através de uma
invisível e onipresente polícia de opinião.
Segundo Ramonet, somos vítimas deste todo-poderoso «pensamento
único». O fundamento do “pensamento único” é o conceito do primado da
economia sobre a política. Ele foi formulado e definido desde 1944, por
ocasião dos acordos de Bretton Woods. As suas principais fontes são as
grandes instituições econômicas e monetárias – o Banco Mundial, o Fundo
Monetário Internacional, a Organização para a cooperação e
desenvolvimento econômico, o Acordo Geral sobre Tarifas Alfandegárias e
sobre o Comércio, a famosa Comissão Européia, os Bancos Centrais e
outros. Através dos financiamentos, colocam a serviço de suas idéias por
todo o Planeta, numerosos centros de pesquisa, universidades e fundações,
chamadas a rezar o mesmo catecismo e difundir suas boas idéias, numa
espécie de Bíblia-Liberal. À economia se reserva o lugar de comando em
9
Cf. in Jornal A Folha de São Paulo, 24.12.1995, p. 20.
10
Júlio de Santa Ana, L’attuale sistema socio-economico quale causa de squilibrio
ecologico e della povertà, in Concilium 5(1995) p. 17.
11
Ignacio Ramonet, Il pensiero unico, in Missione Oggi, 10 (1995) pp. 22-23 resumo de
sua análise feita em Le Monde, 17.12.’94.
18
nome de um realismo, de um pragmatismo cuja importância o francês
Alain Minc resume na seguinte formulação: «O capitalismo não pode cair,
porque é o estado natural da sociedade. A democracia não é o estado
natural da sociedade. O mercado é.»12
Há outros conceitos-chave do pensamento único que já entraram
na desordem estabelecida em nosso dia-a-dia. Dentre eles:
- o mercado, ídolo cuja «mão invisível corrige os excessos e as
disfunções do capitalismo»;
- de modo bem especial os mercados financeiros, cujos «sinais
orientam e determinam o movimento geral da economia»;
- a concorrência e a competição: estimulam e dinamizam as
empresas, conduzindo-as a uma modernização permanente e
benéfica»;
- o comércio ilimitado e livre: fator de desenvolvimento
ininterrupto do comércio e em conseqüência da sociedade»;
- a mundialização ou globalização tanto da produção
manufaturada como dos fluxos financeiros;
- a divisão internacional do trabalho tem a função de «moderar
as reivindicações sindicais e diminuir o custo da mão de obra, do
trabalho»;
- a moeda forte, «fator de estabilidade»;
- deregulation, a privatização, a liberação; que definem sempre
mais a supremacia do poder econômico até mesmo da política, sempre
«menos Estado»; acontecendo assim, uma arbitragem constante em
favor dos lucros do capital e em detrimento do trabalho.
“A morte de 40.000 crianças por dia devido à miséria é gerada
por decisões tomadas a nível supranacional que chegam aos povos e
aos setores mais frágeis transformadas em planos econômicos que
tem como objetivos a produção de capital, de armamentos e de coisas
supérfluas.”13
12
Cf. Cambio 16, Madrid, 5.12.1994.
13
Cf. VELÁSQUEZ, JULIA ESQUIVEL. Espiritualidade da Terra, Concilium 5 (1995)
p. 94.
19
O milagre da mídia fabricando enlatados
Para a sua doutrinação, o pensamento único utiliza a massmediologia
e as Ciências de Opinião Pública. Quais suas características? Antes de tudo,
usa o método do discurso anônimo, explica ainda Ramonet, que é gravado
e reproduzido nos principais órgãos de difusão (Agência de Notícias), para
ser repetido incessantemente como um catecismo à moda antiga, de
perguntas e respostas, através dos principais órgãos de informações
econômicas.
Estes órgãos utilizam, em geral, uma linguagem hermética,
comumente apelidada de «economês», cujo acesso é permitido só a uma
«elite decodificadora» uma espécie de «bíblia» dos investidores, dos
agentes de Bolsa de Valores e assessoria dos «managers empresariais». Os
principais são The Wall Street Journal, Financial Times, The Economist,
Far Eastern Economic Review, les Echos, a Agência Reuter, A Gazeta
Mercantil, etc.- na maior parte propriedade dos grandes grupos industriais e
financeiros.
Mas haverá economia da salvação para os pobres através deste sistema
tão bem organizado, e que utiliza de maneira otimal a ciência de Marketing
nas suas produções em rede transnacionais? Até quando vai gerar tanta
miséria e nos fazer experimentar esta ansiedade e sentimento de
impotência, ao contemplar sua magnificência grandiosa, onipresente,
inatacável e ... sarcasticamente sorridente? Desde quando, na verdade este
sistema econômico funciona na história da humanidade? Será que foi
sempre assim? É lei natural que seja assim, como vimos acima?
Após a queda do muro de Berlim em novembro de 1989, o social-
comunismo deixou de ser referência, também na ciência econômica. O
capitalismo, o neo-liberalismo não tem mais opositores. Não tem mais
como esconder sua mão invisível. Mas até onde vão os adoradores do deus-
mercado? Segundo os analistas, diante de seu furor ideológico, não é
exagerado falar em dogmatismo moderno.
Até mesmo os homens responsáveis pela política, tanto de direita
quanto de esquerda, usam os mesmos critérios e linguagem, como se
cedessem à intimidação do sistema econômico, sufocando qualquer
tentativa de reflexão livre. Tornam assim sempre mais difícil a resistência
contra este novo obscurantismo, quase que delegando toda autoridade ao
poder do ter (sistema econômico) e seu porta-voz (poder midiático), de
forma que o ético-político, o saber e ser-religioso, lhes passassem a ser
apenas um acréscimo. 14
14
Sobre análise do poder medial hodierno cf. longa bibliografia apresentada in Missione
Oggi, op. cit. supra. Inclusive o próprio corpo do dossier que, embora sumário,
apresenta alguns quantificativos do poder medial em uso pelo sistema econômico.
20
Pequena amostragem do poder medial de informação em 1996.
No intuito pastoral deste trabalho escolar para o Brasil e dada a
escassez de informações no meu país, deixo alguns números do imenso
«planeta mídia». Entre as primeiras 300 empresas de comunicação e
informação, 144 são americanas, 80 européias, 49 japonesas e as restantes
são de propriedade de países do Norte. Em geral, o Sul do mundo, se se
exclui o Brasil, Índia e México - não dispõe de indústria de comunicação,
mesmo porque hoje, para cada cem palavras difundidas pela Mídia na
América Latina, 90 provêm de Agência de Notícia não-latino-americana.
Para medição do poder de uma Agência vejamos o exemplo da «Reuter».
Ela declarou em 14 de Fevereiro de 1995, que teve um ganho bruto em
1994 no valor de 510 milhões de libras esterlinas, cerca de um bilhão e
300 milhões de liras, com um crescimento de 16 % a mais que 1993.
A Agência é inglesa e nasceu em 1851, é especializada em informação
econômica e financeira. Com um estatuto de sociedade privada, como
cotação de bolsa de valores, tem mais de 11 mil dependentes, dos quais
1500 jornalistas (entre redatores, fotógrafos e câmerasmen), e 30 mil
assinantes. As notícias da Reuter, instrumento indispensável para qualquer
jornal, são transmitidas em cinco línguas: inglês, alemão, árabe, espanhol
e francês. Para termo comparativo, vejamos as suas «colegas». A
Associated Press, agência americana fundada em 1848, sociedade sem fins
lucrativos, tem 3.157 empregados entre os quais 1.323 jornalistas, e 17 mil
assinantes no mundo, (a metade fora da América). A France Press, nascida
em 1944, tem 670 jornalistas e 12.500 assinantes». 15
15
Cf. Reuter-Le Monde, Internacional nº. 66, 17.2.95.
21
Na poltrona da sala, no quarto ou na mesa de jantar:
com sabor de impotência
É um sistema tecnológico fascinante, com um poder até de
subliminaridade, isto é, com poder de atuação a nível abaixo da nossa
percepção consciente, que faz do cidadão um verdadeiro alvo do
bombardeio da propaganda. Ela, para ser realmente completa «made in
USA» deverá servir bem o alvo, digo, os fregueses telespectadores com os
três «SSSs: sun, sea, sex» - muita luz, com os melhores efeitos (sun), muita
água em turbulência marítima (sea), com boa dosagem de erotismo
provocando a libido (sex). Assim o telespectador, de forma subliminar,
portanto, imperceptivelmente, se «converterá« ao mundo colorido,
estimulador e provocante da receita de felicidade com as requintadas
fantasias do luxo e bem-estar, ao alcance do nosso bolso. Quanto às
informações, se faz espetáculo até com a tragédia. Sobre o mundo, ficamos
sabendo o que o «pensamento único» decidiu pelas suas Agências de
Notícias.
Às vezes chega-se a pensar que os 17,4 milhões de desempregados
europeus, o desastre no funcionamento das cidades, a precariedade geral
dos bens públicos, a corrupção, a tensão nas periferias das cidades, o saque
da ecologia, o retorno dos preconceitos raciais, dos integralismos e
extremismos religiosos, a maré dos excluídos, não sejam mais que uma
simples invenção e miragem, alucinações culpáveis em grave discordância
com este melhor dos mundos, construído pelo pensamento único para as
nossas consciências anestesiadas.
Todo saber esteja a serviço da vida para tudo e todos!
22
Capítulo três
Direito à economia de reciprocidade
1. Opção preferencial pelos pobres e
marginalizados16
Às vezes não acho bom nem lembrar. Dá arrepios e náusea.
Enterrei muito neném que morria de «subnutrição», segundo o
laudo médico; «é anjinho, melhor assim, foi com Jesus!»,
consolavam-se uns aos outros. Eu era padre novo, 25 anos, hoje
estou com 48. As comunidades tinham colonos de descendência
italiana, polonesa, cabocla e novos migrantes. Era periferia de
Curitiba – Paróquia de São Sebastião em Quatro Barras (PR),
Brasil. Após dois anos, conseguimos fazer o levantamento da
realidade e elaborado uma diagnose pastoral. Em cada uma das
oito capelanias havia junto do templo um pequeno terreno e
alguma construção de madeira para as três festas anuais de cada
localidade. Com mulheres dispostas da comunidade estimulamos
um processo de proteção à vida das crianças. Os homens também
apoiaram.
Após sete anos de trabalho sistemático, construímos oito
centros comunitários para prezinhos e creches, clubes de mães e de
gestantes e educação dos jovens à política. Com as economias da
pobreza de cada comunidade, não enterramos mais criança por
morte de fome. A primeira creche recebeu o nome de «Nossa
Creche». Ela nasceu num momento doído, um funeral infantil em
fins de novembro. Ficamos três domingos sem comunhão, como
penitência. A missa ia até o rito da oração dos fiéis. No dia de
Natal, fizemos um ofertório inesquecível: todas as pessoas que
tinham roupas de neném, fraldas, bercinho, trouxeram para o
presépio; assim começou a “a nossa creche”. O processo foi
multiplicando-se aos poucos, até por via política, na forma de
reivindicação. Tínhamos nosso slogan: “mais vale pobreza
partilhada que riqueza mal distribuída”.
16
Cf. TMA nº. 51, lembrando que Jesus veio para evangelizar os pobres, o Papa quer
fechar o ano de 1999 com o aprofundamento do tema da caridade: (...) este
compromisso num mundo marcado por tantas desigualdades sociais e econômicas (...)
os cristãos deverão ser porta-vozes de todos os pobres do mundo, propondo a festa do
Jubileu como um tempo oportuno para pensar, entre outras ações, numa consistente
redução, se não o total perdão, da dívida internacional, que pesa sobre muitas nações.”
23
Antes de vir à Itália, após 12 anos, passei por lá. Mesmo sem
o apoio efetivo de autoridades civis e, em certos momentos até
eclesiásticas, o povo tocou em frente os projetos animados pelo
velho refrão: «Eu vim para que todos tenham vida, que todos
tenham vida plenamente!»(Jo 10,10).
2. Uma nova ordem econômica mundial?
Até onde é realmente possível, neste contexto de crise de civilização,
uma nova ordem econômica mundial? A busca do novo nesta área angustia
porque é difícil, ao mesmo tempo porque trata da questão essencial da
sobrevivência. A esperança está na elaboração de novos princípios de uma
ciência econômica, que admita antes de tudo a necessidade da economia de
mercado, mas não sua suficiência, para que haja desenvolvimento
autenticamente humano.
A queda do socialismo real, como vimos acima, aumenta ainda mais
os riscos de absolutização de um sistema de mercado que se exclui das
valorações morais. Sem o socialismo, o sistema neo-liberal está dançando
sozinho e solto na avenida da oferta e da procura. Com as enormes fatias de
novos consumidores nos territórios antes ocupados pelo comunismo, o neo-
liberalismo vai, guloso, «fazendo novos ajustes» na sua geo-economia.
Apartheid Social
Nos estudos da relação teologia e economia, embora nos inícios, tem-
se chamado a atenção para dois fatores que mais preocupam neste sistema
com sua capacidade de gerar o chamado apartheid social: o primeiro, é a
denúncia da «irracionalidade da razão sistêmica».17
Porque irracional?
Porque promove o crescimento econômico, a produção da riqueza e na
mesma proporção a exclusão social. Isto o torna gerador de um quadro
crônico de injustiças e mostrando um onipotente poder de aumentar o
abismo a cada ano entre os muitíssimos pobres e os poucos riquíssimos em
todo chão aonde já chegou.
Estas e outras contradições surpreendentes têm sido percebidas graças
às ocasiões úteis como os encontros promovidos pela ONU no Rio de
Janeiro em junho de ‘92 sobre o desenvolvimento e ambiente e em março
de ‘95 em Copenhague sobre o desenvolvimento social. Nestas ocasiões
podemos observar os sinais de esperança para a vida. É que nestes
17
Cf. Hinkelamert, Franz. La irracionalidad de la racionalidad dominante. São José da
Costa Rica: Ed. DEI, 1994.
24
encontros cresce o grito de denúncia contra a irracionalidade da lógica do
sistema vigente ao mesmo tempo em que mostra o aumento do número de
associações públicas não-governamentais que procuram corrigir de modo
radical estas insensatas tendências do sistema.
É nestes encontros que as igrejas e religiões podem atuar em
profundidade, como aconteceu com a Santa Sé, nos encontros de ‘95 em
Estocolmo e em Pequim no 4º Congresso sobre a mulher (setembro ‘95).
Nestes encontros emergem o poder da própria organização dos excluídos
como uma força transformadora surpreendente porque o oprimido emerge
como sujeito criativo e reivindicador.
O «espírito faustoso» da «cultura universal»
O segundo fator responsável pelo apartheid social tem raízes antigas
na história econômica: é o «espírito faustoso» do sistema, ou seja, o
sistema é intrinsecamente egoísta porque não conhece limites desde que
seja para obter vantagens. Este espírito é fruto de mutações históricas que
adquiriram cidadania num processo de «longa duração».18
Antes que o
sistema surgisse e se consolidasse, a maior parte do poder do Planeta se
concentrava no Extremo Oriente. Não obstante, nem a China, nem o Japão
conseguiram tornar-se potência «mundial».
A situação só começou a mudar com a expansão do sistema europeu
de conquistas na Idade Moderna e que se fundamenta em três dimensões
interconexas: comercial, política e cultural. Este processo põe em evidência
o espírito de dominação. A conquista traduziu-se com freqüência na
superposição de uma nomenclatura nova à realidade conquistada. Novos
nomes substituíram os autóctones. Assim, nações que até o século XVI
eram pobres e estereotipadas como bárbaras, passaram ao processo de
acumulação de riquezas, dos grandes progressos no conhecimento e
aplicações no campo tecnológico.
A Ciência Ocidental reflete o mesmo espírito de dominação dos
conquistadores e colonizadores. Hoje o sistema tomou dimensão de uma
entidade global. A cultura sistêmica dominante é cosmopolita, porque é
constituída por pessoas e grupos econômicos pertencentes a várias nações.
Por isso esta «classe dominante»19
se apresenta como «cultura universal».
18
É o nome dado por Immanuel Wallertein in The modern World - Sistem II. New York
– London: Academic Press, 1980.
19
A análise foi cunhada por Fernando Braudel. Cf. La méditerranée et le monde
méditerranée à lépoque de Philippe II, 2o. Volume, Arnaud Colin, Paris 1966. É o
primeiro sistema que se inseriu na história. É fruto da expansão comercial, política e
cultural do Ocidente nos últimos cinco séculos.
25
Ela é, na verdade, um atentado contra-cultural, porque anula as culturas
locais, procura dominar e controlar tudo, sem limites, segundo o espírito
«faustoso» que a anima.
Zona-franca: paraíso fiscal com impunidade
Este sistema «mundial» apresenta-se com esta estrutura: um «centro»
onde se acumula a maior parte da riqueza e tem o maior foco de poder. Ao
redor deste «centro» se encontram os «quarteirões periféricos» que
também conseguem acumular associando-se ao poder central, depois vem
as «periferias» conquistadas e subjugadas economicamente. Afora algumas
que conseguem alianças, estas em geral trabalham a serviço do poder
estabelecido no centro do sistema. Existem lugares que ligam centro e
quarteirões com as periferias distantes, aí também acontece uma certa
acumulação como é o caso das grandes cidades-porto, que hoje cedem
lugar às chamadas «zonas-francas», verdadeiros paraísos fiscais, onde o
poder econômico e financeiro internacional podem operar com liberdade,
isto é, impunemente.
Atualmente, num momento em que os Estados Unidos da América do
Norte é o país mais endividado do mundo, o centro está se deslocando para
o Extremo Oriente, no Japão e os quarteirões periféricos, os chamados
tigres asiáticos, a China ou outras nações do sudeste asiático. A outra opção
é a Europa Ocidental, cuja área de poder mais sólida se encontra entre
Londres, Paris, Berlim e Milão. Esta mudança intra-sistêmica é uma das
causas mais importantes da instabilidade atual.
Esperança: a solidariedade competente
Mais que a eficiência como propriedade nesta nova ordem econômica,
, é necessário, embora difícil, que o mercado tenha instituições a serviço do
bem comum e da cooperação. Em segundo lugar, é preciso desmascarar e
desobedecer à orientação de que se diminua a solidariedade do setor
público-governamental, tanto a nível internacional quanto a nível interno,
nacional. São raros os Estados que tem aceitado contribuir com o 0,7% do
próprio Produto Interno Bruto para auxiliar o desenvolvimento
socioeconômico dos países pobres, acordados na ONU.
É verdade também que, de forma particular, existem setores da
sociedade que procuram preencher esta carência com contribuições
voluntárias. É óbvio que, não obstante a sua generosidade, estas
manifestações de solidariedade estão longe de ser suficientes. Mas sem
estas contribuições, a situação dos pobres seria ainda mais difícil. Apesar
de todos os esforços que os pobres fazem na tentativa de sobreviver, a
pobreza e a miséria crescem progressivamente em quase todo o mundo.
26
E, fato ainda mais grave, o descuido pela sorte dos pobres se
manifesta a nível interno na maioria dos países. A adoção de políticos
«neo-liberais» e de planos especiais de organização econômica deixam os
pobres numa situação dramática. Desprovidos de cuidado, se sentem
atraídos por várias formas de violência e de outras de natureza ilegal. Uma
grande parte da responsabilidade na organização destes processos dizem
respeito às tendências sistêmicas predominantes.
«Irracionalidade da racionalidade sistêmica»
A «irracionalidade da racionalidade sistêmica» se traduz na ideologia
que diminui a importância do social e de seus valores, ideologia que apela
sistematicamente ao individualismo. Neste contexto ideológico a única
«coisa» social que parece ter valor é «o mercado» que tem pouquíssimos
de social, como todos sabemos.20
Esta ideologia induz e explora um
«sentido de pertença comum» tão dominador que induz as maiorias, seja no
Norte como no Sul, a aceitar custos e sacrifícios muito altos quando se trata
de salvar o sistema, o tal mercado. É uma ideologia útil para aqueles que
administram instituições e processos sistêmicos, de roldão aderem também
os pobres, aliciados a sacrificar-se no altar do sistema. A esse respeito já é
possível falar de uma «religião civil»21
cujo núcleo sacro tem como uma
das manifestações mais evidentes, o mercado como «totem» porque se trata
de um manufaturado, de uma obra humana.22
É neste discernimento e enfrentamento que as religiões, as igrejas, as
organizações comunitárias humanizadoras podem entrar repondo os valores
da pessoa, como a mais sagrada riqueza, fortalecendo organizações, através
de encontros, troca de «know-how», mesmo correndo os riscos da
ambigüidade.23
20
Lembre-se a afirmação de Margareth Thatcer: “There is not such a thing society” (Não
existe uma coisa como a sociedade). Uma orientação análoga pode-se entrever na
impostação econômica do Presidente Reagan (Reagonomics), que predomina nos
Estados Unidos entre 1981 e 1992.
21
“Religião civil” segundo o sentido conferido por Rousseau, J.J, in Contrato social.
Paris: Aubier-Montaigne, 1976, p. 427.
22
A relação teologia e ciência econômica parece estar dando os primeiros passos. Cf.
Produções de Júlio de Santa Ana e outros in Concilium 5 (1995); as obras de Jung Mo
Sung, Ed. Paulinas, Brasil e de F. Hinkelammert , DEI, San José de Costa Rica e Hugo
Assmann, Ed. Paulinas, Brasil. Vide para o Brasil, estudos in Tempo e Presença, CEDI,
268(Ano 15); Perspectiva Teológica 70 (1994).
23
A escassez de espaço não permite apresentar no corpo do texto excelentes estudos
sobre Ética e economia, sobre a cultura da solidariedade cristã, a busca de mercados
competentes e criativos na relação de comunidades-irmãs do Norte e do Sul, onde a
postura da caridade vai junto com a justiça e reciprocidade, superando alienação e
27
A busca de uma solidariedade competente não visa só superar a
instância de “esmola, de ajuda”, nem tampouco apenas criar “ilhas de
troca” entre comunidades, muito menos ainda os planos com o “invólucro
de solidariedade” mas cuja ação burocrática corrupta canaliza os fundos
para seu próprio bem-estar em vez de atingir o alvo que é sujeito-
comunidade-local em libertação. A verdadeira solidariedade vai ainda mais
longe. Supera a ingenuidade de atuação, usando os mesmos campos e redes
de mercado, porém, com um espírito concreto e vigilante de economia de
reciprocidade à moda de inúmeros esforços que se tem feito nas últimas
décadas.24
É também aí que o serviço e a arte da ciência política diante da
economia pode acontecer no habitat concreto da comunidade.
Entre os Mbyá Guarani, a ordem econômica é de “economia de
reciprocidade”. Eram cinco milhões, na descoberta e invasão européia
do Brasil. Após 500 anos foram reduzidos a 200 mil. Em 1996,
arriscam perder ainda mais espaço. Mesmo como “guarani em beira
de asfalto” não desistem de sua língua, fé e tradições.
irenismos. Cf. Jesus Ano XV-8(1993). São cerca de 1500 documentos episcopais sobre
a questão social, já reunidos pelo Instituto Internacional J. Maritain, dos últimos cem
anos; cresce o interesse e a urgência de pesquisa e profecia neste campo por parte da
Igreja. Os documentos do Magistério tem despertado sempre mais interesse.
24
Para informações detalhadas sobre o crescimento e desenvolvimento de setores de
comércio equo-solidário, sobre financiamento ético e economia social “non-profit” (sem
lucro) procurar o CTM MAG Servizi: Centro Ricerca - Formazione - Comunicazione ,
Piazzetta Forzaté, 2 - 35 137 Padova - Italia. Fax 049/8755714 - e-mail:
bancaetica@cda.it
28
Capítulo quatro
Política é coisa suja?
Sobre o nosso direito de interferência
política
Se a resposta é não, estamos com Jesus de Nazaré. Mas o modo como
está sendo vivida neste mundo em crise, onde se esvazia sempre mais o
sentido de autoridade servidora do bem comum, o serviço de política está
desacreditado. Estamos carentes de paradigma também nesta área. Há dois
textos paradigmáticos da vida de Jesus que podem nos ajudar a aprofundar
o sentido desta arte tão antiga quanto a humanidade: a arte de se interessar
pela boa convivência e o bem de todos, a arte de fazer política, como
veremos logo a seguir.
1. Jesus e a Política
Baste-nos, por ora, encontrarmos com Jesus em duas idades
sacramentais de sua vida. Haveria muitos outros textos com suas palavras,
fatos e atitudes, a ponto de fazermos um longo tratado sobre Jesus e a
política.
Aos 12 anos
Aos doze anos ele dá um susto nos pais. Foi logo após a festa de sua
maioridade religioso-política, conhecida como “Bar mitzvah”, em
Jerusalém, na capital. Jesus fica na cidade e seus pais, após longa e aflita
procura, o encontram no centro religioso, político e de referência social
judaica: no templo da cidade santa. Usando o direito de participação que a
lei lhe dá, o jovem nazareno não se intimida diante das autoridades de seu
povo e discute com eles.
Conta o Evangelho que “após três dias de procura, os pais de
Jesus o encontraram no templo, sentado entre os doutores,
escutando-os e interrogando-os. E todos aqueles que o ouviam
ficavam pasmos de admiração pela sua inteligência e a
sabedoria de suas respostas.” (Lc 46-47).
Aos 30 anos
Vinte e poucos anos mais tarde, Jesus voltará a defrontar-se com as
autoridades, no mesmo pátio do templo. Dali Jesus sairá para levar a lei e a
política do amor até as últimas conseqüências numa condenação injusta e
29
morte violenta. Tudo começa em Nazaré entre seus parentes e
companheiros de idade.
“Jesus voltou à Galiléia com a potência do Espírito Santo e
a sua fama se espalhou por toda a região. Ensinava nas
sinagogas e todos lhe davam muitos elogios.
Vai a Nazaré, onde tinha crescido; e entrou, segundo o seu
costume, na sinagoga e se levantou para ler. Deram-lhe o rolo
com o livro do profeta Isaías; abrindo-o, encontrou o trecho
onde estava escrito:
‘O Espírito do Senhor está sobre mim; por isto me
consagrou com o óleo santo da unção, e enviou-me para
anunciar uma alegre notícia aos pobres, para proclamar a
liberdade aos presos, devolver a visão aos cegos; libertar os
oprimidos e anunciar o ano de graça do Senhor.’( Is. 61,1-2)
Depois enrolou o livro e o deu ao ajudante e se sentou. Os
olhos de todos na sinagoga se fixaram nele. Então começou a
dizer-lhes: Hoje se cumpriu esta escritura que acabastes de
ouvir.” Todos se orgulhavam dele e se maravilhavam com as
palavras de sabedoria que saiam de sua boca, e diziam: “Não é
este o filho de José, o carpinteiro?” (Lc. 4, 14-22).
Querendo que fizesse milagres para dar demonstração de poder e de
sucesso Jesus lhes responde que “nenhum profeta é bem aceito em sua
terra”. O pessoal ficou furioso e o levou para fora da cidade para jogá-lo no
precipício. Jesus, porém, passando no meio deles, segue seu caminho.
2. O descrédito de nós mesmos no descrédito da
ciência política
No campo da ciência política há muitos tabus a serem quebrados, pois
o exercício desta arte chegou ao máximo de desprestígio. O analfabetismo
da humanidade no que se refere ao uso deste poder essencial nas mais
variadas culturas, produziu neste segundo milênio e, de forma violentíssima
no século XX, milhões incontáveis de vítimas.
O que é a política? A própria palavra de origem grega já traz o
significado-básico, ou seja, a arte de orientar com prudência a convivência
entre pessoas. Em outras palavras, é a ciência que resguarda os direitos do
cidadão a viver respeitado, útil, solidário em sua sociedade. O quanto de
novidade estamos carentes nesta área de convivência, especialmente nas
megalópoles, faz-nos lembrar a magistral obra de Ernst Cassirer, cujo título
de capa já sintetiza a dimensão da problemática política: «A multidão
solitária».
30
A freqüência dos suicídios em épocas de grandes festas, a eficiente
rede planetária do narcotráfico que há 30 anos mutila gerações de jovens na
fuga de si mesmos e da inaptidão para a convivência com a alteridade. A
venda de drogas é o segundo comércio da atualidade. Os ambientes de
trabalho nas fábricas onde o sistema de industrialização visa apenas o
quantitativo de produção e renda, sem dar possibilidade de participação
consciente e cooperativa dos trabalhadores. As inúmeras e vergonhosas
guerras e seus armistícios hipócritas escondendo sempre o trabalho da mão
invisível do mercado vendendo armamentos e mantendo o seu recorde
como o mais vantajoso comércio do século.
Sem esquecer que é tarefa política administrar os outros setores da
proteção à vida especialmente, a segurança (que deveria ser entendida mais
como proteção do que defesa), a moradia, a instrução, a saúde e o lazer.
3. Na crise dos paradigmas de autoridade: a
orfandade planetária?
Com as mudanças de 1989 produziram-se ainda alguns cenários
inéditos e em grande parte imprevisíveis: a crise das ideologias não
significou só o fim das trágicas opressões do Leste, mas também o
desfalecimento de tecidos sociopolíticos que pareciam compactos, e o
emergir deste processo de trituração de reivindicações particularísticas com
violência inaudita. O vazio terrível produzido pelo fim da lógica da
contraposição demonstrou que o consenso coagulado «contra um
adversário” não correspondesse de fato a um análogo crescimento da
consciência moral e cívica.25
O desencanto produzido em muitos «órfãos» da ideologia, o triunfo
efetivo deste modelo ideológico ainda mais sutil e perigoso, que é o
hedonismo unido ao individualismo exasperado da sociedade opulenta do
Ocidente, determinaram uma crise ética, cujas dimensões hoje são
dificilmente calculáveis.
Neste vazio de valores onde triunfam os modelos da «decadência», as
propostas de otimismo a alto preço de mercado, o afastamento da
solidariedade por detrás da máscara do estilo do «cada um por si» que
sacrifica precisamente os mais fracos, sem poder aquisitivo dos bens até de
primeira necessidade; a procura do lucro fácil e do sucesso a qualquer
preço, e a perda dos mais elementares princípios morais.
25
FORTE, Bruno. L’Essenciale è vivere la carità, in Jesus 11 (1995), p. 64.
31
As associações sociopolíticas do passado perderam a sua razão de
consistência: não é mais a bandeira ideológica que possa sustentar um
consenso, nem mesmo a bandeira ligada a um programa de inspiração
cristã, como o demonstra o fim do partido único dos católicos na Itália, a
famosa Democracia cristã. Apareceram vencedores o pragmatismo, a
capacidade de sedução, a força dos persuasores ocultos ligados ao poder da
mídia, os particularismos regionais e econômicos, em geral de baixíssimo
nível, cujos aspectos já analisamos.
Mas o tabu maior que sobra como saldo é que realmente há uma perda
de credibilidade geral no setor. Cai assim com o político um referencial
importante para a vida das comunidades humanas que é o valor da
autoridade. Em poucas décadas, nosso século colheu consequências com
feridas ainda vivas na pele e na mente de inúmeros cidadãos, frutos podres
dos totalitarismos de direita e de esquerda em todo o Planeta: de Hiroshima
a Dachau até Ruanda e Burundi.
Um novo jeito de governar: “de satanás a anjos da guarda”
Nosso jeito dominador e não sabiamente servidor da vida, de todas as
vidas é responsável por todas as vítimas. Nossa aproximação da “mãe
natureza” ainda é o pior possível. Finalmente a Teologia também dá aqui
seus primeiros passos e nos ajuda a abrir os olhos para mais este fruto de
uma relação de pecado estrutural, a nossa relação de dominação em vez de
diálogo com a mãe natureza. "Não será possível tratar a natureza como a
trata a nossa sociedade, quase como se ela fosse supermercado ou um self-
service.
A natureza é um patrimônio comum que vem sendo assaltado sem
piedade, mas que é urgente conservar... De satanás da terra, o homem deve
educar-se a se tornar seu Anjo da Guarda, capaz de salvá-la como sua pátria
cósmica e mãe terrena.”26
"Os astronautas nos acostumaram a ver a terra como uma astronave,
que se equilibra azulada nos espaços siderais, portadora do destino
comum de todos os seres. Acontece, porém, que nesta nave-Terra 1/5 da
população viaja na parte reservada aos passageiros, consumindo 80% das
reservas disponíveis para a viagem, enquanto os outros 4/5 viajam no
bagageiro, passando fome, frio e toda sorte de privações". As estatísticas
registram em dados recentes que a acumulação integrada hoje em nível
mundial, exige uma Hiroshima-Nagasaki por dia em vítimas humanas. Mas
26
Cf. BOFF, LEONARDO. Teologia da libertação e ecologia, in Concilium 5(1995)
pg. 113ss.
32
às vezes o próprio fato de delegarmos tais horrores às estatísticas é mais um
sintoma de nossa fuga ao informacionismo.
Na verdade, o progresso é imenso, mas profundamente desumano. Ao
centro deste não estão a pessoa humana e os povos com suas necessidades e
as suas preferências, mas a mercadoria e o mercado aos quais tudo e todos
devem estar submissos. Neste contexto o ser mais ameaçado da criação não
são as baleias mas os pobres, condenados a morrer prematuramente.
E para dar espaço à realidade, Leonardo lembra que as estatísticas da
ONU mostram que neste nosso mundo quinze milhões de crianças morrem
antes de concluir o quinto dia de vida, por causa da fome ou de doenças
derivadas dela; 150 milhões são subnutridos, enquanto 800 milhões de
pessoas vivem padecendo fome crônica.27
Mas se estamos descobrindo ainda o ABC de nossa
corresponsabilidade, é sinal que muito preço deveremos pagar ainda para
uma relação de verdadeira amorização. Isto no tocante à política com a
natureza, imaginemos para pisar no concreto, a caminhada política das
relações humanas solidárias. A nível interno de Igreja há que se superar
muitas dicotomias em vista desta fraternidade cósmica.
4. A Igreja é essencialmente política:
Até quando o dualismo – profano/sacro?
Os que militam na área, mesmo se cristãos, sentem-se soltos e
desamparados no perigo. A propósito, cai bem o depoimento de Card.
Martini sobre a desproteção do político «vocacionado». «Recordo o que um
político africano, ouvinte do sínodo sobre os leigos, dizia: “Os cristãos
comprometidos na política estão colocados num campo impuro, em parte,
não todo - onde o exercício da força e da luta pelo poder são determinantes
e é uma pena constatar que não existem nem a nível nacional ou
continental, nem em escala internacional, lugares de recuperação espiritual,
fontes de revisão, abastecimento, «carrefours» de aprofundamento,
estruturas eficazes de apoio para o cristão que atua na área.»28
.
Lembro, a propósito desta verdade do parlamentar, uma experiência
de debate dos 11 candidatos à vereança do bairro de Capoeiras em
Florianópolis (SC), Brasil, para as eleições municipais de 1988, se não me
engano, e que registrou a presença de 200 participantes, numa comunidade
27
Cf. UNDP. Human Development Report 1990. Oxford - New York: Oxford
University Press, 1990.
28
Cf. MARTINI, CARLO MARIA. Viaggio nel vocabolario dell’etica. Casale
Monferrato: Centro Ambrosiano/Edizioni Piemme, 1993, p. 94
33
de 11.000 eleitores. Aquelas ausências devidas, sem dúvidas, ao tabu de
que «política é coisa suja!« e que «igreja não se mistura com política». E
quanta crítica ao tipo de teologia que procurava refletir o ser cristão na
política, em vista da transformação da realidade a fim de que a vida de
todos fosse respeitada!
5. Quando teremos escolas de educação à política?
Não haverá muito «mea culpa» a pedir da parte das instituições
eclesiásticas, pelo medo das consequências do profetismo na vida política
das comunidades? Não há dúvida de que atuar neste âmbito é delicado,
perigoso e arriscado. Em primeiro lugar, porque mexe com os interesses de
grandes grupos econômicos, depois, porque mexe com o grupo oligárquico
de turno no poder, bem como, tem a cooperação do próprio eleitorado,
habituado a negociar o voto por favores individualistas em vez de valorizar
os interesses comunitários.
Por isso, na busca do novo modo de fazer política, o discernimento é
fundamental em quaisquer operações. Exemplifiquemos com o movimento
que ocorreu na Itália, conhecido como operação «mãos limpas»,
semelhante às CPIs do Brasil. ‘Trata-se da coragem de trabalhar no
profundo das causas e de educar a comunidade numa visão «de tempo
longo», e que exige muita «paciência e persistência históricas», como toda
boa pedagogia o deve exigir. É um trabalho de educação a ser feito
especialmente com as novas gerações, desde a catequese, superando todo
dualismo entre fé e vida, fé e realidade.
Assim aquele binômio prioritário «educar à comunhão e à
participação» apontado pelos bispos latino-americanos em Puebla de Los
Angeles, no México em 1978, junto à escolha da opção preferencial pelos
pobres, continuará vigendo para além dos dez anos previstos. É uma
educação permanente.
E as estatísticas sobre o nível de participação nos desafiam em todos
os sentidos. Há pouco, outra voz africana, desta vez a delegada do Burundi
à Conferência de Copenhague, organizada pela ONU sobre o
desenvolvimento social, em março de 1995 declarou, surpreendendo os
participantes que «90,3% dos deputados do mundo são homens e que 100
países ainda não tem mulheres no Parlamento.» E se no Brasil pensarmos
em termos étnicos de representação parlamentar, numa terra morena como
a nossa, a segunda nação negra do mundo, a primeira é a Nigéria, quanto
caminho ainda por fazer! São raríssimos ainda os negros na vida pública
civil e entre as autoridades eclesiais. Entre 283 bispos, três apenas são
negros.
34
6. As autoridades de Igreja como educadoras de
educadores políticos
No contexto de política onde a crise mundial tem pedido contínua e
urgente purificação, é muito difícil trabalhar com cabeça fria, sem ser
invadido pela emoção. Nas análises destas situações, o discernimento é
fundamental. Vale lembrar a postura pastoral de Martini, Cardeal de Milão,
portanto, em pleno centro de comando da operação «mãos limpas» na
Itália.
Usando a TV e os grandes meios de comunicação de massa, o cardeal
atuou com o grande público com informações essenciais de como atuar em
profundidade, contra as causas da corrupção. «Estas causas estruturais,
supondo que já estejam identificadas, são comportamentos de uma
sociedade, hábitos de grupo, ou são por assim dizer institucionais, quero
dizer, codificadas pelos regulamentos e por leis que produzem, como efeito
colateral, comportamentos reprováveis e, porém, de fato, inevitáveis para
obter determinados fins políticos?
No primeiro caso basta recorrer à moral, mas no segundo, o
problema se torna problema de todos, e é necessário estudá-lo atentamente
e profundamente para desamarrar aqueles comportamentos que, não
obstante a boa vontade de alguns - poucos ou muitos - terminam por
obrigar quase a utilizar meios ilícitos.»
Ampliando, então, sua análise numa visão mundial da política, Martini
diz: «Em não poucas situações políticas de nosso planeta, surge a suspeita
de que a multiplicação de casos de transgressões no âmbito administrativo
e político não seja devido simplesmente ao crescimento de degradação de
indivíduos singulares, mas a fatos mais estruturais. E isto influencia nas
relações de confiança global entre os cidadãos e a classe política,
portanto, sobre o funcionamento correto do próprio sistema constitucional
no seu conjunto. Então o sistema deve tornar-se público e não se pode
permitir que alguém recue, ou quem se desresponsabilize.»29
Embora a irresponsabilidade comece pelos grandes poderes da terra
corrompendo seus próprios compromissos como ocorreu em Estocolmo. Na
palavra do Diretor Geral da UNESCO, Frederico Mayor Zaragoza, «os
países ricos estão dando um espetáculo lamentável com seu
comportamento junto dos países pobres nesta conferência». E se tratava
exatamente de dois posicionamentos: o primeiro diante do perdão ou
abaixamento da dívida externa dos países mais pobres. Do grupo dos sete
mais ricos, nenhum aceitou. E o segundo, quanto ao pagamento de suas
29
Idem, p. 95ss.
35
dívidas com o desenvolvimento assumidas pela oferta de 0,7% do Produto
interno bruto, todos estavam inadimplentes.30
A opinião de Santa Catarina
Há ainda sinais de esperança?
Houve outras épocas em que a interferência do feminino trouxe muitas
luzes neste campo e eram tempos de segregação ainda mais violentas que
hoje sobre o espaço-mulher. Nos tempos de Santa Catarina, não aquela que
é padroeira do meu estado natal que dizem ser Santa Catarina de
Alexandria, esta era de Siena.
Considerada doutora da Igreja, nos tempos de grave crise social e
política ela saiu a campo e foi aconselhar o governo da Igreja no qual se
misturavam os poderes temporal e religioso. Ela viveu de 1347 a 1380 e
desenvolveu intensa atividade de pacificação entre estados, cidades e
vilarejos, lutando pela unidade da igreja. Conservam-se 381 cartas ditadas
aos seus alunos e muitas destas tratam de argumentos políticos. Ela insiste
em dois princípios essenciais para viver uma santidade política.
Numa de suas cartas, Catarina descreve assim aos governantes da
cidade de Siena:
“É mau apoderar-se de coisa emprestada como é o poder
público, se primeiro não se governa e se domina a si mesmo.
Poder emprestado é o poder de governo das cidades, dos bens
temporais que nos são emprestados e aos outros homens do
mundo, e, que nos são emprestadas por tempo determinado,
segundo o agrado da bondade divina e de acordo com os modos
e costumes de cada região.
De qualquer maneira, é sempre um poder emprestado.
Quem o usa deverá possuí-lo com santo temor, com amor
ordenado e não desordenado, como coisa emprestada e não
própria.”31
30
Cf. In Religión y Cultura, 192 (1995), La cumbre de Copenhague, pp. 135-145.
31
MARTINI, op. cit. p. 117ss. Toda a longa explicação é uma jóia rara para o nosso
momento histórico.
36
Capítulo cinco
Direito à ética: Sem
corrupção, mas com
ternura e graça
“A ética é a obediência ao não
obrigatório.”
1. O que é Ética?
Em nosso percurso, de olho nas realidades essenciais, vamos parar na
estação dos valores. Na verdade, já os temos mencionado ao longo deste
trabalho, visando preparar a casa para a festa do 3o. Milênio e o resgate dos
direitos humanos. Começamos observando que hoje é muito comum falar
de ética na economia, na política, na vida pública.
Os historiadores dizem que quanto mais uma sociedade está carente de
moralidade pública, mais se fala. Eles dão razão à sabedoria do povo
quando diz que a boca fala do que o coração está cheio. E mais, os estudos
dos historiadores mostram que as grandes épocas de reflexão sobre a ética
acontecem nos momentos de transição da humanidade e é quando se
verificam também os grandes episódios de corrupção.
Mas o que é ética? Primeiro olhemos a origem da palavra que também
vem dos gregos, quer dizer «aquilo que se faz costumeiramente, como
rotina”. «Ethos» em grego significa, sobretudo o caráter, a maneira de ser,
o bom comportamento de uma sociedade.
Para os gregos, porém, trata-se de uma sociedade bem ordenada, de
uma sociedade boa. Então, ética indica os comportamentos que uma
sociedade, na sua sabedoria e experiência, tem como positivos para a paz e
a ordem na convivência social, para o progresso dos cidadãos e o aumento
da qualidade de vida para todos. Tais comportamentos são «éticos», quer
dizer, eticamente honestos.
É ético, isto é, inegociável
Há também um outro elemento. É quando usamos o termo ético no
sentido absoluto: o que é bom em si, aquilo que evitaremos a todo o custo,
e em qualquer caso sem que nem mesmo pensemos em vantagens pessoais
37
ou sociais, algo que é totalmente digno do ser humano, algo que é
inegociável, sobre o qual não se discute, nem se transgride.
Há, enfim, um quarto significado que é a ética como ciência de
reflexão filosófica e que trata do comportamento humano e o seu sentido
mais profundo. Não é motivo de orgulho e de alegria que os seres humanos
tenham chegado a intuir a existência de comportamentos que são colocados
acima do prazer, do ganho, do lucro? Comportamentos que não tem preço,
porque estão acima de qualquer preço. Por isso o tema da ética deverá
sempre recuperar o sentido do otimismo, da esperança.
2. Mesmo na crise da ética, a esperança cristã
repesca a alegria
Às vezes, associamos o tema da ética, do comportamento, da moral,
com homens e mulheres, denunciadores severos, inflexíveis, sisudos. Creio
muito enriquecedor partilhar nesta pesquisa o depoimento de Martini,
Arcebispo de Milão, feito via conversa televisiva, como já dissemos; nas
entrevistas ele sugeria, que fôssemos capazes de conversar sobre moral
com seriedade, mas mantendo o caráter de encorajamento, animação e
conforto do povo.
Ele assim explicava: «a grande palavra da ética é: tu podes muito
mais, é possível fazer melhor, és chamado a algo muito mais lindo na vida;
é possível ser honestos e é uma aventura extraordinária do espírito...
Exatamente, de tal espírito de otimismo temos necessidade para não
perdermo-nos em lamentações estéreis e obedecer ao mandamento
fundamental da ética: procura ser mais autenticamente tu mesmo, ser mais
verdadeiro, mais livre, mais responsável.»32
Melhor um homem morto do que uma obra de arte destruída! (?)
E para ir mais fundo nas explicações aos telespectadores sobre esta
verdadeira característica da ética, da moral, de tratar daquelas ações que
são absolutamente dignas ou indignas do ser humano, contou-lhes que um
colecionador de obras de arte, no início da segunda guerra mundial, diante
do perigo dos bombardeios e da possível destruição de obras artísticas,
escrevera este princípio: melhor um homem morto do que uma obra de arte
destruída!
Este é um exemplo de uma sentença moral, ética, de um modo de
pensar que nenhum homem e mulher bons da cabeça poderiam jamais
aprovar. É claro, todos apreciamos obras de arte, porque são tesouros da
humanidade, mas a humanidade é bem maior do que seus tesouros. Assim,
32
Martini, op. cit. p.16.
38
toda doutrina ética ensina a refutar tais aberrações que são afins com todo
tipo de preconceito racial, ou outros, contrários a todo sentimento de
humanidade.
Revendo e aprofundando estes valores e referindo-os com o que vimos
acima sobre o mundo da filosofia, do saber, da economia, dos meios de
comunicação, da política e suas leis, já podemos imaginar o quanto tem a
ver conosco. Com todo o ser humano, sobretudo se foi evangelizado e com
o momento histórico a ser transformado, e, o que de ético deve ser
preservado a qualquer preço.
Antes, porém, de encaminhar o último capítulo desta nossa viagem em
busca de perspectiva de novidade cristã na crise da mundialidade atual,
precisamos concluir o percurso entre as ciências-chaves das comunidades,
indagando sobre a ciência que caminha junto da moral: a ciência dos juízes
e advogados, o Direito, a legalidade.
3. Uma nova legalidade?
Podemos compreender melhor o que é Direito em relação à ética. Pois
bem, se esta se interessa pelos comportamentos de valores humanos, o
Direito colhe e se interessa pelo conjunto de normas positivas que as
sociedades se dão, para responder a esses imperativos morais profundos e
traduzi-los na prática do dia-a-dia.
Estas leis só terão valor se se mantiverem fiéis àqueles princípios
respeitados por todos. Sobre o respeito com o próximo, por exemplo, o
Direito diz apenas: respeita o outro, também o estranho, promove o bem
comum, ou, ao menos, não faças o mal. A moral, a ética, em vez, vai mais
longe e sugere: seja próximo dele, considera o outro como membro de tua
família, o mais possível!
A lei do bom samaritano
O primeiro preceito da moral está indicado na parábola do Bom
Samaritano que desce do cavalo para socorrer o ferido de uma outra etnia,
que encontra caído na estrada, e providencia tudo para ele. A moral, pede
que se faça aos outros o que queríamos que eles fizessem para nós.
Direito e moral não se chocam, mas se unem para criar uma sociedade
não só vivível mas boa e fraterna. Este é o ideal de uma comunidade à
medida da pessoa humana, é o ideal que nasce do credo religioso com forte
conteúdo ético como é próprio da tradição hebraica e cristã.
Muitos chamam a atenção para a urgência de instaurar uma nova
cultura da legalidade, de caráter cultural para além do caráter legislativo.
Na crise da sociedade italiana o próprio santo padre João Paulo II insiste
num compromisso amplo em vista de uma grande recuperação da
39
legalidade, como primeiro remédio para resgatar o país da situação na qual
se encontra: «não há ninguém que não veja a urgência de recuperação de
uma moralidade pessoal e social, de legalidade. Sim, é urgente a
recuperação da legalidade.»
Leis ou “lobbies” legalizados?
Junto a um eclipse da legalidade (e quase como sua conseqüência)
devemos observar também um afastamento cada vez maior de uma ação
política autêntica. É sinal de sua doença quando passa a legislar e ser
manipulada de modo redutivo diante do tumultuado desenvolvimento da
subjetividade privada e pública. É preciso sondar, se está favorecendo o
aparecimento de um neofeudalismo em cujas corporações e lobbies se tem
a tendência a ditar leis a serviço de privilégios.
Para que aconteça um justo e útil desenvolvimento de autonomia dos
indivíduos e dos grupos, é necessário que exista um forte e unitário quadro
de referências que garanta regras de comportamento comum. As leis
nascerão assim de uma síntese superior que reúna os interesses comuns, em
vez de tornar-se o fruto de um contrato com determinadas partes da
sociedade que, sendo mais fortes, tem o poder de sentar-se, à mesa de
negociações, com o direito de exercitar o poder de veto.
Evitar-se-á deste modo também aquelas belíssimas «leis-manifesto»
que, porém, não possuem estrutura e recursos adequados, e que afundam
miseravelmente no primeiro impacto com a realidade.
Mas uma verdadeira, consciente e nova cultura da legalidade exige
algo mais profundo e seria importante, por isso, voltar-se para a referência
rica do vocabulário bíblico, quando queremos aprofundar a noção de lei.
Pintura de Giuseppe Pollarolo. 2000 anos de Maria.
Otimismo ético de Maria, mãe de Jesus de Nazaré.
40
4. De volta às fontes bíblicas, lições jurídicas sempre novas
As palavras usadas a este propósito na Escritura são muitas, como o
demonstra a riqueza do salmo 119 todo tecido de termos referentes à lei;
são termos que significam, vez por vez, instrução social-religiosa-cultural-
política de origem divina, testemunhos passados fielmente no que respeita
o ethos (jeito próprio de ser) de uma comunidade. A lei se torna assim, o
caminho a ser seguido com rumo certo à felicidade e à vida.33
A cultura da lei, com raízes no povo de Deus da bíblia, não se apoia
simplesmente em leis externas, mas na realidade dialogal da Aliança, isto é,
naquela relação privilegiada que se instaura entre Deus e seu povo e entre
os membros do povo. A experiência do amor de Deus, reconhecida ao
longo da história dos antepassados, a sua grande ação providencial,
fortalece e desenvolve a consciência de um amor divino e de uma missão
religiosa, social e política, das quais as leis são consequência e condição.
Leis que representem ideais coletivos
Leis, então, a serviço da vida, para o bem, para o futuro, para o
progresso do povo. E não leis que possam tornar-se permissão à morte,
como todas as aberrações contra a vida, de ontem e de hoje, cujo
arrependimento e conversão, se faz proposta corajosa pelo Papa, para a
festa do 3º milênio.
Uma cultura da legalidade deve, portanto, plantar suas raízes num
profundo ethos religioso, social e cultural. Deve distinguir-se do legalismo,
favorecendo situações nas quais a lei seja respeitada não só pelo seu valor
formal ou pelas sanções que comporta, mas pelo seu valor e seu significado
intrínseco, pela sua capacidade de representar os ideais e os fins de uma
coletividade.
Com a graça do fôlego dos pobres
É difícil realizar o “novo” tão suspirado quando viajamos pelos
setores complexos e estruturais com tantos desafios para as comunidades
nesta nossa época. Às vezes nos escondemos, noutras nos cansamos. Mas
ninguém nasce fora de época. Cada um vem “sob medida” para fazer a
história. E a tarefa de viver com amor, lei maior, exige sempre uma graça
especial.
33
Cf. Análise por uma nova legalidade in Martini, op. cit. p. 104ss.
41
E aqui podemos lembrar o samba que diz: “viver e não
ter a vergonha de ser feliz, cantar e cantar a beleza de ser
um eterno aprendiz; ai meu Deus! Eu sei que a vida devia
ser bem melhor e será, mas isto não impede que eu repita: é
bonita, é bonita, é bonita!”34
E esta lição podemos aprendê-la do mundo dos pobres. Talvez o de
que necessitamos seja a graça do fôlego dos pobres, ou antes, dos
miseráveis que nos evangelizam as possibilidades e as esperanças porque
às vezes só dependem de um financiamento. Deus. «Deus lhes pague!» São
os verdadeiros «anawin», os «pobres de Javé». Só Ele é seu patrocinador.
Quem conhece a força dos pobres, a sua impossível alegria de barraco,
a criativa ginga do samba que nasce no morro após 350 anos de escravidão,
só seguirá uma palavra de ordem: o mínimo a fazer é mergulhar no rio da
história e nadar contra a correnteza. É preciso perseverar no caminho. Hoje
temos necessidade de personalidades fortes e honestas, em cada campo da
vida social, econômica e política com o jeito ousado e determinado do Bom
Samaritano.
É preciso perseverar no caminho. Hoje temos necessidade de
personalidades fortes e honestas, em cada campo da vida social,
econômica, política e profissional, com o jeito ousado e determinado do
Bom Samaritano (Lc 10, 29-37), aquele que seguiu pelo caminho do não
obrigatório.
ESPINHEIRA
Êta espinheira danada que o pobre atravessa prá sobreviver,
vive com as cargas nas costas e as dores que sente não pode dizer,
sonha com as belas promessas de gente importante que tem ao redor,
quando entrar o fulano e sair o sicrano será bem melhor.
Mas entra ano e sai ano, e o tal fulano ainda é pior,
este é o meu cotidiano, mas eu não me dano, pois Deus é maior.
O mundo não acaba aqui não, não, o mundo ainda está de pé,
enquanto Deus me der a vida levarei comigo esperança e fé (bis).
Êta que gente danada que esquece de vez a palavra cristã,
Ah! Eu queria só ver se Deus se zangasse e voltasse amanhã,
Seria um “Deus nos acuda”, um monte de Judas querendo perdão,
com tanta gente graúda implorando ajuda com a bíblia na mão.
Mas a esperança é miúda, e a coisa não muda, não tem solução,
nem tudo o que a gente estuda, se agarra e se gruda arrebenta no chão.
34
Cf. Música “O que é, o que é?”, do cantor Gonzaguinha.
42
Conclusão
Direito humano e divino:
pilotar a crise
Para concluir, é bom lembrar que a viagem no trem da história
prossegue em cada vida, por mais anônima que pareça, por mais distante
que esteja dos centros urbanos coloridos, dos cones de luz, das bolsas de
“valores?”. Queiramos ou não é em cada coração que se faz aquela história
que conta, cada ser humano escreve a história de seu próprio coração. Em
cada coração pulsa o batimento pela eternidade da vida. Se alguém não o
sabe, pelo menos sente que não somos daqui, nos surpreendemos aqui.
Somos uma espécie de embaixadores do infinito.
A própria existência das religiões testemunha esta sede de
imortalidade humana. Os valores existentes em cada cultura mostram que
Deus chegou antes de nós. “Escreverei minha aliança nos vossos corações”,
repetem os profetas em nome de Deus, como Ezequiel desde o Antigo
Testamento. Todos se esforçam na busca de Deus. E aqui está o ponto
essencial pelo qual o cristianismo se diferencia das outras religiões35
. Não
conta como ponto de partida a nossa busca, mas a iniciativa obstinada de
Deus em seu amor por nós. Deus se arrisca a entrar em crise quando seu
Filho Querido, Jesus de Nazaré, se encarna no meio de nós e se torna
semelhante a nós em tudo, menos no egoísmo, no pecado.
Então, qual pode ser a “kusform”36
da novidade cristã?
Antes de tudo, o evangelho é novidade permanente. Esta revelação
está na própria raiz grega da palavra: provém de “En angélion” que
significa “publicar a boa notícia”. Portanto, se faltar novidade, o anúncio se
torna imediatamente estéril. E o é também nas sociedades e comunidades
antigas ou jovens nas quais já foi anunciado o Evangelho, e que
cristalizaram formas anti-evangélicas de convivência política, econômica,
religiosa e jurídica, como vimos ao longo desta rápida viagem. E não se
35
Cf. João Paulo II, in TMA, nº. 6.
36
Nesta viagem fizemos uma tentativa de caminhar na linha de uma “Kusform”, isto é,
uma “fórmula breve”, centrando o essencial cristão. Este foi o fio condutor teológico
deste trabalho. Cf. RHANER, Karl. “Per una “Formula Breve” della fede cristiana” in
Nuovi Saggi, III. Roma: Ed. Paulinas 1969.
43
pode esquecer de frisar que estas sociedades secularizadas tem carência
urgente desta novidade.
E qual pode ser esta “fórmula breve” que pode repescar as atenções e
a paixão do homem da era da informática e do novo deus “mercado”? A
iniciativa da pergunta, é preciso ressaltar, é toda da parte de Deus. Mas
quem é Deus e o que tem feito por nós?
Na parte da ética, da moral, não é que há muita novidade, outras
religiões, tem até melhores, embora o cristianismo tenha “algo mais”. Mas
a raiz da novidade cristã, segundo os evangelhos, vai na direção da
revelação da identidade de Deus e de seu amor por nós. Uma novidade até
escandalosa do evangelho: não é que o homem deva morrer por Deus, mas
em vez, revela que Deus morreu pelo homem. Como vimos em nosso
itinerário, é uma novidade “descendente” de Deus em Cristo quando diz,
“como eu vos amei, amai-vos!”. O importante é este “como” vamos amar a
alteridade, é aí, no exercício do “Da-sein” que a Trindade servidora deseja
nossa resposta, e espera que vivamos na sua lógica diferente, a do amor que
perdoa.
Não basta dizer a uma pessoa: Deus te ama!
No evento Jesus, ao contatar sua história, descobrimos que Deus tem a
iniciativa de revelar os traços essenciais de sua identidade. Por isso não
basta dizer a uma pessoa: Deus te ama! Isto não é novidade. Devemos
contar o que fez o Deus que a ama: libertou do Egito... se fez homem e
morreu por nós. Como o vimos no hino cristológico que abriu este nosso
trabalho.
Seria mais fácil dizer: temos um Deus igual, nós cremos que Ele se
revelou e vocês não, e está tudo bem. Quando nós criamos a imagem de
Deus, seguimos o caminho mais fácil. Porém, não fomos honestos com
Jesus Cristo. Em Jesus é revelado o ponto nevrálgico da sua identidade,
como já vimos nas aplicações da fé à vida ao longo dos capítulos, e que o
mostra como o dom de si, uma pessoa a serviço.
Nós desconversamos dizendo que Ele apareceu assim não porque
Deus tem por qualidade especial o serviço, mas porque Jesus devia se
mostrar humilde, reparar os pecados, dar exemplo. Para nós a identidade de
Deus está ligada a potência, não a serviço. Lucas diz que quando o Senhor
glorioso retornar e encontrar os seus servos vigilantes, de plantão, os fará
sentar à mesa e passará servindo-os. O servir, portanto, não é só “um
perfil” do Jesus terreno, mas “algo que identifica” toda a sua pessoa: Deus
é assim.
44
A sua verdadeira identidade é colocar-se sob os outros, antes de
colocar-se acima. Isto revira toda a nossa idéia de Deus. Mas certas idéias
que temos não têm nada de original, como, por exemplo, que Deus é
“onipotente”. É lógico e todo mundo já o sabe. O ponto novo e provocador
da revelação evangélica é que Deus é “dom de si”, é serviço de criação (o
Pai), é serviço de redenção (o Filho), é serviço de santificação (o Espírito
Santo). Todos trabalham em conjunto. Esta modalidade divina celestial, se
torna também na terra a identidade de Deus. Por isso, no meio de nós, Ele é
um Deus em crise. Isso é original.
Deus em crise?
Já abordamos várias vezes o termo “crise”. Vamos buscar na raiz da
palavra o seu significado. Vem do grego também, como a maioria de nosso
vocabulário, do verbo kríno: passar no crisol, ou no crivo. É desta raiz que
temos em português o verbo acrisolar, isto é, passar no crisol, ou no crivo,
na purificação. O acrisolamento é o processo químico de transformação de
um metal bruto em metal trabalhado, precioso.
Só nesta pequena verificação de raiz filológica já dá para sentir a
riqueza da palavra, não é mesmo? Não é difícil entender que o homem,
qual pérola preciosa, é pela sua própria natureza um ser acrisolável, ser de
possibilidades, ser que cresce. Assim, desde que nascemos entramos em
“crise”. É no útero da “crise” que vamos nos revelando.
Por isso, ninguém é o “fim da picada,” um ser falido. Crise é sinal de
juventude, de que estamos vivos e podemos desafiar os desafios. Na
encarnação de Jesus, Deus embarca no trem da história humana, arriscando
tudo na revelação do amor do Pai, sem medo da crise, de sujar as mãos para
lavar-nos do pecado, do egoísmo, em todas as suas formas.
Jesus: Deus é “Homo serviens”
Então, Jesus não faz teatro e assume o verbo servir como programa de
seu jeito de ser. Já vimos que a sua encarnação revela sua identidade de
“homo serviens”, pessoa a serviço. E começa cedo. Logo que o anjo
Gabriel deixou Maria, desde antes de nascer, já como feto, conjugou o
verbo servir tendo por professora a sua Mãe. Pensemos nas caminhadas
difíceis de Maria nos primeiros meses de gravidez quando foi ajudar sua
velha prima Isabel, a mãe de João Batista. E assim pela vida afora até à
cruz.
O Filho de Deus realizou até o fim o que o ecossistema, o cosmos, as
épocas esperam ver brotar em nós, gemendo como mulher em dores de
45
parto: o “homo serviens”! Bem do jeito como as primeiras comunidades
cristãs rezavam e certamente cantavam no seu hino cristológico cuja
segunda parte conservada na carta da alegria aos filipenses conclui esta
nossa viagem refletindo esta novidade cristã de ser servidores alegres
(ludens) para um mundo em crise:
«E é por isso que Deus o sobreexaltou grandemente
e o agraciou com o Nome
que está acima de todo o nome.
Para que ao nome de Jesus,
se dobre todo joelho dos seres celestes
dos terrestres e dos que vivem sob a terra,
e, para a glória de Deus, o Pai,
toda língua confesse:
Jesus é o Senhor.»37
37
Cf. Fil. 2, 9-11
46
GABRIEL:
«SER LIVRE É SER COMO PÁSSARO, MESMO PRESO NA GAIOLA, ACHA
RAZÕES PARA CANTAR».
Era nos idos de 1980. Na cadeia de menores,
construída para 120, se exprimiam 280 meninos e
adolescentes, dos 10 aos 18 anos de idade. Chamava-se
Queiroz Filho, em Piraquara – PR. Aceitei, após tantas
insistências do Major, ajudar a transformar a cadeia em
escola. Foram cinco anos de lutas, de organização e
trabalho árduo para animar equipes externas a fim de
conseguir os objetivos. Após quase três anos os frutos
começaram a despontar: equipe de técnicos e
especialistas consolidada, oficinas, esporte, catequese,
greves de fome para a mudança da comida que mais
parecia lavagem, etc. Gabriel, 17 anos. Sem família. Teve
muito crescimento. Foi batizado tendo como padrinhos
Ariosvaldo e Leoni. Fizemos vários retiros, dormindo na
prisão. Já tínhamos uma casa de apoio para os que saíam
e eram filhos da rua. Gabriel apresentou um dia o seu
desenho sobre a liberdade: uma gaiola com um pássaro
preso e a frase - «ser livre é ser como pássaro, mesmo
preso na gaiola acha razões para cantar».
Reconquistada a liberdade, sendo já um animador de
outros jovens acompanhando-me nas andanças de
apostolado, foi morar na casa de seus padrinhos. Mas não
conseguiu. Nunca tinha convivido numa casa de família.
Sentia-se perdido. E sumiu. Após 3 ou 4 anos, aparece
uma carta de Gabriel: «estou bem. Botei prá trabalhar e
me casei. Escrevo prá pedir desculpas pela minha fuga.
Eu tinha vergonha de viver numa família, eu ficava todo
sem jeito. Peço mandar endereço de meus padrinhos.
Vou escrever para eles. Obrigado de coração. Aqui nós
vamos sempre a missa. Estou feliz! Seja sempre muito
feliz.»
47
Referências
1. Autores
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Ed. Paulinas, 1985.
BOFF, L. Teologia da libertação e ecologia, in Concilium 5(1995).
BRAUDEL, FERNANDO. La méditerranée et le monde méditerranée à
lépoque de Philippe II. II Vol. Paris: Arnaud Colin, 1966.
FROMM, ERICH. A revolução da Esperança. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.
FORTE , BRUNO. L’Essenciale è vivere la carità, in Jesus 11 (1995).
HINKELAMERT, FRANZ. La irracionalidad de la racionalidad dominante.
São José da Costa Rica: Ed. DEI, 1994.
JOÃO PAULO II. Carta Apostolica Tertio Millenio Adveniente. Roma:
Tipografia Vaticana, 1994.
MARTINI, CARLO MARIA. Viaggio nel vocabolario dell’etica. Casale
Monferrato: Centro Ambrosiano/Edizioni Piemme, 1993.
RAMONET, IGNACIO. Il pensiero unico, in Misssione Oggi, 10 (1995).
RHANER, Karl. “Per una “Formula Breve” della fede cristiana”. Nuovi Saggi,
III. Roma: Ed. Paulinas, 1969.
ROUSSEAU, J.J. Contrato social. Paris: Aubier-Montaigne, 1976.
SANTANA, JÚLIO. L’attuale sistema socio-economico quale causa de
squilibrio ecologico e della povertà, in Concilium 5 (1995).
UNDP. Human Development Report 1990. Oxford-New York: Oxford
University Press, 1990.
VELÁSQUEZ, J.E. Espiritualidade da Terra, Concilium 5 (1995).
WALLERTEIN, IMMANUEL. The modern World - Sistem II. New York –
London: Academic Press, 1980.
2. Revistas e Outros
Arquivo CCDO-informatizado, Orionópolis Catarinense, São José-SC, Brasil.
Cambio 16, Madri, 5.12.1994.
Concilium 5 (1995)
CTM MAG Servizi: Centro Ricerca - Formazione - Comunicazione, Piazzetta
Forzaté, 2 - 35 137 Padova - Italia. Fax 049/8755714 - e-mail: bancaetica@cda.it
Jesus Ano XV, 8 (1993)
Jornal A Folha de São Paulo, 24.12.1955.
Missione Oggi
Perspectiva Teológica, 27 (1995) 149-154
Religión y Cultura, 192 (1995)
Reuter-Le Monde, Internacional nº. 66, 17.2.95.
* 33 anos de história pastoral no Sul do mundo.
48
ÍNDICE
INTRODUÇÃO ................................................................................................. 3
Direito humano e divino: tornar-se Homo serviens ...................................... 3
CAPÍTULO UM .......................................................................................... 5
DIREITO À DESCULPA....................................................................................... 5
1. Na sabedoria dos simples, o perdão é a resposta ...................................... 5
2. Na agenda dos sábios, também não há festa sem perdão.......................... 7
3. A ciência filosófica e a crise do essencial:
os sábios encontram os simples .............................................................. 9
- O amor e a filosofia ............................................................................ 9
- O amor e experiência histórica .......................................................... 9
- O amor e o etnocentrismo cultural................................................... 10
CAPÍTULO DOIS ..................................................................................... 12
DIREITO DE SABER PARA SERVIR À VIDA.......................................................... 12
1. Lauro e Irene ........................................................................................... 12
2. Na intimidade da mesa: o máximo da novidade ..................................... 13
Eucaristia: a mais revolucionária lição de economia........................ 13
Novidade cristã num advérbio de modo: como .................................. 13
3. Sabedoria de quem sabe: saber para servir à vida................................... 14
«Estude para vencer na vida!?!?»...................................................... 15
O saber para matar: alguns números da cultura da morte................ 15
O saber ópio do povo: anestesiados pelo Pensamento Único............ 16
O milagre da mídia fabricando enlatados.......................................... 18
Na poltrona da sala, no quarto ou na mesa do jantar:
com sabor de impotência .................................................................... 20
49
CAPÍTULO TRÊS: ................................................................................... 21
DIREITO À ECONOMIA DE RECIPROCIDADE...................................................... 21
1. Opção preferencial pelos pobres e marginalizados ................................ 21
2. Uma nova ordem econômica mundial?................................................... 22
Apartheid Social.................................................................................. 22
O «espírito faustoso» da «cultura universal»..................................... 23
Zona-franca: paraíso fiscal com impunidade..................................... 24
Esperança: a solidariedade competente............................................. 24
“A irracionalidade da racionalidade sistêmica” ............................... 25
CAPÍTULO QUATRO ............................................................................. 27
POLÍTICA É COISA SUJA? ................................................................................ 27
Sobre o nosso direito de interferência política
1. Jesus e a política...................................................................................... 27
Aos 12 anos ......................................................................................... 27
Aos 30 anos ......................................................................................... 27
2. O descrédito de nós mesmos
no descrédito da Ciência Política.......................................................... 28
3. Na crise dos paradigmas de autoridade: a orfandade planetária? ........... 29
Um novo jeito de governar: “de satanás a anjos da guarda” ........... 30
4. A Igreja é essencialmente política. Até quando o dualismo -
profano/sacro?....................................................................................... 31
5. Quando teremos escolas de educação à política?.................................... 32
6. As autoridades de Igreja como educadores políticos.............................. 33
A opinião de Santa Catarina............................................................... 34
CAPÍTULO CINCO.................................................................................. 35
DIREITO À ÉTICA: SEM CORRUPÇÃO, MAS COM TERNURA E GRAÇA.................... 35
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A NOVIDADE CRISTÃ DE SER HOMENS E MULHERES SERVIDORES

  • 1. Homo Serviens “Sirvo à vida, sou feliz!” Pe. Jaci Rocha Gonçalves, Dr. Roma 1996
  • 2. 3 Dedico este serviço, um dos escritos que fiz em Trento (Itália) para o doutorado em Teologia e Culturas, no inverno de 1995, a Janaina, minha esposa, a Luan, Jonas, Moara e Luna, minha família, aberta à construção do divino no humano. Dedico também às inúmeras redes de comunidades com quem tenho partilhado meu cotidiano no Brasil, África, Europa e mundo virtual sem fronteiras. (Palhoça, 2013)
  • 3. 4 Introdução Direito humano e divino: tornar-se Homo serviens Paulo escreve com carinho aos Filipenses. É a carta da alegria: “Levai à plenitude a minha alegria nada fazendo por competição e vanglória, mas com humildade, julgando cada um aos outros superiores a si mesmo, nem cuidando cada um só do que é seu, mas também do que é dos outros. Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus.» Logo que me pus a pesquisar sobre a novidade cristã num mundo em crise e os direitos humanos lembrei-me do grande filósofo Eric Fromm, sábio descendente judeu, da terra de Jesus. Ele escreve num dos livros de sua fecunda senilidade, que a natureza, o cosmos, a nossa época, enfim, com sua crise de essencial «gemem como mulher em dores de parto, suspirando pelo amadurecimento, na humanidade, do ‘Homo serviens’»1 - ou seja, - aquela pessoa cuja identidade e missão é viver para servir. E servir vida qualitativa para todos e tudo, com o tempero lúdico. É nesta trilha quenotípica, isto é, opção por um jeito de ser que abdica de quaisquer privilégios, exceto o de “amar até o fim”, portanto, uma opção de esvaziamento, de humildade, escolhida por Jesus Cristo, que trabalharemos algumas questões em torno da busca de direitos essenciais do homem e da mulher de hoje, que estão cruzando um novo milênio. É impressionante como as pessoas se mostram famintas do sagrado, de sentido para viver e de como viver. É neste jeito que Jesus adotou para revelar a identidade de Deus que existe a novidade cristã fundamental para hoje, como o foi nos primeiros tempos cristãos. É aí que se fundam as razões para a festa do ano dois mil que está às portas. Por que este perfil “Homo serviens” é ainda uma novidade fundamental? Porque esta verdade é exaustivamente repetida nos escritos e na prática das comunidades cristãs antigas: a maior glória deste Deus é ver acontecer a salvação, isto é, a sua vida em abundância para todos e tudo 1 FROMM, Erich. A revolução da esperança. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. Do latim “homo = homem; humano”; “serviens = que está a serviço”.
  • 4. 5 tem sabor de novidade para nós, bombardeados pelas insistentes propagandas de lucro fácil, sucesso, protagonismo e prestígio a qualquer preço, como o foi também para eles. A revelação desta identidade de Deus como Homo serviens (pessoa servidora), e da comunidade Trinitária divina de pessoas servidoras, era tão fundamental que virou poema e hino nas liturgias cristãs mais antigas. Desta forma ficou como fonte de memória viva nas crises em meio às perseguições judaica, grega e romana. Repare só que consciência clara e criativa, os primeiros cristãos mostram nesta continuação da mesma carta aos Filipenses: «Jesus tinha a condição divina, e não considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar com ciúmes, ao contrário, esvaziou-se a si mesmo tomando a semelhança humana. E, achado em figura de homem, humilhou-se e foi obediente até a morte e morte de cruz»2 Este poema, curtido, então, pelas comunidades perseguidas dos primeiros tempos do cristianismo, rediz a história de Jesus como servidor da vida. Este foi inclusive o jeito de ser messias que Ele escolheu: servidor. Portanto, uma escolha quenotípica, isto é, de kenosis (um esvaziamento de toda a sua prerrogativa divina) levando o amor de entrega por nós (agapé) até às últimas conseqüências. Ontem, hoje e sempre atual este perfil divino e humano, um perfil direito de todos – homens e mulheres – às portas do Terceiro Milênio. Seguindo a orientação do professor, de unir estudo e vida, apresento junto a esta pesquisa acadêmica, alguns fatos da vida pastoral vividos nestes últimos trinta e três anos com nosso povo-comunidade de batizados e não-batizados, em vários países, mas sobretudo no Brasil e com a grande família cujo único sobrenome é humano, e em cujas vidas a história ousada de Jesus se repete, de forma bem especial, no anonimato e heróico mundo dos excluídos. Excluídos dos direitos humanos à vida e à liberdade. 2 Paulo aos Filipenses, 2, 1ss. Trad. da Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Ed. Paulinas, 1985. IDENTIDADE DE DEUS: SER COMUNIDADE SERVIDORA DA QUALIDADE DE VIDA PARA TUDO E TODOS!
  • 5. 6 Capítulo um Direito à desculpa 1. Na sabedoria dos simples, o perdão é a resposta. Onze de março de 1993, tempo de retorno das férias de verão. Era por volta do meio-dia. O «Jornal do Almoço» é o programa de TV líder de audiência no Estado de Santa Catarina, sul do Brasil. A geração de imagens é nos estúdios da Rede mais importante no mercado de Mídia regional, no Morro da Cruz em Florianópolis, capital do Estado e do turismo dos países do Cone-Sul da América Latina. Torna-se cada vez mais um dos pólos do Mercosul, inaugurado em janeiro de 1995. Estamos na véspera do 3o. aniversário de fundação da Orionópolis Catarinense3 , uma pequena vila que, sob a inspiração de D. Orione,4 procura oportunizar aos cidadãos de qualquer classe social, ideologia, religião ou etnia, o exercício da solidariedade pelo voluntariado. Na Orionópolis são acolhidos os considerados inúteis sociais porque já são velhos, ou/e portadores de deficiências múltiplas, sem ninguém a seu favor, nem mesmo a mãe natureza; sem capacidade de produção. São pessoas que viviam rolando pelas calçadas e praças, nas ruas e viadutos, ou apodrecendo em algum mangue, barraco de favela, rancho de canoa ou feito bicho do mato em abandono Os âncoras do programa televisivo, encaminham a rubrica «entrevista». Após a rolagem de um tape com imagens dos moradores da vila, perguntam: «-Padre, qual é 3 O endereço da Orionópolis Catarinense é Rua Frederico Afonso, 5568. CEP 88 104- 000 - São José - SC-Brasil. Tel. (048) 3343-0087. A Orionópolis Catarinense, anima com outras forças da comunidade o resgate cultural dos guarani, junto à aldeia Mbyá- Guarani e o Projeto Turminha, um centro alternativo para crianças pobres, “ditas de rua”, em Capoeiras, Florianópolis, SC, Brasil. 4 São Luís Orione, conhecido como D. Orione, é santo fundador da congregação dos Filhos da Divina Providência, com 1200 religiosos, das Pequenas Missionárias da Caridade e Irmãs Sacramentinas Cegas com 900 religiosas. Todos se dedicam à evangelização através da caridade.
  • 6. 7 a maior alegria a ser festejada neste terceiro aniversário da Orionópolis?» A resposta saltou espontânea: «-Todos os que morreram, morreram amando! Todos os 12 moradores já falecidos tinham mil razões para morrer maldizendo a vida, a sociedade e até a si mesmos. Mas morreram perdoando, amando, como que para deixar-nos a notícia de que ‘amor com amor se paga, e ódio com amor também se paga.’ Esta é a maior alegria que temos para comemorar com todos vocês».5 Escolhi este fato extraído da micro-história do meu povo que deixei além-mares, para ser honesto com ele, pois, páginas como esta que raramente se tornam notícias na Mídia da terra, continuam a escrever hoje o que nós cristãos chamamos de História da Salvação ou construção do Reino da Fraternidade cujo protagonismo dos pobres é sinal inegável de sua presença. Quando eles, os pobres, evangelizam, o Reino está presente. Cabe-nos, pois, a obrigação de dar o máximo de espaço a estes pobres de Javé, teimosos em sua maneira quase sempre absurda de crer no Deus da vida; porque o seu grito de fé vem de um contexto histórico superlotado de desafios. Eles convivem com estruturas de morte lenta desde a vida pré-natal, e quando conseguem nascer, vão até o morrer, em geral com velhice precoce e doença rara, uma verdadeira tortura permeando-lhes o cotidiano. É impressionante como a fé lhes dá fôlego, resistência e persistência instancáveis. É a sabedoria dos humildes. Eles sempre elegem o perdão, a desculpa, como elemento inicial para crer de novo na força do amor. 5 Cf. Gravação de videotape in Arquivo CCDO- informatizado. São José-SC, Brasil: Orionópolis Catarinense, 1993.
  • 7. 8 Patrick no ofertório da missa de Páscoa, com Padre Jaci e sua madrinha. Faleceu aos 15 anos, desafiando os prognósticos médicos de óbito aos dois anos de idade. Usava apenas a linguagem térmica da febre para dizer: “Toquem-me, quero viver!”. Foi o primeiro jovem a morrer no Lar São José da Orionópolis. Outro menino herdou seu nome como símbolo de jovem biocrático, ou seja, que se deixa governar pelo valor inestimável da vida. 2. Na agenda dos sábios, também não há festa sem perdão. Coragem de Papa! João Paulo II mandou uma carta apostólica convidando toda a humanidade e não só os batizados na fé em Jesus Cristo, a abrir o Terceiro Milênio, com a coragem do perdão. Fazendo assim deste evento razão para uma festa que não seja apenas mais uma expressão de consumo comercial, e sim, oportunidade para uma grande avaliação conjunta. Convida, então, a preparar a casa do mundo para a festa. Na agenda que havia apresentado aos cardeais (reunidos em consistório em junho de ‘94, com presença maciça, dos que ainda são atuantes) obteve resposta entusiástica para todo o projeto, exceto para a agenda do «perdão». Na carta Apostólica de preparação ao Jubileu do Ano Dois Mil com o título Tertio millenio adveniente, nº 33, quando trata da primeira fase da preparação, João Paulo II escreve:
  • 8. 9 “É justo, portanto, que enquanto o Segundo Milênio do cristianismo está terminando, a Igreja assuma com a mais viva tomada de consciência dos pecados de seus filhos ao lembrar todas aquelas circunstâncias nas quais, no arco de sua história, eles se afastaram do espírito de Cristo e de seu Evangelho, dando ao mundo, em vez do testemunho de uma vida inspirada nos valores da fé, o espetáculo de modos de pensar e de agir que eram verdadeiras formas de contra-testemunho e de escândalo. A Igreja, mesmo sendo santa pela sua incorporação a Cristo, não se cansa de fazer penitência: ela reconhece como próprios, diante de Deus e diante dos homens, os filhos pecadores. Ela não pode atravessar o novo milênio sem exigir de seus filhos a purificação, pelo arrependimento, dos erros, infidelidades, incoerências e atrasos. Reconhecer as quedas de ontem é ato de lealdade e de coragem que nos ajuda a reforçar a nossa fé, e nos torna vigilantes e atentos no enfrentamento das tentações e das dificuldades de hoje.” Muitos cardeais viam nesta exigência, excesso de tolerância e de bondade. Mas o Papa foi inflexível. Segundo alguns analistas, talvez seja este o gesto mais profético de seu pontificado. Não arredou o pé do pedido de perdão, começando a admitir culpas de ontem e de hoje, a partir da própria Igreja e dos cristãos. Para Ele, não haverá festa autêntica sem fechar a porta do milênio com arrependimento, conversão da própria vida ao amor, ao perdão, à desculpa sincera. Assim, o confiteor da Igreja Católica, antes, posto timidamente em roda pé, como no documento de Puebla nº 6, sobre a cumplicidade cristã com respeito à escravidão dos afro-americanos, agora brota como atividade essencial, com simplicidade e coragem evangélicas, antes da festa de aniversário de dois mil anos do nascimento de Cristo.
  • 9. 10 3. A ciência filosófica e a crise do essencial: os sábios encontram os simples. Os dados científico-históricos que procuram dar suporte ao balanço dos resultados da aventura humana no planeta nos últimos mil anos e na iminência do Terceiro Milênio da Encarnação de Jesus Cristo, apresentam avaliações mescladas de luzes e sombras. E sobretudo no século XX, podemos medir até onde somos devedores de crescimento na arte mais divina em Deus e mais humana no homem: a arte de viver amando, e, de amar morrendo. O amor e a filosofia Não é aí neste fato do amor ou desamor onde tem desaguado até as correntes filosóficas mais recentes como o existencialismo? Baste-nos o exemplo da escola de Martin Heidegger. Na visão heideggeriana o ontológico humano, aparece descrito no seu jeito de ser como «Da-Sein» (ser que está aí e sabe-que-está aí), diferenciando-se dos seres ônticos (Sein), isto é, os seres que estão aí, mas não tem consciência de existirem. E o «Da-Sein» (ser humano) realiza a sua hominidade na esfera do relacional adequado. E ao que os humanos chamam de amor é o resultado do exercício do relacional adequado, maturado, consigo, com os outros, com o Outro e com o mundo, reflete o filósofo. O homem é, na verdade, este nó de relações vitais e é desta ação que dependem sua felicidade e sentido de vida. Nesta aproximação com a alteridade deverá correr os riscos de uma aproximação onde o outro seja uma simples atração biofísica para ser usado e voltar a si mesmo (eros, dizem os filósofos), ou pode ser uma relação de amizade íntima (filia) em profundidade, ou uma relação de companhia, num caminho conjunto (koinonia), pode arriscar-se, enfim, numa relação de agapé, ou seja, uma interrelação a serviço de um Projeto de vida comum que inclui oblação, entrega, sofrimento. Amor, então, é agapé, não eros. Deus é amor e o amor é direito humano essencial. O amor e a experiência histórica Num outro eixo de reflexão sobre nossas milenares buscas humanas, o do estudo histórico, podemos lembrar o depoimento de um dos grandes historiadores, falecido recentemente, o inglês, Arnold Toynbee. Após o estudo de 27 civilizações, avaliava que a frustração nas ciências-base de
  • 10. 11 todas as culturas, ou sejam, a economia, política e ética destes povos, sempre determinou ciclos críticos agudos, que pareciam intransponíveis. A superação, a ultrapassagem, destes ciclos caóticos, por novos tempos de esperança ocorreu em geral na instância do espiritual. Na última entrevista antes de morrer, Toynbee, que se declarava sem religião, expressou este desejo: nossa época necessita urgentemente de pessoas à semelhança de Francisco de Assis. O amor e o etnocentrismo cultural É inegável que as culturas que compõem hoje nossa civilização passam por duras provas diante de fenômenos novos e de difícil adequação, sobretudo devido à interdependência dos povos e o despreparo destes para a convivência adequada com o diferente. É inegável que o etnocentrismo, essa espécie de egoísmo cultural, tem sido marca registrada na maioria das relações humanas individuais e entre os países.6 Um exemplo representativo a esse respeito, encontra-se na conclusão da Assembléia Geral de todos os jesuítas do mundo, uma marcante força da Igreja Católica na história dos últimos 500 anos. A assembléia avalia nossa situação mundial como devedora ao extremo da relação adequada com a alteridade. O documento final assinala que a questão do outro, do diferente, continua a ser um desafio novo. Este se impõe à Igreja e à sociedade a partir da consciência crescente do pluralismo como característica de uma mentalidade que se faz cada vez mais generalizada. O mundo sempre foi plural, mas não pluralista. E explica a diferença entre o plural e o pluralismo: «Este, o pluralismo, acrescenta à pluralidade sua aceitação consciente e procurada, por reconhecê-la como fomentadora da riqueza humana e construtora de convivência mais harmônica.»7 Como a opção pelo pobre se traduz em busca de justiça, a opção pelo outro se concretiza em diálogo. A ascese de superação do etnocentrismo faz-nos aproximar do outro com simpatia, sem opiniões pré-concebidas, dispostos a ouvir e aprender. Exprime o nosso reconhecimento do outro em sua alteridade. O diálogo abre os horizontes e supõe corações abertos. Quem tudo sabe, não dialoga; só ensina. Quem se considera melhor, não dialoga, só julga. A essa atitude de humildade nos convida a opção pelo outro enquanto outro. O outro, o diferente é o culturalmente outro. São as milenares culturas asiáticas e africanas, com as religiões que moldaram suas escalas de 6 Cf. Editorial: Deus chegou antes... A propósito da XXIV Congregação Geral da Companhia de Jesus in Perspectiva Teológica , 27 (1995) 149-154. 7 Idem, p. 150.
  • 11. 12 valores, direitos e deveres. São as culturas indígenas que resistem nos diversos continentes a séculos de opressão, respeitando o meio ambiente, inspirados numa religião animista. A inculturação revela-se como dimensão intrínseca da evangelização. O amor agápico cristão é abertura incondicional ao outro, é uma relação de total «inclusão» da alteridade. Portanto, continuamos devedores de muito cultivo até o desabrochar desta verdadeira essência humana e divina, como vimos acima: o amor. Agora, apoiados na afirmação de Toynbee, e respeitando a estreiteza de espaço e os objetivos deste tipo de partilha. Façamos uma digressão resumida nas ciências em geral, na economia e política em relação com a ética e a revelação de Cristo. Ao mesmo tempo, avaliemos o uso dos poderes correspondentes às ciências: o poder de saber, de serviço de autoridade e poder de administração dos bens da terra. Ontem e hoje, é essencial às ciências, a sabedoria de lavar os pés.
  • 12. 13 Capítulo dois Direito de saber para servir à vida 1. Lauro e Irene Dois nomes que marcam minha caminhada pastoral junto dos marginalizados sociais. O primeiro é de Lauro. Chegou no dia 8 de março de 1991, por volta das 9:00 horas na Orionópolis Catarinense, trazido pelo padre Carlos e um leigo comprometido da cidade de Palhoça-SC. Após dois meses de luta por recuperá-lo, não houve jeito, veio a falecer no Hospital Florianópolis. Seu corpo não pesava mais que 20 quilos. Tinha 58 anos. Algumas semanas após seu óbito chegou-nos o resultado da tomografia computadorizada mostrando vários carcinomas, inclusive no cérebro. E o que mais chamou a atenção, foi a sua impossibilidade de assimilação dos alimentos. Lauro provinha da fome, uma fome crônica que o levou à morte. Em sua carteira de trabalho, trazia a profissão de servente de pedreiro. Foi encontrado num rancho de mangue em condições subumanas. Choramos um choro doído naquele enterro realizado ao meio-dia no Cemitério do Passa Vinte. Nas orações, uma meditação especial sobre seu nome: Lauro, certamente do radical latino, “aurum”, que quer dizer ouro. O ouro de Deus. Depois, sempre na Orionópolis, a morte da primeira mulher. Encontrei-a, em Capoeiras, um bairro classe média da capital do Estado de Santa Catarina, num barraco do qual estava sendo despejada. Seu velho não tinha muito jeito de gente, de tão minguado, parecia-se a certos estereótipos de Jeca Tatu. A relação entre eles, de convivência impossível, as relações com o filho também especial, não dá para descrever aqui. Interessa o seu nome: Irene, que da proveniência grega significa paz. Mas ela era o protótipo da guerra, da neurose aloprada. Depois sofreu derrame. Foi convertida ao amor pela dedicação de amor. Quando morreu, era o símbolo da alegria, da paz alegre, reconciliada. Lauro e Irene, a lembrança de que todo o masculino e feminino, são sagrados.
  • 13. 14 2. Na intimidade da mesa, o máximo de novidade Haverá grito, clamor maior nos nossos ouvidos, e mais chocantes do que o clamor dos Lauros e Irenes que aos milhões apodrecem nos infernos da exclusão, do abandono, da solidão, da fome? Se viemos para amar, nossa história é a história de nosso coração, viemos para promover relações adequadas a fim de que todos tenham vida e vida qualitativa. De propósito, após a descrição existencialista do amor, proponho agora uma rápida viagem ao mundo do saber e da economia, bem como a alguns aspectos da finalidade salvadora do cristianismo, assumida na vivência paradigmática de Jesus de Nazaré. Comecemos por Jesus. É no contexto da passagem bíblica do evangelho de João, dos capítulos 13 a 17. Na intimidade do último jantar com seus alunos escolhidos. Jesus reparte com eles todos os segredos, não deixa nada para trás. É a famosa última ceia. Os artistas raramente pintam a primeira cena desta última ceia. A ceia onde Jesus lava os pés de seus alunos. Leva aquela bronca de São Pedro porque estava quebrando todas as etiquetas e se rebaixando demais. Jesus, porém, é irreversível. «Para que saibais que grande no meu Reino é aquele que vive para servir, como já lhes expliquei tantas vezes. Quem quiser ser o maior, seja o servidor de todos. Os que tem poder no mundo usam-no para a dominação, entre vós não deverá ser assim.” Autoridade é diaconia, serviço à vida de todos. Eucaristia: a mais revolucionária lição de economia Depois, Jesus serve-lhes o pão e o vinho, e deixa-nos a suprema e mais revolucionária lição de economia: a Eucaristia. Várias vezes Jesus lhes pedira para saciar a fome do povo. Agora o pão os lembrará que a semelhança do trigo Ele também será triturado por amor; como uva esmagada dará até sua última gota de sangue por amor. Assim será e ninguém poderá mudar. Jesus deixa a Memória de sua presença viva, na mesa da história para saciar todas as dimensões de fome de justiça, amor e paz. Quem divide, quem mata, quem trafica drogas, quem vende armas, desperdiça alimento, profana a Eucaristia, quebra o pacto, a nova e eterna Aliança com o Deus da vida para todos. Não será por isso que o Papa foi intransigente com os cardeais a respeito do perdão, já que neste milênio temos nos apresentado divididos. João Paulo chama a isto de «escândalo dos cristãos»? Novidade cristã no advérbio de modo: “como” Então Jesus, após falar-lhes de coragem e de consolo, de um amigo, o Espírito Santo, que Ele enviará mais tarde, resume toda lei, todas as
  • 14. 15 páginas da Bíblia, todas as declarações sobre a dignidade das pessoas, todas as novidades de cada cultura, de cada religião, nesta única novidade: «Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros como Eu vos amei!»8 . Esta é a novidade que atinge a revelação essencial de Deus sobre nós, os humanos. Jesus define a medida das possibilidades humanas, já atingido por Ele, na doação da sua vida e no resgate de nossa salvação. Garante-nos um horizonte de otimismo e de compromisso: amar do jeito como Ele amou. A novidade está no jeito de amar, neste pequeno advérbio de modo: «como». A revelação deste valor dos humanos, ou seja, de serem tão amados e considerados por Deus como criaturas sagradas, é um novo horizonte de sentido, é a verdade sobre o homem que a Igreja zela como princípio ético fundamental, como o referencial mais precioso revelado por Cristo. Cada ser humano é o templo vivo de Deus. A única vez que Jesus se enfezou, foi para exigir respeito a esse templo, a esta casa do Pai. Falava do templo do seu corpo, diz o evangelista João. Vós sois o templo vivo de Deus, afirma Paulo. Deus tem amor «zeloso pela sua casa», Deus tem amor «ciumento» pelos seus Lauros e suas Irenes; cada ser é raro e precioso aos seus olhos. Cada ser humano é a menina dos seus olhos. 3. Sabedoria de quem sabe: saber para servir à vida Cada povo, em geral, tem no campus universitário, ou outras formas e nomes de lugar de pesquisa de acordo com a própria cultura, o seu lugar privilegiado de buscar respostas aos questionamentos que a vida vai apresentando com vários matizes na sucessão das gerações. A esse respeito, tive várias oportunidades de participar ativamente em debates e fóruns universitários no meu país a respeito da interdisciplinaridade e a religação do campus universitário e comunidade. Nos últimos vinte anos, participando como convidado a animar as celebrações eucarísticas de fins de cursos das mais variadas faculdades: da medicina à engenharia, da psicologia e serviço social às ciências contábeis e computação, pude constatar o ar de surpresa geral, quando convidava os formandos a pedirmos perdão aos grandes financiadores dos diplomas, com percentuais de participação em torno até dos 80%. Provocados ao diálogo, era raro ouvir resposta clara de que era o povo o maior «sponsor”, o maior patrocinador de seus diplomas. 8 Cf.Jo.15,12ss
  • 15. 16 E, provavelmente, tal ignorância é devido à ocorrência deste divórcio, gerado pela própria instituição universitária, entre os que tem acesso ao poder de saber e o povo, ao qual deveriam aprender a servir com os diplomas financiados às custas e sacrifícios do dinheiro popular. «Estude para vencer na vida?!?!» Por que este objetivo de estudar para servir é uma novidade? Não será porque insistimos tanto numa visão pedagógica deturpada de concorrência e que se inicia desde o pré-escolar quando incutimos nas crianças a necessidade de «estudar para vencer na vida» em vez de «estudar para servir à vida?». Se ampliada esta constatação para outras áreas geográficas, não será esta uma das grandes geradoras da mega-crise que atravessa a nossa civilização? As ciências existem para responder às nossas necessidades vitais, estão a serviço da grande e única família humana, a serviço do desenvolvimento, da proteção e do sentido da vida, de todas as vidas humanas, mas também dos outros seres vivos, do ecossistema, do cosmos, enfim. Do contrário, a quem servem as ciências? Nas análises mais aprofundadas daqui por diante com a digressão no estudo da economia, Comunicação Social e Ética nos daremos conta dos porquês e das conseqüências pérfidas deste tipo de comportamento. O saber para matar: alguns números da cultura da morte É aí, no serviço à vida, que alguns poucos sábios, verdadeiros profetas da ciência econômica começam a fazer o balanço neste fim de milênio, embora a grande maioria dos entendidos neste campo busquem a evasiva de que há uma «científica separação metodológica que os desresponsabiliza ética ou moralmente». Pior cegueira é de quem não quer enxergar. Na verdade, nunca produzimos tanto e em tão pouco tempo, graças a tecnologias ultra-avançadas. Então, por que nossa sociedade aparentemente tão desenvolvida, a cada ano, colhe cifras astronômicas da morte pela fome? Nunca matamos tanto, e tão impiedosamente, e em tão pouco tempo. A situação do mundo no fim de nosso século registra surpreendentes contrastes: uma minoria da população do Planeta possui uma notável capacidade de acúmulo de riqueza o que lhe permite usufruir um exagerado bem-estar material; ao mesmo tempo, uma imensa maioria de habitantes do
  • 16. 17 globo, luta para sobreviver em condições de indigência. No finado ano de 1995, por exemplo, produzimos 61 milhões de mortos pela fome no planeta.9 Não obstante o enorme incremento do PIB (Produto Interno Bruto) mundial nos últimos 50 anos, (pós-fim da guerra de 1939-1945), são cerca de 20 a 25% dos habitantes da terra que vivem abaixo do nível da pobreza.10 Convivemos com imensas regiões do mundo nas quais a maioria dos habitantes se debate e se consome na luta pela sobrevivência. O preço pago é altíssimo. Este quadro de miséria é, sobretudo, escandaloso se se compara à vida opulenta daqueles que dispõem das vantagens oferecidas pela riqueza e bem-estar. Aprofundemos um pouco mais as causas desta chacina anual de nossos dias, este grito silencioso dos famintos que clama ao Deus da Vida por justiça. Na verdade, são os novos sacrifícios humanos ao deus- capital. São 40.000 crianças vítimas mortas por dia em seu holocausto. O saber ópio do povo: anestesiados pelo Pensamento Único Segundo o analista de economia Inácio Ramonet11 , cresce sempre mais na democracia atual, o número de cidadãos que ainda tem sede de liberdade e se sentem dopados, anestesiados por uma espécie de doutrina gelatinosa que insensivelmente neutraliza qualquer raciocínio de sã rebeldia, de indignação afirmativa. Confunde-os, paralisa-os até sufocá-los: o pensamento único, único autorizado a expressar-se através de uma invisível e onipresente polícia de opinião. Segundo Ramonet, somos vítimas deste todo-poderoso «pensamento único». O fundamento do “pensamento único” é o conceito do primado da economia sobre a política. Ele foi formulado e definido desde 1944, por ocasião dos acordos de Bretton Woods. As suas principais fontes são as grandes instituições econômicas e monetárias – o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, a Organização para a cooperação e desenvolvimento econômico, o Acordo Geral sobre Tarifas Alfandegárias e sobre o Comércio, a famosa Comissão Européia, os Bancos Centrais e outros. Através dos financiamentos, colocam a serviço de suas idéias por todo o Planeta, numerosos centros de pesquisa, universidades e fundações, chamadas a rezar o mesmo catecismo e difundir suas boas idéias, numa espécie de Bíblia-Liberal. À economia se reserva o lugar de comando em 9 Cf. in Jornal A Folha de São Paulo, 24.12.1995, p. 20. 10 Júlio de Santa Ana, L’attuale sistema socio-economico quale causa de squilibrio ecologico e della povertà, in Concilium 5(1995) p. 17. 11 Ignacio Ramonet, Il pensiero unico, in Missione Oggi, 10 (1995) pp. 22-23 resumo de sua análise feita em Le Monde, 17.12.’94.
  • 17. 18 nome de um realismo, de um pragmatismo cuja importância o francês Alain Minc resume na seguinte formulação: «O capitalismo não pode cair, porque é o estado natural da sociedade. A democracia não é o estado natural da sociedade. O mercado é.»12 Há outros conceitos-chave do pensamento único que já entraram na desordem estabelecida em nosso dia-a-dia. Dentre eles: - o mercado, ídolo cuja «mão invisível corrige os excessos e as disfunções do capitalismo»; - de modo bem especial os mercados financeiros, cujos «sinais orientam e determinam o movimento geral da economia»; - a concorrência e a competição: estimulam e dinamizam as empresas, conduzindo-as a uma modernização permanente e benéfica»; - o comércio ilimitado e livre: fator de desenvolvimento ininterrupto do comércio e em conseqüência da sociedade»; - a mundialização ou globalização tanto da produção manufaturada como dos fluxos financeiros; - a divisão internacional do trabalho tem a função de «moderar as reivindicações sindicais e diminuir o custo da mão de obra, do trabalho»; - a moeda forte, «fator de estabilidade»; - deregulation, a privatização, a liberação; que definem sempre mais a supremacia do poder econômico até mesmo da política, sempre «menos Estado»; acontecendo assim, uma arbitragem constante em favor dos lucros do capital e em detrimento do trabalho. “A morte de 40.000 crianças por dia devido à miséria é gerada por decisões tomadas a nível supranacional que chegam aos povos e aos setores mais frágeis transformadas em planos econômicos que tem como objetivos a produção de capital, de armamentos e de coisas supérfluas.”13 12 Cf. Cambio 16, Madrid, 5.12.1994. 13 Cf. VELÁSQUEZ, JULIA ESQUIVEL. Espiritualidade da Terra, Concilium 5 (1995) p. 94.
  • 18. 19 O milagre da mídia fabricando enlatados Para a sua doutrinação, o pensamento único utiliza a massmediologia e as Ciências de Opinião Pública. Quais suas características? Antes de tudo, usa o método do discurso anônimo, explica ainda Ramonet, que é gravado e reproduzido nos principais órgãos de difusão (Agência de Notícias), para ser repetido incessantemente como um catecismo à moda antiga, de perguntas e respostas, através dos principais órgãos de informações econômicas. Estes órgãos utilizam, em geral, uma linguagem hermética, comumente apelidada de «economês», cujo acesso é permitido só a uma «elite decodificadora» uma espécie de «bíblia» dos investidores, dos agentes de Bolsa de Valores e assessoria dos «managers empresariais». Os principais são The Wall Street Journal, Financial Times, The Economist, Far Eastern Economic Review, les Echos, a Agência Reuter, A Gazeta Mercantil, etc.- na maior parte propriedade dos grandes grupos industriais e financeiros. Mas haverá economia da salvação para os pobres através deste sistema tão bem organizado, e que utiliza de maneira otimal a ciência de Marketing nas suas produções em rede transnacionais? Até quando vai gerar tanta miséria e nos fazer experimentar esta ansiedade e sentimento de impotência, ao contemplar sua magnificência grandiosa, onipresente, inatacável e ... sarcasticamente sorridente? Desde quando, na verdade este sistema econômico funciona na história da humanidade? Será que foi sempre assim? É lei natural que seja assim, como vimos acima? Após a queda do muro de Berlim em novembro de 1989, o social- comunismo deixou de ser referência, também na ciência econômica. O capitalismo, o neo-liberalismo não tem mais opositores. Não tem mais como esconder sua mão invisível. Mas até onde vão os adoradores do deus- mercado? Segundo os analistas, diante de seu furor ideológico, não é exagerado falar em dogmatismo moderno. Até mesmo os homens responsáveis pela política, tanto de direita quanto de esquerda, usam os mesmos critérios e linguagem, como se cedessem à intimidação do sistema econômico, sufocando qualquer tentativa de reflexão livre. Tornam assim sempre mais difícil a resistência contra este novo obscurantismo, quase que delegando toda autoridade ao poder do ter (sistema econômico) e seu porta-voz (poder midiático), de forma que o ético-político, o saber e ser-religioso, lhes passassem a ser apenas um acréscimo. 14 14 Sobre análise do poder medial hodierno cf. longa bibliografia apresentada in Missione Oggi, op. cit. supra. Inclusive o próprio corpo do dossier que, embora sumário, apresenta alguns quantificativos do poder medial em uso pelo sistema econômico.
  • 19. 20 Pequena amostragem do poder medial de informação em 1996. No intuito pastoral deste trabalho escolar para o Brasil e dada a escassez de informações no meu país, deixo alguns números do imenso «planeta mídia». Entre as primeiras 300 empresas de comunicação e informação, 144 são americanas, 80 européias, 49 japonesas e as restantes são de propriedade de países do Norte. Em geral, o Sul do mundo, se se exclui o Brasil, Índia e México - não dispõe de indústria de comunicação, mesmo porque hoje, para cada cem palavras difundidas pela Mídia na América Latina, 90 provêm de Agência de Notícia não-latino-americana. Para medição do poder de uma Agência vejamos o exemplo da «Reuter». Ela declarou em 14 de Fevereiro de 1995, que teve um ganho bruto em 1994 no valor de 510 milhões de libras esterlinas, cerca de um bilhão e 300 milhões de liras, com um crescimento de 16 % a mais que 1993. A Agência é inglesa e nasceu em 1851, é especializada em informação econômica e financeira. Com um estatuto de sociedade privada, como cotação de bolsa de valores, tem mais de 11 mil dependentes, dos quais 1500 jornalistas (entre redatores, fotógrafos e câmerasmen), e 30 mil assinantes. As notícias da Reuter, instrumento indispensável para qualquer jornal, são transmitidas em cinco línguas: inglês, alemão, árabe, espanhol e francês. Para termo comparativo, vejamos as suas «colegas». A Associated Press, agência americana fundada em 1848, sociedade sem fins lucrativos, tem 3.157 empregados entre os quais 1.323 jornalistas, e 17 mil assinantes no mundo, (a metade fora da América). A France Press, nascida em 1944, tem 670 jornalistas e 12.500 assinantes». 15 15 Cf. Reuter-Le Monde, Internacional nº. 66, 17.2.95.
  • 20. 21 Na poltrona da sala, no quarto ou na mesa de jantar: com sabor de impotência É um sistema tecnológico fascinante, com um poder até de subliminaridade, isto é, com poder de atuação a nível abaixo da nossa percepção consciente, que faz do cidadão um verdadeiro alvo do bombardeio da propaganda. Ela, para ser realmente completa «made in USA» deverá servir bem o alvo, digo, os fregueses telespectadores com os três «SSSs: sun, sea, sex» - muita luz, com os melhores efeitos (sun), muita água em turbulência marítima (sea), com boa dosagem de erotismo provocando a libido (sex). Assim o telespectador, de forma subliminar, portanto, imperceptivelmente, se «converterá« ao mundo colorido, estimulador e provocante da receita de felicidade com as requintadas fantasias do luxo e bem-estar, ao alcance do nosso bolso. Quanto às informações, se faz espetáculo até com a tragédia. Sobre o mundo, ficamos sabendo o que o «pensamento único» decidiu pelas suas Agências de Notícias. Às vezes chega-se a pensar que os 17,4 milhões de desempregados europeus, o desastre no funcionamento das cidades, a precariedade geral dos bens públicos, a corrupção, a tensão nas periferias das cidades, o saque da ecologia, o retorno dos preconceitos raciais, dos integralismos e extremismos religiosos, a maré dos excluídos, não sejam mais que uma simples invenção e miragem, alucinações culpáveis em grave discordância com este melhor dos mundos, construído pelo pensamento único para as nossas consciências anestesiadas. Todo saber esteja a serviço da vida para tudo e todos!
  • 21. 22 Capítulo três Direito à economia de reciprocidade 1. Opção preferencial pelos pobres e marginalizados16 Às vezes não acho bom nem lembrar. Dá arrepios e náusea. Enterrei muito neném que morria de «subnutrição», segundo o laudo médico; «é anjinho, melhor assim, foi com Jesus!», consolavam-se uns aos outros. Eu era padre novo, 25 anos, hoje estou com 48. As comunidades tinham colonos de descendência italiana, polonesa, cabocla e novos migrantes. Era periferia de Curitiba – Paróquia de São Sebastião em Quatro Barras (PR), Brasil. Após dois anos, conseguimos fazer o levantamento da realidade e elaborado uma diagnose pastoral. Em cada uma das oito capelanias havia junto do templo um pequeno terreno e alguma construção de madeira para as três festas anuais de cada localidade. Com mulheres dispostas da comunidade estimulamos um processo de proteção à vida das crianças. Os homens também apoiaram. Após sete anos de trabalho sistemático, construímos oito centros comunitários para prezinhos e creches, clubes de mães e de gestantes e educação dos jovens à política. Com as economias da pobreza de cada comunidade, não enterramos mais criança por morte de fome. A primeira creche recebeu o nome de «Nossa Creche». Ela nasceu num momento doído, um funeral infantil em fins de novembro. Ficamos três domingos sem comunhão, como penitência. A missa ia até o rito da oração dos fiéis. No dia de Natal, fizemos um ofertório inesquecível: todas as pessoas que tinham roupas de neném, fraldas, bercinho, trouxeram para o presépio; assim começou a “a nossa creche”. O processo foi multiplicando-se aos poucos, até por via política, na forma de reivindicação. Tínhamos nosso slogan: “mais vale pobreza partilhada que riqueza mal distribuída”. 16 Cf. TMA nº. 51, lembrando que Jesus veio para evangelizar os pobres, o Papa quer fechar o ano de 1999 com o aprofundamento do tema da caridade: (...) este compromisso num mundo marcado por tantas desigualdades sociais e econômicas (...) os cristãos deverão ser porta-vozes de todos os pobres do mundo, propondo a festa do Jubileu como um tempo oportuno para pensar, entre outras ações, numa consistente redução, se não o total perdão, da dívida internacional, que pesa sobre muitas nações.”
  • 22. 23 Antes de vir à Itália, após 12 anos, passei por lá. Mesmo sem o apoio efetivo de autoridades civis e, em certos momentos até eclesiásticas, o povo tocou em frente os projetos animados pelo velho refrão: «Eu vim para que todos tenham vida, que todos tenham vida plenamente!»(Jo 10,10). 2. Uma nova ordem econômica mundial? Até onde é realmente possível, neste contexto de crise de civilização, uma nova ordem econômica mundial? A busca do novo nesta área angustia porque é difícil, ao mesmo tempo porque trata da questão essencial da sobrevivência. A esperança está na elaboração de novos princípios de uma ciência econômica, que admita antes de tudo a necessidade da economia de mercado, mas não sua suficiência, para que haja desenvolvimento autenticamente humano. A queda do socialismo real, como vimos acima, aumenta ainda mais os riscos de absolutização de um sistema de mercado que se exclui das valorações morais. Sem o socialismo, o sistema neo-liberal está dançando sozinho e solto na avenida da oferta e da procura. Com as enormes fatias de novos consumidores nos territórios antes ocupados pelo comunismo, o neo- liberalismo vai, guloso, «fazendo novos ajustes» na sua geo-economia. Apartheid Social Nos estudos da relação teologia e economia, embora nos inícios, tem- se chamado a atenção para dois fatores que mais preocupam neste sistema com sua capacidade de gerar o chamado apartheid social: o primeiro, é a denúncia da «irracionalidade da razão sistêmica».17 Porque irracional? Porque promove o crescimento econômico, a produção da riqueza e na mesma proporção a exclusão social. Isto o torna gerador de um quadro crônico de injustiças e mostrando um onipotente poder de aumentar o abismo a cada ano entre os muitíssimos pobres e os poucos riquíssimos em todo chão aonde já chegou. Estas e outras contradições surpreendentes têm sido percebidas graças às ocasiões úteis como os encontros promovidos pela ONU no Rio de Janeiro em junho de ‘92 sobre o desenvolvimento e ambiente e em março de ‘95 em Copenhague sobre o desenvolvimento social. Nestas ocasiões podemos observar os sinais de esperança para a vida. É que nestes 17 Cf. Hinkelamert, Franz. La irracionalidad de la racionalidad dominante. São José da Costa Rica: Ed. DEI, 1994.
  • 23. 24 encontros cresce o grito de denúncia contra a irracionalidade da lógica do sistema vigente ao mesmo tempo em que mostra o aumento do número de associações públicas não-governamentais que procuram corrigir de modo radical estas insensatas tendências do sistema. É nestes encontros que as igrejas e religiões podem atuar em profundidade, como aconteceu com a Santa Sé, nos encontros de ‘95 em Estocolmo e em Pequim no 4º Congresso sobre a mulher (setembro ‘95). Nestes encontros emergem o poder da própria organização dos excluídos como uma força transformadora surpreendente porque o oprimido emerge como sujeito criativo e reivindicador. O «espírito faustoso» da «cultura universal» O segundo fator responsável pelo apartheid social tem raízes antigas na história econômica: é o «espírito faustoso» do sistema, ou seja, o sistema é intrinsecamente egoísta porque não conhece limites desde que seja para obter vantagens. Este espírito é fruto de mutações históricas que adquiriram cidadania num processo de «longa duração».18 Antes que o sistema surgisse e se consolidasse, a maior parte do poder do Planeta se concentrava no Extremo Oriente. Não obstante, nem a China, nem o Japão conseguiram tornar-se potência «mundial». A situação só começou a mudar com a expansão do sistema europeu de conquistas na Idade Moderna e que se fundamenta em três dimensões interconexas: comercial, política e cultural. Este processo põe em evidência o espírito de dominação. A conquista traduziu-se com freqüência na superposição de uma nomenclatura nova à realidade conquistada. Novos nomes substituíram os autóctones. Assim, nações que até o século XVI eram pobres e estereotipadas como bárbaras, passaram ao processo de acumulação de riquezas, dos grandes progressos no conhecimento e aplicações no campo tecnológico. A Ciência Ocidental reflete o mesmo espírito de dominação dos conquistadores e colonizadores. Hoje o sistema tomou dimensão de uma entidade global. A cultura sistêmica dominante é cosmopolita, porque é constituída por pessoas e grupos econômicos pertencentes a várias nações. Por isso esta «classe dominante»19 se apresenta como «cultura universal». 18 É o nome dado por Immanuel Wallertein in The modern World - Sistem II. New York – London: Academic Press, 1980. 19 A análise foi cunhada por Fernando Braudel. Cf. La méditerranée et le monde méditerranée à lépoque de Philippe II, 2o. Volume, Arnaud Colin, Paris 1966. É o primeiro sistema que se inseriu na história. É fruto da expansão comercial, política e cultural do Ocidente nos últimos cinco séculos.
  • 24. 25 Ela é, na verdade, um atentado contra-cultural, porque anula as culturas locais, procura dominar e controlar tudo, sem limites, segundo o espírito «faustoso» que a anima. Zona-franca: paraíso fiscal com impunidade Este sistema «mundial» apresenta-se com esta estrutura: um «centro» onde se acumula a maior parte da riqueza e tem o maior foco de poder. Ao redor deste «centro» se encontram os «quarteirões periféricos» que também conseguem acumular associando-se ao poder central, depois vem as «periferias» conquistadas e subjugadas economicamente. Afora algumas que conseguem alianças, estas em geral trabalham a serviço do poder estabelecido no centro do sistema. Existem lugares que ligam centro e quarteirões com as periferias distantes, aí também acontece uma certa acumulação como é o caso das grandes cidades-porto, que hoje cedem lugar às chamadas «zonas-francas», verdadeiros paraísos fiscais, onde o poder econômico e financeiro internacional podem operar com liberdade, isto é, impunemente. Atualmente, num momento em que os Estados Unidos da América do Norte é o país mais endividado do mundo, o centro está se deslocando para o Extremo Oriente, no Japão e os quarteirões periféricos, os chamados tigres asiáticos, a China ou outras nações do sudeste asiático. A outra opção é a Europa Ocidental, cuja área de poder mais sólida se encontra entre Londres, Paris, Berlim e Milão. Esta mudança intra-sistêmica é uma das causas mais importantes da instabilidade atual. Esperança: a solidariedade competente Mais que a eficiência como propriedade nesta nova ordem econômica, , é necessário, embora difícil, que o mercado tenha instituições a serviço do bem comum e da cooperação. Em segundo lugar, é preciso desmascarar e desobedecer à orientação de que se diminua a solidariedade do setor público-governamental, tanto a nível internacional quanto a nível interno, nacional. São raros os Estados que tem aceitado contribuir com o 0,7% do próprio Produto Interno Bruto para auxiliar o desenvolvimento socioeconômico dos países pobres, acordados na ONU. É verdade também que, de forma particular, existem setores da sociedade que procuram preencher esta carência com contribuições voluntárias. É óbvio que, não obstante a sua generosidade, estas manifestações de solidariedade estão longe de ser suficientes. Mas sem estas contribuições, a situação dos pobres seria ainda mais difícil. Apesar de todos os esforços que os pobres fazem na tentativa de sobreviver, a pobreza e a miséria crescem progressivamente em quase todo o mundo.
  • 25. 26 E, fato ainda mais grave, o descuido pela sorte dos pobres se manifesta a nível interno na maioria dos países. A adoção de políticos «neo-liberais» e de planos especiais de organização econômica deixam os pobres numa situação dramática. Desprovidos de cuidado, se sentem atraídos por várias formas de violência e de outras de natureza ilegal. Uma grande parte da responsabilidade na organização destes processos dizem respeito às tendências sistêmicas predominantes. «Irracionalidade da racionalidade sistêmica» A «irracionalidade da racionalidade sistêmica» se traduz na ideologia que diminui a importância do social e de seus valores, ideologia que apela sistematicamente ao individualismo. Neste contexto ideológico a única «coisa» social que parece ter valor é «o mercado» que tem pouquíssimos de social, como todos sabemos.20 Esta ideologia induz e explora um «sentido de pertença comum» tão dominador que induz as maiorias, seja no Norte como no Sul, a aceitar custos e sacrifícios muito altos quando se trata de salvar o sistema, o tal mercado. É uma ideologia útil para aqueles que administram instituições e processos sistêmicos, de roldão aderem também os pobres, aliciados a sacrificar-se no altar do sistema. A esse respeito já é possível falar de uma «religião civil»21 cujo núcleo sacro tem como uma das manifestações mais evidentes, o mercado como «totem» porque se trata de um manufaturado, de uma obra humana.22 É neste discernimento e enfrentamento que as religiões, as igrejas, as organizações comunitárias humanizadoras podem entrar repondo os valores da pessoa, como a mais sagrada riqueza, fortalecendo organizações, através de encontros, troca de «know-how», mesmo correndo os riscos da ambigüidade.23 20 Lembre-se a afirmação de Margareth Thatcer: “There is not such a thing society” (Não existe uma coisa como a sociedade). Uma orientação análoga pode-se entrever na impostação econômica do Presidente Reagan (Reagonomics), que predomina nos Estados Unidos entre 1981 e 1992. 21 “Religião civil” segundo o sentido conferido por Rousseau, J.J, in Contrato social. Paris: Aubier-Montaigne, 1976, p. 427. 22 A relação teologia e ciência econômica parece estar dando os primeiros passos. Cf. Produções de Júlio de Santa Ana e outros in Concilium 5 (1995); as obras de Jung Mo Sung, Ed. Paulinas, Brasil e de F. Hinkelammert , DEI, San José de Costa Rica e Hugo Assmann, Ed. Paulinas, Brasil. Vide para o Brasil, estudos in Tempo e Presença, CEDI, 268(Ano 15); Perspectiva Teológica 70 (1994). 23 A escassez de espaço não permite apresentar no corpo do texto excelentes estudos sobre Ética e economia, sobre a cultura da solidariedade cristã, a busca de mercados competentes e criativos na relação de comunidades-irmãs do Norte e do Sul, onde a postura da caridade vai junto com a justiça e reciprocidade, superando alienação e
  • 26. 27 A busca de uma solidariedade competente não visa só superar a instância de “esmola, de ajuda”, nem tampouco apenas criar “ilhas de troca” entre comunidades, muito menos ainda os planos com o “invólucro de solidariedade” mas cuja ação burocrática corrupta canaliza os fundos para seu próprio bem-estar em vez de atingir o alvo que é sujeito- comunidade-local em libertação. A verdadeira solidariedade vai ainda mais longe. Supera a ingenuidade de atuação, usando os mesmos campos e redes de mercado, porém, com um espírito concreto e vigilante de economia de reciprocidade à moda de inúmeros esforços que se tem feito nas últimas décadas.24 É também aí que o serviço e a arte da ciência política diante da economia pode acontecer no habitat concreto da comunidade. Entre os Mbyá Guarani, a ordem econômica é de “economia de reciprocidade”. Eram cinco milhões, na descoberta e invasão européia do Brasil. Após 500 anos foram reduzidos a 200 mil. Em 1996, arriscam perder ainda mais espaço. Mesmo como “guarani em beira de asfalto” não desistem de sua língua, fé e tradições. irenismos. Cf. Jesus Ano XV-8(1993). São cerca de 1500 documentos episcopais sobre a questão social, já reunidos pelo Instituto Internacional J. Maritain, dos últimos cem anos; cresce o interesse e a urgência de pesquisa e profecia neste campo por parte da Igreja. Os documentos do Magistério tem despertado sempre mais interesse. 24 Para informações detalhadas sobre o crescimento e desenvolvimento de setores de comércio equo-solidário, sobre financiamento ético e economia social “non-profit” (sem lucro) procurar o CTM MAG Servizi: Centro Ricerca - Formazione - Comunicazione , Piazzetta Forzaté, 2 - 35 137 Padova - Italia. Fax 049/8755714 - e-mail: bancaetica@cda.it
  • 27. 28 Capítulo quatro Política é coisa suja? Sobre o nosso direito de interferência política Se a resposta é não, estamos com Jesus de Nazaré. Mas o modo como está sendo vivida neste mundo em crise, onde se esvazia sempre mais o sentido de autoridade servidora do bem comum, o serviço de política está desacreditado. Estamos carentes de paradigma também nesta área. Há dois textos paradigmáticos da vida de Jesus que podem nos ajudar a aprofundar o sentido desta arte tão antiga quanto a humanidade: a arte de se interessar pela boa convivência e o bem de todos, a arte de fazer política, como veremos logo a seguir. 1. Jesus e a Política Baste-nos, por ora, encontrarmos com Jesus em duas idades sacramentais de sua vida. Haveria muitos outros textos com suas palavras, fatos e atitudes, a ponto de fazermos um longo tratado sobre Jesus e a política. Aos 12 anos Aos doze anos ele dá um susto nos pais. Foi logo após a festa de sua maioridade religioso-política, conhecida como “Bar mitzvah”, em Jerusalém, na capital. Jesus fica na cidade e seus pais, após longa e aflita procura, o encontram no centro religioso, político e de referência social judaica: no templo da cidade santa. Usando o direito de participação que a lei lhe dá, o jovem nazareno não se intimida diante das autoridades de seu povo e discute com eles. Conta o Evangelho que “após três dias de procura, os pais de Jesus o encontraram no templo, sentado entre os doutores, escutando-os e interrogando-os. E todos aqueles que o ouviam ficavam pasmos de admiração pela sua inteligência e a sabedoria de suas respostas.” (Lc 46-47). Aos 30 anos Vinte e poucos anos mais tarde, Jesus voltará a defrontar-se com as autoridades, no mesmo pátio do templo. Dali Jesus sairá para levar a lei e a política do amor até as últimas conseqüências numa condenação injusta e
  • 28. 29 morte violenta. Tudo começa em Nazaré entre seus parentes e companheiros de idade. “Jesus voltou à Galiléia com a potência do Espírito Santo e a sua fama se espalhou por toda a região. Ensinava nas sinagogas e todos lhe davam muitos elogios. Vai a Nazaré, onde tinha crescido; e entrou, segundo o seu costume, na sinagoga e se levantou para ler. Deram-lhe o rolo com o livro do profeta Isaías; abrindo-o, encontrou o trecho onde estava escrito: ‘O Espírito do Senhor está sobre mim; por isto me consagrou com o óleo santo da unção, e enviou-me para anunciar uma alegre notícia aos pobres, para proclamar a liberdade aos presos, devolver a visão aos cegos; libertar os oprimidos e anunciar o ano de graça do Senhor.’( Is. 61,1-2) Depois enrolou o livro e o deu ao ajudante e se sentou. Os olhos de todos na sinagoga se fixaram nele. Então começou a dizer-lhes: Hoje se cumpriu esta escritura que acabastes de ouvir.” Todos se orgulhavam dele e se maravilhavam com as palavras de sabedoria que saiam de sua boca, e diziam: “Não é este o filho de José, o carpinteiro?” (Lc. 4, 14-22). Querendo que fizesse milagres para dar demonstração de poder e de sucesso Jesus lhes responde que “nenhum profeta é bem aceito em sua terra”. O pessoal ficou furioso e o levou para fora da cidade para jogá-lo no precipício. Jesus, porém, passando no meio deles, segue seu caminho. 2. O descrédito de nós mesmos no descrédito da ciência política No campo da ciência política há muitos tabus a serem quebrados, pois o exercício desta arte chegou ao máximo de desprestígio. O analfabetismo da humanidade no que se refere ao uso deste poder essencial nas mais variadas culturas, produziu neste segundo milênio e, de forma violentíssima no século XX, milhões incontáveis de vítimas. O que é a política? A própria palavra de origem grega já traz o significado-básico, ou seja, a arte de orientar com prudência a convivência entre pessoas. Em outras palavras, é a ciência que resguarda os direitos do cidadão a viver respeitado, útil, solidário em sua sociedade. O quanto de novidade estamos carentes nesta área de convivência, especialmente nas megalópoles, faz-nos lembrar a magistral obra de Ernst Cassirer, cujo título de capa já sintetiza a dimensão da problemática política: «A multidão solitária».
  • 29. 30 A freqüência dos suicídios em épocas de grandes festas, a eficiente rede planetária do narcotráfico que há 30 anos mutila gerações de jovens na fuga de si mesmos e da inaptidão para a convivência com a alteridade. A venda de drogas é o segundo comércio da atualidade. Os ambientes de trabalho nas fábricas onde o sistema de industrialização visa apenas o quantitativo de produção e renda, sem dar possibilidade de participação consciente e cooperativa dos trabalhadores. As inúmeras e vergonhosas guerras e seus armistícios hipócritas escondendo sempre o trabalho da mão invisível do mercado vendendo armamentos e mantendo o seu recorde como o mais vantajoso comércio do século. Sem esquecer que é tarefa política administrar os outros setores da proteção à vida especialmente, a segurança (que deveria ser entendida mais como proteção do que defesa), a moradia, a instrução, a saúde e o lazer. 3. Na crise dos paradigmas de autoridade: a orfandade planetária? Com as mudanças de 1989 produziram-se ainda alguns cenários inéditos e em grande parte imprevisíveis: a crise das ideologias não significou só o fim das trágicas opressões do Leste, mas também o desfalecimento de tecidos sociopolíticos que pareciam compactos, e o emergir deste processo de trituração de reivindicações particularísticas com violência inaudita. O vazio terrível produzido pelo fim da lógica da contraposição demonstrou que o consenso coagulado «contra um adversário” não correspondesse de fato a um análogo crescimento da consciência moral e cívica.25 O desencanto produzido em muitos «órfãos» da ideologia, o triunfo efetivo deste modelo ideológico ainda mais sutil e perigoso, que é o hedonismo unido ao individualismo exasperado da sociedade opulenta do Ocidente, determinaram uma crise ética, cujas dimensões hoje são dificilmente calculáveis. Neste vazio de valores onde triunfam os modelos da «decadência», as propostas de otimismo a alto preço de mercado, o afastamento da solidariedade por detrás da máscara do estilo do «cada um por si» que sacrifica precisamente os mais fracos, sem poder aquisitivo dos bens até de primeira necessidade; a procura do lucro fácil e do sucesso a qualquer preço, e a perda dos mais elementares princípios morais. 25 FORTE, Bruno. L’Essenciale è vivere la carità, in Jesus 11 (1995), p. 64.
  • 30. 31 As associações sociopolíticas do passado perderam a sua razão de consistência: não é mais a bandeira ideológica que possa sustentar um consenso, nem mesmo a bandeira ligada a um programa de inspiração cristã, como o demonstra o fim do partido único dos católicos na Itália, a famosa Democracia cristã. Apareceram vencedores o pragmatismo, a capacidade de sedução, a força dos persuasores ocultos ligados ao poder da mídia, os particularismos regionais e econômicos, em geral de baixíssimo nível, cujos aspectos já analisamos. Mas o tabu maior que sobra como saldo é que realmente há uma perda de credibilidade geral no setor. Cai assim com o político um referencial importante para a vida das comunidades humanas que é o valor da autoridade. Em poucas décadas, nosso século colheu consequências com feridas ainda vivas na pele e na mente de inúmeros cidadãos, frutos podres dos totalitarismos de direita e de esquerda em todo o Planeta: de Hiroshima a Dachau até Ruanda e Burundi. Um novo jeito de governar: “de satanás a anjos da guarda” Nosso jeito dominador e não sabiamente servidor da vida, de todas as vidas é responsável por todas as vítimas. Nossa aproximação da “mãe natureza” ainda é o pior possível. Finalmente a Teologia também dá aqui seus primeiros passos e nos ajuda a abrir os olhos para mais este fruto de uma relação de pecado estrutural, a nossa relação de dominação em vez de diálogo com a mãe natureza. "Não será possível tratar a natureza como a trata a nossa sociedade, quase como se ela fosse supermercado ou um self- service. A natureza é um patrimônio comum que vem sendo assaltado sem piedade, mas que é urgente conservar... De satanás da terra, o homem deve educar-se a se tornar seu Anjo da Guarda, capaz de salvá-la como sua pátria cósmica e mãe terrena.”26 "Os astronautas nos acostumaram a ver a terra como uma astronave, que se equilibra azulada nos espaços siderais, portadora do destino comum de todos os seres. Acontece, porém, que nesta nave-Terra 1/5 da população viaja na parte reservada aos passageiros, consumindo 80% das reservas disponíveis para a viagem, enquanto os outros 4/5 viajam no bagageiro, passando fome, frio e toda sorte de privações". As estatísticas registram em dados recentes que a acumulação integrada hoje em nível mundial, exige uma Hiroshima-Nagasaki por dia em vítimas humanas. Mas 26 Cf. BOFF, LEONARDO. Teologia da libertação e ecologia, in Concilium 5(1995) pg. 113ss.
  • 31. 32 às vezes o próprio fato de delegarmos tais horrores às estatísticas é mais um sintoma de nossa fuga ao informacionismo. Na verdade, o progresso é imenso, mas profundamente desumano. Ao centro deste não estão a pessoa humana e os povos com suas necessidades e as suas preferências, mas a mercadoria e o mercado aos quais tudo e todos devem estar submissos. Neste contexto o ser mais ameaçado da criação não são as baleias mas os pobres, condenados a morrer prematuramente. E para dar espaço à realidade, Leonardo lembra que as estatísticas da ONU mostram que neste nosso mundo quinze milhões de crianças morrem antes de concluir o quinto dia de vida, por causa da fome ou de doenças derivadas dela; 150 milhões são subnutridos, enquanto 800 milhões de pessoas vivem padecendo fome crônica.27 Mas se estamos descobrindo ainda o ABC de nossa corresponsabilidade, é sinal que muito preço deveremos pagar ainda para uma relação de verdadeira amorização. Isto no tocante à política com a natureza, imaginemos para pisar no concreto, a caminhada política das relações humanas solidárias. A nível interno de Igreja há que se superar muitas dicotomias em vista desta fraternidade cósmica. 4. A Igreja é essencialmente política: Até quando o dualismo – profano/sacro? Os que militam na área, mesmo se cristãos, sentem-se soltos e desamparados no perigo. A propósito, cai bem o depoimento de Card. Martini sobre a desproteção do político «vocacionado». «Recordo o que um político africano, ouvinte do sínodo sobre os leigos, dizia: “Os cristãos comprometidos na política estão colocados num campo impuro, em parte, não todo - onde o exercício da força e da luta pelo poder são determinantes e é uma pena constatar que não existem nem a nível nacional ou continental, nem em escala internacional, lugares de recuperação espiritual, fontes de revisão, abastecimento, «carrefours» de aprofundamento, estruturas eficazes de apoio para o cristão que atua na área.»28 . Lembro, a propósito desta verdade do parlamentar, uma experiência de debate dos 11 candidatos à vereança do bairro de Capoeiras em Florianópolis (SC), Brasil, para as eleições municipais de 1988, se não me engano, e que registrou a presença de 200 participantes, numa comunidade 27 Cf. UNDP. Human Development Report 1990. Oxford - New York: Oxford University Press, 1990. 28 Cf. MARTINI, CARLO MARIA. Viaggio nel vocabolario dell’etica. Casale Monferrato: Centro Ambrosiano/Edizioni Piemme, 1993, p. 94
  • 32. 33 de 11.000 eleitores. Aquelas ausências devidas, sem dúvidas, ao tabu de que «política é coisa suja!« e que «igreja não se mistura com política». E quanta crítica ao tipo de teologia que procurava refletir o ser cristão na política, em vista da transformação da realidade a fim de que a vida de todos fosse respeitada! 5. Quando teremos escolas de educação à política? Não haverá muito «mea culpa» a pedir da parte das instituições eclesiásticas, pelo medo das consequências do profetismo na vida política das comunidades? Não há dúvida de que atuar neste âmbito é delicado, perigoso e arriscado. Em primeiro lugar, porque mexe com os interesses de grandes grupos econômicos, depois, porque mexe com o grupo oligárquico de turno no poder, bem como, tem a cooperação do próprio eleitorado, habituado a negociar o voto por favores individualistas em vez de valorizar os interesses comunitários. Por isso, na busca do novo modo de fazer política, o discernimento é fundamental em quaisquer operações. Exemplifiquemos com o movimento que ocorreu na Itália, conhecido como operação «mãos limpas», semelhante às CPIs do Brasil. ‘Trata-se da coragem de trabalhar no profundo das causas e de educar a comunidade numa visão «de tempo longo», e que exige muita «paciência e persistência históricas», como toda boa pedagogia o deve exigir. É um trabalho de educação a ser feito especialmente com as novas gerações, desde a catequese, superando todo dualismo entre fé e vida, fé e realidade. Assim aquele binômio prioritário «educar à comunhão e à participação» apontado pelos bispos latino-americanos em Puebla de Los Angeles, no México em 1978, junto à escolha da opção preferencial pelos pobres, continuará vigendo para além dos dez anos previstos. É uma educação permanente. E as estatísticas sobre o nível de participação nos desafiam em todos os sentidos. Há pouco, outra voz africana, desta vez a delegada do Burundi à Conferência de Copenhague, organizada pela ONU sobre o desenvolvimento social, em março de 1995 declarou, surpreendendo os participantes que «90,3% dos deputados do mundo são homens e que 100 países ainda não tem mulheres no Parlamento.» E se no Brasil pensarmos em termos étnicos de representação parlamentar, numa terra morena como a nossa, a segunda nação negra do mundo, a primeira é a Nigéria, quanto caminho ainda por fazer! São raríssimos ainda os negros na vida pública civil e entre as autoridades eclesiais. Entre 283 bispos, três apenas são negros.
  • 33. 34 6. As autoridades de Igreja como educadoras de educadores políticos No contexto de política onde a crise mundial tem pedido contínua e urgente purificação, é muito difícil trabalhar com cabeça fria, sem ser invadido pela emoção. Nas análises destas situações, o discernimento é fundamental. Vale lembrar a postura pastoral de Martini, Cardeal de Milão, portanto, em pleno centro de comando da operação «mãos limpas» na Itália. Usando a TV e os grandes meios de comunicação de massa, o cardeal atuou com o grande público com informações essenciais de como atuar em profundidade, contra as causas da corrupção. «Estas causas estruturais, supondo que já estejam identificadas, são comportamentos de uma sociedade, hábitos de grupo, ou são por assim dizer institucionais, quero dizer, codificadas pelos regulamentos e por leis que produzem, como efeito colateral, comportamentos reprováveis e, porém, de fato, inevitáveis para obter determinados fins políticos? No primeiro caso basta recorrer à moral, mas no segundo, o problema se torna problema de todos, e é necessário estudá-lo atentamente e profundamente para desamarrar aqueles comportamentos que, não obstante a boa vontade de alguns - poucos ou muitos - terminam por obrigar quase a utilizar meios ilícitos.» Ampliando, então, sua análise numa visão mundial da política, Martini diz: «Em não poucas situações políticas de nosso planeta, surge a suspeita de que a multiplicação de casos de transgressões no âmbito administrativo e político não seja devido simplesmente ao crescimento de degradação de indivíduos singulares, mas a fatos mais estruturais. E isto influencia nas relações de confiança global entre os cidadãos e a classe política, portanto, sobre o funcionamento correto do próprio sistema constitucional no seu conjunto. Então o sistema deve tornar-se público e não se pode permitir que alguém recue, ou quem se desresponsabilize.»29 Embora a irresponsabilidade comece pelos grandes poderes da terra corrompendo seus próprios compromissos como ocorreu em Estocolmo. Na palavra do Diretor Geral da UNESCO, Frederico Mayor Zaragoza, «os países ricos estão dando um espetáculo lamentável com seu comportamento junto dos países pobres nesta conferência». E se tratava exatamente de dois posicionamentos: o primeiro diante do perdão ou abaixamento da dívida externa dos países mais pobres. Do grupo dos sete mais ricos, nenhum aceitou. E o segundo, quanto ao pagamento de suas 29 Idem, p. 95ss.
  • 34. 35 dívidas com o desenvolvimento assumidas pela oferta de 0,7% do Produto interno bruto, todos estavam inadimplentes.30 A opinião de Santa Catarina Há ainda sinais de esperança? Houve outras épocas em que a interferência do feminino trouxe muitas luzes neste campo e eram tempos de segregação ainda mais violentas que hoje sobre o espaço-mulher. Nos tempos de Santa Catarina, não aquela que é padroeira do meu estado natal que dizem ser Santa Catarina de Alexandria, esta era de Siena. Considerada doutora da Igreja, nos tempos de grave crise social e política ela saiu a campo e foi aconselhar o governo da Igreja no qual se misturavam os poderes temporal e religioso. Ela viveu de 1347 a 1380 e desenvolveu intensa atividade de pacificação entre estados, cidades e vilarejos, lutando pela unidade da igreja. Conservam-se 381 cartas ditadas aos seus alunos e muitas destas tratam de argumentos políticos. Ela insiste em dois princípios essenciais para viver uma santidade política. Numa de suas cartas, Catarina descreve assim aos governantes da cidade de Siena: “É mau apoderar-se de coisa emprestada como é o poder público, se primeiro não se governa e se domina a si mesmo. Poder emprestado é o poder de governo das cidades, dos bens temporais que nos são emprestados e aos outros homens do mundo, e, que nos são emprestadas por tempo determinado, segundo o agrado da bondade divina e de acordo com os modos e costumes de cada região. De qualquer maneira, é sempre um poder emprestado. Quem o usa deverá possuí-lo com santo temor, com amor ordenado e não desordenado, como coisa emprestada e não própria.”31 30 Cf. In Religión y Cultura, 192 (1995), La cumbre de Copenhague, pp. 135-145. 31 MARTINI, op. cit. p. 117ss. Toda a longa explicação é uma jóia rara para o nosso momento histórico.
  • 35. 36 Capítulo cinco Direito à ética: Sem corrupção, mas com ternura e graça “A ética é a obediência ao não obrigatório.” 1. O que é Ética? Em nosso percurso, de olho nas realidades essenciais, vamos parar na estação dos valores. Na verdade, já os temos mencionado ao longo deste trabalho, visando preparar a casa para a festa do 3o. Milênio e o resgate dos direitos humanos. Começamos observando que hoje é muito comum falar de ética na economia, na política, na vida pública. Os historiadores dizem que quanto mais uma sociedade está carente de moralidade pública, mais se fala. Eles dão razão à sabedoria do povo quando diz que a boca fala do que o coração está cheio. E mais, os estudos dos historiadores mostram que as grandes épocas de reflexão sobre a ética acontecem nos momentos de transição da humanidade e é quando se verificam também os grandes episódios de corrupção. Mas o que é ética? Primeiro olhemos a origem da palavra que também vem dos gregos, quer dizer «aquilo que se faz costumeiramente, como rotina”. «Ethos» em grego significa, sobretudo o caráter, a maneira de ser, o bom comportamento de uma sociedade. Para os gregos, porém, trata-se de uma sociedade bem ordenada, de uma sociedade boa. Então, ética indica os comportamentos que uma sociedade, na sua sabedoria e experiência, tem como positivos para a paz e a ordem na convivência social, para o progresso dos cidadãos e o aumento da qualidade de vida para todos. Tais comportamentos são «éticos», quer dizer, eticamente honestos. É ético, isto é, inegociável Há também um outro elemento. É quando usamos o termo ético no sentido absoluto: o que é bom em si, aquilo que evitaremos a todo o custo, e em qualquer caso sem que nem mesmo pensemos em vantagens pessoais
  • 36. 37 ou sociais, algo que é totalmente digno do ser humano, algo que é inegociável, sobre o qual não se discute, nem se transgride. Há, enfim, um quarto significado que é a ética como ciência de reflexão filosófica e que trata do comportamento humano e o seu sentido mais profundo. Não é motivo de orgulho e de alegria que os seres humanos tenham chegado a intuir a existência de comportamentos que são colocados acima do prazer, do ganho, do lucro? Comportamentos que não tem preço, porque estão acima de qualquer preço. Por isso o tema da ética deverá sempre recuperar o sentido do otimismo, da esperança. 2. Mesmo na crise da ética, a esperança cristã repesca a alegria Às vezes, associamos o tema da ética, do comportamento, da moral, com homens e mulheres, denunciadores severos, inflexíveis, sisudos. Creio muito enriquecedor partilhar nesta pesquisa o depoimento de Martini, Arcebispo de Milão, feito via conversa televisiva, como já dissemos; nas entrevistas ele sugeria, que fôssemos capazes de conversar sobre moral com seriedade, mas mantendo o caráter de encorajamento, animação e conforto do povo. Ele assim explicava: «a grande palavra da ética é: tu podes muito mais, é possível fazer melhor, és chamado a algo muito mais lindo na vida; é possível ser honestos e é uma aventura extraordinária do espírito... Exatamente, de tal espírito de otimismo temos necessidade para não perdermo-nos em lamentações estéreis e obedecer ao mandamento fundamental da ética: procura ser mais autenticamente tu mesmo, ser mais verdadeiro, mais livre, mais responsável.»32 Melhor um homem morto do que uma obra de arte destruída! (?) E para ir mais fundo nas explicações aos telespectadores sobre esta verdadeira característica da ética, da moral, de tratar daquelas ações que são absolutamente dignas ou indignas do ser humano, contou-lhes que um colecionador de obras de arte, no início da segunda guerra mundial, diante do perigo dos bombardeios e da possível destruição de obras artísticas, escrevera este princípio: melhor um homem morto do que uma obra de arte destruída! Este é um exemplo de uma sentença moral, ética, de um modo de pensar que nenhum homem e mulher bons da cabeça poderiam jamais aprovar. É claro, todos apreciamos obras de arte, porque são tesouros da humanidade, mas a humanidade é bem maior do que seus tesouros. Assim, 32 Martini, op. cit. p.16.
  • 37. 38 toda doutrina ética ensina a refutar tais aberrações que são afins com todo tipo de preconceito racial, ou outros, contrários a todo sentimento de humanidade. Revendo e aprofundando estes valores e referindo-os com o que vimos acima sobre o mundo da filosofia, do saber, da economia, dos meios de comunicação, da política e suas leis, já podemos imaginar o quanto tem a ver conosco. Com todo o ser humano, sobretudo se foi evangelizado e com o momento histórico a ser transformado, e, o que de ético deve ser preservado a qualquer preço. Antes, porém, de encaminhar o último capítulo desta nossa viagem em busca de perspectiva de novidade cristã na crise da mundialidade atual, precisamos concluir o percurso entre as ciências-chaves das comunidades, indagando sobre a ciência que caminha junto da moral: a ciência dos juízes e advogados, o Direito, a legalidade. 3. Uma nova legalidade? Podemos compreender melhor o que é Direito em relação à ética. Pois bem, se esta se interessa pelos comportamentos de valores humanos, o Direito colhe e se interessa pelo conjunto de normas positivas que as sociedades se dão, para responder a esses imperativos morais profundos e traduzi-los na prática do dia-a-dia. Estas leis só terão valor se se mantiverem fiéis àqueles princípios respeitados por todos. Sobre o respeito com o próximo, por exemplo, o Direito diz apenas: respeita o outro, também o estranho, promove o bem comum, ou, ao menos, não faças o mal. A moral, a ética, em vez, vai mais longe e sugere: seja próximo dele, considera o outro como membro de tua família, o mais possível! A lei do bom samaritano O primeiro preceito da moral está indicado na parábola do Bom Samaritano que desce do cavalo para socorrer o ferido de uma outra etnia, que encontra caído na estrada, e providencia tudo para ele. A moral, pede que se faça aos outros o que queríamos que eles fizessem para nós. Direito e moral não se chocam, mas se unem para criar uma sociedade não só vivível mas boa e fraterna. Este é o ideal de uma comunidade à medida da pessoa humana, é o ideal que nasce do credo religioso com forte conteúdo ético como é próprio da tradição hebraica e cristã. Muitos chamam a atenção para a urgência de instaurar uma nova cultura da legalidade, de caráter cultural para além do caráter legislativo. Na crise da sociedade italiana o próprio santo padre João Paulo II insiste num compromisso amplo em vista de uma grande recuperação da
  • 38. 39 legalidade, como primeiro remédio para resgatar o país da situação na qual se encontra: «não há ninguém que não veja a urgência de recuperação de uma moralidade pessoal e social, de legalidade. Sim, é urgente a recuperação da legalidade.» Leis ou “lobbies” legalizados? Junto a um eclipse da legalidade (e quase como sua conseqüência) devemos observar também um afastamento cada vez maior de uma ação política autêntica. É sinal de sua doença quando passa a legislar e ser manipulada de modo redutivo diante do tumultuado desenvolvimento da subjetividade privada e pública. É preciso sondar, se está favorecendo o aparecimento de um neofeudalismo em cujas corporações e lobbies se tem a tendência a ditar leis a serviço de privilégios. Para que aconteça um justo e útil desenvolvimento de autonomia dos indivíduos e dos grupos, é necessário que exista um forte e unitário quadro de referências que garanta regras de comportamento comum. As leis nascerão assim de uma síntese superior que reúna os interesses comuns, em vez de tornar-se o fruto de um contrato com determinadas partes da sociedade que, sendo mais fortes, tem o poder de sentar-se, à mesa de negociações, com o direito de exercitar o poder de veto. Evitar-se-á deste modo também aquelas belíssimas «leis-manifesto» que, porém, não possuem estrutura e recursos adequados, e que afundam miseravelmente no primeiro impacto com a realidade. Mas uma verdadeira, consciente e nova cultura da legalidade exige algo mais profundo e seria importante, por isso, voltar-se para a referência rica do vocabulário bíblico, quando queremos aprofundar a noção de lei. Pintura de Giuseppe Pollarolo. 2000 anos de Maria. Otimismo ético de Maria, mãe de Jesus de Nazaré.
  • 39. 40 4. De volta às fontes bíblicas, lições jurídicas sempre novas As palavras usadas a este propósito na Escritura são muitas, como o demonstra a riqueza do salmo 119 todo tecido de termos referentes à lei; são termos que significam, vez por vez, instrução social-religiosa-cultural- política de origem divina, testemunhos passados fielmente no que respeita o ethos (jeito próprio de ser) de uma comunidade. A lei se torna assim, o caminho a ser seguido com rumo certo à felicidade e à vida.33 A cultura da lei, com raízes no povo de Deus da bíblia, não se apoia simplesmente em leis externas, mas na realidade dialogal da Aliança, isto é, naquela relação privilegiada que se instaura entre Deus e seu povo e entre os membros do povo. A experiência do amor de Deus, reconhecida ao longo da história dos antepassados, a sua grande ação providencial, fortalece e desenvolve a consciência de um amor divino e de uma missão religiosa, social e política, das quais as leis são consequência e condição. Leis que representem ideais coletivos Leis, então, a serviço da vida, para o bem, para o futuro, para o progresso do povo. E não leis que possam tornar-se permissão à morte, como todas as aberrações contra a vida, de ontem e de hoje, cujo arrependimento e conversão, se faz proposta corajosa pelo Papa, para a festa do 3º milênio. Uma cultura da legalidade deve, portanto, plantar suas raízes num profundo ethos religioso, social e cultural. Deve distinguir-se do legalismo, favorecendo situações nas quais a lei seja respeitada não só pelo seu valor formal ou pelas sanções que comporta, mas pelo seu valor e seu significado intrínseco, pela sua capacidade de representar os ideais e os fins de uma coletividade. Com a graça do fôlego dos pobres É difícil realizar o “novo” tão suspirado quando viajamos pelos setores complexos e estruturais com tantos desafios para as comunidades nesta nossa época. Às vezes nos escondemos, noutras nos cansamos. Mas ninguém nasce fora de época. Cada um vem “sob medida” para fazer a história. E a tarefa de viver com amor, lei maior, exige sempre uma graça especial. 33 Cf. Análise por uma nova legalidade in Martini, op. cit. p. 104ss.
  • 40. 41 E aqui podemos lembrar o samba que diz: “viver e não ter a vergonha de ser feliz, cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz; ai meu Deus! Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será, mas isto não impede que eu repita: é bonita, é bonita, é bonita!”34 E esta lição podemos aprendê-la do mundo dos pobres. Talvez o de que necessitamos seja a graça do fôlego dos pobres, ou antes, dos miseráveis que nos evangelizam as possibilidades e as esperanças porque às vezes só dependem de um financiamento. Deus. «Deus lhes pague!» São os verdadeiros «anawin», os «pobres de Javé». Só Ele é seu patrocinador. Quem conhece a força dos pobres, a sua impossível alegria de barraco, a criativa ginga do samba que nasce no morro após 350 anos de escravidão, só seguirá uma palavra de ordem: o mínimo a fazer é mergulhar no rio da história e nadar contra a correnteza. É preciso perseverar no caminho. Hoje temos necessidade de personalidades fortes e honestas, em cada campo da vida social, econômica e política com o jeito ousado e determinado do Bom Samaritano. É preciso perseverar no caminho. Hoje temos necessidade de personalidades fortes e honestas, em cada campo da vida social, econômica, política e profissional, com o jeito ousado e determinado do Bom Samaritano (Lc 10, 29-37), aquele que seguiu pelo caminho do não obrigatório. ESPINHEIRA Êta espinheira danada que o pobre atravessa prá sobreviver, vive com as cargas nas costas e as dores que sente não pode dizer, sonha com as belas promessas de gente importante que tem ao redor, quando entrar o fulano e sair o sicrano será bem melhor. Mas entra ano e sai ano, e o tal fulano ainda é pior, este é o meu cotidiano, mas eu não me dano, pois Deus é maior. O mundo não acaba aqui não, não, o mundo ainda está de pé, enquanto Deus me der a vida levarei comigo esperança e fé (bis). Êta que gente danada que esquece de vez a palavra cristã, Ah! Eu queria só ver se Deus se zangasse e voltasse amanhã, Seria um “Deus nos acuda”, um monte de Judas querendo perdão, com tanta gente graúda implorando ajuda com a bíblia na mão. Mas a esperança é miúda, e a coisa não muda, não tem solução, nem tudo o que a gente estuda, se agarra e se gruda arrebenta no chão. 34 Cf. Música “O que é, o que é?”, do cantor Gonzaguinha.
  • 41. 42 Conclusão Direito humano e divino: pilotar a crise Para concluir, é bom lembrar que a viagem no trem da história prossegue em cada vida, por mais anônima que pareça, por mais distante que esteja dos centros urbanos coloridos, dos cones de luz, das bolsas de “valores?”. Queiramos ou não é em cada coração que se faz aquela história que conta, cada ser humano escreve a história de seu próprio coração. Em cada coração pulsa o batimento pela eternidade da vida. Se alguém não o sabe, pelo menos sente que não somos daqui, nos surpreendemos aqui. Somos uma espécie de embaixadores do infinito. A própria existência das religiões testemunha esta sede de imortalidade humana. Os valores existentes em cada cultura mostram que Deus chegou antes de nós. “Escreverei minha aliança nos vossos corações”, repetem os profetas em nome de Deus, como Ezequiel desde o Antigo Testamento. Todos se esforçam na busca de Deus. E aqui está o ponto essencial pelo qual o cristianismo se diferencia das outras religiões35 . Não conta como ponto de partida a nossa busca, mas a iniciativa obstinada de Deus em seu amor por nós. Deus se arrisca a entrar em crise quando seu Filho Querido, Jesus de Nazaré, se encarna no meio de nós e se torna semelhante a nós em tudo, menos no egoísmo, no pecado. Então, qual pode ser a “kusform”36 da novidade cristã? Antes de tudo, o evangelho é novidade permanente. Esta revelação está na própria raiz grega da palavra: provém de “En angélion” que significa “publicar a boa notícia”. Portanto, se faltar novidade, o anúncio se torna imediatamente estéril. E o é também nas sociedades e comunidades antigas ou jovens nas quais já foi anunciado o Evangelho, e que cristalizaram formas anti-evangélicas de convivência política, econômica, religiosa e jurídica, como vimos ao longo desta rápida viagem. E não se 35 Cf. João Paulo II, in TMA, nº. 6. 36 Nesta viagem fizemos uma tentativa de caminhar na linha de uma “Kusform”, isto é, uma “fórmula breve”, centrando o essencial cristão. Este foi o fio condutor teológico deste trabalho. Cf. RHANER, Karl. “Per una “Formula Breve” della fede cristiana” in Nuovi Saggi, III. Roma: Ed. Paulinas 1969.
  • 42. 43 pode esquecer de frisar que estas sociedades secularizadas tem carência urgente desta novidade. E qual pode ser esta “fórmula breve” que pode repescar as atenções e a paixão do homem da era da informática e do novo deus “mercado”? A iniciativa da pergunta, é preciso ressaltar, é toda da parte de Deus. Mas quem é Deus e o que tem feito por nós? Na parte da ética, da moral, não é que há muita novidade, outras religiões, tem até melhores, embora o cristianismo tenha “algo mais”. Mas a raiz da novidade cristã, segundo os evangelhos, vai na direção da revelação da identidade de Deus e de seu amor por nós. Uma novidade até escandalosa do evangelho: não é que o homem deva morrer por Deus, mas em vez, revela que Deus morreu pelo homem. Como vimos em nosso itinerário, é uma novidade “descendente” de Deus em Cristo quando diz, “como eu vos amei, amai-vos!”. O importante é este “como” vamos amar a alteridade, é aí, no exercício do “Da-sein” que a Trindade servidora deseja nossa resposta, e espera que vivamos na sua lógica diferente, a do amor que perdoa. Não basta dizer a uma pessoa: Deus te ama! No evento Jesus, ao contatar sua história, descobrimos que Deus tem a iniciativa de revelar os traços essenciais de sua identidade. Por isso não basta dizer a uma pessoa: Deus te ama! Isto não é novidade. Devemos contar o que fez o Deus que a ama: libertou do Egito... se fez homem e morreu por nós. Como o vimos no hino cristológico que abriu este nosso trabalho. Seria mais fácil dizer: temos um Deus igual, nós cremos que Ele se revelou e vocês não, e está tudo bem. Quando nós criamos a imagem de Deus, seguimos o caminho mais fácil. Porém, não fomos honestos com Jesus Cristo. Em Jesus é revelado o ponto nevrálgico da sua identidade, como já vimos nas aplicações da fé à vida ao longo dos capítulos, e que o mostra como o dom de si, uma pessoa a serviço. Nós desconversamos dizendo que Ele apareceu assim não porque Deus tem por qualidade especial o serviço, mas porque Jesus devia se mostrar humilde, reparar os pecados, dar exemplo. Para nós a identidade de Deus está ligada a potência, não a serviço. Lucas diz que quando o Senhor glorioso retornar e encontrar os seus servos vigilantes, de plantão, os fará sentar à mesa e passará servindo-os. O servir, portanto, não é só “um perfil” do Jesus terreno, mas “algo que identifica” toda a sua pessoa: Deus é assim.
  • 43. 44 A sua verdadeira identidade é colocar-se sob os outros, antes de colocar-se acima. Isto revira toda a nossa idéia de Deus. Mas certas idéias que temos não têm nada de original, como, por exemplo, que Deus é “onipotente”. É lógico e todo mundo já o sabe. O ponto novo e provocador da revelação evangélica é que Deus é “dom de si”, é serviço de criação (o Pai), é serviço de redenção (o Filho), é serviço de santificação (o Espírito Santo). Todos trabalham em conjunto. Esta modalidade divina celestial, se torna também na terra a identidade de Deus. Por isso, no meio de nós, Ele é um Deus em crise. Isso é original. Deus em crise? Já abordamos várias vezes o termo “crise”. Vamos buscar na raiz da palavra o seu significado. Vem do grego também, como a maioria de nosso vocabulário, do verbo kríno: passar no crisol, ou no crivo. É desta raiz que temos em português o verbo acrisolar, isto é, passar no crisol, ou no crivo, na purificação. O acrisolamento é o processo químico de transformação de um metal bruto em metal trabalhado, precioso. Só nesta pequena verificação de raiz filológica já dá para sentir a riqueza da palavra, não é mesmo? Não é difícil entender que o homem, qual pérola preciosa, é pela sua própria natureza um ser acrisolável, ser de possibilidades, ser que cresce. Assim, desde que nascemos entramos em “crise”. É no útero da “crise” que vamos nos revelando. Por isso, ninguém é o “fim da picada,” um ser falido. Crise é sinal de juventude, de que estamos vivos e podemos desafiar os desafios. Na encarnação de Jesus, Deus embarca no trem da história humana, arriscando tudo na revelação do amor do Pai, sem medo da crise, de sujar as mãos para lavar-nos do pecado, do egoísmo, em todas as suas formas. Jesus: Deus é “Homo serviens” Então, Jesus não faz teatro e assume o verbo servir como programa de seu jeito de ser. Já vimos que a sua encarnação revela sua identidade de “homo serviens”, pessoa a serviço. E começa cedo. Logo que o anjo Gabriel deixou Maria, desde antes de nascer, já como feto, conjugou o verbo servir tendo por professora a sua Mãe. Pensemos nas caminhadas difíceis de Maria nos primeiros meses de gravidez quando foi ajudar sua velha prima Isabel, a mãe de João Batista. E assim pela vida afora até à cruz. O Filho de Deus realizou até o fim o que o ecossistema, o cosmos, as épocas esperam ver brotar em nós, gemendo como mulher em dores de
  • 44. 45 parto: o “homo serviens”! Bem do jeito como as primeiras comunidades cristãs rezavam e certamente cantavam no seu hino cristológico cuja segunda parte conservada na carta da alegria aos filipenses conclui esta nossa viagem refletindo esta novidade cristã de ser servidores alegres (ludens) para um mundo em crise: «E é por isso que Deus o sobreexaltou grandemente e o agraciou com o Nome que está acima de todo o nome. Para que ao nome de Jesus, se dobre todo joelho dos seres celestes dos terrestres e dos que vivem sob a terra, e, para a glória de Deus, o Pai, toda língua confesse: Jesus é o Senhor.»37 37 Cf. Fil. 2, 9-11
  • 45. 46 GABRIEL: «SER LIVRE É SER COMO PÁSSARO, MESMO PRESO NA GAIOLA, ACHA RAZÕES PARA CANTAR». Era nos idos de 1980. Na cadeia de menores, construída para 120, se exprimiam 280 meninos e adolescentes, dos 10 aos 18 anos de idade. Chamava-se Queiroz Filho, em Piraquara – PR. Aceitei, após tantas insistências do Major, ajudar a transformar a cadeia em escola. Foram cinco anos de lutas, de organização e trabalho árduo para animar equipes externas a fim de conseguir os objetivos. Após quase três anos os frutos começaram a despontar: equipe de técnicos e especialistas consolidada, oficinas, esporte, catequese, greves de fome para a mudança da comida que mais parecia lavagem, etc. Gabriel, 17 anos. Sem família. Teve muito crescimento. Foi batizado tendo como padrinhos Ariosvaldo e Leoni. Fizemos vários retiros, dormindo na prisão. Já tínhamos uma casa de apoio para os que saíam e eram filhos da rua. Gabriel apresentou um dia o seu desenho sobre a liberdade: uma gaiola com um pássaro preso e a frase - «ser livre é ser como pássaro, mesmo preso na gaiola acha razões para cantar». Reconquistada a liberdade, sendo já um animador de outros jovens acompanhando-me nas andanças de apostolado, foi morar na casa de seus padrinhos. Mas não conseguiu. Nunca tinha convivido numa casa de família. Sentia-se perdido. E sumiu. Após 3 ou 4 anos, aparece uma carta de Gabriel: «estou bem. Botei prá trabalhar e me casei. Escrevo prá pedir desculpas pela minha fuga. Eu tinha vergonha de viver numa família, eu ficava todo sem jeito. Peço mandar endereço de meus padrinhos. Vou escrever para eles. Obrigado de coração. Aqui nós vamos sempre a missa. Estou feliz! Seja sempre muito feliz.»
  • 46. 47 Referências 1. Autores Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Ed. Paulinas, 1985. BOFF, L. Teologia da libertação e ecologia, in Concilium 5(1995). BRAUDEL, FERNANDO. La méditerranée et le monde méditerranée à lépoque de Philippe II. II Vol. Paris: Arnaud Colin, 1966. FROMM, ERICH. A revolução da Esperança. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. FORTE , BRUNO. L’Essenciale è vivere la carità, in Jesus 11 (1995). HINKELAMERT, FRANZ. La irracionalidad de la racionalidad dominante. São José da Costa Rica: Ed. DEI, 1994. JOÃO PAULO II. Carta Apostolica Tertio Millenio Adveniente. Roma: Tipografia Vaticana, 1994. MARTINI, CARLO MARIA. Viaggio nel vocabolario dell’etica. Casale Monferrato: Centro Ambrosiano/Edizioni Piemme, 1993. RAMONET, IGNACIO. Il pensiero unico, in Misssione Oggi, 10 (1995). RHANER, Karl. “Per una “Formula Breve” della fede cristiana”. Nuovi Saggi, III. Roma: Ed. Paulinas, 1969. ROUSSEAU, J.J. Contrato social. Paris: Aubier-Montaigne, 1976. SANTANA, JÚLIO. L’attuale sistema socio-economico quale causa de squilibrio ecologico e della povertà, in Concilium 5 (1995). UNDP. Human Development Report 1990. Oxford-New York: Oxford University Press, 1990. VELÁSQUEZ, J.E. Espiritualidade da Terra, Concilium 5 (1995). WALLERTEIN, IMMANUEL. The modern World - Sistem II. New York – London: Academic Press, 1980. 2. Revistas e Outros Arquivo CCDO-informatizado, Orionópolis Catarinense, São José-SC, Brasil. Cambio 16, Madri, 5.12.1994. Concilium 5 (1995) CTM MAG Servizi: Centro Ricerca - Formazione - Comunicazione, Piazzetta Forzaté, 2 - 35 137 Padova - Italia. Fax 049/8755714 - e-mail: bancaetica@cda.it Jesus Ano XV, 8 (1993) Jornal A Folha de São Paulo, 24.12.1955. Missione Oggi Perspectiva Teológica, 27 (1995) 149-154 Religión y Cultura, 192 (1995) Reuter-Le Monde, Internacional nº. 66, 17.2.95. * 33 anos de história pastoral no Sul do mundo.
  • 47. 48 ÍNDICE INTRODUÇÃO ................................................................................................. 3 Direito humano e divino: tornar-se Homo serviens ...................................... 3 CAPÍTULO UM .......................................................................................... 5 DIREITO À DESCULPA....................................................................................... 5 1. Na sabedoria dos simples, o perdão é a resposta ...................................... 5 2. Na agenda dos sábios, também não há festa sem perdão.......................... 7 3. A ciência filosófica e a crise do essencial: os sábios encontram os simples .............................................................. 9 - O amor e a filosofia ............................................................................ 9 - O amor e experiência histórica .......................................................... 9 - O amor e o etnocentrismo cultural................................................... 10 CAPÍTULO DOIS ..................................................................................... 12 DIREITO DE SABER PARA SERVIR À VIDA.......................................................... 12 1. Lauro e Irene ........................................................................................... 12 2. Na intimidade da mesa: o máximo da novidade ..................................... 13 Eucaristia: a mais revolucionária lição de economia........................ 13 Novidade cristã num advérbio de modo: como .................................. 13 3. Sabedoria de quem sabe: saber para servir à vida................................... 14 «Estude para vencer na vida!?!?»...................................................... 15 O saber para matar: alguns números da cultura da morte................ 15 O saber ópio do povo: anestesiados pelo Pensamento Único............ 16 O milagre da mídia fabricando enlatados.......................................... 18 Na poltrona da sala, no quarto ou na mesa do jantar: com sabor de impotência .................................................................... 20
  • 48. 49 CAPÍTULO TRÊS: ................................................................................... 21 DIREITO À ECONOMIA DE RECIPROCIDADE...................................................... 21 1. Opção preferencial pelos pobres e marginalizados ................................ 21 2. Uma nova ordem econômica mundial?................................................... 22 Apartheid Social.................................................................................. 22 O «espírito faustoso» da «cultura universal»..................................... 23 Zona-franca: paraíso fiscal com impunidade..................................... 24 Esperança: a solidariedade competente............................................. 24 “A irracionalidade da racionalidade sistêmica” ............................... 25 CAPÍTULO QUATRO ............................................................................. 27 POLÍTICA É COISA SUJA? ................................................................................ 27 Sobre o nosso direito de interferência política 1. Jesus e a política...................................................................................... 27 Aos 12 anos ......................................................................................... 27 Aos 30 anos ......................................................................................... 27 2. O descrédito de nós mesmos no descrédito da Ciência Política.......................................................... 28 3. Na crise dos paradigmas de autoridade: a orfandade planetária? ........... 29 Um novo jeito de governar: “de satanás a anjos da guarda” ........... 30 4. A Igreja é essencialmente política. Até quando o dualismo - profano/sacro?....................................................................................... 31 5. Quando teremos escolas de educação à política?.................................... 32 6. As autoridades de Igreja como educadores políticos.............................. 33 A opinião de Santa Catarina............................................................... 34 CAPÍTULO CINCO.................................................................................. 35 DIREITO À ÉTICA: SEM CORRUPÇÃO, MAS COM TERNURA E GRAÇA.................... 35