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M I R C E A E L I A D E
                           A PROVA DO
                          L A B I R I N TO




                            C o n v e r s a ç ões com
                        CLAUDE-HENRIROCQUET


                    EDICIONESCRISTIANDAD
                     L i b e r a l o s L i b r o s


Este livro foi publicado por Pierre Belfond, Paris 1979, com o título L'EPREUVE DU
LABYRINTHE

Traduziu ao espanhol J. VALENTE MALLA

EDIÇÕES CRISTANDADE, S. L.
Madrid 1980
PREFÁCIO
       O título deste livro enquadra perfeitamente a sua natureza: A prova do
labirinto. O costume sugere que o confidente escreva o prefácio do diálogo
suscitado pelo jogo de suas perguntas. Posso expor, ao menos, as razões que
me levaram, para lhe fazer perguntas, em torno deste mundo um pouco
legendário: Eliade. Quando tinha vinte anos li na biblioteca do Instituto de
Estudos Políticos, no que por certo não me encontrava encaixado, um
primeiro livro de Mircea Eliade (acredito que era Imagens e símbolos). Os
arquétipos, a magia das ligaduras, os mitos da pérola e da concha, os
batismos e os dilúvios, tudo aquilo me chegou mais a quão fundo a ciência de
meus professores de economia política: ali estavam o sabor e o sentido das
coisas. Anos mais tarde, quando me dedicava a inculcar aos futuros
arquitetos que o espaço do homem só pode medir-se de verdade quando está
orientado conforme os pontos cardeais do coração, não tive melhores aliados
que Bachelard de La Poétique de l'espace e Eliade O sagrado e o profano.
Finalmente, lendo e relendo, como quem passeasse por Siena ou Veneza, os
Fragments d'un Journal —desdobramento de um mundo, presença de um
homem, caminho de uma vida— vi como brilhava, repentina e próxima,
através do edifício dos livros, a labareda de uma personalidade. Agora penso
que me cumpriu um desejo: encontrei ao antepassado mítico, posso dizer que
nos tornamos amigos e que à força de insistência consegui que surgisse no
centro do território da escritura e das idéias —a obra de Eliade— este
microcosmos e este ponto de entrevista que são estas Conversações.
       Para entrar neste labirinto e descobrir a unidade de uma obra e uma
vida é boa qualquer porta. A aprendizagem na Índia aos vinte anos e a
proximidade de Jung em «Eranos» vinte anos depois; as profundas raízes
romenas reconhecíveis inclusive nessa maneira de ter o mundo por pátria; o
inventário dos mitos corroborado por sua compreensão; a tarefa do
historiador e a primitiva paixão para inventar a fábula; Nicolás de Cusa e o
Himalaya. Assim se entende por que em Mircea Eliade ressoa com tanta força
e freqüência o tema da coincidentia oppositorum. Teremos que dizer que ao
final todas as coisas convergem em um ponto? Mas bem é que tudo brota da
alma original que, como o grão ou a árvore, atrai para si todos os rostos do
mundo para lhe responder ao lhe interrogar, para enriquecê-lo com sua
presença. Em definitivo, a origem se manifesta por tudo aquilo que se
realizou e se juntou.
       Fui ao encontro de um homem cuja obra tinha iluminado minha
adolescência e me encontrei com um pensador atual. Eliade jamais incorreu
no engano de pretender que as ciências do homem tomem como modelo as
da natureza. Jamais esqueceu que, tratando-se das coisas humanas, é preciso
as compreender primeiro para as entender, e que quem expõe interrogantes
não pode sentir-se alheio ao que é interrogado. Jamais experimentou a
sedução do freudismo, do marxismo, do estruturalismo ou, melhor diríamos,
dessa mixórdia de dogma e moda que designamos com tais termos. Em uma
palavra, nunca esqueceu o lugar irredutível da interpretação, o desejo
inextinguível de sentido, a palavra filosófica. Mas precisemos: esta atualidade
de Eliade não é a das revistas. Ninguém sonhou sequer ver nele a um
precursor dos peregrinos californianos ao Katmandú, ninguém pretenderia
descobrir nele um «novo filósofo» inesperado. Se Mircea Eliade for moderno, o
é por ter compreendido já faz meio século que a «crise do homem» é em
realidade uma «crise do homem ocidental», que é preciso entendê-la e
superá-la admitindo as raízes —arcaicas, selvagens, familiares— da humana
condição.
       Mircea Eliade, «historiador das religiões»... Esta maneira tão oficial de
lhe definir entranha o risco de lhe desconhecer. Ao menos, entendamos que
história é memória e recordemos também que toda memória é um presente. E
que para Mircea Eliade, a pedra de toque da religiosidade é o sagrado, que
quer dizer encontro ou pressentimento da realidade. Tanto a arte como a
religião se deixam imantar por essa realidade. Mas, no que
fundamentaríamos a diferença entre um e outro? Acredito que captaremos
perfeitamente o pensamento de Eliade se cairmos em conta do muito que
responde ao de Malraux. Se Malraux vir na arte a moeda do absoluto, quer
dizer, uma forma do espírito religioso, Eliade considera os mitos e os ritos do
homem arcaico —sua religião— como outras tantas obras de arte, umas obras
de arte verdadeiramente Mestras. Mas, estas duas almas têm em comum o ter
descoberto o valor imprescritível da imaginação e o fato de que não há outro
meio para reconhecer os conteúdos da imaginação hoje abandonados ou
estranhos, a não ser propondo aos homens, sempre imprevisíveis, sua
recreação. Nem o desejo de saber nem a atenção do filósofo parecem ser o
âmbito essencial de Eliade, mas sim, melhor, a fonte do poema que
transfigura a vida mortal e nos enche de esperança.

                                                          Claude-Henri Rocquet




                http://groups-beta.google.com/group/digitalsource
O SENTIDO DAS ORIGENS

                      O NOME E A ORIGEM
Claude-Henri Rocquet: —Mircea Eliade é um nome muito belo...

Mircea Eliade: —Por que? Eliade: hélio; e Mircea: Mir, raiz eslava que quer
dizer paz...

—...   e mundo.

—Sim,    mundo também, cosmos.

—Não    pensava precisamente no significado, porém, na musicalidade.

—Eliade   é de origem grega e remete sem dúvida a hélio. Em princípio se
escrevia Héliade. Era um jogo com hélio e hellade: sol e grego... Mas, não é o
sobrenome de meu pai. Meu avô levava o da Ieremia. Mas, resulta que na
Romênia, quando um indivíduo é um pouco preguiçoso, muito lento ou
vacilante, recorda-lhe o provérbio: «É como Ieremia, que não era capaz de
fazer sair sua carreta!» A meu pai o repetiam no colégio. Quando foi maior de
idade, decidiu trocar de sobrenome. Escolheu este, Eliade, porque assim se
chamava um escritor muito conhecido do século XIX: Eliade Radulescu. Por
isso começou a chamar-se «Eliade». Eu o agradeço, porque prefiro Eliade a
Ieremia. Eu gosto de meu sobrenome.

—Quem    leu os Fragmentos de um jornal conhecem já um pouco ao homem Mircea
Eliade e as linhas mestras de sua vida. Mas esse Jornal se inicia em Paris o ano 1945,
quando tinha quarenta anos. Antes vivera na Romênia, na Índia, em Lisboa, em
Londres. Era já um escritor célebre na Romênia e um «orientalista». A tudo isto faz
alusão o Jornal. Mas, nada sabemos dos anos que precedem sua chegada à Paris e
menos ainda dos primeiros anos de sua vida.

—Pois  bem, nasci em 9 de março de 1907, um mês terrível na história da
Romênia, quando se produziu a revolta dos camponeses em todas as
províncias. No liceu me diziam sempre: «Ah, você nasceu em meio da revolta
dos camponeses!» Meu pai era militar, como meu irmão. Era capitão. Em
Bucareste fui à escola primária, na rua Mántuleasa, a mesma escola que
evoquei na Strada Mántuleasa —em francês, Le Vieil Homme et l'Officier—.
Logo assisti ao liceu Spiru-Haret. Um bom liceu ao que se deu o nome de
Jules Ferry romeno.

—Seu    pai era oficial. Mas, como era sua família?
—  Eu me considero como uma síntese: meu pai era moldávio e minha mãe
olteniana. Na cultura romena, Moldávia representa o lado sentimental, a
melancolia, o interesse pela filosofia, pela poesia e uma certa passividade ante
a vida. Interessa menos a política que os programas políticos e as revoluções
no papel. De meu pai e de meu avô, um camponês, herdei esta tradição
moldávia. Estou orgulhoso de poder dizer que sou a terceira geração que
levou sapatos, porque meu bisavô andava descalço ou com opinci, uma
espécie de sandálias. Para o inverno havia umas enormes botas. Uma
expressão romena dizia: «Segunda, terceira ou quarta geração... de sapatos».
Eu sou a terceira geração... Desta herança moldávia vem minha tendência à
melancolia, a poesia, a metafísica, digamos que de noite».
      Minha mãe, pelo contrário, procede de uma família de Olt, a província
ocidental, perto da Iogoslávia. Os oltenianos são gente ambiciosa, enérgica;
apaixonam-se pelos cavalos e não são unicamente camponeses, a não ser
além haïduks: dedicam-se ao comércio, vendem cavalos (às vezes os roubam!).
É a província mais ativa, a mais entusiasta, a mais brutal às vezes. Justamente
o contrário dos moldávios. Meus pais se conheceram em Bucareste. Quando
caí em conta de minha herança, senti-me muito feliz. Como todo mundo,
como todos os adolescentes, tive minhas crises de desânimo, de melancolia,
que às vezes chegavam quase à depressão nervosa: a herança moldávia. Ao
mesmo tempo sentia em mim umas enormes reserva de energia. Dizia-me
então: isto vem de minha mãe. Muito devo aos dois. Aos treze anos era scout
e deu-me permissão para passar as férias na montanha, em Cárpatos, ou a
bordo de um navio no Danúbio, no delta, no Mar Negro. Minha família
aceitava tudo, especialmente minha mãe. Aos vinte e um anos disse: parto-
me à Índia. Éramos uma família da pequena burguesia, mas meus pais
acharam aquilo normal. Estávamos em 1928 e alguns grandes sanscritistas
ainda não conheciam a Índia. Acredito que Louis Renou não fez sua primeira
viagem até os trinta e cinco anos. Eu o fiz aos vinte... Minha família permitiu-
me isso tudo: ir à Itália, comprar toda classe de livros, estudar hebreu, persa.
Desfrutava de uma grande liberdade.

—Família   da pequena burguesia, mas que demonstrava um certo gosto pelas coisas do
espírito. Não diríamos melhor família de «pessoas cultivadas»?

—Certo, despretensioso de uma grande cultura, mas ao mesmo tempo sem a
opacidade, digamos, da pequena burguesia.

—Era   filho único?

—Somos     três irmãos. Meu irmão nasceu dois anos antes que eu e minha irmã
quatro anos mais tarde. Foi uma grande sorte vir entre um e outra. Porque,
bem entendido, o preferido durante anos foi meu irmão, o filho maior e logo,
foi minha irmã, a pequena. Não poderia dizer que vivesse com escassez de
carinho, mas nunca me senti arrasado por um excesso de carinho paterno ou
materno. Foi uma grande sorte. E além disso tive a vantagem de contar com
um amigo e mais tarde com uma amiga: minha irmã e meu irmão.

—A   imagem que de tudo isto se desprende é a de um homem contente de seu
nascimento e de sua origem...

—Certo.   Não me recordo lamentar ou protestar enquanto era adolescente.
Mas não era rico, não tinha dinheiro suficiente para comprar livros. Minha
mãe dava-me algo de suas pequenas economias, ou quando vendia alguma
coisa; mais tarde chegamos inclusive a alugar uma parte da casa. Não era
rico, mas nunca me queixava. Estava em paz com minha situação humana,
social e familiar.

                      O DRAGÃO E O PARAÍSO
—Que imagens lhe vêm à memória de sua primeira infância?


—A   primeira imagem... Tinha eu dois anos, dois anos e meio. Ocorreu em um
bosque. Encontrava-me ali e olhava. Minha mãe perdera-me de vista.
Tínhamos ido ali lanchar. Perdi-me ao afastar-me uns quantos metros. E de
repente descubro diante de mim um enorme e esplêndido lagarto azul. Fiquei
maravilhado... Não sentia medo, a não ser fascinação ante aquele animal
enorme e azul. Sentia os batimentos do coração, de meu coração, pulsados de
entusiasmo e temor, mas ao mesmo tempo lia o medo nos olhos do lagarto.
Via pulsar seu coração. Durante muitos anos recordei esta imagem.
      Em outra ocasião, quase à mesma idade, pois tenho a lembrança que
ainda engatinhava, a coisa ocorreu em nossa casa. Havia nela um salão ao
que não me estava permitido entrar. Acredito além, que a porta estava
sempre fechada com chave. Um dia, na hora da sesta, pois era verão, por
volta das quatro, minha família estava ausente, meu pai no quartel, minha
mãe em casa de uma vizinha... Aproximo-me, faço um intento e a porta se
abre. Apareço, entro... Aquilo foi para mim uma experiência extraordinária:
as janelas tinham as persianas verdes; como era verão, toda a habitação era de
cor verde. É curioso, senti-me como dentro de um grão de uva. Estava
fascinado pela cor verde, verde dourado, olhava em torno e era
verdadeiramente um espaço jamais conhecido até então, um mundo
completamente distinto. Aquela foi a única vez. No dia seguinte tratei de
abrir a porta, mas já estava fechada.
—Sabe   por que motivo lhe estava proibido aquele salão?

—Havia  ali muitas prateleiras repletas de objetos curiosos. Além disso, minha
mãe, junto com outras senhoras da cidade, organizava festas infantis com
tômbola. À espera da festa, depositavam-se naquele salão os prêmios da
tômbola. Minha mãe, com toda razão, não queria que seus filhos vissem
aquela enorme quantidade de brinquedos.

—Viu   aqueles brinquedos ao entrar?

—Sim,   mas já os conhecia, tinha visto minha mãe levando-os ali. Não foi
aquilo o que me interessou, a não ser a cor. Era, verdadeiramente, como estar
dentro de um grão de uva. Fazia muito calor, a luz era extraordinária, mas
filtrada através das persianas. Uma luz verde... De verdade, tive a impressão
de achar-me dentro de um grão de uva. Leu O bosque proibido? Nessa novela,
Stéphane recorda uma habitação misteriosa de quando era menino, a
habitação «Sambo». Se perguntar o que poderia significar aquilo... Era a
nostalgia de um espaço que tinha conhecido, um espaço que não se parecia
com nenhuma outra habitação. Ao evocar aquela habitação «Sambo»,
evidentemente, pensava em minha própria experiência extraordinária de
penetrar em um espaço completamente distinto.

—Sentia-se   um pouco assustado de sua audácia, ou simplesmente, maravilhado?

—Maravilhado.


—Não    sentia nenhum temor? Não experimentava a sensação de cometer uma falta
deliciosa?
—Não... O que me atraiu foi a cor, a calma e logo a beleza: aquilo era o salão,
com suas estantes, seus quadros, porém, submerso na cor verde, banhado de
uma luz verde.

—Agora  falo com o conhecedor dos mitos, com o hermeneuta, com o amigo de Jung. O
que pensa destes dois acontecimentos?

—Curioso,   nunca tratei de interpretá-los! Para mim trata-se de simples
lembranças. Mas, é certo que o encontro com aquele monstro, com aquele
réptil de uma beleza extraordinária, admirável...

—Aquele   dragão...

—Sim,   é o dragão. Mas, o dragão fêmea, o dragão andrógino, porque era
realmente muito belo. Estava assombrado de sua beleza, daquele azul
extraordinário...

—Apesar  de seu medo, teve entretanto presença de ânimo suficiente para captar o
medo do outro.

—É que o via! Via o medo de seus olhos, via-lhe cheio de medo ante o
menino. Aquele enorme e muito belo monstro, aquele sáurio tinha medo de
um menino. Fiquei estupefato.

—Diz   que o dragão era de uma grande beleza por ser «fêmea, andrógino». Significa
isto que, em seu sentir, a beleza está essencialmente ligada ao feminino?

—Não,  entendo que há uma beleza andrógina e uma beleza masculina. Não
posso reduzir a beleza, nem sequer a do corpo humano, à beleza feminina.

—Por    que fala de «beleza andrógina» a propósito do lagarto?

—Porque     era perfeita. Ali estava tudo: graça e terror, ferocidade e sorriso,
tudo.

—Em   seu caso, a palavra «andrógino» não carece de importância. Falou muito do
tema do andrógino.

—Mas,   insistindo sempre em que andrógino e hermafrodita não são uma mesma
coisa. No hermafrodita coexistem os dois sexos. Aí estão as estátuas de
homens com seios... O andrógino, por sua parte, representa o ideal da
perfeição: a fusão dos dois sexos. É outra espécie humana, uma espécie
distinta... E acredito que isto é importante. Certamente, os dois, o
hermafrodita e o andrógino existem na cultura não só européia, mas também
universal. Por minha parte, sinto-me atraído pelo tipo do andrógino no que
vejo uma perfeição dificilmente realizável, ou possivelmente, inexeqüível nos
dois sexos separados.

—Penso agora em certa oposição que descobre a análise «estrutural» entre o bestial e o
divino na Grécia arcaica: Admitiria que o hermafrodita se situa do lado do
monstruoso e o andrógino do lado do divino?

—Não,  pois não acredito que o hermafrodita represente uma forma
monstruosa. Trata-se de um esforço desesperado para alcançar a totalização.
Mas não é a fusão, não é a unidade.
—Que  sentido dá à habitação grão de uva? Sabe por que conservou tão viva essa
lembrança?

—O   que me impressionou foi a atmosfera, uma atmosfera paradisíaca, aquele
verde, aquele verde dourado. E depois, a calma, uma calma absoluta. E o
penetrar naquela zona, naquele espaço sagrado. Digo «sagrado» porque
aquele espaço era de uma qualidade completamente distinta; não era um
ambiente profano, cotidiano. Não era meu universo de todos os dias, com
meu pai, minha mãe, meu irmão, o pátio, a casa... Não, era algo
completamente distinto. Algo paradisíaco. Um lugar proibido até então e que
seguiria proibido depois,... Em minha lembrança, aquilo foi algo
verdadeiramente excepcional. Mais tarde chamei «paradisíaco» àquele lugar,
quando aprendi o que significava essa palavra. Não foi uma experiência
religiosa, mas compreendi que me encontrava em um espaço completamente
distinto e que estava vivendo algo de todo diferente. A prova é que essa
lembrança me obcecou.

—Um    espaço completamente distinto, verde ou verde e ouro; um lugar sagrado,
proibido (mas de forma que não houve transgressão, não é assim?); imagens
realmente paradisíacas: o verde, original, o ouro, a esfericidade do lugar, aquela luz.
Como se em sua primeira infância tivesse vivido um momento de paraíso, digamos de
Éden, o Paraíso original.

—Sim,   assim é.

—Mas,   através desse completamente distinto, ouço ressonar notoriamente o ganz
andere com que Otto define o sagrado. E ao mesmo tempo advirto que essa imagem
de sua infância é uma das que mais tarde, nos mitos, teriam que fascinar e absorver a
Mircea Eliade. Qualquer um que lera seus livros, ao escutar este recordo sem saber
que é dele, não deixaria de lhe recordar. Não será estas grandes experiências do dragão
e da estadia fechada e luminosa orientaram profundamente sua vida?

—Quem      sabe... Conscientemente, sei que leituras, durante minha
adolescência, que descobrimentos despertaram em mim o interesse pelas
religiões e os mitos. Entretanto, não posso saber em que medida essas
experiências da infância determinaram minha vida.

—Em    O jardim das delícias de Bosch há seres que vivem no interior de umas
frutas...

—Verdadeiramente,  eu não tinha a sensação de me achar dentro de uma fruta
enorme. Todavia, não podia comparar a luz verde, dourada, a não ser com a
que se transluz através de um grão de uva. Não era a idéia da fruta, de estar
dentro de uma fruta, a não ser a de me achar em um espaço, certamente
paradisíaco. É a experiência de uma luz.

             «COMO DESCOBRI A PEDRA FILOSOFAL»
—Sua primeira escola foi a da rua Mántuleasa... Que lembranças guarda dela?


—O   descobrimento da leitura acima de tudo. Por volta dos dez anos comecei
a ler novelas —novelas policiais—, contos, em resumo, tudo o que se costuma
a ler aos dez anos e um pouco mais. Alexandre Dumas traduzido ao romeno,
por exemplo.

—Ainda    não escrevia nada?

—Comecei     de verdade a escrever na primeira classe do liceu.

—Sei   que, por então, apaixonava-lhe a ciência.

—As  ciências naturais, mas não a matemática. Comparava-me com Goethe...
Goethe, que não podia sofrer a matemática. Como ele, também sentia paixão
pelas ciências naturais. Comecei pela zoologia, mas, interessou-me sobretudo
a entomologia. Escrevi e publiquei artigos sobre os insetos em uma revista, a
«Revista de ciências populares».

—Um    jovem autor de doze anos!

—Sim,   publiquei meu primeiro artigo quando tinha treze anos. Uma espécie
de conto científico que apresentei em um concurso aberto a todos os alunos
de liceu romenos pela «Revista de ciências populares». Meu pequeno texto
intitulava-se: Como descobri a pedra filosofal. Obtive o primeiro prêmio.

—Acredito  que fala desse texto em seu Diário, e diz: «Perdi-o, já não o poderei
encontrar, mas como eu gostaria de relê-lo de novo!» Não pôde encontrá-lo?

—Sim!  Em Bucareste, um leitor do Jornal foi à biblioteca da Academia,
encontrou-o e teve a gentileza de copiá-lo e enviar-me. Recordava o tema e o
desenlace, mas não de toda a trama e o estilo. Fiquei assombrado ao
comprovar que a narração era boa. Nada pedante, nem «científica». Era
verdadeiramente, um relato... Tratava-se de um escolar de quatorze anos —
eu mesmo, em realidade— que tem um laboratório e tenta a experiência, pois
está obcecado, como todo mundo, pelo desejo de encontrar algo capaz de
mudar a matéria. Tem um sonho e nesse sonho recebe uma revelação: alguém
mostra-lhe o modo de preparar a pedra. Desperta e ali, em seu crisol,
encontra uma pepita de ouro. Acredita na realidade na transmutação. Mais
tarde se dará conta de que se trata de um bloco de pirita, de um sulfato.

—É   o sonho o que leva a pedra filosofal?

—Era  um ser que tinha, ao mesmo tempo, aspecto de homem e de animal, um
ser transformado, que me deu em sonhos, a receita. Eu limitei-me a seguir
seu conselho.

—Para   que um menino escreva um conto como esse, é preciso que se interesse não só
pelos insetos, mas também além pela química e a alquimia, não é assim?

—Apaixonava-me    a zoologia, especialidade «insetos»; também a física em
geral, mas sobretudo a química, e ainda mais a química mineral antes que a
química orgânica. É curioso.

—O   sonho, a alquimia, o iniciador quimérico: aí estão já, do primeiro escrito, as
figuras e os temas de Eliade. Quer isso dizer que já da infância sabemos confusamente
quem somos e aonde vamos?

—Não   sei... Para mim, a importância desse conto está em que, já dos doze aos
treze anos, via-me trabalhando de maneira, científica, com a matéria. E ao
mesmo tempo, sentia-me atraído pela imaginação literária.

—Essa   isso ao que alude quando fala do lado diurno do espírito?

—Do  regime diurno do espírito e do regime noturno do espírito.
—A ciência do lado diurno, a poesia do lado da noite.


—Sim.   A imaginação literária que é também a imaginação mítica e que
descobre as grandes estrutura da metafísica.
      Noturno, diurno, os dois... A coincidentia oppositorum. O grande todo. O
Yin e o Yang...

-Há em sua personalidade, por um lado, o homem de ciência e, pelo outro, o escritor.
Mas ambos se encontram no terreno do mito...

—Exatamente.   O interesse pelas mitologias e pela estrutura dos mitos é
também o desejo de decifrar a mensagem dessa vida noturna, dessa
criatividade noturna.
A ÁGUA-FURTADA
—Em resumo, que antes de abandonar o liceu já era escritor.


—Em    certo sentido, sim, porque não só publicara uma centena de pequenos
artigos na «Revista de ciências populares», mas também, além de alguns
relatos, impressões de viagem pelos Cárpatos, o relato de um périplo pelo
Danúbio e no Mar Negro; finalmente, alguns fragmentos de uma novela, A
novela de um adolescente míope... Novela absolutamente autobiográfica. Igual a
meu personagem, quando sofria alguma crise de melancolia —minha herança
moldávia...— lutava contra essa crise com todo tipo de «técnicas espirituais».
Lera o livro de Payot, L'Education de la volonté, tratava de pô-lo em prática no
liceu, começara o que eu mesmo chamaria mais tarde a «luta contra o sonho».
Queria ganhar tempo. Com efeito, interessava-me não só pelas ciências, mas
também, por outras muitas coisas; descobrira, progressivamente, o
orientalismo, a alquimia, a história das religiões. Li por acaso ao Frazer e Max
Müller; e como aprendera italiano (para ler Papini), descobri aos orientalistas
e historiadores das religiões italianos: Pettazzoni, Buonaiuti, Tucci e outros...
E escrevia artigos sobre seus livros, ou sobre os problemas que tratavam.
Evidentemente, tive uma grande oportunidade para tudo isso: na casa
materna de Bucareste vivia eu em uma água-furtada, mas aquela água-
furtada era completamente independente. Por isso, aos quinze anos podia
receber meus amigos e podia ficar ali durante toda a tarde, ou toda a noite
bebendo café e discutindo. A água-furtada estava isolada, o ruído não
incomodava a ninguém. Quando tomei posse daquela água-furtada, tinha
dezesseis anos. Em princípio tive que compartilhar com meu irmão, mas meu
irmão entrou no liceu militar e eu fiquei como dono único da água-furtada,
duas pequenas habitações maravilhosas. Podia ler impunemente durante
toda a noite... dá-se conta?
       Quando se têm dezessete anos, descobre a poesia moderna e tantas
outras coisas, o que mais gosta é de ter uma habitação própria que alguém
possa arrumar, transformar a seu gosto, que deixa de ser algo, simplesmente,
recebido dos pais. Aquele era verdadeiramente meu local. Ali vivia eu, tinha
minha cama, com uma determinado cor. Tinha figuras que recortava e colava
aos muros. Mas, tinha sobretudo meus livros. Mais que um quarto de
trabalho, era um lugar para viver.

—Parece-me   que os deuses ou as fadas favoreceram seus primeiros passos.

—Acredito que sim, pois o certo é que tive todas as oportunidades possíveis
até o momento de partir de minha casa.
—Quando    entrou na Universidade, como era a atmosfera intelectual, a atmosfera
cultural da Romênia daquela época, quer dizer, de 1920 à 1925?

—Éramos    a primeira geração que nascia à cultura, no que então, chamava-se
«a grande Romênia», a que seguiu à guerra de 1914-1918. Primeira geração
sem programa preestabelecido, sem um ideal a realizar. A geração de meu
pai e de meu avô tinham um ideal: reunificar todas as províncias romenas.
Este ideal já estava realizado. Eu tive a sorte de formar parte da primeira
geração romena livre, sem programa. Éramos livres para descobrir não só as
fontes tradicionais, mas também todo o resto. Eu descobri a literatura italiana,
a história das religiões e depois o Oriente. Um de meus amigos descobrira a
literatura americana; outro, a cultura escandinava. Descobrimos Milarepa na
tradução de Jacques Bacot. Tudo era possível, como vê. Preparávamo-nos por
fim, a uma verdadeira abertura.

—Uma  abertura para o universal, a Índia presente nos espíritos, Milarepa, ao que lerá
Brancusi...

—Sim,e ao mesmo tempo, pelos anos de 1922 a 1928, dispúnhamo-nos, na
Romênia, a descobrir ao Proust, Valéry e, é óbvio, o surrealismo.

—Mas,  como se conjugava este desejo de universalidade com, digamos, um desejo de
chegar às raízes romenas?

—Pressentíamos    que uma criação puramente romena resultaria muito difícil
de levar a cabo no clima e nas formas da cultura ocidental que tinham gozado
nas preferências de nossos pais: Anatole France, por exemplo, ou o mesmo
Barres. Sentíamos que quanto tínhamos que dizer nos exigia uma linguagem
distinta da dos grandes autores, os grandes pensadores que tinham
apaixonado à nossos pais e à nossos avós. Sentíamo-nos atraídos pelos
Upanishads, por Milarepa e inclusive por Tagore e Gandhi, pelo Oriente
antigo. E pensávamos que assimilando a mensagem destas culturas arcaicas,
extra-européias, encontraríamos o meio de expressar nossa herança cutural
própria, traco-eslavo-romana; e, ao mesmo tempo, proto-histórica e oriental.
Tínhamos consciência de nossa situação entre o Oriente e Ocidente. Como
sabe, a cultura romena constitui uma espécie de «ponte» entre o Ocidente e
Bizâncio, por uma parte; e o mundo eslavo, o mundo oriental e o mundo
mediterrâneo por outra. A verdade é que até mais tarde não me dava conta
de todas estas virtualidades.

—Evocou   o surrealismo, mas não disse nada do dadaismo, nem de Tzara, seu
compatriota...
—Conhecíamo-os,    lêramos nas revistas de vanguarda, que nos apaixonavam.
Mas, pessoalmente, não me deixei influenciar pelo dadaismo, nem pelo
surrealismo. Assombrava-me e digamos que admirava sua coragem...
Todavia, eu sentia-me ainda sob o impacto do futurismo, que acabávamos de
descobrir. Estava muito interessado, como sabe, por Papini, o primeiro
Papini, o de antes da conversão, o grande panfletário e autor de Maschilitá, de
Uomo finito, sua autobiografia... Aquilo era para nós a vanguarda. Também
descobri ao Lautréamont, coisa curiosa, através de León Bloy. Lera uma
recopilação de artigos, de panfletos, Belluaires et Porchers, possivelmente...
Havia naquele livro um artigo extraordinário sobre Les Chants de Maldoror,
com extensas entrevistas. Deste modo, descobri Lautréamont, antes que ao
Mallarmé, ou inclusive Rimbaud. Mallarmé e Rimbaud não os li até mais
tarde, na universidade.

—Em  vários lugares de seu Diário fala de um certo clima «existencialista» na
Romênia, que precedera inclusive ao existencialismo na França.

—Certo,   mas a coisa ocorre um pouco mais tarde, pelos anos de 1933 à 1936.
Entretanto, já da universidade, lera algumas obra menores do Kierkegaard,
em tradução italiana; descobri logo a tradução alemã, quase completa.
Lembro-me escrever em um jornal, «Cuvántul», um artigo intitulado
Panfletista, enamorado e ermitão. Acredito que é o primeiro artigo sobre o
Kierkegaard publicado na Romênia; foi em 1925 ou 1926. Kierkegaard
significou muito para mim, sobretudo como exemplo. E não só por sua vida,
mas também pelo que anunciava, por isso antecipava. Desgraçadamente, é de
uma prolixidade exasperante, por isso, penso que Etudes kierkegaardiennes de
Jean Wahl é possivelmente... o melhor livro de Kierkegaard, pois há nele
muitas entrevistas acertadamente escolhidas, o essencial.

—Na  universidade compartilha com os jovens de sua geração determinadas atitudes,
mas, o que é que o afeta mais em particular?

—Em    primeiro lugar o orientalismo. Tentei aprender por minha conta o
hebreu, logo o persa. Comprei gramáticas, fiz exercícios... O orientalismo,
mas também, a história das religiões, as mitologias. Ao mesmo tempo, segui
publicando artigos sobre a história da alquimia. E isto é o que me
singularizava dentro de minha geração: eu era o único que se apaixonava, ao
mesmo tempo, pelo Oriente e pela história das religiões. Pelo Oriente antigo
quão mesmo pelo moderno, por Gandhi; quão mesmo por Tagore e
Ramakrishna; por aqueles anos ainda não ouvira falar de Aurobindo Ghose.
Lera, como todos quantos se interessam pela história das religiões, O ramo de
ouro, de Frazer e logo Max Müller. Precisamente, para ler as obras completas
de Frazer comecei a aprender inglês.

—Tratava-se    unicamente de um desejo de horizontes culturais novos? Ou
possivelmente, inconscientemente, de uma busca, através da diversidade, do homem
essencial, do homem que poderíamos considerar «paradigmático»?

—Sentia  a necessidade de certas fontes desatendidas até meus tempos, umas
fontes que estavam ali, nas bibliotecas, que era possível encontrar nelas mas,
que careciam de atualidade espiritual ou inclusive cultural. Dizia-me mesmo
que o homem, inclusive o homem europeu, não é unicamente o homem de
Kant, de Hegel, ou de Nietzsche. Que na tradição européia e na tradição
romena havia outras fontes mais profundas. Que a Grécia não é, unicamente,
a Grécia dos poetas e dos filósofos admiráveis, a não ser a de Elêusis e do
orfismo, que esta Grécia fundava suas raízes no Mediterrâneo e no Próximo
Oriente antigo. Entretanto, algumas daquelas raízes, igualmente profundas,
já que se afundavam na proto-história, podiam-se encontrar nas tradições
romenas. Era o legado imemorial dos dacios e, antes deles, das populações
neolíticas que habitaram em nosso atual território. Pode ser que não tivesse
consciência de procurar o homem primitivo, mas em todo caso, dava-me
conta da importância que têm certas fontes esquecidas da cultura européia.
Por este motivo, em meu último ano de universidade, comecei a estudar as
correntes hermetistas e «ocultistas» (a Cabala, a alquimia) na filosofia do
Renascimento italiano. Este foi o tema de minha tese.

—Antes   de nos ocupar de sua tese, eu gostaria de lhe perguntar pelas razões pessoais
que o levavam a estudo das religiões. As que acaba de expor são de ordem intelectual.
Mas, qual era sua relação interior com a religião?
—Conhecia mal minha própria tradição, a do cristianismo oriental. Minha
família era «religiosa», mas, como sabe, no cristianismo oriental, a religião é
acima de tudo algo que se aprende por costume, que se acostuma pouco, pois
não há catecismo. O que importa é sobretudo a liturgia, a vida litúrgica, os
ritos, os coros, os sacramentos. Eu participava daquela vida religiosa como
todo mundo. Mas aquilo não tinha nenhum valor essencial. Meu interesse ia
por outro lado. Na época, eu estudava filosofia, ao estudar os filósofos, os
grandes filósofos, sentia que algo me faltava. Sentia que não é possível
compreender o destino humano e o modo específico de ser do homem no
universo, sem conhecer as fases arcaicas da experiência religiosa. Ao mesmo
tempo, sentia que me resultaria difícil descobrir essas raízes através de minha
própria tradição religiosa, quer dizer, através da realidade atual de uma
determinada Igreja que, como todas as demais, estava «condicionada» por
uma longa história; por umas instituições cujo significado e formas sucessivas
eu ignorava. Pensava que seria muito difícil descobrir o verdadeiro sentido e
a mensagem do cristianismo através de uma só tradição. Por isso, queria
aprofundar ainda mais.
      Primeiro, o Antigo Testamento, logo Mesopotâmia, Egito, o mundo
mediterrâneo e a Índia.

—Mas   a tudo isto, nada de inquietação metafísica, nada de crise mística, nada de
dúvidas, nem tampouco uma fé muito viva? Parece liberado de algo que tantos
adolescentes conhecem, a tortura religiosa ou metafísica.

—Certo,   não conheci essa grande crise religiosa. É curioso... Não estava
satisfeito, mas não sentia nenhuma dúvida, pois não acreditava muito. Sentia
que, verdadeiramente, o essencial, o que de verdade devia encontrar e
compreender era algo que devia procurar por outro lado e não só em minha
própria tradição. Para me entender, para entender...

—Poderíamos   dizer, portanto, que seu caminho é o da gnosis e do jñana ioga?

—Pode   ser que sim. Gnosis, jñana ioga...

—Acredito   que ambas as coisas são uma mesma.

—Exatamente   a mesma. Também, sentia a necessidade de uma técnica, de
uma disciplina, de algo que não encontrava em minha tradição religiosa. O
certo é que não o procurara nela. Muito bem, poderia fazer-me monge,
retirar-me ao Monte Athos e descobrir todas as técnicas yóguicas, por
exemplo, o pranayama...
—O hesicasmo...


—Sim,   mas naquela época eu ignorava tudo isto. Sentia, é verdade, a
necessidade da gnosis, mas ao mesmo tempo sentia falta de uma espécie de
técnica, de meditação prática. Ainda não compreendia o valor religioso do
culto dominical. Descobri-o depois de minha volta da Índia!

—Deixamos    em suspense sua tese. Qual era exatamente seu tema?

—Era   a filosofia italiana desde Marsilio Ficino até Giordano Bruno. Todavia,
interessou-me em especial Ficino, e também Pico de la Mirandola. Fascinava-
me o fato de que através desta filosofia do Renascimento fora redescoberta a
filosofia grega, mas também o fato de que Ficino traduzira ao latim os
manuscritos herméticos, o Corpus hermeticum, comprovados por Cosme de
Médicis. Apaixonava-me igualmente o fato de que Pico conhecia esta tradição
hermética e que estudara o hebreu, não só para melhor entender o Antigo
Testamento, mas também, sobretudo para compreender a Cabala. Via,
portanto, que não se tratava, unicamente, de um descobrimento do
neoplatonismo, mas sim, de um transbordamento da filosofia grega clássica.
O descobrimento do hermetismo implicava uma abertura para o Oriente,
para o Egito e Pérsia.

—Quer   isso dizer que era sensível, no Renascimento, a tudo o que este implica de
abertura ao não especificamente grego ou clássico?

—Tinha a impressão de que esse transbordamento revelava-me um espírito
muito mais amplo, muito mais interessante e mais criador que tudo que
aprendera no platonismo clássico redescoberto em Florência.

—Havia    uma certa analogia entre aquele Renascimento —o Renascimento dos
cabalistas, diríamos— e quanto estava ocorrendo na Romênia, que supunha uma
aspiração a superar as fronteiras do homem mediterrâneo e a participar de uma
criação cultural nutrida de tradições não européias...

—Uma    tradição... não digamos «não européia», a não ser «não clássica», quer
dizer, mais profunda que a herança clássica recebida de nossos antepassados
tracios, dos gregos e os romanos. Mais tarde compreendi que se trata desse
fundo neolítico que é a matriz de todas as culturas urbanas do Próximo
Oriente antigo e do Mediterrâneo.

—«Mais    tarde», quer dizer, através do conhecimento da Índia... Entretanto,
assombra-me que entre Pico e Bruno não me diga nada de Nicolas de Cusa.
—Fazia várias viagens à Itália e inclusive passei ali três meses seguidos.
Assim descobri De docta ignorantia e a famosa fórmula da coincidentia
oppositorum que tão reveladora foi para meu próprio pensamento. Entretanto,
não o estudei para minha tese, não pude aprofundar tanto... Em
compensação, quando comecei meus cursos, no ano 1934, em Bucareste,
dediquei um seminário à docta ignorantia. Nicolás de Cusa apaixona-me
ainda.

                      O RENASCIMENTO E A ÍNDIA
—Mircea Eliade, em 10 de fevereiro de 1949 recebe uma carta de seu «velho Mestre
Pettazzoni», que elogia calorosamente o Tratado de história das religiões, recém
publicado; em sua resposta escreve: «Lembro-me aquelas manhãs de 1925, quando
acabava de descobrir I misteri, e lancei-me à história das religiões com a paixão e a
segurança de um moço de dezoito anos. Lembro-me do verão de 1926, quando, depois
de iniciada minha correspondência com Pettazzoni, recebi como presente Dio, que li
sublinhando, quase uma por uma, todas suas linhas. Recordo-me...».

—Sim,    recordo-o... Fui à Itália muitas vezes durante meus tempos de
estudante em Bucareste. A primeira vez fiquei ali cinco ou seis semanas.
Conheci Papini em Florência. Em Roma entrevistei-me com Buonaiuti, o
célebre historiador do cristianismo, diretor de Ricerche religiose. Em Nápoles,
com o Vittorio Macchioro, então diretor do Museu Nacional, grande
classicista e grande especialista em orfismo. Não vi o Pettazzoni naquela
viagem. Conheci-o mais tarde. Porém, mantinha correspondência com ele.

—Não   é comum que um homem tão jovem vá visitar os Mestres e que seja recebido
por eles. Todavia, penso que lhe animava a paixão de saber e, em conseqüência, de ir
às fontes mesmas. Daí o bom acolhimento que tinha... O que esperava, por exemplo,
de Macchioro?

—Foi   sua tese o que acima de tudo me interessou. Acreditava ter descoberto
as etapas de uma iniciação órfica nas pinturas da Villa dei Misteri de Pompeya.
Acreditava além, que a filosofia de Heráclito se explicava pelo orfismo.
Pensava também, que São Paulo não era tão somente um representante do
judaismo tradicional, mas sim, fora iniciado além nos mistérios órficos e que,
em conseqüência, a cristologia de São Paulo introduzira o orfismo no
cristianismo. Esta hipótese tivera má acolhida, mas, eu tinha vinte anos e
parecia-me apaixonante. Por isso, fui ver Macchioro.
       Enquanto isso, eu preparava minha tese, algumas vezes em Bucareste e
outras em Roma. Mais em Roma, é verdade, porém, em Bucareste tinha a
maior parte de minha documentação e de minhas notas. Ao mesmo tempo,
que trabalhava em minha tese de licenciatura sobre a filosofia do
Renascimento, nutria meus pensamentos com os historiadores das religiões e
os orientalistas italianos: descobri o orfismo com Macchioro, o Joaquín de
Fiore com Buonaiuti. E lia Dante, ao que Papini (e outros) relacionavam com I
fedeli d'amore. No fundo, estudar aos filósofos do Renascimento e a história
das religiões devia ser a mesma coisa.

—Imagino   que não era unicamente a leitura de Dante o que lhe interessava em
Papini, mas o homem, o escritor tumultuoso.

—Já publicara vários artigos sobre Papini, escrevera-lhe e ele respondera-me
com uma extensa carta que começava assim: «Querido amigo
desconhecido...» Lamentava que me dedicasse a estudar a filosofia, «a ciência
mais vazia inventada pelo homem...». Eu anunciara-lhe minha visita e ele
recebeu-me em um pequeno quarto de trabalho lotado de livros. Esperava
ver-me ante um «monstro de fealdade», tal como ele mesmo descrevera-se
em Un uomo finito. Mas, apesar de sua palidez e de seus «dentes de canibal»,
Papini pareceu-me majestoso e quase belo. Fumava um cigarro atrás de
outro, ao mesmo tempo que me perguntava por meus autores favoritos e
ensinava-me os livros de alguns autores italianos contemporâneos que eu
desconhecia. Por minha parte, fiz-lhe numerosas perguntas a propósito de
seu catolicismo intransigente, intolerante, quase fanático (ele admirava
enormemente à León Bloy); sobre o Dizionario dell'uomo selvatico, abandonado
depois da publicação do primeiro tomo; e sobre seus projetos literários, em
primeiro lugar sobre um livro que anunciara várias vezes, Rapporto sugli
uomini. Aquela mesma tarde redigi uma entrevista que publicaria logo em
uma revista de Bucareste.
      Voltei a ver-lhe, exatamente, um quarto de século depois, em maio de
1953. Estava quase cego e acabava de interromper Julgamento universal, seu
opus magnum, para escrever O diabo. Também desta vez publiquei uma longa
entrevista em Les Nouvelles Littéraires, coisa que lhe fez feliz, pois se dava
conta de que perdera sua popularidade na França. Pouco tempo depois, a
cegueira e a paralisia o reduziram à condição de um coveiro em vida.
Sobreviveu pouco mais de um ano, fazendo esforços sobre-humanos, em
umas condições de vida que raiavam com o milagre, para ditar as famosas
Schegge, que publicava duas vezes ao mês o «Corriere della Sera».

—Conheceu    Papini em Florência, mas será em Roma onde se decidirá uma grande
parte de seu destino...

—Sim,   em Roma, na biblioteca do seminário do professor Giuseppe Tucci,
que por então estava na Índia, descobri um dia o primeiro volume da História
da filosofia da Índia, do célebre Surendranath Dasgupta. No prefácio li a
comemoração de gratidão que Dasgupta dedica a seu protetor o marajá
Chandra Nandy de Kassimbazar. Diz assim: «Este homem ajudou-me a
trabalhar cinco anos na universidade de Cambridge. É um verdadeiro
mecenas. Protege e fomenta a investigação científica e filosófica; sua
generosidade é também famosa em Bengala...». Tive então, uma espécie de
intuição. Escrevi duas cartas imediatamente, uma ao professor Dasgupta, na
universidade de Calcutá, e a outra ao Kassimbazar, ao marajá, em que lhes
dizia: «Preparo nestes momentos minha tese de licenciatura, que apresentarei
em outubro, e minha intenção é estudar a filosofia comparada. Desejaria,
portanto, aprender seriamente o sânscrito e a filosofia hindu, mas sobretudo,
o ioga...». Dasgupta, com efeito, era o grande especialista em ioga clássico;
escrevera dois livros sobre o Patañjali.
      Pois bem, dois ou três meses mais tarde, de novo na Romênia, recebi
duas cartas. Uma era de Dasgupta e dizia: «Sim, é uma idéia muito boa. Se de
verdade deseja estudar a filosofia comparada, o melhor será estudar o
sânscrito e a filosofia hindu aqui, na Índia, e não nos grandes centros de
indianismo europeus. E como não disporá de uma ajuda importante para
seus estudos, tratarei de interessar ao marajá...». Com efeito, o marajá me
escrevia: «Sim, muito boa idéia. Venha, concedo-lhe uma ajuda, mas não para
dois anos (...eu indicara dois anos, por discrição). Em dois anos não lhe seria
possível aprender convenientemente o sânscrito e a filosofia hindu. Concedo-
lhe uma ajuda para cinco anos». Deste modo, imediatamente depois da
defesa de minha tese, em novembro de 1928, já licenciado em letras,
especialidade «filosofia», recebi um pouco de dinheiro de meus pais e a
promessa de uma ajuda da universidade de Bucareste, parti de Constanza a
bordo de um navio romeno até Port-Said, e de Port-Said em um navio
japonês até Colombo, e dali, por trem, parti à Calcutá. Fiquei duas semanas
em Madras, onde conheci Dasgupta.

—Uma    formosa história, que viria muito bem para terminar um capítulo. Entretanto,
para não deixar nada no tinteiro, a bordo daquele navio, ou às vésperas de sua
partida, quais eram seus sentimentos?

—Dava-me     conta do que significava aquela partida e de que então tinha eu
vinte e um anos. Eu era, possivelmente, o primeiro romeno que se decidia
não viajar até a Índia, a não ser a permanecer e trabalhar ali durante cinco
anos. Tinha o sentimento de que aquilo era uma aventura, que resultaria
difícil, mas aquilo me apaixonava. E muito mais, tendo em conta, eu sabia
bem, que ainda não estava formado. Aprendera muito de meus professores
de Bucareste e de meus mestres italianos, historiadores das religiões,
orientalistas, todavia, necessitava uma nova estrutura. Dava-me conta disso.
Ainda não era adulto.
       Fiquei dez dias no Egito. Minhas primeiras experiências egípcias...
Todavia, o mais importante foi a travessia. Não tinha muito dinheiro,
esperava a chegada do navio menos caro, um navio japonês no que encontrei
um beliche em terceira classe. Ali comecei a falar inglês pela primeira vez.
Demoramos duas semanas de Port-Said à Colombo. Porém, já no Oceano
Índico comecei a conhecer a Ásia. O descobrimento da ilha de Ceilão foi algo
extraordinário. Vinte e quatro horas antes da chegada notavam-se já os
perfumes das árvores, das flores, uns aromas desconhecidos...
       Deste modo cheguei à Colombo.

                                 INTERMÉDIO
—Logo que entrei me falou que a idéia do título que lhe acaba de ocorrer para nossas
Conversações.
—Sim,   ocorreu-me esse título como fruto de minha experiência, não do
diálogo, mas sim da gravação, que impõe entre nós, em todo momento, a
presença da «máquina», coisa que para mim deve ser uma prova, uma
verdadeira «prova iniciática» e a qual não estou habituado a tal coisa. Daí o
título de A Prova do Labirinto. Com efeito, por uma parte supõe a prova,
para mim, de ver-me na necessidade de recordar coisas quase esquecidas. E
logo está o fato deste ir e vir; deste começar constantemente de novo, que é
como caminhar por um labirinto. Mas penso que o labirinto é a imagem por
excelência de uma iniciação... Por outro lado, considero que toda existência
humana está constituída por uma série de provas iniciáticas; o homem vai-se
fazendo ao fio de uma série de iniciações conscientes, ou inconscientes. Sim,
acredito que este título expressa perfeitamente o que sinto ante o aparelho.
Mas, ao mesmo tempo, agrada-me porque é uma expressão muito justa,
acredito eu, da condição humana.

—  Acho este título excelente... Ao subir pela rue d'Orsel, também vinha pensando no
título para estas Conversações. Acabava de ler algumas páginas de seu Diário e
pensava em Ulisses, no labirinto. Ulisses no labirinto? Possivelmente, um pouco
recarregada esta mitologia. Porém ao tocar a campainha de sua porta e ao receber-me
diz de supetão...

—«Já   pensei um título», sim.

—Será   uma casualidade?... Em todo caso, prefiro seu título, parece-me definitivo.
Quanto à prova do gravador, já sei que lhe custa muito superar a repugnância que lhe
inspira.

—E  me pergunto por que será. Possivelmente, seja a idéia de que quanto digo,
a espontaneidade mesma, fica imediatamente registrada... ou, possivelmente,
melhor, o fato de que haja entre nós um controle ou, melhor dizendo, um
objeto. Um objeto que resulta muito importante no diálogo. É isto, sem
dúvida, é este objeto que se mistura no diálogo e que me paralisa um tanto.

—O   que lhe incomoda, possivelmente, seja o desejo de perfeição e o desgosto de
entregar uma palavra inacabada, imperfeita, mas que o aparelho fixará em uma
espécie de falsa perfeição.

—Não,   minha impressão é que tudo se deve à presença da «máquina», e que
por isso resulta imperfeita a palavra. Pelo resto, a expressão é como pode
ser... Sei muito bem que em uma conversação, não é possível expressar-se
com a mesma exatidão que em um artigo, ou em um livro... Não, o que me
incomoda é o aparelho, essa presença física desumana.

—Trataremos   de esquecê-lo... Apesar de tudo, na fita ficam registradas coisas que
desconhecerá o leitor: o canto dos pássaros entre os ramos das árvores que há no lugar
sobre a qual se abre sua janela, o vôo das pombas que a cruzam para posar-se sobre
uma máscara rodeada de grinaldas, sobre um frontão grego...

—Sim,   o teatro de l'Atelier.

—Como    chegou a converter-se em inquilino deste piso, nesta praça? Deve-se a uma
eleição premeditada?

—Não,   foi pura casualidade, uma feliz casualidade. Procurava onde me
instalar em Paris para passar umas férias. Mas, de repente, afeiçoei-me com
esta praça e este bairro.

—Gosta deste bairro unicamente pela atmosfera que reina nele? Não influiria o fato de
que Charles Dullin...?

—É  verdade, a mitologia do bairro... Conhecia-a antes de saber nada desta
casa. Entretanto, acho que a praça é muito bela e mesmo o bairro. Não falo
unicamente das «alturas» de Montmartre, mas também de algumas ruas, não
longe daqui, que eu gosto muito.

—Estamos   entre o mercado Saint-Pierre e o Sacré-Coeur.

—O   Sacré-Coeur e a praça de Abbesses, que é também muito bela.

—O   Sacré-Coeur é um edifício muito denegrido...

—Sei  muito bem, pessoalmente, eu não gosto nem de sua arquitetura, nem a
cor de seus muros. Todavia, sua localização é admirável: a perspectiva, o
espaço... É uma montanha, certamente. E está além disso, a história da colina
de Montmartre, que não se pode ignorar. Aí está, e aqui mudou pouco a vida,
felizmente. Estes dias relia os últimos volumes do Journal de Julien Green e
chamou-me atenção a insistência com que Green fala da fealdade progressiva
que está caindo sobre Paris. Cortam-se as árvores, são demolidas certas
mansões magníficas do século XVIII ou o XIX, levantam-se edifícios
modernos, mais cômodos, sem dúvida, mas desprovidos de todo encanto. É
verdade, Paris possuía uma beleza peculiar que está a ponto de desaparecer.
Mas, trata-se de um tema tristemente banal. Não falemos mais disso.
—Quando   poderemos ler esse livro ao que se refere em seu Diário em 14 de junho de
1967 e no qual se propõe falar da estrutura dos espaços sagrados; do simbolismo das
moradias, das aldeias e das cidades; dos templos e dos palácios?

—É   uma obra escrita, como fruto de seis conferências, pronunciadas em
Princeton, sobre as raízes sagradas da arquitetura e do urbanismo. Nela
volto, mas com um enfoque específico, sobre quanto disse a propósito do
«centro do mundo» e do «espaço sagrado» no Tratado de história das religiões e
em outros lugares. Só ficou por fazer uma seleção das ilustrações. Mas, estou
decidido a terminar esta obra porque os arquitetos me manifestaram que o
esperam com interesse. Alguns escreveram-me que meus livros lhes
esclareceram muitas coisas sobre o sentido de sua profissão.

—Em    algum lugar disse antes que o sagrado se caracteriza pelo sentido: orientação e
significação...

—Para   a geometria, alto e baixo são idênticos. Entretanto, do ponto de vista
existencial, todos sabemos que subir, ou descer uma escada, não é,
absolutamente, a mesma coisa. Sabemos também que a direita não é quão
mesmo a esquerda. Ao longo dessa obra insisto no simbolismo e nos ritos
relacionados com a experiência das diversas qualidades do espaço: esquerda
e direita, centro, zênite e nadir...

—Mas    não está também ligada a arquitetura a temporalidade?

—O   simbolismo temporário vai inscrito no simbolismo arquitetônico, ou na
moradia. Na África, algumas tribos costumam orientar as choças de maneira
distinta segundo as estações; e não só a choça, mas também os objetos que se
guardam nela: alguns utensílios, diversas armas. Aí tem um caso exemplar da
inter-relação do simbolismo temporário e o simbolismo espacial. Mas a
tradição arcaica é rica em exemplos similares. Recordará o que diz Marcel
Granet sobre o «espaço orientado» na China antiga.

—Sim, e não é unicamente a casa a que se considera «sagrada», nem o templo, mas
também o território, a terra da pátria, a terra natal...

—Todo    país natal constitui uma geografia sagrada. Para quem teve que
abandonar, a cidade da infância e da adolescência converte-se para sempre
em uma cidade mítica. Para mim, Bucareste é o centro de uma mitologia
inesgotável. Através dessa mitologia cheguei a conhecer sua verdadeira
história. E a minha, possivelmente.
A ÍNDIA ESSENCIAL

                      O APRENDIZ DE SANSCRITISTA
—Em 18 de novembro de 1948 escreve em seu Diário: «Faz vinte anos, por volta das
quinze e trinta horas, conforme acredito, saí da estação do Norte de Bucareste em
direção à Índia. Ainda vejo-me no momento de partir; vejo o Ionel Jianu com o livro
de Jacques Riviére e o pacote de cigarros, seus últimos presentes. Eu levava duas
pequenas malas. O que terá influenciado em mim aquela viagem antes de cumprir os
vinte e dois anos! Como seria minha vida sem a experiência da Índia no começo de
minha juventude? E a segurança que após me acompanha: aconteça o que acontecer,
sempre haverá no Himalaya uma gruta que me espera...». Poderia responder agora a
essa pergunta que então se fez a propósito da influência da Índia em sua vida e em sua
obra? Em que sentido lhe formou a Índia? Este será, se lhe parecer bem, o tema
essencial de nossa conversação de hoje.
      Paramos em que Dasgupta lhe esperava em Madras.

—Sim,  estava trabalhando ali sobre textos sânscritos, na biblioteca da
Sociedade teosófica, célebre por sua coleção de manuscritos. Ali o conheci e
dedicamo-nos, imediatamente, a preparar minha estadia em Calcutá. Em
1928 era um homem que poderia ter quarenta e cinco anos. Era baixo, forte,
de olhos um pouco inchados, «olhos de batráquio», diríamos; uma voz que
me pareceu, como a dos bengaleses em geral, muito melodiosa. Uma
profunda amizade terminaria por me unir àquele homem, ao qual admirei
muito.

—Suas   relações com Dasgupta, foram as que revistam dar-se entre professor e aluno;
as de discípulo e mestre; ou guru?

— Um e outro. Em princípio, eu era o estudante e ele era o professor de corte
universitário, ao estilo ocidental. Foi ele mesmo quem traçou meu programa
de estudos na universidade de Calcutá; ele indicou-me as gramáticas, os
manuais, os dicionários indispensáveis. Também, encarregou-se ele de
buscar-me uma habitação no bairro anglo-hindu. Supôs, com toda razão, que
me resultaria muito difícil viver no primeiro momento como um hindu.
      Trabalhava com ele não só na universidade, mas também em sua casa,
no bairro Bhowanipore, o bairro hindu, muito pitoresco, no que Dasgupta
ocupava uma casa admirável. Ao cabo de um ano sugeriu-me a conveniência
de trabalhar com um pandit, que ele mesmo se encarregou de escolher, para
me iniciar na conversação em sânscrito. Dizia-me que mais adiante teria
necessidade de falar em sânscrito, sequer em nível elementar, para conversar
com os panedits, os verdadeiros iogues, os religiosos hindus.
—Em  que dificuldades pensava Dasgupta ao assegurar que não lhe seria fácil viver no
primeiro momento ao estilo hindu?

—Dizia   que em princípio até mesmo a alimentação puramente hindu era
pouco recomendável. Possivelmente, pensasse também que me resultaria
difícil viver no bairro hindu de Bhowanipore com o traje que eu levava,
muito singelo, mas europeu. Sabia que não me seria possível passar
diretamente, no curso de umas quantas semanas, nem sequer de alguns
meses, da indumentária européia ao dhoti bengalês.

—Por sua parte, sentia desejos de levar a vida cotidiana dos bengaleses, de adotar seus
costumes quanto à alimentação e a vestimenta?

—Sim, mas não em princípio, pois não conhecia ainda nada de tudo aquilo. Ia
ao menos duas vezes por semana à casa de Dasgupta para trabalhar ali.
Pouco a pouco, o ar misterioso daquelas casas enormes com terraços,
rodeadas de palmeiras e de jardins, terminaram por fazer seu efeito.

—Vi essa formosa fotografia que aparecerá nas capas dos «Cahiers de l'Herne». É a
indumentária que levava em Calcutá?

—Não,  essa fotografia foi tirada no ashram de Himalaya. A indumentária com
que apareço nela era uma túnica de cor amarela ocre. É a indumentária
própria de um swami, ou um iogue. Em Calcutá levava o dhoti, uma espécie
de larga camisa branca.

—Acredita  que a experiência de viver na Índia pode ser distinta vestindo como as
pessoas do país?

—Acredito    que se trata de um algo muito importante. Porque de repente,
resulta muito mais cômodo, no clima tropical, levar um dhoti e caminhar com
os pés descalços, ou de sandálias. Logo, chama-se menos a atenção. Como
vivia ao sol, estava tão moreno como os outros, com o resultado de que
passava quase desapercebido. Os meninos já não me gritavam: White monkey!
Era, além disso, uma forma de solidarizar-se com a cultura em que me queria
iniciar. Meu ideal era chegar a falar perfeitamente o bengalês. Nunca o
consegui, mas ao menos o lia. Traduzi alguns poemas de Tagore e inclusive
tentei ler e até traduzir os poetas místicos da Idade Média.
      Não eram unicamente os aspectos erudito e filosófico, o ioga e o
sânscrito, os que me interessavam, mas também, a cultura hindu viva.

—Sua   relação com a vida hindu não era tão somente a de um intelectual, a não ser a
de toda sua pessoa...

—   De toda a pessoa. Entretanto, tenho que frisar que não abandonei a
consciência, digamos a Weltanschauung do homem ocidental. Queria aprender
seriamente o sânscrito à maneira da Índia, mas também, com o método
filosófico próprio do espírito ocidental. Estudar, ao mesmo tempo, com os
recursos do investigador ocidental e de dentro. Jamais renunciei meu
instrumento de conhecimento especificamente ocidental. Trabalhara algo com
o grego, o latim e estudara a filosofia ocidental; não desprezei nada de tudo
isto. Ao adotar o dhoti ou o kutiar, quando estive no Himalaya, não rechacei
minha tradição ocidental. Como vê, também no plano da aprendizagem
reaparece meu sonho de totalizar os contrários.

—Do   mesmo modo, que não foi a tortura metafísica o que o levou para o estudo das
religiões, tampouco foi o gosto do exótico, ou o desejo de perder sua identidade o que
lhe conduziu a vestir a túnica amarela dos ascetas. Conservou sua identidade, sua
formação ocidental, em um desejo de aproximar-se da Índia através dessa perspectiva,
para fundir finalmente dois pontos de vista, ou melhor ainda, para organizá-los e
conjuntá-los.

—É a mesma coisa. Estudei profunda, «existencialmente», a cultura indiana.
No início do segundo ano disse-me Dasgupta: «Agora sim, já chegou o
momento, pode viver comigo». Vivi com ele um ano.

—Seu   propósito não era unicamente estudar a língua e a cultura indiana, mas
também, o de praticar o ioga. Quer dizer, experimentar em seu próprio corpo e
pessoalmente aquilo de que se falava nos livros.

—Exatamente.   Em seguida falaremos da prática que empreendi, vestido com
meu kutiar, no Himalaya. Mas, estando ainda em Calcutá, em casa de
Dasgupta, disse-lhe muitas vezes: «Professor, dê-me algo mais que os textos».
Porém, ele respondia-me sempre: «Espere um pouco, é preciso conhecer de
verdade tudo isto do ponto de vista filológico e filosófico...». Tenha em conta
que mesmo Dasgupta era um historiador da filosofia, formado em
Cambridge, um filósofo, um poeta. Entretanto, pertencia a uma família de
pandits procedente de uma aldeia de Bengala, o que significa que dominava
perfeitamente toda a cultura tradicional de uma aldeia indiana. Dizia-me às
vezes: «Para os europeus, a prática do ioga resulta ainda mais difícil que para
nós, os hindus». Possivelmente, temia as conseqüências. Calcutá é uma
grande cidade e, com efeito, não é prudente praticar o pranayama, o ritmo da
respiração, em uma cidade em que o ar está sempre um tanto poluído. Soube
mais tarde, em Hardwar, nas ladeiras do Himalaya, em uma atmosfera mais
favorável...

—Como   trabalhava com Dasgupta? Como aprendeu o sânscrito, primeiro com ele e
logo com o pandit?

—Bem,    pelo que se refere ao estudo do sânscrito, apliquei método do
indianista italiano Angelo de Gubernatis, tal como ele mesmo o expõe em
Fibra, sua autobiografia. Consiste em trabalhar doze horas ao dia, com uma
gramática, um dicionário e um texto. É o que ele mesmo fez em Berlim.
Weber, seu professor, disse-lhe: «Gubernatis (era início de verão), no outono
começo meu curso de sânscrito, mas resulta que é o segundo curso, e não é
possível começar de novo só em benefício dele. Será preciso que adiante por
sua conta...». Gubernatis encerrou-se em um refúgio, muito perto de Berlim,
com sua gramática e seu dicionário de sânscrito. Duas vezes por semana,
alguém lhe levava pão, café e leite. Tinha razão, e decidi-me seguir seu
exemplo. Por outro lado, eu fizera já algumas experiências, não tão radicais,
mas, enfim... Quando estudava inglês, por exemplo, trabalhava muitas horas
seguidas. Porém, desta vez, desde o começo, trabalhava doze horas ao dia e
unicamente o sânscrito. Como únicas interrupções permitia-me alguns
passeios, a hora do chá, ou das comidas, que aproveitava para aperfeiçoar
meu inglês: lia-o muito bem, mas o falava muito mal. Dasgupta, em sua casa,
fazia-me pergunta de vez em quando, entregava-me algum texto para
traduzi-lo e deste modo podia observar meus progressos. Foram rápidos,
mas, acredito que devido a este esforço que propunha me dedicar a estudar
só o sânscrito. Durante muitos meses não toquei sequer um periódico, uma
novela policial, nada. Esta concentração exclusiva em um só tema, o sânscrito,
deu-me resultados surpreendentes.

—Mas,   com esse método, possivelmente, corra-se o risco de não obter a exatidão e a
vivência próprias da língua falada.

—Certamente,   mas, tratava-se de assentar acima de tudo e para começar
umas bases sólidas, de adquirir as estruturas, a concepção gramatical, o
vocabulário básico... Mais tarde, é óbvio, dediquei minha atenção à história e
à estética indianas, à poesia, às artes. Em princípio, entretanto, terá que
atender à aquisição metódica e exclusiva dos rudimentos.

—Acredito    recordar que Daumal via no sânscrito a ocasião para um trabalho
filosófico, como se a gramática do sânscrito predispusesse a uma certa metafísica,
como se levasse a conhecimento de si mesmo e do ser. Crê assim? Que benefícios lhe
reportou o conhecimento do sânscrito?
—Tinha    razão Daumal, todavia, no meu caso, não era tanto o valor, ou a
virtualidade filosófica da língua em si mesmo, o que mais me interessava em
princípio... O que pretendia acima de tudo, era dominar este instrumento de
trabalho para ler uns textos que não destacavam precisamente por seu valor
filosófico. Não eram o Vedanta, ou os Upanishads o que então me interessava,
a não ser, acima de tudo, os comentários dos Ioga-Sutras, os textos tântricos,
quer dizer as expressões da cultura indiana menos conhecidas no Ocidente,
justamente porque sua filosofia não está à altura dos Upanishads, ou do
Vedanta. Isto era o que me interessava mais que nada, pois aspirava conhecer
as técnicas da meditação e da fisiologia mística, quer dizer o Ioga e o Tantra.

—Aprendeu     o italiano para ler ao Papini, o inglês para ler ao Frazer, o sânscrito para
ler os textos tântricos. Trata-se sempre, ao que parece, de abrir uma porta a algo que
lhe interessa. A língua é o caminho, jamais o fim. Não lhe expõe tudo isto uma
questão? Poderia converter-se não em um historiador das religiões, dos mitos, do
mundo da imaginação, a não ser em um sanscritista, em um lingüista. Cabia dentro
do possível uma obra totalmente distinta, um Eliade diferente. Ingressasse no grêmio
dos Jacobson, dos Benveniste, contribuindo seu estilo peculiar a este campo. Poder-se-
ia sonhar nessa obra imaginária... Não lhe tentou alguma vez esse caminho?

—Sempre    que tratei de aprender uma nova língua foi para possuir um novo
instrumento de trabalho. Uma língua foi sempre para mim uma
possibilidade de comunicação: ler, falar se fosse possível, mas sobretudo ler.
Entretanto, houve um momento enquanto permaneci na Índia, em Calcutá,
quando contemplava os esforços de um comparativismo mais amplo —por
exemplo, as culturas indo-européias com as culturas pre-hindus, as culturas
oceânicas, as culturas da Ásia central—, quando contemplava aqueles sábios
extraordinários como Paul Pelliot, Przylusky, Sylvain Lévy, conhecedores
não só do sânscrito e o pali, mas também do chinês, tibetano, japonês e, além
disso, das línguas chamadas austroasiáticas, sentia-me fascinado por aquele
universo enorme que se abria à investigação. Já não se tratava unicamente da
Índia ária, mas, além da Índia aborígine, da abertura para o Sudeste asiático e
Oceania. Eu mesmo tentei iniciar esse caminho. Dasgupta dissuadiu-me. E
tinha razão. Sabia adivinhar. Todavia, empreendi o estudo do tibetano com
uma gramática elementar. Pude observar que, ao tratar-se de algo que não
desejara, verdadeiramente, do mesmo modo, que desejara o sânscrito, ou o
inglês, ou mais tarde o russo, ou o português, a coisa não saía muito bem.
Então, fiquei furioso e abandonei. Disse-me que jamais alcançaria a
competência de um Pelliot, de um Sylvain Lévy, que jamais seria um
lingüista, nem sequer um sanscritista. A língua em si mesmo, suas estruturas,
sua evolução, sua história, seus mistérios não me atraíam como...
—Como   a imagem, como os símbolos?

—Exatamente.     A língua não era para mim mais que um instrumento de
comunicação, de expressão. Mais tarde, senti-me contente de deter-me neste
ponto. Porque, em definitivo, trata-se de um oceano. Nunca se acaba a tarefa:
terá que aprender o árabe; depois do árabe, o siamês; depois do siamês, o
indonésio; depois do indonésio, o polinésio; e assim pela ordem. Preferi ler os
mitos, os ritos pertencentes a essas culturas, tentar compreendê-los.

                      IOGUE NO HIMALAYA
—Em setembro de 1930 sai de Calcutá em direção ao Himalaya. Separa-se de
Dasgupta...

—Sim,  por causa de uma desavença, que lamento muito. Também ele a
lamentou. O certo é que já não me interessava permanecer naquela cidade em
que, sem Dasgupta, nada tinha que fazer. Parti para o Himalaya. Fui detendo
em numerosas cidades, mas ao final decidi ficar algum tempo em Hardwar e
Rishikesh, pois ali é onde começam os verdadeiros eremitérios. Tive a sorte
de conhecer Swami Shivanananda, que falou com mohant, o superior,
conseguiu-me uma pequena choça no bosque... As condições eram muito
singelas: levar um regime vegetariano e prescindir da indumentária européia;
entregava-se ao aspirante uma túnica branca. Cada manhã tinha que
«mendigar» leite, mel e queijo. Fiquei ali, em Rishikesh, seis ou sete meses,
possivelmente até abril.

-Rishikesh está já no Himalaya, mas ainda não é o Tibete.

—Para  ir ao Tibete faltava passaporte... Entretanto, em 1929, passei três ou
quatro semanas em Darjeeling, em Sikkim, limite com o Tibete e onde já se
nota uma atmosfera tibetana. Vêem-se muito bem as montanhas do Tibete.

—Como   era a paisagem em torno de sua choça?

—Enquanto   que Darjeeling está a não sei quantos metros de altura, em uma
paisagem alpina, Rishikesh se acha à beira do Ganges, mas o Ganges é ali um
pequeno rio: cinqüenta metros em alguns sítios e logo, de repente, duzentos
metros; às vezes, estreita-se muito: vinte metros, dez metros. Ali há selva, a
selva. Em meus tempos não se via por ali outra coisa que umas quantas
choças e um pequeno templo hindu. Não havia gente. No bosque, as choças
estavam escalonadas ao longo de dois ou três quilômetros, a duzentos metros
umas das outras, às vezes, só a cento e cinqüenta ou cinqüenta. Dali subia à
Lakshmanjula, primeira etapa de minha peregrinação, por assim dizê-lo. Ali
resulta muito elevada a montanha. Havia uma série de grutas nas quais
viviam os religiosos, contemplativos, ascetas, iogues. Conheci muitos deles.

—Como   escolheu a seu guru?

—Era   Swami Shivanananda, mas, naquela época ninguém lhe conhecia, não
publicara nada (logo publicaria uns trezentos volumes...). antes de converter-
se em Swami Shivanananda fora médico, tinha uma família e conhecia muito
bem a medicina européia, que praticara, conforme acredito, em Rangun.
Depois, um belo dia, abandonou tudo. Despojou-se de seu traje europeu e
veio a pé desde Madras ao Rishikesh. Demorou quase um ano percorrendo o
caminho. É um homem que me interessou pelo fato de que possuía uma
formação ocidental. Igual Dasgupta. Era um bom conhecedor da cultura
indiana e estava em condições de comunicá-la a um ocidental. Não se tratava
de um erudito, mas tinha uma longa experiência de Himalaya; conhecia os
exercícios do ioga, as técnicas de meditação. Era médico e, em conseqüência,
entendia perfeitamente nossos problemas. Foi ele quem me orientou um
pouco nas práticas da respiração, da meditação, da contemplação. Coisas que
eu conhecia de cor, pois não só as estudara nos textos, em comentários, mas
sim, além disso, ouvira falar delas outros saddhu e contemplativos em
Calcutá, em casa de Dasgupta, e em Santiniketan, onde conheci Tagore.
Sempre havia ocasião de conhecer alguém que já praticara algum método de
meditação. Sabia de tudo isto, por conseguinte, algo mais do que há nos
livros, mas nunca tentara pô-lo em prática.
—Acaba de falar da selva. Teremos que pensar em tigres, em serpentes?


—Não   recordo ouvir falar nunca de tigres, todavia, havia muitas serpentes, e
também macacos, uns macacos extraordinários. Acredito que foi ao terceiro
dia de minha instalação na choça quando vi uma serpente. Tive um pouco de
medo, tinha a impressão de que era uma cobra; lancei-lhe uma pedra para
espantá-la. Um monge viu-me e disse-me (falava muito bem o inglês; era um
antigo magistrado): «Por que? Embora seja uma cobra, nada terá que temer.
Neste eremitério não me recordo que se produziu nenhuma só mordida de
serpente». Fiquei perplexo, entretanto, perguntei-lhe: «E mais abaixo, na
planície?» Respondeu ele: «Sim, ali é verdade, mas não aqui». Coincidência
ou não... Em qualquer caso, a partir de então, quando via uma serpente,
deixava-a passar tranqüilamente. Isto era tudo. Nunca voltei a espantar uma
serpente lançando-lhe uma pedra.

—Passaram  quase cinqüenta anos entre aqueles tempos do iogue noviço e o dia de hoje
em que já se converteu em autor célebre de três obras sobre o ioga. Um deles leva
como subtítulo Imortalidade e liberdade. Outro intitula-se Técnicas de ioga... O
que é o ioga? Um caminho místico, uma doutrina filosófica, uma arte de viver? Qual
é seu objetivo, dar a salvação, ou dar a saúde?

—Para   falar a verdade, há algum tempo já não me interessa tanto falar do
ioga. Comecei minha tese em 1936; levava por título Ioga, ensaio sobre as
origens da mística hindu. Reprovou-me, e com razão, o termo «mística».

—Trabalhara  sob a direção de Dasgupta, e inclusive, conforme acredito, ditou-lhe seu
comentário de Patañjali...

—Sim,   mas antes já me senti interessado pelo aspecto técnico da pedagogia
espiritual hindu. Conhecia, evidentemente, a Tradição especulativa, dos
Upanishads até Shankara, quer dizer a filosofia, a gnosis, que apaixonara aos
primeiros indianistas ocidentais. Por outro lado, lera os livros sobre os
rituais... Mas, sabia além, que existia uma técnica espiritual, uma técnica
psicofisiológica, que não era pura filosofia ou sistema ritual. Com efeito, lera
algumas obra sobre Patañjali e os livros de John Woodroff (sob o nome de
Arthur Avallon) sobre o tantrismo. Pensava que com este método tântrico,
quer dizer, com esta série de exercícios psicofisiológicos (aos que chamei
«fisiologia mística», pois, trata-se de uma fisiologia mais imaginária),
tínhamos a oportunidade de descobrir certas dimensões pouco atendidas da
espiritualidade hindu. Dasgupta já tinha apresentado o aspecto filosófico
deste método. Por minha parte, julgava importante a descrição das técnicas
em si mesmas e a apresentação do ioga em um horizonte comparativo: junto
à ioga clássico, descrito pelo Patañjali nos Ioga-Sutras, os diversos iogas
«barrocos», marginais; também o ioga praticado por Buda e o budismo na
Índia e logo, no Tibete, no Japão e China. Daí meu interesse por adquirir uma
experiência pessoal dessas práticas, dessas técnicas.

—Não   haverá alguma relação entre esse desejo e a «luta contra o sonho» de sua
adolescência?

—Em   minha adolescência tinha muito que ler e me dava conta de que não se
obtém grande coisa se dormir durante sete horas, sete horas e meia. Comecei
então um exercício que acredito ter inventado. Cada manhã fazia soar o
despertador dois minutos antes que a anterior. Em uma semana ganhei,
portanto, um quarto de hora. Com seis horas e meia de sonho por noite,
deixei de adiantar o despertador durante três meses, a fim de me habituar
perfeitamente a esta duração. Logo comecei de novo, sempre ao ritmo de dois
minutos. Deste modo cheguei às quatro horas e meia de sonho. Logo, um dia
tive vertigens e parei. Eu chamava àquilo, com a grandiloqüência dos
adolescentes, «a luta contra o sono». Depois li L'Education de la volonté, do
doutor Payot. Lembro-me uma página em que dizia: «por que, mediante a
simples intervenção da vontade, não teria que nos ser possível comer coisas
que unicamente nossos hábitos culturais nos fazem ter por não comestíveis?
Mariposas, por exemplo, ou abelhas, vermes, besouros. Ou também, um
bocado de sabão». Eu perguntava-me: «Por que não?». E comecei a «educar
minha vontade», mas acredito que entendi mal o livro. Em qualquer caso,
desejava dominar certas aversões e certas tendências naturais em um
europeu.
      O ioga, efetivamente, está aparentado com esse esforço. O corpo pede
movimento, então, imobiliza-lhe em uma só posição, um asana; já não se
comporta um como um corpo humano, mas sim, como uma pedra, ou uma
planta. A respiração é naturalmente arrítmica; o pranayama impõe-lhe um
ritmo. Nossa vida psicomental está sempre agitada —Patañjali define-a como
chittavritti, «torvelinhos de consciência—, mas a concentração permite
dominar essa corrente... O ioga significa em certo modo uma oposição ao
instinto, à vida.
      Todavia, não me atraiu o ioga unicamente por estas razões. A verdade é
que se me senti interessado por estas técnicas do ioga foi, acima de tudo,
porque me resultava impossível entender à Índia unicamente através da
leitura dos grandes indianistas e de seus livros sobre a filosofia vedanta, para
a qual o mundo é pura ilusão —maya— ou através do sistema monumental
dos ritos. Não podia entender que a Índia tivesse grandes poetas e uma arte
admirável. Dava-me conta de que em algum lugar existia uma terceira via,
não menos importante, e que esta via implicava a prática do ioga. Mais tarde
em Calcutá, ouvi dizer que, com efeito, um professor de matemática
trabalhava em posição asana impondo um ritmo a sua respiração, e com
vantagem. Por outro lado, já sabe que quando Nehru se sentia fatigado,
adotava durante alguns minutos a «posição da árvore». São exemplos,
aparentemente anedóticos, mas, o certo é que essa ciência, essa arte do
domínio do corpo e os pensamentos, são muito importantes para a história da
cultura e da filosofia indianas, da criatividade hindu em uma palavra.

—Não  lhe vou fazer novas perguntas sobre os aspectos teóricos do ioga; umas poucas
palavras não serviriam para substituir os livros que já escreveu. Prefiro perguntar-lhe
por sua experiência pessoal e pelo que esta lhe contribuiu para o resto de sua vida.

—Se  fui tão discreto a respeito de minha aprendizagem em Rishikesh, é por
razões que lhe será fácil adivinhar. É possível, entretanto, falar de certas
coisas. Por exemplo, dos primeiros exercícios do pranayama que fiz, sob a
vigilância de meu guru. Às vezes, quando conseguia submeter a um ritmo
minha respiração, ele interrompia-me. Não entendia por que, pois, sentia-me
muito bem e não estava absolutamente fatigado... Ele dizia-me: «Está
fatigado». Já vê, era importante contar com a orientação de alguém que era
médico e conhecia por própria experiência o ioga. Fiquei convencido da
eficácia dessas técnicas. Acredito, inclusive, que cheguei a entender melhor
certos problemas... Mas, como lhe dizia, não quero insistir. Com efeito, se se
abordar esta questão, terei que dizer tudo, e isso exigiria entrar em detalhes
que implicam extensas análise.

-Entretanto, posso lhe perguntar se foi possível verificar as maravilhas, ou os
prodígios que, conforme se diz, acompanham à ioga? Em um de seus livros fala da
juventude que o iogue conserva muito tempo: a meditação de um tempo diferente,
ampliado, que chega a produzir no corpo uma longevidade extraordinária...

—Um   de meus vizinhos, um monge que ia absolutamente nu, um naga,
passara dos cinqüenta anos e tinha um corpo de trinta. Não fazia outra coisa
que meditar durante todo o dia e tomava muito pouco alimento. Eu não
cheguei a essa etapa em que são possíveis tais coisas. Mas, qualquer médico
pode lhe dizer que o regime e a vida sã que se levam em um eremitério
prolongam a juventude.

—O   que tem essas histórias que se contam de panos molhados e gelados que se
colocam sobre a pessoa entregue à meditação e que se secam várias vezes ao longo da
noite?

—Muitas   testemunhas ocidentais o viram. Alexandra David-Neel, por
exemplo. É o que se chama em tibetano gtumo. Trata-se de um calor
extraordinário que produz o corpo e que é capaz de secar um tecido. A
propósito deste «calor místico» ou, mais exatamente, gerado pelo que se
chama a «fisiologia sutil», há documentos muito sérios. A experiência dos
panos gelados que se secam, rapidamente, ao serem colocados sobre o corpo
de um iogue é uma coisa certamente real.

                   UMA VERDADE POÉTICA DA ÍNDIA
—Sua experiência da Índia não aparece unicamente em seus estudos, mas também em
suas novelas: Meia-noite em Serampore, A noite bengalesa... e em Isabel e as
águas do diabo, inédita em francês, que escreveu, conforme me disse, como um
desafogo durante sua intensa dedicação à aprendizagem do sânscrito.

—Efetivamente,   depois de seis ou sete meses de gramática sânscrita e de
filosofia hindu, detive-me, ansioso de sonhar um pouco. Encontrava-me em
Darjeeling e ali começo essa novela, um pouco autobiográfica, um pouco
fantástica. Queria penetrar e conhecer aquele mundo imaginário que me
obcecava. Escrevi a novela em umas quantas semanas. Deste modo recuperei
a saúde e o equilíbrio.

—Nesse  relato aparece um jovem romeno que atravessa Ceilão, Madras e detém-se em
Calcutá, onde se encontra com o diabo.

—Chegando  à Calcutá, instalei-me em uma pensão anglo-hindu, como aquela
em que eu vivia. Há ali moças, jovens fascinados por toda classe de
problemas. Vem logo a presença do «diabo» e toda uma série de coisas que
acontecem porque o personagem principal está obcecado pelo «diabo»...

—Em  Meia-noite em Serampore, quão mesmo em O segredo do doutor
Honigberger, aparece também a fantasia.

—São  duas novelas escritas dez anos mais tarde. Entre Isabel e estas duas
novelas há outra, mais ou menos, autobiográfica, A noite

—Eu  gostaria que nos detivéssemos um pouco mais em Meia-noite em Serampore...
até que ponto podem acreditar-se quão fatos nela se narram? São puramente
fantásticos esses personagens que revivem um passado? Ou é que crê um pouco em
tal possibilidade? Porque, com efeito, às vezes, escutam-se histórias estranhas
contadas por pessoas dignas de crédito...

—Eu   acredito na realidade das experiências que nos fazem «sair do tempo» e
«evadir-nos do espaço». Durante estes últimos anos escrevo várias novelas
em que se expõe esta possibilidade de sair-se de um determinado momento
histórico... de situar-se em um espaço distinto, como ocorre ao Zerlendi. Ao
descrever os exercícios yóguicos de Zerlendi em O segredo do doutor
Honigberger, contribuí com certos indícios apoiados em minhas próprias
experiências, que silenciei em meus livros sobre o ioga. Entretanto, ao mesmo
tempo, acrescentei algumas inexatidões, justamente para mascarar os dados
reais. Por exemplo, fala-se de um bosque de Serampore, porém, em
Serampore não há nenhum bosque. Portanto, se alguém pretendesse verificar
em concreto a trama da novela, dar-se-ia conta de que o autor não se limita a
fazer uma reportagem, posto que inventou a paisagem. Isto levaria a
conclusão de que também o resto inventara, coisa que não é verdade.

—Acreditaque podem ocorrer, efetivamente, as coisas que acontecem aos personagens
de Meia-noite em Serampore?

—Sim,   no sentido de que alguém pode ter uma experiência tão «convincente»
que se veja obrigado a considerá-la real.

—Ao    final de O segredo do doutor Honigberger —um investigador que
efetivamente existiu, ao que cita ao princípio de Patañjali e o Ioga— o leitor pode
duvidar entre várias chaves para resolver o enigma. Qual é a sua?

-Para alguns leitores pode resultar evidente. Como o personagem que narra
essa história afirma ser Mircea Eliade, um homem que passou alguns anos na
Índia, que escreveu um livro sobre o ioga...

- Esse é o narrador, mas não se nomeia como Eliade...

- Não, porém, Mme Zerlendi escreve-lhe: «Como passou muitos anos na
Índia...». Mas, naquela época, quem podia ser esse romeno que partira à
Índia, que escrevera um livro sobre o ioga? O narrador, por conseguinte, é
Eliade. E Zerlendi, um homem dotado de clarividência, dá-se conta de que,
por um acidente lamentável, o documento extraordinário que escondera com
a esperança de que um dia alguém o decifrasse e convencesse-se da realidade
de alguns feitos relacionados com o ioga, esse documento acabava de ser
decifrado por alguém que conhecia o sânscrito, o ioga e que além disso, era
um novelista, que não deixaria de sentir-se tentado —justamente o que eu
fiz— pela idéia de narrar aquela história extraordinária. Então, para suprimir
qualquer perigo de que alguém verificasse a autenticidade do relato —pois
não resultaria difícil identificar a casa e encontrar sua biblioteca e os
manuscritos—, em uma palavra, para provar que não se trata mais que uma
fantasia literária, Zerlendi transforma sua casa, faz desaparecer a biblioteca e
sua família, afirma não conhecer o narrador. E tudo isto para evitar que o
documento que me dispunha a resumir em minha novela não se considerasse
autêntico.

—Não   estou seguro de que esta conversação seja clara para quem não lera o livro.
Melhor assim, pois espero que essa mesma escuridão anime-lhes a descobri-lo... Por
minha parte, já não sei o que pensar. Sinto-me na mesma situação que os personagens
de seu último livro que escutam ao «velho». A sua é uma arte diabólica na hora de
desconcertar seus ouvintes através de umas histórias nas quais já não é possível
distinguir o verdadeiro do falso, a esquerda da direita.

—É  verdade. Inclusive penso que essa é uma parte característica de minha
prosa.

—Não   haverá um tanto de malícia no prazer que lhe produz a idéia de confundir um
tanto a seu interlocutor?
—Isso,possivelmente, forma parte de uma espécie de pedagogia; não se deve
entregar ao leitor uma «história» perfeitamente transparente.

—A   pedagogia e o gosto pelo Labirinto?

—Sim, uma prova iniciática ao mesmo tempo.

—Deixemos,    pois, seus leitores ante a porta do labirinto, à entrada do bosque de
Serampare e da biblioteca indiana de Zerlendi. Em compensação, nada tem de
fantástico em A noite bengalesa. Quando recordo este livro —porque, efetivamente,
é um livro sobre o qual se tem que refletir, pois se abre à leitura menos que à
lembrança da leitura— há algo que me chama a atenção sobre tudo: a imagem e a
evocação daquela moça, a presença do desejo mesmo. A história é muito singela, mas
irradia até abrasar uma beleza cobiçável, como os afrescos de A Última Ceia e como a
poesia erótica da Índia... Como vê este livro com a distância?

—Bem,    trata-se de uma novela meio biográfica. Compreenderá que...

—Entendo    que queira guardar o mesmo silêncio sobre os segredos da gnosis e os
segredos do amor... Mas, posto que acabamos de evocar a arte de A Última Ceia,
ocorreu a alguém relacionar a figura, tão sensual, de Maitreyi (A noite bengalesa) e
os afrescos de A Última Ceia? O que lhe faz pensar isto?

—Certo,  já se falou isso. Em uma carta encantadora que me enviou depois de
ler minha novela, Gastón Bachelard falava de «mitologia do prazer».
Acredito que tinha razão, pois, em certo sentido, a sensualidade se
transfigura...

—O   que agora me diz enlaça diretamente com uma nota de seu Diário de 5 de abril de
1947 a propósito dos afrescos de A Última Ceia: «A sensualidade destas imagens
fabulosas, a importância inesperada do elemento feminino! Como é possível que um
monge budista pudesse quot;liberar-sequot; das tentações da carne, rodeado de tanta, nudez
soberba; triunfantes em sua plenitude e em sua beleza? Só uma versão tântrica do
budismo podia aceitar semelhante elogio da mulher e da sensualidade. Algum dia se
compreenderá a função importante do tantrismo, que revelou e impôs à consciência
hindu o valor das quot;formasquot; e dos quot;volumesquot; (o triunfo do antropomorfismo mais
lânguido sobre o aniconismo original)». O componente erótico da noite bengalesa,
seu interesse pelo tantrismo e sua visão da arte indiana: esta nota permite envolvê-los
no mesmo olhar.

—Sim,    além disso, ao contemplar os afrescos de A Última Ceia comecei a
admirar a arte figurativa da Índia. Tenho que reconhecer que, ao princípio, a
escultura hindu decepcionou-me. Todavia, uma obra de Coomaraswamy
permitiu-me captar o sentido daquela acumulação de detalhes. Não basta ali
a representação do deus, mas sim, prodigaliza-se toda sorte de signos, de
figuras humanas, mitológicas. Nada de espaços vazios! Aquilo eu não
gostava. Logo compreendi que o artista quer absolutamente povoar esse
universo, esse espaço que cria em torno da imagem. Que quer, em suma,
enche-lo de vida. Terminei por admirar aquela escultura.
       Precisamente, se cheguei a gostar tanto da arte indiana, foi por tratar-se
de uma arte de significação simbólica, uma arte tradicional. O artista não se
propôs expressar nada absolutamente de ordem «pessoal». Compartilhava
com todos os outros o universo unitário dos valores espirituais próprios do
gênio hindu. Tratava-se de uma arte simbólica e tradicional, mais
espontâneo, se posso dizer assim. O fato de beber na fonte comum jamais
prejudicou ao florescimento das formas distintivas, a sua variedade. E isto é
verdade a propósito de todas as artes.
       Na Índia, foi a música de Bengala quão única tive, até certo ponto,
ocasião de conhecer. Mas, o que mais me interessava eram as artes plásticas, a
pintura, os monumentos, os templos. Não unicamente como «criações
artísticas». Por exemplo, o templo é uma obra arquitetônica dotada de um
simbolismo muito coerente, em que a função religiosa, com seus ritos e
procissões, integra-se perfeitamente na mesma arquitetura. Por outro lado, na
Índia, igual em todas as aldeias da Europa oriental, faz, possivelmente, trinta
ou quarenta anos, o «objeto artístico» não era algo que se pendurava na
parede, ou se colocava em uma vitrine. Era um objeto que se utilizava: uma
mesa, uma cadeira, um copo, um ícone. Neste sentido, precisamente,
interessava-me a arte indiana, a arte popular quão mesmo dos templos, das
esculturas e das pinturas: por sua integração na vida cotidiana.

—E   a literatura hindu?

—Eu    gostava muito de Kalidasa, que é possivelmente meu preferido. É o
único poeta que cheguei a dominar, apesar de que seu sânscrito resulta muito
difícil. É inegável seu gênio poético.
       Entre os modernos, li alguns escritores de vanguarda, Acinthya, por
exemplo, um jovem novelista bengalês (1930) muito influenciado por Joyce.
E, é óbvio, ao Rabindranath Tagore.

—Acredito   que foi Dasgupta quem apresentou Tagore.

—Sim,    tive a grande sorte de ser recebido várias vezes por Tagore em
Santiniketan. Eu tomava muitas notas depois de nossas conversações e
também sobre quanto se dizia dele, como homem e como poeta, em
Santiniketan. Ali era muito admirado, porém, alguns criticavam-lhe, e eu
tomava nota de tudo isso. Espero que esse «caderno Tagore» exista ainda, em
Bucareste, em minha biblioteca tantas vezes mudada de lugar. Admirava ao
Tagore pelo esforço que desenvolvia para condensar em si as qualidades, as
virtudes, as possibilidades do ser humano. Não era tão somente um poeta
excelente, um compositor excelente —escreveu umas três mil canções, das
quais algumas centenas, estou seguro disso, converteram-se hoje em «canções
populares» em Bengala—, um grande músico, um bom novelista, um
professor da conversação... Sua mesma vida possuía uma qualidade
específica. Todavia, não era uma «vida de artista», como a que levavam um
D'Annunzio, um Swinburne, ou um Oscar Wilde. Era uma vida rica e
completa, aberta à Índia e ao mundo. Tagore interessava-se além, por coisas
que ninguém imaginaria, que pudessem interessar a um grande poeta.
Ocupava-se dos assuntos comuns, sentia uma grande paixão pela escola que
fundara em Santiniketan. Jamais se distanciou da cultura popular de Bengala.
Em sua obra adverte-se em seguida, a importância da tradição rural, apesar
de que esteja claro que também se inspirava em Maeterlinck, por exemplo.
Além disso era formoso. Tinha um grande êxito, murmurava-se que era um
dom Juan... Ao mesmo tempo, irradiava uma espiritualidade que se
expressava através de todo seu corpo, de seus gestos, de sua voz. Um corpo,
uma imagem de patriarca.

—Acaba  de traçar um formoso retrato que faz pensar em um Vinci, em um Tolstoi de
Bengala. Entretanto, em A noite bengalesa evoca ao Tagore em um tom...

—...crítico, certamente. Expressava assim a atitude da nova geração bengalês.
Na universidade tinha amigos, jovens poetas, jovens professores que, por
reação frente à seus pais, viam na obra de Tagore um não sei que
d'annunziano, qualificando-a falsa... Pode ser que hoje esteja um pouco
esquecido na Índia, por causa da grandeza de Aurobindo, de Radhakrishna,
que é um grande sábio. Porém, estou seguro de que será redescoberto.

—É     difícil evocar Tagore e não nomear ao Gandhi...

—Vi  o Gandhi e até ouvi, mas de longe e muito mal: o alto-falante não
funcionava, se é que havia algum aquele dia. Foi em Calcutá, em um parque,
durante uma manifestação não violenta... Admirava-lhe, como todo mundo.
Eu preocupava-me com outros problemas, mas o êxito de sua campanha da
não violência chegou a interessar-me enormemente. Entenda-se bem que, por
então, eu era cem por cento antibritish. A repressão inglesa contra os
militantes do swaraj exasperava-me, revoltava-me.

-Seus sentimentos eram, em definitivo, os de seu personagem de A noite bengalesa:
aborrecimento do colonizador e inclusive do europeu...

-Sim, muitas vezes sentia abafado ao ser reconhecido como branco,
envergonhava-me de minha raça. Não era inglês, felizmente, era cidadão de
um país que jamais tivera colônias e que, pelo contrário, fora tratado durante
séculos como uma colônia. Não tinha, portanto, motivo algum para sentir um
complexo de inferioridade. Mas, ao sentir-me europeu, envergonhava-me.

—Preocupou-lhe     «a política» —para dizer do modo mais simples— durante sua
juventude?

—Na   Romênia, nada, absolutamente. Sensibilizei-me à política na Índia. Ali
com efeito, pude ver a repressão. Dizia-me: «Quanta razão têm os hindus!».
Aquele era seu país, não reclamavam, a não ser, uma espécie de autonomia e
suas manifestações eram completamente pacíficas, não provocavam
ninguém, reclamavam o que era seu direito. Todavia, a repressão policial foi
inutilmente violenta. Em Calcutá tomei consciência da injustiça política, ao
mesmo tempo, descobri as possibilidades espirituais da atividade política de
Gandhi, aquela disciplina espiritual que permitia resistir aos golpes sem
responder. Era como Cristo, o sonho de Tolstoi...

—Isso   significa que se deixou ganhar em coração e alma pela causa da não violência...

—E  também da violência! Por exemplo, um dia escutei um extremista e dava-
lhe a razão. Entendia, perfeitamente, que também devem existir alguns
violentos. Mas, em resumidas contas, estava muito impressionado pela
campanha da não violência. Além disso, não se tratava, unicamente, de uma
extraordinária tática, mas sim, constituía uma admirável educação das
massas, uma admirável pedagogia popular que se propunha acima de tudo o
domínio de si mesmo. Era algo, verdadeiramente, superior à política, quero
dizer, superior à política contemporânea.

                     AS TRÊS LIÇÕES DA ÍNDIA
—Não tinha vinte e dois anos quando cheguei à Índia. Muito jovem, não lhe
parece? Os três anos seguintes foram essenciais para mim. A Índia formou-
me. Hoje trato de expressar qual foi o ensino decisivo que ali recebi, e vejo
acima de tudo que é uma lição tripla.
     Em primeiro lugar, foi o descobrimento da existência de uma filosofia,
ou melhor, de uma dimensão espiritual hindu que não era nem a da Índia
clássica —diríamos a dos Upanishads e do Vedanta; em uma palavra, a
filosofia monista— nem a devoção religiosa, a bhakti. Tanto o ioga como a
samkhya professam o dualismo: a matéria por um lado e o espírito por outro.
Entretanto, não era o dualismo o que me interessava, a não ser o fato de que,
o mesmo no ioga que na samkhya, o homem, o universo e a vida não são
ilusórios. A vida é real, o mundo é real. E é possível conquistar o mundo, é
possível dominar a vida. E ainda mais, no tantrismo, por exemplo, a vida
humana pode ser transfigurada mediante os ritos, executados a seguir de
uma longa preparação yóguica. Trata-se de uma transmutação da atividade
fisiológica, por exemplo, da atividade sexual. Na união ritual, o amor já não é
um ato erótico ou um ato simplesmente sexual, a não ser uma espécie de
sacramento; exatamente como beber vinho, na experiência tântrica, já não é
beber uma bebida alcoólica, a não ser compartilhar um sacramento...
Descobri, pois, essa dimensão tão esquecida pelos orientalistas, descobri que
a Índia conheceu certas técnicas psicofisiológicas graças às quais pode o
homem ao mesmo tempo gozar da vida e dominá-la. A vida pode ser
transfigurada mediante uma experiência sacramental. Este é o primeiro
ponto.

—«A   vida transfigurada», é o que chama em outro lugar «a existência santificada»?

—Sim,   em resumidas contas, deve ser o mesmo. Trata-se de ver que através
desta técnica, e também através de outras vias ou métodos, é possível
santificar de novo a vida, santificar de novo a natureza...
      O segundo descobrimento, o segundo ensino é o sentido do símbolo.
Na Romênia não me senti atraído pela vida religiosa, as igrejas me pareciam
abarrotadas de ícones. Entenda-se bem que aqueles ícones não me pareciam
ídolos, mas... Na Índia, enquanto vivia em uma aldeia bengalês, pude ver
como as mulheres e as moças tocavam e engalanavam um lingam, um
símbolo fálico, ou mais exatamente, um falo de pedra anatomicamente muito
exato. Ao menos as mulheres casadas não podiam ignorar sua natureza, sua
função fisiológica. Assim entrevi a possibilidade de «ver» o símbolo no
lingam. O lingam era o mistério da vida, da criatividade da fecundidade que
se manifesta em todos os níveis cósmicos. Esta epifania da vida era Shiva, não
o membro que conhecemos. Aquela possibilidade de sentir-se religiosamente
movido pela imagem, o símbolo revelou-me todo um mundo de valores
espirituais. Então disse: é verdade que ao contemplar um Ícone, o crente não
percebe tão somente a figura de uma mulher que sustenta nos braços um
menino, mas sim, vê à Virgem Maria, à Mãe de Deus, a Sophia.,.. Este
descobrimento da importância do simbolismo religioso nas culturas
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O sentido das origens: a vida e obra de Mircea Eliade

  • 1. M I R C E A E L I A D E A PROVA DO L A B I R I N TO C o n v e r s a ç ões com CLAUDE-HENRIROCQUET EDICIONESCRISTIANDAD L i b e r a l o s L i b r o s Este livro foi publicado por Pierre Belfond, Paris 1979, com o título L'EPREUVE DU LABYRINTHE Traduziu ao espanhol J. VALENTE MALLA EDIÇÕES CRISTANDADE, S. L. Madrid 1980
  • 2. PREFÁCIO O título deste livro enquadra perfeitamente a sua natureza: A prova do labirinto. O costume sugere que o confidente escreva o prefácio do diálogo suscitado pelo jogo de suas perguntas. Posso expor, ao menos, as razões que me levaram, para lhe fazer perguntas, em torno deste mundo um pouco legendário: Eliade. Quando tinha vinte anos li na biblioteca do Instituto de Estudos Políticos, no que por certo não me encontrava encaixado, um primeiro livro de Mircea Eliade (acredito que era Imagens e símbolos). Os arquétipos, a magia das ligaduras, os mitos da pérola e da concha, os batismos e os dilúvios, tudo aquilo me chegou mais a quão fundo a ciência de meus professores de economia política: ali estavam o sabor e o sentido das coisas. Anos mais tarde, quando me dedicava a inculcar aos futuros arquitetos que o espaço do homem só pode medir-se de verdade quando está orientado conforme os pontos cardeais do coração, não tive melhores aliados que Bachelard de La Poétique de l'espace e Eliade O sagrado e o profano. Finalmente, lendo e relendo, como quem passeasse por Siena ou Veneza, os Fragments d'un Journal —desdobramento de um mundo, presença de um homem, caminho de uma vida— vi como brilhava, repentina e próxima, através do edifício dos livros, a labareda de uma personalidade. Agora penso que me cumpriu um desejo: encontrei ao antepassado mítico, posso dizer que nos tornamos amigos e que à força de insistência consegui que surgisse no centro do território da escritura e das idéias —a obra de Eliade— este microcosmos e este ponto de entrevista que são estas Conversações. Para entrar neste labirinto e descobrir a unidade de uma obra e uma vida é boa qualquer porta. A aprendizagem na Índia aos vinte anos e a proximidade de Jung em «Eranos» vinte anos depois; as profundas raízes romenas reconhecíveis inclusive nessa maneira de ter o mundo por pátria; o inventário dos mitos corroborado por sua compreensão; a tarefa do historiador e a primitiva paixão para inventar a fábula; Nicolás de Cusa e o Himalaya. Assim se entende por que em Mircea Eliade ressoa com tanta força e freqüência o tema da coincidentia oppositorum. Teremos que dizer que ao final todas as coisas convergem em um ponto? Mas bem é que tudo brota da alma original que, como o grão ou a árvore, atrai para si todos os rostos do mundo para lhe responder ao lhe interrogar, para enriquecê-lo com sua presença. Em definitivo, a origem se manifesta por tudo aquilo que se realizou e se juntou. Fui ao encontro de um homem cuja obra tinha iluminado minha adolescência e me encontrei com um pensador atual. Eliade jamais incorreu no engano de pretender que as ciências do homem tomem como modelo as da natureza. Jamais esqueceu que, tratando-se das coisas humanas, é preciso as compreender primeiro para as entender, e que quem expõe interrogantes
  • 3. não pode sentir-se alheio ao que é interrogado. Jamais experimentou a sedução do freudismo, do marxismo, do estruturalismo ou, melhor diríamos, dessa mixórdia de dogma e moda que designamos com tais termos. Em uma palavra, nunca esqueceu o lugar irredutível da interpretação, o desejo inextinguível de sentido, a palavra filosófica. Mas precisemos: esta atualidade de Eliade não é a das revistas. Ninguém sonhou sequer ver nele a um precursor dos peregrinos californianos ao Katmandú, ninguém pretenderia descobrir nele um «novo filósofo» inesperado. Se Mircea Eliade for moderno, o é por ter compreendido já faz meio século que a «crise do homem» é em realidade uma «crise do homem ocidental», que é preciso entendê-la e superá-la admitindo as raízes —arcaicas, selvagens, familiares— da humana condição. Mircea Eliade, «historiador das religiões»... Esta maneira tão oficial de lhe definir entranha o risco de lhe desconhecer. Ao menos, entendamos que história é memória e recordemos também que toda memória é um presente. E que para Mircea Eliade, a pedra de toque da religiosidade é o sagrado, que quer dizer encontro ou pressentimento da realidade. Tanto a arte como a religião se deixam imantar por essa realidade. Mas, no que fundamentaríamos a diferença entre um e outro? Acredito que captaremos perfeitamente o pensamento de Eliade se cairmos em conta do muito que responde ao de Malraux. Se Malraux vir na arte a moeda do absoluto, quer dizer, uma forma do espírito religioso, Eliade considera os mitos e os ritos do homem arcaico —sua religião— como outras tantas obras de arte, umas obras de arte verdadeiramente Mestras. Mas, estas duas almas têm em comum o ter descoberto o valor imprescritível da imaginação e o fato de que não há outro meio para reconhecer os conteúdos da imaginação hoje abandonados ou estranhos, a não ser propondo aos homens, sempre imprevisíveis, sua recreação. Nem o desejo de saber nem a atenção do filósofo parecem ser o âmbito essencial de Eliade, mas sim, melhor, a fonte do poema que transfigura a vida mortal e nos enche de esperança. Claude-Henri Rocquet http://groups-beta.google.com/group/digitalsource
  • 4. O SENTIDO DAS ORIGENS O NOME E A ORIGEM Claude-Henri Rocquet: —Mircea Eliade é um nome muito belo... Mircea Eliade: —Por que? Eliade: hélio; e Mircea: Mir, raiz eslava que quer dizer paz... —... e mundo. —Sim, mundo também, cosmos. —Não pensava precisamente no significado, porém, na musicalidade. —Eliade é de origem grega e remete sem dúvida a hélio. Em princípio se escrevia Héliade. Era um jogo com hélio e hellade: sol e grego... Mas, não é o sobrenome de meu pai. Meu avô levava o da Ieremia. Mas, resulta que na Romênia, quando um indivíduo é um pouco preguiçoso, muito lento ou vacilante, recorda-lhe o provérbio: «É como Ieremia, que não era capaz de fazer sair sua carreta!» A meu pai o repetiam no colégio. Quando foi maior de idade, decidiu trocar de sobrenome. Escolheu este, Eliade, porque assim se chamava um escritor muito conhecido do século XIX: Eliade Radulescu. Por isso começou a chamar-se «Eliade». Eu o agradeço, porque prefiro Eliade a Ieremia. Eu gosto de meu sobrenome. —Quem leu os Fragmentos de um jornal conhecem já um pouco ao homem Mircea Eliade e as linhas mestras de sua vida. Mas esse Jornal se inicia em Paris o ano 1945, quando tinha quarenta anos. Antes vivera na Romênia, na Índia, em Lisboa, em Londres. Era já um escritor célebre na Romênia e um «orientalista». A tudo isto faz alusão o Jornal. Mas, nada sabemos dos anos que precedem sua chegada à Paris e menos ainda dos primeiros anos de sua vida. —Pois bem, nasci em 9 de março de 1907, um mês terrível na história da Romênia, quando se produziu a revolta dos camponeses em todas as províncias. No liceu me diziam sempre: «Ah, você nasceu em meio da revolta dos camponeses!» Meu pai era militar, como meu irmão. Era capitão. Em Bucareste fui à escola primária, na rua Mántuleasa, a mesma escola que evoquei na Strada Mántuleasa —em francês, Le Vieil Homme et l'Officier—. Logo assisti ao liceu Spiru-Haret. Um bom liceu ao que se deu o nome de Jules Ferry romeno. —Seu pai era oficial. Mas, como era sua família?
  • 5. — Eu me considero como uma síntese: meu pai era moldávio e minha mãe olteniana. Na cultura romena, Moldávia representa o lado sentimental, a melancolia, o interesse pela filosofia, pela poesia e uma certa passividade ante a vida. Interessa menos a política que os programas políticos e as revoluções no papel. De meu pai e de meu avô, um camponês, herdei esta tradição moldávia. Estou orgulhoso de poder dizer que sou a terceira geração que levou sapatos, porque meu bisavô andava descalço ou com opinci, uma espécie de sandálias. Para o inverno havia umas enormes botas. Uma expressão romena dizia: «Segunda, terceira ou quarta geração... de sapatos». Eu sou a terceira geração... Desta herança moldávia vem minha tendência à melancolia, a poesia, a metafísica, digamos que de noite». Minha mãe, pelo contrário, procede de uma família de Olt, a província ocidental, perto da Iogoslávia. Os oltenianos são gente ambiciosa, enérgica; apaixonam-se pelos cavalos e não são unicamente camponeses, a não ser além haïduks: dedicam-se ao comércio, vendem cavalos (às vezes os roubam!). É a província mais ativa, a mais entusiasta, a mais brutal às vezes. Justamente o contrário dos moldávios. Meus pais se conheceram em Bucareste. Quando caí em conta de minha herança, senti-me muito feliz. Como todo mundo, como todos os adolescentes, tive minhas crises de desânimo, de melancolia, que às vezes chegavam quase à depressão nervosa: a herança moldávia. Ao mesmo tempo sentia em mim umas enormes reserva de energia. Dizia-me então: isto vem de minha mãe. Muito devo aos dois. Aos treze anos era scout e deu-me permissão para passar as férias na montanha, em Cárpatos, ou a bordo de um navio no Danúbio, no delta, no Mar Negro. Minha família aceitava tudo, especialmente minha mãe. Aos vinte e um anos disse: parto- me à Índia. Éramos uma família da pequena burguesia, mas meus pais acharam aquilo normal. Estávamos em 1928 e alguns grandes sanscritistas ainda não conheciam a Índia. Acredito que Louis Renou não fez sua primeira viagem até os trinta e cinco anos. Eu o fiz aos vinte... Minha família permitiu- me isso tudo: ir à Itália, comprar toda classe de livros, estudar hebreu, persa. Desfrutava de uma grande liberdade. —Família da pequena burguesia, mas que demonstrava um certo gosto pelas coisas do espírito. Não diríamos melhor família de «pessoas cultivadas»? —Certo, despretensioso de uma grande cultura, mas ao mesmo tempo sem a opacidade, digamos, da pequena burguesia. —Era filho único? —Somos três irmãos. Meu irmão nasceu dois anos antes que eu e minha irmã
  • 6. quatro anos mais tarde. Foi uma grande sorte vir entre um e outra. Porque, bem entendido, o preferido durante anos foi meu irmão, o filho maior e logo, foi minha irmã, a pequena. Não poderia dizer que vivesse com escassez de carinho, mas nunca me senti arrasado por um excesso de carinho paterno ou materno. Foi uma grande sorte. E além disso tive a vantagem de contar com um amigo e mais tarde com uma amiga: minha irmã e meu irmão. —A imagem que de tudo isto se desprende é a de um homem contente de seu nascimento e de sua origem... —Certo. Não me recordo lamentar ou protestar enquanto era adolescente. Mas não era rico, não tinha dinheiro suficiente para comprar livros. Minha mãe dava-me algo de suas pequenas economias, ou quando vendia alguma coisa; mais tarde chegamos inclusive a alugar uma parte da casa. Não era rico, mas nunca me queixava. Estava em paz com minha situação humana, social e familiar. O DRAGÃO E O PARAÍSO —Que imagens lhe vêm à memória de sua primeira infância? —A primeira imagem... Tinha eu dois anos, dois anos e meio. Ocorreu em um bosque. Encontrava-me ali e olhava. Minha mãe perdera-me de vista. Tínhamos ido ali lanchar. Perdi-me ao afastar-me uns quantos metros. E de repente descubro diante de mim um enorme e esplêndido lagarto azul. Fiquei maravilhado... Não sentia medo, a não ser fascinação ante aquele animal enorme e azul. Sentia os batimentos do coração, de meu coração, pulsados de entusiasmo e temor, mas ao mesmo tempo lia o medo nos olhos do lagarto. Via pulsar seu coração. Durante muitos anos recordei esta imagem. Em outra ocasião, quase à mesma idade, pois tenho a lembrança que ainda engatinhava, a coisa ocorreu em nossa casa. Havia nela um salão ao que não me estava permitido entrar. Acredito além, que a porta estava sempre fechada com chave. Um dia, na hora da sesta, pois era verão, por volta das quatro, minha família estava ausente, meu pai no quartel, minha mãe em casa de uma vizinha... Aproximo-me, faço um intento e a porta se abre. Apareço, entro... Aquilo foi para mim uma experiência extraordinária: as janelas tinham as persianas verdes; como era verão, toda a habitação era de cor verde. É curioso, senti-me como dentro de um grão de uva. Estava fascinado pela cor verde, verde dourado, olhava em torno e era verdadeiramente um espaço jamais conhecido até então, um mundo completamente distinto. Aquela foi a única vez. No dia seguinte tratei de abrir a porta, mas já estava fechada.
  • 7. —Sabe por que motivo lhe estava proibido aquele salão? —Havia ali muitas prateleiras repletas de objetos curiosos. Além disso, minha mãe, junto com outras senhoras da cidade, organizava festas infantis com tômbola. À espera da festa, depositavam-se naquele salão os prêmios da tômbola. Minha mãe, com toda razão, não queria que seus filhos vissem aquela enorme quantidade de brinquedos. —Viu aqueles brinquedos ao entrar? —Sim, mas já os conhecia, tinha visto minha mãe levando-os ali. Não foi aquilo o que me interessou, a não ser a cor. Era, verdadeiramente, como estar dentro de um grão de uva. Fazia muito calor, a luz era extraordinária, mas filtrada através das persianas. Uma luz verde... De verdade, tive a impressão de achar-me dentro de um grão de uva. Leu O bosque proibido? Nessa novela, Stéphane recorda uma habitação misteriosa de quando era menino, a habitação «Sambo». Se perguntar o que poderia significar aquilo... Era a nostalgia de um espaço que tinha conhecido, um espaço que não se parecia com nenhuma outra habitação. Ao evocar aquela habitação «Sambo», evidentemente, pensava em minha própria experiência extraordinária de penetrar em um espaço completamente distinto. —Sentia-se um pouco assustado de sua audácia, ou simplesmente, maravilhado? —Maravilhado. —Não sentia nenhum temor? Não experimentava a sensação de cometer uma falta deliciosa? —Não... O que me atraiu foi a cor, a calma e logo a beleza: aquilo era o salão, com suas estantes, seus quadros, porém, submerso na cor verde, banhado de uma luz verde. —Agora falo com o conhecedor dos mitos, com o hermeneuta, com o amigo de Jung. O que pensa destes dois acontecimentos? —Curioso, nunca tratei de interpretá-los! Para mim trata-se de simples lembranças. Mas, é certo que o encontro com aquele monstro, com aquele réptil de uma beleza extraordinária, admirável... —Aquele dragão... —Sim, é o dragão. Mas, o dragão fêmea, o dragão andrógino, porque era
  • 8. realmente muito belo. Estava assombrado de sua beleza, daquele azul extraordinário... —Apesar de seu medo, teve entretanto presença de ânimo suficiente para captar o medo do outro. —É que o via! Via o medo de seus olhos, via-lhe cheio de medo ante o menino. Aquele enorme e muito belo monstro, aquele sáurio tinha medo de um menino. Fiquei estupefato. —Diz que o dragão era de uma grande beleza por ser «fêmea, andrógino». Significa isto que, em seu sentir, a beleza está essencialmente ligada ao feminino? —Não, entendo que há uma beleza andrógina e uma beleza masculina. Não posso reduzir a beleza, nem sequer a do corpo humano, à beleza feminina. —Por que fala de «beleza andrógina» a propósito do lagarto? —Porque era perfeita. Ali estava tudo: graça e terror, ferocidade e sorriso, tudo. —Em seu caso, a palavra «andrógino» não carece de importância. Falou muito do tema do andrógino. —Mas, insistindo sempre em que andrógino e hermafrodita não são uma mesma coisa. No hermafrodita coexistem os dois sexos. Aí estão as estátuas de homens com seios... O andrógino, por sua parte, representa o ideal da perfeição: a fusão dos dois sexos. É outra espécie humana, uma espécie distinta... E acredito que isto é importante. Certamente, os dois, o hermafrodita e o andrógino existem na cultura não só européia, mas também universal. Por minha parte, sinto-me atraído pelo tipo do andrógino no que vejo uma perfeição dificilmente realizável, ou possivelmente, inexeqüível nos dois sexos separados. —Penso agora em certa oposição que descobre a análise «estrutural» entre o bestial e o divino na Grécia arcaica: Admitiria que o hermafrodita se situa do lado do monstruoso e o andrógino do lado do divino? —Não, pois não acredito que o hermafrodita represente uma forma monstruosa. Trata-se de um esforço desesperado para alcançar a totalização. Mas não é a fusão, não é a unidade.
  • 9. —Que sentido dá à habitação grão de uva? Sabe por que conservou tão viva essa lembrança? —O que me impressionou foi a atmosfera, uma atmosfera paradisíaca, aquele verde, aquele verde dourado. E depois, a calma, uma calma absoluta. E o penetrar naquela zona, naquele espaço sagrado. Digo «sagrado» porque aquele espaço era de uma qualidade completamente distinta; não era um ambiente profano, cotidiano. Não era meu universo de todos os dias, com meu pai, minha mãe, meu irmão, o pátio, a casa... Não, era algo completamente distinto. Algo paradisíaco. Um lugar proibido até então e que seguiria proibido depois,... Em minha lembrança, aquilo foi algo verdadeiramente excepcional. Mais tarde chamei «paradisíaco» àquele lugar, quando aprendi o que significava essa palavra. Não foi uma experiência religiosa, mas compreendi que me encontrava em um espaço completamente distinto e que estava vivendo algo de todo diferente. A prova é que essa lembrança me obcecou. —Um espaço completamente distinto, verde ou verde e ouro; um lugar sagrado, proibido (mas de forma que não houve transgressão, não é assim?); imagens realmente paradisíacas: o verde, original, o ouro, a esfericidade do lugar, aquela luz. Como se em sua primeira infância tivesse vivido um momento de paraíso, digamos de Éden, o Paraíso original. —Sim, assim é. —Mas, através desse completamente distinto, ouço ressonar notoriamente o ganz andere com que Otto define o sagrado. E ao mesmo tempo advirto que essa imagem de sua infância é uma das que mais tarde, nos mitos, teriam que fascinar e absorver a Mircea Eliade. Qualquer um que lera seus livros, ao escutar este recordo sem saber que é dele, não deixaria de lhe recordar. Não será estas grandes experiências do dragão e da estadia fechada e luminosa orientaram profundamente sua vida? —Quem sabe... Conscientemente, sei que leituras, durante minha adolescência, que descobrimentos despertaram em mim o interesse pelas religiões e os mitos. Entretanto, não posso saber em que medida essas experiências da infância determinaram minha vida. —Em O jardim das delícias de Bosch há seres que vivem no interior de umas frutas... —Verdadeiramente, eu não tinha a sensação de me achar dentro de uma fruta enorme. Todavia, não podia comparar a luz verde, dourada, a não ser com a
  • 10. que se transluz através de um grão de uva. Não era a idéia da fruta, de estar dentro de uma fruta, a não ser a de me achar em um espaço, certamente paradisíaco. É a experiência de uma luz. «COMO DESCOBRI A PEDRA FILOSOFAL» —Sua primeira escola foi a da rua Mántuleasa... Que lembranças guarda dela? —O descobrimento da leitura acima de tudo. Por volta dos dez anos comecei a ler novelas —novelas policiais—, contos, em resumo, tudo o que se costuma a ler aos dez anos e um pouco mais. Alexandre Dumas traduzido ao romeno, por exemplo. —Ainda não escrevia nada? —Comecei de verdade a escrever na primeira classe do liceu. —Sei que, por então, apaixonava-lhe a ciência. —As ciências naturais, mas não a matemática. Comparava-me com Goethe... Goethe, que não podia sofrer a matemática. Como ele, também sentia paixão pelas ciências naturais. Comecei pela zoologia, mas, interessou-me sobretudo a entomologia. Escrevi e publiquei artigos sobre os insetos em uma revista, a «Revista de ciências populares». —Um jovem autor de doze anos! —Sim, publiquei meu primeiro artigo quando tinha treze anos. Uma espécie de conto científico que apresentei em um concurso aberto a todos os alunos de liceu romenos pela «Revista de ciências populares». Meu pequeno texto intitulava-se: Como descobri a pedra filosofal. Obtive o primeiro prêmio. —Acredito que fala desse texto em seu Diário, e diz: «Perdi-o, já não o poderei encontrar, mas como eu gostaria de relê-lo de novo!» Não pôde encontrá-lo? —Sim! Em Bucareste, um leitor do Jornal foi à biblioteca da Academia, encontrou-o e teve a gentileza de copiá-lo e enviar-me. Recordava o tema e o desenlace, mas não de toda a trama e o estilo. Fiquei assombrado ao comprovar que a narração era boa. Nada pedante, nem «científica». Era verdadeiramente, um relato... Tratava-se de um escolar de quatorze anos — eu mesmo, em realidade— que tem um laboratório e tenta a experiência, pois está obcecado, como todo mundo, pelo desejo de encontrar algo capaz de mudar a matéria. Tem um sonho e nesse sonho recebe uma revelação: alguém
  • 11. mostra-lhe o modo de preparar a pedra. Desperta e ali, em seu crisol, encontra uma pepita de ouro. Acredita na realidade na transmutação. Mais tarde se dará conta de que se trata de um bloco de pirita, de um sulfato. —É o sonho o que leva a pedra filosofal? —Era um ser que tinha, ao mesmo tempo, aspecto de homem e de animal, um ser transformado, que me deu em sonhos, a receita. Eu limitei-me a seguir seu conselho. —Para que um menino escreva um conto como esse, é preciso que se interesse não só pelos insetos, mas também além pela química e a alquimia, não é assim? —Apaixonava-me a zoologia, especialidade «insetos»; também a física em geral, mas sobretudo a química, e ainda mais a química mineral antes que a química orgânica. É curioso. —O sonho, a alquimia, o iniciador quimérico: aí estão já, do primeiro escrito, as figuras e os temas de Eliade. Quer isso dizer que já da infância sabemos confusamente quem somos e aonde vamos? —Não sei... Para mim, a importância desse conto está em que, já dos doze aos treze anos, via-me trabalhando de maneira, científica, com a matéria. E ao mesmo tempo, sentia-me atraído pela imaginação literária. —Essa isso ao que alude quando fala do lado diurno do espírito? —Do regime diurno do espírito e do regime noturno do espírito. —A ciência do lado diurno, a poesia do lado da noite. —Sim. A imaginação literária que é também a imaginação mítica e que descobre as grandes estrutura da metafísica. Noturno, diurno, os dois... A coincidentia oppositorum. O grande todo. O Yin e o Yang... -Há em sua personalidade, por um lado, o homem de ciência e, pelo outro, o escritor. Mas ambos se encontram no terreno do mito... —Exatamente. O interesse pelas mitologias e pela estrutura dos mitos é também o desejo de decifrar a mensagem dessa vida noturna, dessa criatividade noturna.
  • 12. A ÁGUA-FURTADA —Em resumo, que antes de abandonar o liceu já era escritor. —Em certo sentido, sim, porque não só publicara uma centena de pequenos artigos na «Revista de ciências populares», mas também, além de alguns relatos, impressões de viagem pelos Cárpatos, o relato de um périplo pelo Danúbio e no Mar Negro; finalmente, alguns fragmentos de uma novela, A novela de um adolescente míope... Novela absolutamente autobiográfica. Igual a meu personagem, quando sofria alguma crise de melancolia —minha herança moldávia...— lutava contra essa crise com todo tipo de «técnicas espirituais». Lera o livro de Payot, L'Education de la volonté, tratava de pô-lo em prática no liceu, começara o que eu mesmo chamaria mais tarde a «luta contra o sonho». Queria ganhar tempo. Com efeito, interessava-me não só pelas ciências, mas também, por outras muitas coisas; descobrira, progressivamente, o orientalismo, a alquimia, a história das religiões. Li por acaso ao Frazer e Max Müller; e como aprendera italiano (para ler Papini), descobri aos orientalistas e historiadores das religiões italianos: Pettazzoni, Buonaiuti, Tucci e outros... E escrevia artigos sobre seus livros, ou sobre os problemas que tratavam. Evidentemente, tive uma grande oportunidade para tudo isso: na casa materna de Bucareste vivia eu em uma água-furtada, mas aquela água- furtada era completamente independente. Por isso, aos quinze anos podia receber meus amigos e podia ficar ali durante toda a tarde, ou toda a noite bebendo café e discutindo. A água-furtada estava isolada, o ruído não incomodava a ninguém. Quando tomei posse daquela água-furtada, tinha dezesseis anos. Em princípio tive que compartilhar com meu irmão, mas meu irmão entrou no liceu militar e eu fiquei como dono único da água-furtada, duas pequenas habitações maravilhosas. Podia ler impunemente durante toda a noite... dá-se conta? Quando se têm dezessete anos, descobre a poesia moderna e tantas outras coisas, o que mais gosta é de ter uma habitação própria que alguém possa arrumar, transformar a seu gosto, que deixa de ser algo, simplesmente, recebido dos pais. Aquele era verdadeiramente meu local. Ali vivia eu, tinha minha cama, com uma determinado cor. Tinha figuras que recortava e colava aos muros. Mas, tinha sobretudo meus livros. Mais que um quarto de trabalho, era um lugar para viver. —Parece-me que os deuses ou as fadas favoreceram seus primeiros passos. —Acredito que sim, pois o certo é que tive todas as oportunidades possíveis até o momento de partir de minha casa.
  • 13. —Quando entrou na Universidade, como era a atmosfera intelectual, a atmosfera cultural da Romênia daquela época, quer dizer, de 1920 à 1925? —Éramos a primeira geração que nascia à cultura, no que então, chamava-se «a grande Romênia», a que seguiu à guerra de 1914-1918. Primeira geração sem programa preestabelecido, sem um ideal a realizar. A geração de meu pai e de meu avô tinham um ideal: reunificar todas as províncias romenas. Este ideal já estava realizado. Eu tive a sorte de formar parte da primeira geração romena livre, sem programa. Éramos livres para descobrir não só as fontes tradicionais, mas também todo o resto. Eu descobri a literatura italiana, a história das religiões e depois o Oriente. Um de meus amigos descobrira a literatura americana; outro, a cultura escandinava. Descobrimos Milarepa na tradução de Jacques Bacot. Tudo era possível, como vê. Preparávamo-nos por fim, a uma verdadeira abertura. —Uma abertura para o universal, a Índia presente nos espíritos, Milarepa, ao que lerá Brancusi... —Sim,e ao mesmo tempo, pelos anos de 1922 a 1928, dispúnhamo-nos, na Romênia, a descobrir ao Proust, Valéry e, é óbvio, o surrealismo. —Mas, como se conjugava este desejo de universalidade com, digamos, um desejo de chegar às raízes romenas? —Pressentíamos que uma criação puramente romena resultaria muito difícil de levar a cabo no clima e nas formas da cultura ocidental que tinham gozado nas preferências de nossos pais: Anatole France, por exemplo, ou o mesmo Barres. Sentíamos que quanto tínhamos que dizer nos exigia uma linguagem distinta da dos grandes autores, os grandes pensadores que tinham apaixonado à nossos pais e à nossos avós. Sentíamo-nos atraídos pelos Upanishads, por Milarepa e inclusive por Tagore e Gandhi, pelo Oriente antigo. E pensávamos que assimilando a mensagem destas culturas arcaicas, extra-européias, encontraríamos o meio de expressar nossa herança cutural própria, traco-eslavo-romana; e, ao mesmo tempo, proto-histórica e oriental. Tínhamos consciência de nossa situação entre o Oriente e Ocidente. Como sabe, a cultura romena constitui uma espécie de «ponte» entre o Ocidente e Bizâncio, por uma parte; e o mundo eslavo, o mundo oriental e o mundo mediterrâneo por outra. A verdade é que até mais tarde não me dava conta de todas estas virtualidades. —Evocou o surrealismo, mas não disse nada do dadaismo, nem de Tzara, seu compatriota...
  • 14. —Conhecíamo-os, lêramos nas revistas de vanguarda, que nos apaixonavam. Mas, pessoalmente, não me deixei influenciar pelo dadaismo, nem pelo surrealismo. Assombrava-me e digamos que admirava sua coragem... Todavia, eu sentia-me ainda sob o impacto do futurismo, que acabávamos de descobrir. Estava muito interessado, como sabe, por Papini, o primeiro Papini, o de antes da conversão, o grande panfletário e autor de Maschilitá, de Uomo finito, sua autobiografia... Aquilo era para nós a vanguarda. Também descobri ao Lautréamont, coisa curiosa, através de León Bloy. Lera uma recopilação de artigos, de panfletos, Belluaires et Porchers, possivelmente... Havia naquele livro um artigo extraordinário sobre Les Chants de Maldoror, com extensas entrevistas. Deste modo, descobri Lautréamont, antes que ao Mallarmé, ou inclusive Rimbaud. Mallarmé e Rimbaud não os li até mais tarde, na universidade. —Em vários lugares de seu Diário fala de um certo clima «existencialista» na Romênia, que precedera inclusive ao existencialismo na França. —Certo, mas a coisa ocorre um pouco mais tarde, pelos anos de 1933 à 1936. Entretanto, já da universidade, lera algumas obra menores do Kierkegaard, em tradução italiana; descobri logo a tradução alemã, quase completa. Lembro-me escrever em um jornal, «Cuvántul», um artigo intitulado Panfletista, enamorado e ermitão. Acredito que é o primeiro artigo sobre o Kierkegaard publicado na Romênia; foi em 1925 ou 1926. Kierkegaard significou muito para mim, sobretudo como exemplo. E não só por sua vida, mas também pelo que anunciava, por isso antecipava. Desgraçadamente, é de uma prolixidade exasperante, por isso, penso que Etudes kierkegaardiennes de Jean Wahl é possivelmente... o melhor livro de Kierkegaard, pois há nele muitas entrevistas acertadamente escolhidas, o essencial. —Na universidade compartilha com os jovens de sua geração determinadas atitudes, mas, o que é que o afeta mais em particular? —Em primeiro lugar o orientalismo. Tentei aprender por minha conta o hebreu, logo o persa. Comprei gramáticas, fiz exercícios... O orientalismo, mas também, a história das religiões, as mitologias. Ao mesmo tempo, segui publicando artigos sobre a história da alquimia. E isto é o que me singularizava dentro de minha geração: eu era o único que se apaixonava, ao mesmo tempo, pelo Oriente e pela história das religiões. Pelo Oriente antigo quão mesmo pelo moderno, por Gandhi; quão mesmo por Tagore e Ramakrishna; por aqueles anos ainda não ouvira falar de Aurobindo Ghose. Lera, como todos quantos se interessam pela história das religiões, O ramo de
  • 15. ouro, de Frazer e logo Max Müller. Precisamente, para ler as obras completas de Frazer comecei a aprender inglês. —Tratava-se unicamente de um desejo de horizontes culturais novos? Ou possivelmente, inconscientemente, de uma busca, através da diversidade, do homem essencial, do homem que poderíamos considerar «paradigmático»? —Sentia a necessidade de certas fontes desatendidas até meus tempos, umas fontes que estavam ali, nas bibliotecas, que era possível encontrar nelas mas, que careciam de atualidade espiritual ou inclusive cultural. Dizia-me mesmo que o homem, inclusive o homem europeu, não é unicamente o homem de Kant, de Hegel, ou de Nietzsche. Que na tradição européia e na tradição romena havia outras fontes mais profundas. Que a Grécia não é, unicamente, a Grécia dos poetas e dos filósofos admiráveis, a não ser a de Elêusis e do orfismo, que esta Grécia fundava suas raízes no Mediterrâneo e no Próximo Oriente antigo. Entretanto, algumas daquelas raízes, igualmente profundas, já que se afundavam na proto-história, podiam-se encontrar nas tradições romenas. Era o legado imemorial dos dacios e, antes deles, das populações neolíticas que habitaram em nosso atual território. Pode ser que não tivesse consciência de procurar o homem primitivo, mas em todo caso, dava-me conta da importância que têm certas fontes esquecidas da cultura européia. Por este motivo, em meu último ano de universidade, comecei a estudar as correntes hermetistas e «ocultistas» (a Cabala, a alquimia) na filosofia do Renascimento italiano. Este foi o tema de minha tese. —Antes de nos ocupar de sua tese, eu gostaria de lhe perguntar pelas razões pessoais que o levavam a estudo das religiões. As que acaba de expor são de ordem intelectual. Mas, qual era sua relação interior com a religião? —Conhecia mal minha própria tradição, a do cristianismo oriental. Minha família era «religiosa», mas, como sabe, no cristianismo oriental, a religião é acima de tudo algo que se aprende por costume, que se acostuma pouco, pois não há catecismo. O que importa é sobretudo a liturgia, a vida litúrgica, os ritos, os coros, os sacramentos. Eu participava daquela vida religiosa como todo mundo. Mas aquilo não tinha nenhum valor essencial. Meu interesse ia por outro lado. Na época, eu estudava filosofia, ao estudar os filósofos, os grandes filósofos, sentia que algo me faltava. Sentia que não é possível compreender o destino humano e o modo específico de ser do homem no universo, sem conhecer as fases arcaicas da experiência religiosa. Ao mesmo tempo, sentia que me resultaria difícil descobrir essas raízes através de minha própria tradição religiosa, quer dizer, através da realidade atual de uma determinada Igreja que, como todas as demais, estava «condicionada» por uma longa história; por umas instituições cujo significado e formas sucessivas
  • 16. eu ignorava. Pensava que seria muito difícil descobrir o verdadeiro sentido e a mensagem do cristianismo através de uma só tradição. Por isso, queria aprofundar ainda mais. Primeiro, o Antigo Testamento, logo Mesopotâmia, Egito, o mundo mediterrâneo e a Índia. —Mas a tudo isto, nada de inquietação metafísica, nada de crise mística, nada de dúvidas, nem tampouco uma fé muito viva? Parece liberado de algo que tantos adolescentes conhecem, a tortura religiosa ou metafísica. —Certo, não conheci essa grande crise religiosa. É curioso... Não estava satisfeito, mas não sentia nenhuma dúvida, pois não acreditava muito. Sentia que, verdadeiramente, o essencial, o que de verdade devia encontrar e compreender era algo que devia procurar por outro lado e não só em minha própria tradição. Para me entender, para entender... —Poderíamos dizer, portanto, que seu caminho é o da gnosis e do jñana ioga? —Pode ser que sim. Gnosis, jñana ioga... —Acredito que ambas as coisas são uma mesma. —Exatamente a mesma. Também, sentia a necessidade de uma técnica, de uma disciplina, de algo que não encontrava em minha tradição religiosa. O certo é que não o procurara nela. Muito bem, poderia fazer-me monge, retirar-me ao Monte Athos e descobrir todas as técnicas yóguicas, por exemplo, o pranayama... —O hesicasmo... —Sim, mas naquela época eu ignorava tudo isto. Sentia, é verdade, a necessidade da gnosis, mas ao mesmo tempo sentia falta de uma espécie de técnica, de meditação prática. Ainda não compreendia o valor religioso do culto dominical. Descobri-o depois de minha volta da Índia! —Deixamos em suspense sua tese. Qual era exatamente seu tema? —Era a filosofia italiana desde Marsilio Ficino até Giordano Bruno. Todavia, interessou-me em especial Ficino, e também Pico de la Mirandola. Fascinava- me o fato de que através desta filosofia do Renascimento fora redescoberta a filosofia grega, mas também o fato de que Ficino traduzira ao latim os manuscritos herméticos, o Corpus hermeticum, comprovados por Cosme de Médicis. Apaixonava-me igualmente o fato de que Pico conhecia esta tradição
  • 17. hermética e que estudara o hebreu, não só para melhor entender o Antigo Testamento, mas também, sobretudo para compreender a Cabala. Via, portanto, que não se tratava, unicamente, de um descobrimento do neoplatonismo, mas sim, de um transbordamento da filosofia grega clássica. O descobrimento do hermetismo implicava uma abertura para o Oriente, para o Egito e Pérsia. —Quer isso dizer que era sensível, no Renascimento, a tudo o que este implica de abertura ao não especificamente grego ou clássico? —Tinha a impressão de que esse transbordamento revelava-me um espírito muito mais amplo, muito mais interessante e mais criador que tudo que aprendera no platonismo clássico redescoberto em Florência. —Havia uma certa analogia entre aquele Renascimento —o Renascimento dos cabalistas, diríamos— e quanto estava ocorrendo na Romênia, que supunha uma aspiração a superar as fronteiras do homem mediterrâneo e a participar de uma criação cultural nutrida de tradições não européias... —Uma tradição... não digamos «não européia», a não ser «não clássica», quer dizer, mais profunda que a herança clássica recebida de nossos antepassados tracios, dos gregos e os romanos. Mais tarde compreendi que se trata desse fundo neolítico que é a matriz de todas as culturas urbanas do Próximo Oriente antigo e do Mediterrâneo. —«Mais tarde», quer dizer, através do conhecimento da Índia... Entretanto, assombra-me que entre Pico e Bruno não me diga nada de Nicolas de Cusa. —Fazia várias viagens à Itália e inclusive passei ali três meses seguidos. Assim descobri De docta ignorantia e a famosa fórmula da coincidentia oppositorum que tão reveladora foi para meu próprio pensamento. Entretanto, não o estudei para minha tese, não pude aprofundar tanto... Em compensação, quando comecei meus cursos, no ano 1934, em Bucareste, dediquei um seminário à docta ignorantia. Nicolás de Cusa apaixona-me ainda. O RENASCIMENTO E A ÍNDIA —Mircea Eliade, em 10 de fevereiro de 1949 recebe uma carta de seu «velho Mestre Pettazzoni», que elogia calorosamente o Tratado de história das religiões, recém publicado; em sua resposta escreve: «Lembro-me aquelas manhãs de 1925, quando acabava de descobrir I misteri, e lancei-me à história das religiões com a paixão e a segurança de um moço de dezoito anos. Lembro-me do verão de 1926, quando, depois
  • 18. de iniciada minha correspondência com Pettazzoni, recebi como presente Dio, que li sublinhando, quase uma por uma, todas suas linhas. Recordo-me...». —Sim, recordo-o... Fui à Itália muitas vezes durante meus tempos de estudante em Bucareste. A primeira vez fiquei ali cinco ou seis semanas. Conheci Papini em Florência. Em Roma entrevistei-me com Buonaiuti, o célebre historiador do cristianismo, diretor de Ricerche religiose. Em Nápoles, com o Vittorio Macchioro, então diretor do Museu Nacional, grande classicista e grande especialista em orfismo. Não vi o Pettazzoni naquela viagem. Conheci-o mais tarde. Porém, mantinha correspondência com ele. —Não é comum que um homem tão jovem vá visitar os Mestres e que seja recebido por eles. Todavia, penso que lhe animava a paixão de saber e, em conseqüência, de ir às fontes mesmas. Daí o bom acolhimento que tinha... O que esperava, por exemplo, de Macchioro? —Foi sua tese o que acima de tudo me interessou. Acreditava ter descoberto as etapas de uma iniciação órfica nas pinturas da Villa dei Misteri de Pompeya. Acreditava além, que a filosofia de Heráclito se explicava pelo orfismo. Pensava também, que São Paulo não era tão somente um representante do judaismo tradicional, mas sim, fora iniciado além nos mistérios órficos e que, em conseqüência, a cristologia de São Paulo introduzira o orfismo no cristianismo. Esta hipótese tivera má acolhida, mas, eu tinha vinte anos e parecia-me apaixonante. Por isso, fui ver Macchioro. Enquanto isso, eu preparava minha tese, algumas vezes em Bucareste e outras em Roma. Mais em Roma, é verdade, porém, em Bucareste tinha a maior parte de minha documentação e de minhas notas. Ao mesmo tempo, que trabalhava em minha tese de licenciatura sobre a filosofia do Renascimento, nutria meus pensamentos com os historiadores das religiões e os orientalistas italianos: descobri o orfismo com Macchioro, o Joaquín de Fiore com Buonaiuti. E lia Dante, ao que Papini (e outros) relacionavam com I fedeli d'amore. No fundo, estudar aos filósofos do Renascimento e a história das religiões devia ser a mesma coisa. —Imagino que não era unicamente a leitura de Dante o que lhe interessava em Papini, mas o homem, o escritor tumultuoso. —Já publicara vários artigos sobre Papini, escrevera-lhe e ele respondera-me com uma extensa carta que começava assim: «Querido amigo desconhecido...» Lamentava que me dedicasse a estudar a filosofia, «a ciência mais vazia inventada pelo homem...». Eu anunciara-lhe minha visita e ele recebeu-me em um pequeno quarto de trabalho lotado de livros. Esperava
  • 19. ver-me ante um «monstro de fealdade», tal como ele mesmo descrevera-se em Un uomo finito. Mas, apesar de sua palidez e de seus «dentes de canibal», Papini pareceu-me majestoso e quase belo. Fumava um cigarro atrás de outro, ao mesmo tempo que me perguntava por meus autores favoritos e ensinava-me os livros de alguns autores italianos contemporâneos que eu desconhecia. Por minha parte, fiz-lhe numerosas perguntas a propósito de seu catolicismo intransigente, intolerante, quase fanático (ele admirava enormemente à León Bloy); sobre o Dizionario dell'uomo selvatico, abandonado depois da publicação do primeiro tomo; e sobre seus projetos literários, em primeiro lugar sobre um livro que anunciara várias vezes, Rapporto sugli uomini. Aquela mesma tarde redigi uma entrevista que publicaria logo em uma revista de Bucareste. Voltei a ver-lhe, exatamente, um quarto de século depois, em maio de 1953. Estava quase cego e acabava de interromper Julgamento universal, seu opus magnum, para escrever O diabo. Também desta vez publiquei uma longa entrevista em Les Nouvelles Littéraires, coisa que lhe fez feliz, pois se dava conta de que perdera sua popularidade na França. Pouco tempo depois, a cegueira e a paralisia o reduziram à condição de um coveiro em vida. Sobreviveu pouco mais de um ano, fazendo esforços sobre-humanos, em umas condições de vida que raiavam com o milagre, para ditar as famosas Schegge, que publicava duas vezes ao mês o «Corriere della Sera». —Conheceu Papini em Florência, mas será em Roma onde se decidirá uma grande parte de seu destino... —Sim, em Roma, na biblioteca do seminário do professor Giuseppe Tucci, que por então estava na Índia, descobri um dia o primeiro volume da História da filosofia da Índia, do célebre Surendranath Dasgupta. No prefácio li a comemoração de gratidão que Dasgupta dedica a seu protetor o marajá Chandra Nandy de Kassimbazar. Diz assim: «Este homem ajudou-me a trabalhar cinco anos na universidade de Cambridge. É um verdadeiro mecenas. Protege e fomenta a investigação científica e filosófica; sua generosidade é também famosa em Bengala...». Tive então, uma espécie de intuição. Escrevi duas cartas imediatamente, uma ao professor Dasgupta, na universidade de Calcutá, e a outra ao Kassimbazar, ao marajá, em que lhes dizia: «Preparo nestes momentos minha tese de licenciatura, que apresentarei em outubro, e minha intenção é estudar a filosofia comparada. Desejaria, portanto, aprender seriamente o sânscrito e a filosofia hindu, mas sobretudo, o ioga...». Dasgupta, com efeito, era o grande especialista em ioga clássico; escrevera dois livros sobre o Patañjali. Pois bem, dois ou três meses mais tarde, de novo na Romênia, recebi
  • 20. duas cartas. Uma era de Dasgupta e dizia: «Sim, é uma idéia muito boa. Se de verdade deseja estudar a filosofia comparada, o melhor será estudar o sânscrito e a filosofia hindu aqui, na Índia, e não nos grandes centros de indianismo europeus. E como não disporá de uma ajuda importante para seus estudos, tratarei de interessar ao marajá...». Com efeito, o marajá me escrevia: «Sim, muito boa idéia. Venha, concedo-lhe uma ajuda, mas não para dois anos (...eu indicara dois anos, por discrição). Em dois anos não lhe seria possível aprender convenientemente o sânscrito e a filosofia hindu. Concedo- lhe uma ajuda para cinco anos». Deste modo, imediatamente depois da defesa de minha tese, em novembro de 1928, já licenciado em letras, especialidade «filosofia», recebi um pouco de dinheiro de meus pais e a promessa de uma ajuda da universidade de Bucareste, parti de Constanza a bordo de um navio romeno até Port-Said, e de Port-Said em um navio japonês até Colombo, e dali, por trem, parti à Calcutá. Fiquei duas semanas em Madras, onde conheci Dasgupta. —Uma formosa história, que viria muito bem para terminar um capítulo. Entretanto, para não deixar nada no tinteiro, a bordo daquele navio, ou às vésperas de sua partida, quais eram seus sentimentos? —Dava-me conta do que significava aquela partida e de que então tinha eu vinte e um anos. Eu era, possivelmente, o primeiro romeno que se decidia não viajar até a Índia, a não ser a permanecer e trabalhar ali durante cinco anos. Tinha o sentimento de que aquilo era uma aventura, que resultaria difícil, mas aquilo me apaixonava. E muito mais, tendo em conta, eu sabia bem, que ainda não estava formado. Aprendera muito de meus professores de Bucareste e de meus mestres italianos, historiadores das religiões, orientalistas, todavia, necessitava uma nova estrutura. Dava-me conta disso. Ainda não era adulto. Fiquei dez dias no Egito. Minhas primeiras experiências egípcias... Todavia, o mais importante foi a travessia. Não tinha muito dinheiro, esperava a chegada do navio menos caro, um navio japonês no que encontrei um beliche em terceira classe. Ali comecei a falar inglês pela primeira vez. Demoramos duas semanas de Port-Said à Colombo. Porém, já no Oceano Índico comecei a conhecer a Ásia. O descobrimento da ilha de Ceilão foi algo extraordinário. Vinte e quatro horas antes da chegada notavam-se já os perfumes das árvores, das flores, uns aromas desconhecidos... Deste modo cheguei à Colombo. INTERMÉDIO —Logo que entrei me falou que a idéia do título que lhe acaba de ocorrer para nossas Conversações.
  • 21. —Sim, ocorreu-me esse título como fruto de minha experiência, não do diálogo, mas sim da gravação, que impõe entre nós, em todo momento, a presença da «máquina», coisa que para mim deve ser uma prova, uma verdadeira «prova iniciática» e a qual não estou habituado a tal coisa. Daí o título de A Prova do Labirinto. Com efeito, por uma parte supõe a prova, para mim, de ver-me na necessidade de recordar coisas quase esquecidas. E logo está o fato deste ir e vir; deste começar constantemente de novo, que é como caminhar por um labirinto. Mas penso que o labirinto é a imagem por excelência de uma iniciação... Por outro lado, considero que toda existência humana está constituída por uma série de provas iniciáticas; o homem vai-se fazendo ao fio de uma série de iniciações conscientes, ou inconscientes. Sim, acredito que este título expressa perfeitamente o que sinto ante o aparelho. Mas, ao mesmo tempo, agrada-me porque é uma expressão muito justa, acredito eu, da condição humana. — Acho este título excelente... Ao subir pela rue d'Orsel, também vinha pensando no título para estas Conversações. Acabava de ler algumas páginas de seu Diário e pensava em Ulisses, no labirinto. Ulisses no labirinto? Possivelmente, um pouco recarregada esta mitologia. Porém ao tocar a campainha de sua porta e ao receber-me diz de supetão... —«Já pensei um título», sim. —Será uma casualidade?... Em todo caso, prefiro seu título, parece-me definitivo. Quanto à prova do gravador, já sei que lhe custa muito superar a repugnância que lhe inspira. —E me pergunto por que será. Possivelmente, seja a idéia de que quanto digo, a espontaneidade mesma, fica imediatamente registrada... ou, possivelmente, melhor, o fato de que haja entre nós um controle ou, melhor dizendo, um objeto. Um objeto que resulta muito importante no diálogo. É isto, sem dúvida, é este objeto que se mistura no diálogo e que me paralisa um tanto. —O que lhe incomoda, possivelmente, seja o desejo de perfeição e o desgosto de entregar uma palavra inacabada, imperfeita, mas que o aparelho fixará em uma espécie de falsa perfeição. —Não, minha impressão é que tudo se deve à presença da «máquina», e que por isso resulta imperfeita a palavra. Pelo resto, a expressão é como pode ser... Sei muito bem que em uma conversação, não é possível expressar-se com a mesma exatidão que em um artigo, ou em um livro... Não, o que me
  • 22. incomoda é o aparelho, essa presença física desumana. —Trataremos de esquecê-lo... Apesar de tudo, na fita ficam registradas coisas que desconhecerá o leitor: o canto dos pássaros entre os ramos das árvores que há no lugar sobre a qual se abre sua janela, o vôo das pombas que a cruzam para posar-se sobre uma máscara rodeada de grinaldas, sobre um frontão grego... —Sim, o teatro de l'Atelier. —Como chegou a converter-se em inquilino deste piso, nesta praça? Deve-se a uma eleição premeditada? —Não, foi pura casualidade, uma feliz casualidade. Procurava onde me instalar em Paris para passar umas férias. Mas, de repente, afeiçoei-me com esta praça e este bairro. —Gosta deste bairro unicamente pela atmosfera que reina nele? Não influiria o fato de que Charles Dullin...? —É verdade, a mitologia do bairro... Conhecia-a antes de saber nada desta casa. Entretanto, acho que a praça é muito bela e mesmo o bairro. Não falo unicamente das «alturas» de Montmartre, mas também de algumas ruas, não longe daqui, que eu gosto muito. —Estamos entre o mercado Saint-Pierre e o Sacré-Coeur. —O Sacré-Coeur e a praça de Abbesses, que é também muito bela. —O Sacré-Coeur é um edifício muito denegrido... —Sei muito bem, pessoalmente, eu não gosto nem de sua arquitetura, nem a cor de seus muros. Todavia, sua localização é admirável: a perspectiva, o espaço... É uma montanha, certamente. E está além disso, a história da colina de Montmartre, que não se pode ignorar. Aí está, e aqui mudou pouco a vida, felizmente. Estes dias relia os últimos volumes do Journal de Julien Green e chamou-me atenção a insistência com que Green fala da fealdade progressiva que está caindo sobre Paris. Cortam-se as árvores, são demolidas certas mansões magníficas do século XVIII ou o XIX, levantam-se edifícios modernos, mais cômodos, sem dúvida, mas desprovidos de todo encanto. É verdade, Paris possuía uma beleza peculiar que está a ponto de desaparecer. Mas, trata-se de um tema tristemente banal. Não falemos mais disso.
  • 23. —Quando poderemos ler esse livro ao que se refere em seu Diário em 14 de junho de 1967 e no qual se propõe falar da estrutura dos espaços sagrados; do simbolismo das moradias, das aldeias e das cidades; dos templos e dos palácios? —É uma obra escrita, como fruto de seis conferências, pronunciadas em Princeton, sobre as raízes sagradas da arquitetura e do urbanismo. Nela volto, mas com um enfoque específico, sobre quanto disse a propósito do «centro do mundo» e do «espaço sagrado» no Tratado de história das religiões e em outros lugares. Só ficou por fazer uma seleção das ilustrações. Mas, estou decidido a terminar esta obra porque os arquitetos me manifestaram que o esperam com interesse. Alguns escreveram-me que meus livros lhes esclareceram muitas coisas sobre o sentido de sua profissão. —Em algum lugar disse antes que o sagrado se caracteriza pelo sentido: orientação e significação... —Para a geometria, alto e baixo são idênticos. Entretanto, do ponto de vista existencial, todos sabemos que subir, ou descer uma escada, não é, absolutamente, a mesma coisa. Sabemos também que a direita não é quão mesmo a esquerda. Ao longo dessa obra insisto no simbolismo e nos ritos relacionados com a experiência das diversas qualidades do espaço: esquerda e direita, centro, zênite e nadir... —Mas não está também ligada a arquitetura a temporalidade? —O simbolismo temporário vai inscrito no simbolismo arquitetônico, ou na moradia. Na África, algumas tribos costumam orientar as choças de maneira distinta segundo as estações; e não só a choça, mas também os objetos que se guardam nela: alguns utensílios, diversas armas. Aí tem um caso exemplar da inter-relação do simbolismo temporário e o simbolismo espacial. Mas a tradição arcaica é rica em exemplos similares. Recordará o que diz Marcel Granet sobre o «espaço orientado» na China antiga. —Sim, e não é unicamente a casa a que se considera «sagrada», nem o templo, mas também o território, a terra da pátria, a terra natal... —Todo país natal constitui uma geografia sagrada. Para quem teve que abandonar, a cidade da infância e da adolescência converte-se para sempre em uma cidade mítica. Para mim, Bucareste é o centro de uma mitologia inesgotável. Através dessa mitologia cheguei a conhecer sua verdadeira história. E a minha, possivelmente.
  • 24. A ÍNDIA ESSENCIAL O APRENDIZ DE SANSCRITISTA —Em 18 de novembro de 1948 escreve em seu Diário: «Faz vinte anos, por volta das quinze e trinta horas, conforme acredito, saí da estação do Norte de Bucareste em direção à Índia. Ainda vejo-me no momento de partir; vejo o Ionel Jianu com o livro de Jacques Riviére e o pacote de cigarros, seus últimos presentes. Eu levava duas pequenas malas. O que terá influenciado em mim aquela viagem antes de cumprir os vinte e dois anos! Como seria minha vida sem a experiência da Índia no começo de minha juventude? E a segurança que após me acompanha: aconteça o que acontecer, sempre haverá no Himalaya uma gruta que me espera...». Poderia responder agora a essa pergunta que então se fez a propósito da influência da Índia em sua vida e em sua obra? Em que sentido lhe formou a Índia? Este será, se lhe parecer bem, o tema essencial de nossa conversação de hoje. Paramos em que Dasgupta lhe esperava em Madras. —Sim, estava trabalhando ali sobre textos sânscritos, na biblioteca da Sociedade teosófica, célebre por sua coleção de manuscritos. Ali o conheci e dedicamo-nos, imediatamente, a preparar minha estadia em Calcutá. Em 1928 era um homem que poderia ter quarenta e cinco anos. Era baixo, forte, de olhos um pouco inchados, «olhos de batráquio», diríamos; uma voz que me pareceu, como a dos bengaleses em geral, muito melodiosa. Uma profunda amizade terminaria por me unir àquele homem, ao qual admirei muito. —Suas relações com Dasgupta, foram as que revistam dar-se entre professor e aluno; as de discípulo e mestre; ou guru? — Um e outro. Em princípio, eu era o estudante e ele era o professor de corte universitário, ao estilo ocidental. Foi ele mesmo quem traçou meu programa de estudos na universidade de Calcutá; ele indicou-me as gramáticas, os manuais, os dicionários indispensáveis. Também, encarregou-se ele de buscar-me uma habitação no bairro anglo-hindu. Supôs, com toda razão, que me resultaria muito difícil viver no primeiro momento como um hindu. Trabalhava com ele não só na universidade, mas também em sua casa, no bairro Bhowanipore, o bairro hindu, muito pitoresco, no que Dasgupta ocupava uma casa admirável. Ao cabo de um ano sugeriu-me a conveniência de trabalhar com um pandit, que ele mesmo se encarregou de escolher, para me iniciar na conversação em sânscrito. Dizia-me que mais adiante teria necessidade de falar em sânscrito, sequer em nível elementar, para conversar com os panedits, os verdadeiros iogues, os religiosos hindus.
  • 25. —Em que dificuldades pensava Dasgupta ao assegurar que não lhe seria fácil viver no primeiro momento ao estilo hindu? —Dizia que em princípio até mesmo a alimentação puramente hindu era pouco recomendável. Possivelmente, pensasse também que me resultaria difícil viver no bairro hindu de Bhowanipore com o traje que eu levava, muito singelo, mas europeu. Sabia que não me seria possível passar diretamente, no curso de umas quantas semanas, nem sequer de alguns meses, da indumentária européia ao dhoti bengalês. —Por sua parte, sentia desejos de levar a vida cotidiana dos bengaleses, de adotar seus costumes quanto à alimentação e a vestimenta? —Sim, mas não em princípio, pois não conhecia ainda nada de tudo aquilo. Ia ao menos duas vezes por semana à casa de Dasgupta para trabalhar ali. Pouco a pouco, o ar misterioso daquelas casas enormes com terraços, rodeadas de palmeiras e de jardins, terminaram por fazer seu efeito. —Vi essa formosa fotografia que aparecerá nas capas dos «Cahiers de l'Herne». É a indumentária que levava em Calcutá? —Não, essa fotografia foi tirada no ashram de Himalaya. A indumentária com que apareço nela era uma túnica de cor amarela ocre. É a indumentária própria de um swami, ou um iogue. Em Calcutá levava o dhoti, uma espécie de larga camisa branca. —Acredita que a experiência de viver na Índia pode ser distinta vestindo como as pessoas do país? —Acredito que se trata de um algo muito importante. Porque de repente, resulta muito mais cômodo, no clima tropical, levar um dhoti e caminhar com os pés descalços, ou de sandálias. Logo, chama-se menos a atenção. Como vivia ao sol, estava tão moreno como os outros, com o resultado de que passava quase desapercebido. Os meninos já não me gritavam: White monkey! Era, além disso, uma forma de solidarizar-se com a cultura em que me queria iniciar. Meu ideal era chegar a falar perfeitamente o bengalês. Nunca o consegui, mas ao menos o lia. Traduzi alguns poemas de Tagore e inclusive tentei ler e até traduzir os poetas místicos da Idade Média. Não eram unicamente os aspectos erudito e filosófico, o ioga e o sânscrito, os que me interessavam, mas também, a cultura hindu viva. —Sua relação com a vida hindu não era tão somente a de um intelectual, a não ser a
  • 26. de toda sua pessoa... — De toda a pessoa. Entretanto, tenho que frisar que não abandonei a consciência, digamos a Weltanschauung do homem ocidental. Queria aprender seriamente o sânscrito à maneira da Índia, mas também, com o método filosófico próprio do espírito ocidental. Estudar, ao mesmo tempo, com os recursos do investigador ocidental e de dentro. Jamais renunciei meu instrumento de conhecimento especificamente ocidental. Trabalhara algo com o grego, o latim e estudara a filosofia ocidental; não desprezei nada de tudo isto. Ao adotar o dhoti ou o kutiar, quando estive no Himalaya, não rechacei minha tradição ocidental. Como vê, também no plano da aprendizagem reaparece meu sonho de totalizar os contrários. —Do mesmo modo, que não foi a tortura metafísica o que o levou para o estudo das religiões, tampouco foi o gosto do exótico, ou o desejo de perder sua identidade o que lhe conduziu a vestir a túnica amarela dos ascetas. Conservou sua identidade, sua formação ocidental, em um desejo de aproximar-se da Índia através dessa perspectiva, para fundir finalmente dois pontos de vista, ou melhor ainda, para organizá-los e conjuntá-los. —É a mesma coisa. Estudei profunda, «existencialmente», a cultura indiana. No início do segundo ano disse-me Dasgupta: «Agora sim, já chegou o momento, pode viver comigo». Vivi com ele um ano. —Seu propósito não era unicamente estudar a língua e a cultura indiana, mas também, o de praticar o ioga. Quer dizer, experimentar em seu próprio corpo e pessoalmente aquilo de que se falava nos livros. —Exatamente. Em seguida falaremos da prática que empreendi, vestido com meu kutiar, no Himalaya. Mas, estando ainda em Calcutá, em casa de Dasgupta, disse-lhe muitas vezes: «Professor, dê-me algo mais que os textos». Porém, ele respondia-me sempre: «Espere um pouco, é preciso conhecer de verdade tudo isto do ponto de vista filológico e filosófico...». Tenha em conta que mesmo Dasgupta era um historiador da filosofia, formado em Cambridge, um filósofo, um poeta. Entretanto, pertencia a uma família de pandits procedente de uma aldeia de Bengala, o que significa que dominava perfeitamente toda a cultura tradicional de uma aldeia indiana. Dizia-me às vezes: «Para os europeus, a prática do ioga resulta ainda mais difícil que para nós, os hindus». Possivelmente, temia as conseqüências. Calcutá é uma grande cidade e, com efeito, não é prudente praticar o pranayama, o ritmo da respiração, em uma cidade em que o ar está sempre um tanto poluído. Soube mais tarde, em Hardwar, nas ladeiras do Himalaya, em uma atmosfera mais
  • 27. favorável... —Como trabalhava com Dasgupta? Como aprendeu o sânscrito, primeiro com ele e logo com o pandit? —Bem, pelo que se refere ao estudo do sânscrito, apliquei método do indianista italiano Angelo de Gubernatis, tal como ele mesmo o expõe em Fibra, sua autobiografia. Consiste em trabalhar doze horas ao dia, com uma gramática, um dicionário e um texto. É o que ele mesmo fez em Berlim. Weber, seu professor, disse-lhe: «Gubernatis (era início de verão), no outono começo meu curso de sânscrito, mas resulta que é o segundo curso, e não é possível começar de novo só em benefício dele. Será preciso que adiante por sua conta...». Gubernatis encerrou-se em um refúgio, muito perto de Berlim, com sua gramática e seu dicionário de sânscrito. Duas vezes por semana, alguém lhe levava pão, café e leite. Tinha razão, e decidi-me seguir seu exemplo. Por outro lado, eu fizera já algumas experiências, não tão radicais, mas, enfim... Quando estudava inglês, por exemplo, trabalhava muitas horas seguidas. Porém, desta vez, desde o começo, trabalhava doze horas ao dia e unicamente o sânscrito. Como únicas interrupções permitia-me alguns passeios, a hora do chá, ou das comidas, que aproveitava para aperfeiçoar meu inglês: lia-o muito bem, mas o falava muito mal. Dasgupta, em sua casa, fazia-me pergunta de vez em quando, entregava-me algum texto para traduzi-lo e deste modo podia observar meus progressos. Foram rápidos, mas, acredito que devido a este esforço que propunha me dedicar a estudar só o sânscrito. Durante muitos meses não toquei sequer um periódico, uma novela policial, nada. Esta concentração exclusiva em um só tema, o sânscrito, deu-me resultados surpreendentes. —Mas, com esse método, possivelmente, corra-se o risco de não obter a exatidão e a vivência próprias da língua falada. —Certamente, mas, tratava-se de assentar acima de tudo e para começar umas bases sólidas, de adquirir as estruturas, a concepção gramatical, o vocabulário básico... Mais tarde, é óbvio, dediquei minha atenção à história e à estética indianas, à poesia, às artes. Em princípio, entretanto, terá que atender à aquisição metódica e exclusiva dos rudimentos. —Acredito recordar que Daumal via no sânscrito a ocasião para um trabalho filosófico, como se a gramática do sânscrito predispusesse a uma certa metafísica, como se levasse a conhecimento de si mesmo e do ser. Crê assim? Que benefícios lhe reportou o conhecimento do sânscrito?
  • 28. —Tinha razão Daumal, todavia, no meu caso, não era tanto o valor, ou a virtualidade filosófica da língua em si mesmo, o que mais me interessava em princípio... O que pretendia acima de tudo, era dominar este instrumento de trabalho para ler uns textos que não destacavam precisamente por seu valor filosófico. Não eram o Vedanta, ou os Upanishads o que então me interessava, a não ser, acima de tudo, os comentários dos Ioga-Sutras, os textos tântricos, quer dizer as expressões da cultura indiana menos conhecidas no Ocidente, justamente porque sua filosofia não está à altura dos Upanishads, ou do Vedanta. Isto era o que me interessava mais que nada, pois aspirava conhecer as técnicas da meditação e da fisiologia mística, quer dizer o Ioga e o Tantra. —Aprendeu o italiano para ler ao Papini, o inglês para ler ao Frazer, o sânscrito para ler os textos tântricos. Trata-se sempre, ao que parece, de abrir uma porta a algo que lhe interessa. A língua é o caminho, jamais o fim. Não lhe expõe tudo isto uma questão? Poderia converter-se não em um historiador das religiões, dos mitos, do mundo da imaginação, a não ser em um sanscritista, em um lingüista. Cabia dentro do possível uma obra totalmente distinta, um Eliade diferente. Ingressasse no grêmio dos Jacobson, dos Benveniste, contribuindo seu estilo peculiar a este campo. Poder-se- ia sonhar nessa obra imaginária... Não lhe tentou alguma vez esse caminho? —Sempre que tratei de aprender uma nova língua foi para possuir um novo instrumento de trabalho. Uma língua foi sempre para mim uma possibilidade de comunicação: ler, falar se fosse possível, mas sobretudo ler. Entretanto, houve um momento enquanto permaneci na Índia, em Calcutá, quando contemplava os esforços de um comparativismo mais amplo —por exemplo, as culturas indo-européias com as culturas pre-hindus, as culturas oceânicas, as culturas da Ásia central—, quando contemplava aqueles sábios extraordinários como Paul Pelliot, Przylusky, Sylvain Lévy, conhecedores não só do sânscrito e o pali, mas também do chinês, tibetano, japonês e, além disso, das línguas chamadas austroasiáticas, sentia-me fascinado por aquele universo enorme que se abria à investigação. Já não se tratava unicamente da Índia ária, mas, além da Índia aborígine, da abertura para o Sudeste asiático e Oceania. Eu mesmo tentei iniciar esse caminho. Dasgupta dissuadiu-me. E tinha razão. Sabia adivinhar. Todavia, empreendi o estudo do tibetano com uma gramática elementar. Pude observar que, ao tratar-se de algo que não desejara, verdadeiramente, do mesmo modo, que desejara o sânscrito, ou o inglês, ou mais tarde o russo, ou o português, a coisa não saía muito bem. Então, fiquei furioso e abandonei. Disse-me que jamais alcançaria a competência de um Pelliot, de um Sylvain Lévy, que jamais seria um lingüista, nem sequer um sanscritista. A língua em si mesmo, suas estruturas, sua evolução, sua história, seus mistérios não me atraíam como...
  • 29. —Como a imagem, como os símbolos? —Exatamente. A língua não era para mim mais que um instrumento de comunicação, de expressão. Mais tarde, senti-me contente de deter-me neste ponto. Porque, em definitivo, trata-se de um oceano. Nunca se acaba a tarefa: terá que aprender o árabe; depois do árabe, o siamês; depois do siamês, o indonésio; depois do indonésio, o polinésio; e assim pela ordem. Preferi ler os mitos, os ritos pertencentes a essas culturas, tentar compreendê-los. IOGUE NO HIMALAYA —Em setembro de 1930 sai de Calcutá em direção ao Himalaya. Separa-se de Dasgupta... —Sim, por causa de uma desavença, que lamento muito. Também ele a lamentou. O certo é que já não me interessava permanecer naquela cidade em que, sem Dasgupta, nada tinha que fazer. Parti para o Himalaya. Fui detendo em numerosas cidades, mas ao final decidi ficar algum tempo em Hardwar e Rishikesh, pois ali é onde começam os verdadeiros eremitérios. Tive a sorte de conhecer Swami Shivanananda, que falou com mohant, o superior, conseguiu-me uma pequena choça no bosque... As condições eram muito singelas: levar um regime vegetariano e prescindir da indumentária européia; entregava-se ao aspirante uma túnica branca. Cada manhã tinha que «mendigar» leite, mel e queijo. Fiquei ali, em Rishikesh, seis ou sete meses, possivelmente até abril. -Rishikesh está já no Himalaya, mas ainda não é o Tibete. —Para ir ao Tibete faltava passaporte... Entretanto, em 1929, passei três ou quatro semanas em Darjeeling, em Sikkim, limite com o Tibete e onde já se nota uma atmosfera tibetana. Vêem-se muito bem as montanhas do Tibete. —Como era a paisagem em torno de sua choça? —Enquanto que Darjeeling está a não sei quantos metros de altura, em uma paisagem alpina, Rishikesh se acha à beira do Ganges, mas o Ganges é ali um pequeno rio: cinqüenta metros em alguns sítios e logo, de repente, duzentos metros; às vezes, estreita-se muito: vinte metros, dez metros. Ali há selva, a selva. Em meus tempos não se via por ali outra coisa que umas quantas choças e um pequeno templo hindu. Não havia gente. No bosque, as choças estavam escalonadas ao longo de dois ou três quilômetros, a duzentos metros umas das outras, às vezes, só a cento e cinqüenta ou cinqüenta. Dali subia à Lakshmanjula, primeira etapa de minha peregrinação, por assim dizê-lo. Ali
  • 30. resulta muito elevada a montanha. Havia uma série de grutas nas quais viviam os religiosos, contemplativos, ascetas, iogues. Conheci muitos deles. —Como escolheu a seu guru? —Era Swami Shivanananda, mas, naquela época ninguém lhe conhecia, não publicara nada (logo publicaria uns trezentos volumes...). antes de converter- se em Swami Shivanananda fora médico, tinha uma família e conhecia muito bem a medicina européia, que praticara, conforme acredito, em Rangun. Depois, um belo dia, abandonou tudo. Despojou-se de seu traje europeu e veio a pé desde Madras ao Rishikesh. Demorou quase um ano percorrendo o caminho. É um homem que me interessou pelo fato de que possuía uma formação ocidental. Igual Dasgupta. Era um bom conhecedor da cultura indiana e estava em condições de comunicá-la a um ocidental. Não se tratava de um erudito, mas tinha uma longa experiência de Himalaya; conhecia os exercícios do ioga, as técnicas de meditação. Era médico e, em conseqüência, entendia perfeitamente nossos problemas. Foi ele quem me orientou um pouco nas práticas da respiração, da meditação, da contemplação. Coisas que eu conhecia de cor, pois não só as estudara nos textos, em comentários, mas sim, além disso, ouvira falar delas outros saddhu e contemplativos em Calcutá, em casa de Dasgupta, e em Santiniketan, onde conheci Tagore. Sempre havia ocasião de conhecer alguém que já praticara algum método de meditação. Sabia de tudo isto, por conseguinte, algo mais do que há nos livros, mas nunca tentara pô-lo em prática. —Acaba de falar da selva. Teremos que pensar em tigres, em serpentes? —Não recordo ouvir falar nunca de tigres, todavia, havia muitas serpentes, e também macacos, uns macacos extraordinários. Acredito que foi ao terceiro dia de minha instalação na choça quando vi uma serpente. Tive um pouco de medo, tinha a impressão de que era uma cobra; lancei-lhe uma pedra para espantá-la. Um monge viu-me e disse-me (falava muito bem o inglês; era um antigo magistrado): «Por que? Embora seja uma cobra, nada terá que temer. Neste eremitério não me recordo que se produziu nenhuma só mordida de serpente». Fiquei perplexo, entretanto, perguntei-lhe: «E mais abaixo, na planície?» Respondeu ele: «Sim, ali é verdade, mas não aqui». Coincidência ou não... Em qualquer caso, a partir de então, quando via uma serpente, deixava-a passar tranqüilamente. Isto era tudo. Nunca voltei a espantar uma serpente lançando-lhe uma pedra. —Passaram quase cinqüenta anos entre aqueles tempos do iogue noviço e o dia de hoje em que já se converteu em autor célebre de três obras sobre o ioga. Um deles leva
  • 31. como subtítulo Imortalidade e liberdade. Outro intitula-se Técnicas de ioga... O que é o ioga? Um caminho místico, uma doutrina filosófica, uma arte de viver? Qual é seu objetivo, dar a salvação, ou dar a saúde? —Para falar a verdade, há algum tempo já não me interessa tanto falar do ioga. Comecei minha tese em 1936; levava por título Ioga, ensaio sobre as origens da mística hindu. Reprovou-me, e com razão, o termo «mística». —Trabalhara sob a direção de Dasgupta, e inclusive, conforme acredito, ditou-lhe seu comentário de Patañjali... —Sim, mas antes já me senti interessado pelo aspecto técnico da pedagogia espiritual hindu. Conhecia, evidentemente, a Tradição especulativa, dos Upanishads até Shankara, quer dizer a filosofia, a gnosis, que apaixonara aos primeiros indianistas ocidentais. Por outro lado, lera os livros sobre os rituais... Mas, sabia além, que existia uma técnica espiritual, uma técnica psicofisiológica, que não era pura filosofia ou sistema ritual. Com efeito, lera algumas obra sobre Patañjali e os livros de John Woodroff (sob o nome de Arthur Avallon) sobre o tantrismo. Pensava que com este método tântrico, quer dizer, com esta série de exercícios psicofisiológicos (aos que chamei «fisiologia mística», pois, trata-se de uma fisiologia mais imaginária), tínhamos a oportunidade de descobrir certas dimensões pouco atendidas da espiritualidade hindu. Dasgupta já tinha apresentado o aspecto filosófico deste método. Por minha parte, julgava importante a descrição das técnicas em si mesmas e a apresentação do ioga em um horizonte comparativo: junto à ioga clássico, descrito pelo Patañjali nos Ioga-Sutras, os diversos iogas «barrocos», marginais; também o ioga praticado por Buda e o budismo na Índia e logo, no Tibete, no Japão e China. Daí meu interesse por adquirir uma experiência pessoal dessas práticas, dessas técnicas. —Não haverá alguma relação entre esse desejo e a «luta contra o sonho» de sua adolescência? —Em minha adolescência tinha muito que ler e me dava conta de que não se obtém grande coisa se dormir durante sete horas, sete horas e meia. Comecei então um exercício que acredito ter inventado. Cada manhã fazia soar o despertador dois minutos antes que a anterior. Em uma semana ganhei, portanto, um quarto de hora. Com seis horas e meia de sonho por noite, deixei de adiantar o despertador durante três meses, a fim de me habituar perfeitamente a esta duração. Logo comecei de novo, sempre ao ritmo de dois minutos. Deste modo cheguei às quatro horas e meia de sonho. Logo, um dia tive vertigens e parei. Eu chamava àquilo, com a grandiloqüência dos
  • 32. adolescentes, «a luta contra o sono». Depois li L'Education de la volonté, do doutor Payot. Lembro-me uma página em que dizia: «por que, mediante a simples intervenção da vontade, não teria que nos ser possível comer coisas que unicamente nossos hábitos culturais nos fazem ter por não comestíveis? Mariposas, por exemplo, ou abelhas, vermes, besouros. Ou também, um bocado de sabão». Eu perguntava-me: «Por que não?». E comecei a «educar minha vontade», mas acredito que entendi mal o livro. Em qualquer caso, desejava dominar certas aversões e certas tendências naturais em um europeu. O ioga, efetivamente, está aparentado com esse esforço. O corpo pede movimento, então, imobiliza-lhe em uma só posição, um asana; já não se comporta um como um corpo humano, mas sim, como uma pedra, ou uma planta. A respiração é naturalmente arrítmica; o pranayama impõe-lhe um ritmo. Nossa vida psicomental está sempre agitada —Patañjali define-a como chittavritti, «torvelinhos de consciência—, mas a concentração permite dominar essa corrente... O ioga significa em certo modo uma oposição ao instinto, à vida. Todavia, não me atraiu o ioga unicamente por estas razões. A verdade é que se me senti interessado por estas técnicas do ioga foi, acima de tudo, porque me resultava impossível entender à Índia unicamente através da leitura dos grandes indianistas e de seus livros sobre a filosofia vedanta, para a qual o mundo é pura ilusão —maya— ou através do sistema monumental dos ritos. Não podia entender que a Índia tivesse grandes poetas e uma arte admirável. Dava-me conta de que em algum lugar existia uma terceira via, não menos importante, e que esta via implicava a prática do ioga. Mais tarde em Calcutá, ouvi dizer que, com efeito, um professor de matemática trabalhava em posição asana impondo um ritmo a sua respiração, e com vantagem. Por outro lado, já sabe que quando Nehru se sentia fatigado, adotava durante alguns minutos a «posição da árvore». São exemplos, aparentemente anedóticos, mas, o certo é que essa ciência, essa arte do domínio do corpo e os pensamentos, são muito importantes para a história da cultura e da filosofia indianas, da criatividade hindu em uma palavra. —Não lhe vou fazer novas perguntas sobre os aspectos teóricos do ioga; umas poucas palavras não serviriam para substituir os livros que já escreveu. Prefiro perguntar-lhe por sua experiência pessoal e pelo que esta lhe contribuiu para o resto de sua vida. —Se fui tão discreto a respeito de minha aprendizagem em Rishikesh, é por razões que lhe será fácil adivinhar. É possível, entretanto, falar de certas coisas. Por exemplo, dos primeiros exercícios do pranayama que fiz, sob a vigilância de meu guru. Às vezes, quando conseguia submeter a um ritmo
  • 33. minha respiração, ele interrompia-me. Não entendia por que, pois, sentia-me muito bem e não estava absolutamente fatigado... Ele dizia-me: «Está fatigado». Já vê, era importante contar com a orientação de alguém que era médico e conhecia por própria experiência o ioga. Fiquei convencido da eficácia dessas técnicas. Acredito, inclusive, que cheguei a entender melhor certos problemas... Mas, como lhe dizia, não quero insistir. Com efeito, se se abordar esta questão, terei que dizer tudo, e isso exigiria entrar em detalhes que implicam extensas análise. -Entretanto, posso lhe perguntar se foi possível verificar as maravilhas, ou os prodígios que, conforme se diz, acompanham à ioga? Em um de seus livros fala da juventude que o iogue conserva muito tempo: a meditação de um tempo diferente, ampliado, que chega a produzir no corpo uma longevidade extraordinária... —Um de meus vizinhos, um monge que ia absolutamente nu, um naga, passara dos cinqüenta anos e tinha um corpo de trinta. Não fazia outra coisa que meditar durante todo o dia e tomava muito pouco alimento. Eu não cheguei a essa etapa em que são possíveis tais coisas. Mas, qualquer médico pode lhe dizer que o regime e a vida sã que se levam em um eremitério prolongam a juventude. —O que tem essas histórias que se contam de panos molhados e gelados que se colocam sobre a pessoa entregue à meditação e que se secam várias vezes ao longo da noite? —Muitas testemunhas ocidentais o viram. Alexandra David-Neel, por exemplo. É o que se chama em tibetano gtumo. Trata-se de um calor extraordinário que produz o corpo e que é capaz de secar um tecido. A propósito deste «calor místico» ou, mais exatamente, gerado pelo que se chama a «fisiologia sutil», há documentos muito sérios. A experiência dos panos gelados que se secam, rapidamente, ao serem colocados sobre o corpo de um iogue é uma coisa certamente real. UMA VERDADE POÉTICA DA ÍNDIA —Sua experiência da Índia não aparece unicamente em seus estudos, mas também em suas novelas: Meia-noite em Serampore, A noite bengalesa... e em Isabel e as águas do diabo, inédita em francês, que escreveu, conforme me disse, como um desafogo durante sua intensa dedicação à aprendizagem do sânscrito. —Efetivamente, depois de seis ou sete meses de gramática sânscrita e de filosofia hindu, detive-me, ansioso de sonhar um pouco. Encontrava-me em Darjeeling e ali começo essa novela, um pouco autobiográfica, um pouco
  • 34. fantástica. Queria penetrar e conhecer aquele mundo imaginário que me obcecava. Escrevi a novela em umas quantas semanas. Deste modo recuperei a saúde e o equilíbrio. —Nesse relato aparece um jovem romeno que atravessa Ceilão, Madras e detém-se em Calcutá, onde se encontra com o diabo. —Chegando à Calcutá, instalei-me em uma pensão anglo-hindu, como aquela em que eu vivia. Há ali moças, jovens fascinados por toda classe de problemas. Vem logo a presença do «diabo» e toda uma série de coisas que acontecem porque o personagem principal está obcecado pelo «diabo»... —Em Meia-noite em Serampore, quão mesmo em O segredo do doutor Honigberger, aparece também a fantasia. —São duas novelas escritas dez anos mais tarde. Entre Isabel e estas duas novelas há outra, mais ou menos, autobiográfica, A noite —Eu gostaria que nos detivéssemos um pouco mais em Meia-noite em Serampore... até que ponto podem acreditar-se quão fatos nela se narram? São puramente fantásticos esses personagens que revivem um passado? Ou é que crê um pouco em tal possibilidade? Porque, com efeito, às vezes, escutam-se histórias estranhas contadas por pessoas dignas de crédito... —Eu acredito na realidade das experiências que nos fazem «sair do tempo» e «evadir-nos do espaço». Durante estes últimos anos escrevo várias novelas em que se expõe esta possibilidade de sair-se de um determinado momento histórico... de situar-se em um espaço distinto, como ocorre ao Zerlendi. Ao descrever os exercícios yóguicos de Zerlendi em O segredo do doutor Honigberger, contribuí com certos indícios apoiados em minhas próprias experiências, que silenciei em meus livros sobre o ioga. Entretanto, ao mesmo tempo, acrescentei algumas inexatidões, justamente para mascarar os dados reais. Por exemplo, fala-se de um bosque de Serampore, porém, em Serampore não há nenhum bosque. Portanto, se alguém pretendesse verificar em concreto a trama da novela, dar-se-ia conta de que o autor não se limita a fazer uma reportagem, posto que inventou a paisagem. Isto levaria a conclusão de que também o resto inventara, coisa que não é verdade. —Acreditaque podem ocorrer, efetivamente, as coisas que acontecem aos personagens de Meia-noite em Serampore? —Sim, no sentido de que alguém pode ter uma experiência tão «convincente»
  • 35. que se veja obrigado a considerá-la real. —Ao final de O segredo do doutor Honigberger —um investigador que efetivamente existiu, ao que cita ao princípio de Patañjali e o Ioga— o leitor pode duvidar entre várias chaves para resolver o enigma. Qual é a sua? -Para alguns leitores pode resultar evidente. Como o personagem que narra essa história afirma ser Mircea Eliade, um homem que passou alguns anos na Índia, que escreveu um livro sobre o ioga... - Esse é o narrador, mas não se nomeia como Eliade... - Não, porém, Mme Zerlendi escreve-lhe: «Como passou muitos anos na Índia...». Mas, naquela época, quem podia ser esse romeno que partira à Índia, que escrevera um livro sobre o ioga? O narrador, por conseguinte, é Eliade. E Zerlendi, um homem dotado de clarividência, dá-se conta de que, por um acidente lamentável, o documento extraordinário que escondera com a esperança de que um dia alguém o decifrasse e convencesse-se da realidade de alguns feitos relacionados com o ioga, esse documento acabava de ser decifrado por alguém que conhecia o sânscrito, o ioga e que além disso, era um novelista, que não deixaria de sentir-se tentado —justamente o que eu fiz— pela idéia de narrar aquela história extraordinária. Então, para suprimir qualquer perigo de que alguém verificasse a autenticidade do relato —pois não resultaria difícil identificar a casa e encontrar sua biblioteca e os manuscritos—, em uma palavra, para provar que não se trata mais que uma fantasia literária, Zerlendi transforma sua casa, faz desaparecer a biblioteca e sua família, afirma não conhecer o narrador. E tudo isto para evitar que o documento que me dispunha a resumir em minha novela não se considerasse autêntico. —Não estou seguro de que esta conversação seja clara para quem não lera o livro. Melhor assim, pois espero que essa mesma escuridão anime-lhes a descobri-lo... Por minha parte, já não sei o que pensar. Sinto-me na mesma situação que os personagens de seu último livro que escutam ao «velho». A sua é uma arte diabólica na hora de desconcertar seus ouvintes através de umas histórias nas quais já não é possível distinguir o verdadeiro do falso, a esquerda da direita. —É verdade. Inclusive penso que essa é uma parte característica de minha prosa. —Não haverá um tanto de malícia no prazer que lhe produz a idéia de confundir um tanto a seu interlocutor?
  • 36. —Isso,possivelmente, forma parte de uma espécie de pedagogia; não se deve entregar ao leitor uma «história» perfeitamente transparente. —A pedagogia e o gosto pelo Labirinto? —Sim, uma prova iniciática ao mesmo tempo. —Deixemos, pois, seus leitores ante a porta do labirinto, à entrada do bosque de Serampare e da biblioteca indiana de Zerlendi. Em compensação, nada tem de fantástico em A noite bengalesa. Quando recordo este livro —porque, efetivamente, é um livro sobre o qual se tem que refletir, pois se abre à leitura menos que à lembrança da leitura— há algo que me chama a atenção sobre tudo: a imagem e a evocação daquela moça, a presença do desejo mesmo. A história é muito singela, mas irradia até abrasar uma beleza cobiçável, como os afrescos de A Última Ceia e como a poesia erótica da Índia... Como vê este livro com a distância? —Bem, trata-se de uma novela meio biográfica. Compreenderá que... —Entendo que queira guardar o mesmo silêncio sobre os segredos da gnosis e os segredos do amor... Mas, posto que acabamos de evocar a arte de A Última Ceia, ocorreu a alguém relacionar a figura, tão sensual, de Maitreyi (A noite bengalesa) e os afrescos de A Última Ceia? O que lhe faz pensar isto? —Certo, já se falou isso. Em uma carta encantadora que me enviou depois de ler minha novela, Gastón Bachelard falava de «mitologia do prazer». Acredito que tinha razão, pois, em certo sentido, a sensualidade se transfigura... —O que agora me diz enlaça diretamente com uma nota de seu Diário de 5 de abril de 1947 a propósito dos afrescos de A Última Ceia: «A sensualidade destas imagens fabulosas, a importância inesperada do elemento feminino! Como é possível que um monge budista pudesse quot;liberar-sequot; das tentações da carne, rodeado de tanta, nudez soberba; triunfantes em sua plenitude e em sua beleza? Só uma versão tântrica do budismo podia aceitar semelhante elogio da mulher e da sensualidade. Algum dia se compreenderá a função importante do tantrismo, que revelou e impôs à consciência hindu o valor das quot;formasquot; e dos quot;volumesquot; (o triunfo do antropomorfismo mais lânguido sobre o aniconismo original)». O componente erótico da noite bengalesa, seu interesse pelo tantrismo e sua visão da arte indiana: esta nota permite envolvê-los no mesmo olhar. —Sim, além disso, ao contemplar os afrescos de A Última Ceia comecei a
  • 37. admirar a arte figurativa da Índia. Tenho que reconhecer que, ao princípio, a escultura hindu decepcionou-me. Todavia, uma obra de Coomaraswamy permitiu-me captar o sentido daquela acumulação de detalhes. Não basta ali a representação do deus, mas sim, prodigaliza-se toda sorte de signos, de figuras humanas, mitológicas. Nada de espaços vazios! Aquilo eu não gostava. Logo compreendi que o artista quer absolutamente povoar esse universo, esse espaço que cria em torno da imagem. Que quer, em suma, enche-lo de vida. Terminei por admirar aquela escultura. Precisamente, se cheguei a gostar tanto da arte indiana, foi por tratar-se de uma arte de significação simbólica, uma arte tradicional. O artista não se propôs expressar nada absolutamente de ordem «pessoal». Compartilhava com todos os outros o universo unitário dos valores espirituais próprios do gênio hindu. Tratava-se de uma arte simbólica e tradicional, mais espontâneo, se posso dizer assim. O fato de beber na fonte comum jamais prejudicou ao florescimento das formas distintivas, a sua variedade. E isto é verdade a propósito de todas as artes. Na Índia, foi a música de Bengala quão única tive, até certo ponto, ocasião de conhecer. Mas, o que mais me interessava eram as artes plásticas, a pintura, os monumentos, os templos. Não unicamente como «criações artísticas». Por exemplo, o templo é uma obra arquitetônica dotada de um simbolismo muito coerente, em que a função religiosa, com seus ritos e procissões, integra-se perfeitamente na mesma arquitetura. Por outro lado, na Índia, igual em todas as aldeias da Europa oriental, faz, possivelmente, trinta ou quarenta anos, o «objeto artístico» não era algo que se pendurava na parede, ou se colocava em uma vitrine. Era um objeto que se utilizava: uma mesa, uma cadeira, um copo, um ícone. Neste sentido, precisamente, interessava-me a arte indiana, a arte popular quão mesmo dos templos, das esculturas e das pinturas: por sua integração na vida cotidiana. —E a literatura hindu? —Eu gostava muito de Kalidasa, que é possivelmente meu preferido. É o único poeta que cheguei a dominar, apesar de que seu sânscrito resulta muito difícil. É inegável seu gênio poético. Entre os modernos, li alguns escritores de vanguarda, Acinthya, por exemplo, um jovem novelista bengalês (1930) muito influenciado por Joyce. E, é óbvio, ao Rabindranath Tagore. —Acredito que foi Dasgupta quem apresentou Tagore. —Sim, tive a grande sorte de ser recebido várias vezes por Tagore em
  • 38. Santiniketan. Eu tomava muitas notas depois de nossas conversações e também sobre quanto se dizia dele, como homem e como poeta, em Santiniketan. Ali era muito admirado, porém, alguns criticavam-lhe, e eu tomava nota de tudo isso. Espero que esse «caderno Tagore» exista ainda, em Bucareste, em minha biblioteca tantas vezes mudada de lugar. Admirava ao Tagore pelo esforço que desenvolvia para condensar em si as qualidades, as virtudes, as possibilidades do ser humano. Não era tão somente um poeta excelente, um compositor excelente —escreveu umas três mil canções, das quais algumas centenas, estou seguro disso, converteram-se hoje em «canções populares» em Bengala—, um grande músico, um bom novelista, um professor da conversação... Sua mesma vida possuía uma qualidade específica. Todavia, não era uma «vida de artista», como a que levavam um D'Annunzio, um Swinburne, ou um Oscar Wilde. Era uma vida rica e completa, aberta à Índia e ao mundo. Tagore interessava-se além, por coisas que ninguém imaginaria, que pudessem interessar a um grande poeta. Ocupava-se dos assuntos comuns, sentia uma grande paixão pela escola que fundara em Santiniketan. Jamais se distanciou da cultura popular de Bengala. Em sua obra adverte-se em seguida, a importância da tradição rural, apesar de que esteja claro que também se inspirava em Maeterlinck, por exemplo. Além disso era formoso. Tinha um grande êxito, murmurava-se que era um dom Juan... Ao mesmo tempo, irradiava uma espiritualidade que se expressava através de todo seu corpo, de seus gestos, de sua voz. Um corpo, uma imagem de patriarca. —Acaba de traçar um formoso retrato que faz pensar em um Vinci, em um Tolstoi de Bengala. Entretanto, em A noite bengalesa evoca ao Tagore em um tom... —...crítico, certamente. Expressava assim a atitude da nova geração bengalês. Na universidade tinha amigos, jovens poetas, jovens professores que, por reação frente à seus pais, viam na obra de Tagore um não sei que d'annunziano, qualificando-a falsa... Pode ser que hoje esteja um pouco esquecido na Índia, por causa da grandeza de Aurobindo, de Radhakrishna, que é um grande sábio. Porém, estou seguro de que será redescoberto. —É difícil evocar Tagore e não nomear ao Gandhi... —Vi o Gandhi e até ouvi, mas de longe e muito mal: o alto-falante não funcionava, se é que havia algum aquele dia. Foi em Calcutá, em um parque, durante uma manifestação não violenta... Admirava-lhe, como todo mundo. Eu preocupava-me com outros problemas, mas o êxito de sua campanha da não violência chegou a interessar-me enormemente. Entenda-se bem que, por
  • 39. então, eu era cem por cento antibritish. A repressão inglesa contra os militantes do swaraj exasperava-me, revoltava-me. -Seus sentimentos eram, em definitivo, os de seu personagem de A noite bengalesa: aborrecimento do colonizador e inclusive do europeu... -Sim, muitas vezes sentia abafado ao ser reconhecido como branco, envergonhava-me de minha raça. Não era inglês, felizmente, era cidadão de um país que jamais tivera colônias e que, pelo contrário, fora tratado durante séculos como uma colônia. Não tinha, portanto, motivo algum para sentir um complexo de inferioridade. Mas, ao sentir-me europeu, envergonhava-me. —Preocupou-lhe «a política» —para dizer do modo mais simples— durante sua juventude? —Na Romênia, nada, absolutamente. Sensibilizei-me à política na Índia. Ali com efeito, pude ver a repressão. Dizia-me: «Quanta razão têm os hindus!». Aquele era seu país, não reclamavam, a não ser, uma espécie de autonomia e suas manifestações eram completamente pacíficas, não provocavam ninguém, reclamavam o que era seu direito. Todavia, a repressão policial foi inutilmente violenta. Em Calcutá tomei consciência da injustiça política, ao mesmo tempo, descobri as possibilidades espirituais da atividade política de Gandhi, aquela disciplina espiritual que permitia resistir aos golpes sem responder. Era como Cristo, o sonho de Tolstoi... —Isso significa que se deixou ganhar em coração e alma pela causa da não violência... —E também da violência! Por exemplo, um dia escutei um extremista e dava- lhe a razão. Entendia, perfeitamente, que também devem existir alguns violentos. Mas, em resumidas contas, estava muito impressionado pela campanha da não violência. Além disso, não se tratava, unicamente, de uma extraordinária tática, mas sim, constituía uma admirável educação das massas, uma admirável pedagogia popular que se propunha acima de tudo o domínio de si mesmo. Era algo, verdadeiramente, superior à política, quero dizer, superior à política contemporânea. AS TRÊS LIÇÕES DA ÍNDIA —Não tinha vinte e dois anos quando cheguei à Índia. Muito jovem, não lhe parece? Os três anos seguintes foram essenciais para mim. A Índia formou- me. Hoje trato de expressar qual foi o ensino decisivo que ali recebi, e vejo acima de tudo que é uma lição tripla. Em primeiro lugar, foi o descobrimento da existência de uma filosofia,
  • 40. ou melhor, de uma dimensão espiritual hindu que não era nem a da Índia clássica —diríamos a dos Upanishads e do Vedanta; em uma palavra, a filosofia monista— nem a devoção religiosa, a bhakti. Tanto o ioga como a samkhya professam o dualismo: a matéria por um lado e o espírito por outro. Entretanto, não era o dualismo o que me interessava, a não ser o fato de que, o mesmo no ioga que na samkhya, o homem, o universo e a vida não são ilusórios. A vida é real, o mundo é real. E é possível conquistar o mundo, é possível dominar a vida. E ainda mais, no tantrismo, por exemplo, a vida humana pode ser transfigurada mediante os ritos, executados a seguir de uma longa preparação yóguica. Trata-se de uma transmutação da atividade fisiológica, por exemplo, da atividade sexual. Na união ritual, o amor já não é um ato erótico ou um ato simplesmente sexual, a não ser uma espécie de sacramento; exatamente como beber vinho, na experiência tântrica, já não é beber uma bebida alcoólica, a não ser compartilhar um sacramento... Descobri, pois, essa dimensão tão esquecida pelos orientalistas, descobri que a Índia conheceu certas técnicas psicofisiológicas graças às quais pode o homem ao mesmo tempo gozar da vida e dominá-la. A vida pode ser transfigurada mediante uma experiência sacramental. Este é o primeiro ponto. —«A vida transfigurada», é o que chama em outro lugar «a existência santificada»? —Sim, em resumidas contas, deve ser o mesmo. Trata-se de ver que através desta técnica, e também através de outras vias ou métodos, é possível santificar de novo a vida, santificar de novo a natureza... O segundo descobrimento, o segundo ensino é o sentido do símbolo. Na Romênia não me senti atraído pela vida religiosa, as igrejas me pareciam abarrotadas de ícones. Entenda-se bem que aqueles ícones não me pareciam ídolos, mas... Na Índia, enquanto vivia em uma aldeia bengalês, pude ver como as mulheres e as moças tocavam e engalanavam um lingam, um símbolo fálico, ou mais exatamente, um falo de pedra anatomicamente muito exato. Ao menos as mulheres casadas não podiam ignorar sua natureza, sua função fisiológica. Assim entrevi a possibilidade de «ver» o símbolo no lingam. O lingam era o mistério da vida, da criatividade da fecundidade que se manifesta em todos os níveis cósmicos. Esta epifania da vida era Shiva, não o membro que conhecemos. Aquela possibilidade de sentir-se religiosamente movido pela imagem, o símbolo revelou-me todo um mundo de valores espirituais. Então disse: é verdade que ao contemplar um Ícone, o crente não percebe tão somente a figura de uma mulher que sustenta nos braços um menino, mas sim, vê à Virgem Maria, à Mãe de Deus, a Sophia.,.. Este descobrimento da importância do simbolismo religioso nas culturas