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LúLEK
A HISTÓRIA DO MENINO QUE SAIU DO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO
 PARA SE TORNAR O GRÃO-RABINO DE ISRAEL
Rabino Israel Meir Lau




LúLEK
A HISTÓRIA DO MENINO QUE SAIU DO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO
 PARA SE TORNAR O GRÃO-RABINO DE ISRAEL
LÚLek
          a história do menino que saiu do campo de concentração
                   para se tornar o grão-rabino de israel

                                     Título original:
                              Al tshlach yadecha el hanaar
                            (Não erga a mão contra o menino)

                              2011 © Rabino Israel Meir Lau

                                    Editor / Publisher
                                     Nissim Yehezkel

                                    Editora Executiva
                                     Raquel Yehezkel

                                       Tradução
                                    Nancy Rozenchan

                                        Revisão
                                     Raquel Yehezkel

                                     Projeto gráfico
                                    Vanderlucio Vieira

                                      Fotografias
                                     Peter Halmagyi
                                    www.PHphotos.us

               Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
                        Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil
________________________________________________________________________________
Lau, Israel Meir
  Lúlek – A história do menino que saiu do campo de concentração para se tornar o Grão-
Rabino de Israel / Israel Meir Lau ; [tradução do hebraico - Nancy Rozenchan]. — Belo
Horizonte : Editora Leitura, 2011.
  1. Guerra Mundial, 1939-1945 - Narrativas pessoais 2. Holocausto judeu (1939-1945) -
  Narrativas pessoais 3. Holocausto judeu (1939-1945) - Polônia - Narrativas pessoais
  4. Lau, Isarel Meir, 1937 - 5. Autobiográficas 6. Rabinos - Autobiografia
  7. Sobreviventes do Holocausto I. Título.
 11-01923                                                           CDD-920.0092924
________________________________________________________________________________
                            Índices para catálogo sistemático:
      1. Judeus sobreviventes do Holocausto : Memórias autobiográficas 920.0092924

                                 ISBN 978-85-7358-982-5
                                    Impresso no Brasil

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Consagrado à memória pura de meu pai, Rabino Moshê Chaim*, de minha mãe, Rabanit
Chaia, de meu irmão, Shmuel Its’chak, de meu avô, Rabino Sim’cha Frenkel-Teomim,
de meus tios e tias e de todos os membros da minha família que ascenderam ao céu em
tempestade, junto com seis milhões de pessoas do povo de Israel.
A voz de seu sangue brada a nós do solo. Ó terra, não encubra o sangue deles e não se
possa ocultar o seu clamor. Hy”d **




* [N. da T.] Para as palavras em inglês, francês, alemão, espanhol, italiano, holandês, eslovaco
e polonês, foi utilizada, na medida do possível, a grafia original. Palavras em hebraico,
aramaico, iídiche, árabe, russo e japonês foram transliteradas foneticamente, na medida do
possível. Nestas, ch serviu para o som correspondente a rr.
** [N. da T.] Hy”d, abreviatura de Hashem yicom damô [Que D´us vingue o seu sangue].
Introdução ............................................................................................................ 9


                  PRIMEIRA PARTE: O CUTELO, O FOGO E A LENHA

Primeiras lembranças – Destruição da casa ................................................16
A casa paterna ....................................................................................................34
O discurso que salvou a minha vida .............................................................60
Buchenwald – O túnel escuro e centelhas de luz...................................... 73
A libertação – Deixa-me ir porque amanheceu ....................................... 100
Visão dos ossos secos ..................................................................................... 123
Terra de Israel – Quem são estes que como nuvem voam... ..................144
... E como pombas para os seus pombais ................................................... 169
No universo da Torá: adolescência ............................................................. 196
No universo da Torá: juventude ..................................................................225
As colunas de fogo ......................................................................................... 264
Portanto o homem deixará ...........................................................................303
SEGUNDA PARTE: O CHIFRE DO CARNEIRO

E não há quem fale, pois a dor cresceu muito ..........................................332
Cinge Israel de força .......................................................................................350
Quem pelo fogo... quem pela espada... quem será atormentado...
  quem será elevado .......................................................................................371
Its’chak Rábin – A ponte que ruiu ..............................................................394
Encontro em Castel Gandolfo..................................................................... 406
De Fidel Castro até Nelson Mandela ........................................................ 449
Praszow – Assim foi restaurada a sua antiga glória .............................. 486
Na terra dos vivos............................................................................................497
Apêndice
Um soldado russo entre os justos ............................................................... 521
Receptor do Prêmio Israel ........................................................................... 524
Índice remissivo...............................................................................................529
Introdução


    “O que você sentiu? No que pensou? O que você tinha diante dos
olhos?” Estas perguntas e outras semelhantes me foram feitas depois de
dizer o Cadish1 e versículos selecionados de Salmos na cerimônia que se
realizou em Auschwitz-Birkenau, ao se completarem sessenta anos de
nossa libertação. Caía muita neve. O frio era de congelar. Durante três
horas tive pena dos milhares de presentes ali, dentre eles o presidente de
Israel, o vice-presidente dos Estados Unidos, presidentes e primeiros-
ministros dos países mais importantes da Europa. Tive mais pena deles
do que do grande grupo de sobreviventes da Shoá, dentre eles o meu irmão
Naftali, que se encontrava ali. Pois nós estávamos acostumados a isto.
Permanecíamos de pé por horas em formação sem qualquer roupa que
merecesse receber este nome. Uma túnica listada sobre o corpo, tamancos
de madeira nos pés. E eis-nos aqui, sessenta anos depois, vivos e existindo,
apesar de tudo.
    De olhos fechados eu recitei ali “Mesmo se eu seguir por um vale
de sombras não temerei, pois Tu estarás comigo... pois salvaste minha
alma da morte... caminharei diante do Senhor nas terras dos vivos... seja
engrandecido e consagrado o Seu grande nome...”




1 [N. da T.] Literalmente: santificação. Oração de louvor a D´us recitada em celebrações a
almas de entes falecidos.


                                            9
Lúlek


    Meus olhos estavam fechados, mas eu os enxerguei bem. Vi-os descendo
dos vagões do trem, bem ao meu lado. Vi-os parados na seleção – quem
para a vida e quem para a morte – exatamente neste lugar. Vi os olhares
de espanto em seus olhos quando perceberam que tinham sido enganados
e ficaram decepcionados. Vi os homens da Gestapo e seus ajudantes
ucranianos golpeando, empurrando, tendo consigo seus terríveis cães,
de goela escancarada. Vi como arrancavam crianças e bebês dos colos de
seus pais. Vi a dissolução das famílias com crueldade animalesca. Sempre,
diante dos meus olhos, há três coisas ligadas aos pesadelos da infância:
trens, botas e cães...
    Ouvi os gritos “schnell, schnell”, rápido, rápido. Ouvi os latidos. Ouvi
os gritos das crianças: “Mame! Tate!”, ouvi os apelos das mães e vi rostos
cobertos de sangue de pais golpeados com os cabos das armas porque
tentaram proteger uma criança no colo.
    Com todo o respeito a presidentes e chefes de governo, com todo o
amor e destino compartilhado com meus irmãos e irmãs salvos do fogo,
não avistei nenhum deles. Em nome deles eu recitei o Cadish por aqueles
que foram cruelmente exterminados aqui, em Auschwitz-Birkenau, e nos
demais campos de extermínio, nos campos de concentração, nos guetos,
nas florestas e nas estradas.


    A recitação do Cadish em 17 do mês judaico de Shvat de 5765, [27 de
janeiro de 2005], foi um acontecimento único. Em contraste, este livro
que os senhores têm em mãos agora, é uma vela em memória perene. Uma
recordação eterna que contará para as gerações que se seguirem a história
naquele túnel escuro, sobre as faíscas de luz que se romperam dentro dele
e as luzes de esperança e fé posteriores.


    Apesar das súplicas repetidas e recorrentes para escrever a minha bio-
grafia, seja por mim ou por outros, recusei e respondi com uma negativa.
Este livro não é uma autobiografia no sentido comum do termo. Vocês não

                                     10
Introdução


lerão nele a respeito de quarenta e quatro anos de rabinato de forma gra-
dual, da parte sul de Tel Aviv até o rabinato-chefe de Israel. Não se falará
nele sobre os quinze anos de atuação nos tribunais rabínicos à testa dos
presidentes de tribunais de Tel Aviv-Yafo e como presidente do grande
tribunal rabínico de Jerusalém, e a respeito das histórias excitantes que
ocorreram dentre aquelas paredes. Não será narrado a respeito dos onze
anos de docência e educação nas instituições educacionais Tseitlin, em
Tel Aviv, Brener e Achad Haam em Petach Tikva. Não descreverei aqui ex-
periências de vinte e cinco anos de atuação no âmbito do serviço de reser-
vistas do Exército de Israel, de Port Taufik, no sul, até Nabatiye, no norte.
Não há neste livro a história das atividades interessantes no Conselho
Público em prol dos judeus da União Soviética, na condução do Conselho
Nacional para Prevenção de Acidentes de Trânsito, no Conselho Superior
de Experiências Médicas em seres humanos, que autorizou a inseminação
extracorpórea em Israel, na solução do difícil conflito em torno das obras
do Hotel Ganê-Chamat, em Tiberíades, no Comitê Rabínico Central a
respeito de transplante de coração e de fígado, no Conselho Público para o
Progresso da Juventude em Natânia, à testa de entidades de benemerência
e saúde e muitos outros setores de atuação, ausentes deste livro.
    O que, sim, encontrarão nele? Todas as lembranças da Shoá, do ponto
de vista pessoal, de como me livrei dos temores do corpo e da alma, meu
crescimento como menino e como adolescente sem pais e sem casa, junto
com histórias de meu encontro com pessoas especiais e superiores, alia-
das ou não, ligadas, algumas mais e outras menos, ao milagre da salvação
nacional e pessoal. Minha saída do forno crematório, a construção da casa
em minha pátria e a passagem da Shoá ao renascimento, esta é a história
do livro.
    A chama que ilumina os sobreviventes se transformou com o passar
do tempo em brasa. A natureza da brasa é bruxulear e apagar-se. Tento
insuflar fogo na brasa para que ela não se apague jamais. Uma menina de
14 anos, Anne Frank, hy”d, conseguiu emocionar o mundo todo. Não há

                                      11
Lúlek


motivo algum para que a história das circunstâncias de minha vida, tão di-
ferentes, não chegue ao conhecimento das pessoas e lhes cause uma refle-
xão adicional, de exame de consciência, e talvez também a conclusão que,
apesar de todas as perguntas e apesar de todas as questões, “caminharei
diante do Senhor nas terras dos vivos.”
    O rei Salomão disse na inauguração do Templo Sagrado: “Disse o
Senhor que queria habitar nas trevas”. Justamente além da cortina de
mistério, no mundo oculto, latente e desconhecido, ali habita a shechiná,
a inspiração divina. O rebe2 de Kotsk costumava dizer: “Não sou capaz
de servir a D´us quando todos os seus caminhos me são claros”. Se tudo
é nítido, revelado e conhecido, isto eh uma amizade e não deidade. “Eis
aqui as provas pelas quais ireis passar.” A fé é examinada justamente pelas
coisas espantosas e incompreensíveis. Creio, e assim farei até o meu último
dia. “Castigar, o Senhor me castigou, mas não me entregou à morte.” Não
creio em casualidade, mas em providência superior. A pergunta para a
qual não encontrei resposta é a pergunta do por quê? Por que isto precisou
acontecer? Por que Mílek, meu irmão, hy”d, foi arrancado de minha mãe
para a morte e eu fui separado dela para a vida? Pelo visto, jamais saberei,
mas isto não é capaz de afetar a minha crença em quem disse “e houve o
mundo.” “Em suas mãos depositarei o meu espírito.”
    “Cumprirei meus votos para com o Senhor na presença de todo o seu
povo.” Ao acordar toda manhã de meu sono, digo com intenção integral:
“Agradeço-Te, Rei vivo e eterno, que em mim restauraste minha alma com
misericórdia...”


    Sou eternamente grato ao meu irmão Naftali, que arriscou a sua
vida incontáveis vezes para cumprir o testamento de nosso pai, hy”d, de


2 [N. da T.] Rabino líder de grupo chassídico.


                                             12
Introdução


cuidar de mim e garantir a dinastia rabínica. Apenas um mínimo deste
seu ato se expressa no livro. Nosso irmão primogênito, Iehoshua, – nós o
encontramos em Atlit ao chegarmos a Israel. Ele e Naftali, junto com meu
tio, minha tia e mestres, investiram muita consideração e boa vontade em
minha educação e em meu crescimento e fizeram tudo o que foi possível
para afastar de mim a dor da orfandade precoce.
   Um agradecimento especial é reservado em meu coração para a minha
esposa Chaita, que tenha longa vida, que assumiu uma missão nada fácil
de estabelecer um lar e uma família com um companheiro de vida que
não sabia exatamente o que eram um lar e uma família. Foram exigidas
dela muita coragem e firmeza, e ela enfrentou honrosamente todas as
dificuldades de nosso caminho comum.
   O primeiro alvo do meu livro são os meus filhos. Eles realmente
ouviram de mim algo das atribulações do caminho, mas jamais contei a
história toda. Fomos aquinhoados, minha esposa e eu, com filhos e filhas,
genros, noras e netos, todos são uma geração abençoada de pessoas
corretas, bem dotadas por D´us com características caras e maravilhosas.
Eles são também a resposta a todos os anseios do coração. São fruto da
vitória extraordinária diante de todos que se erguem contra nós.
   Tenho certeza de que à leitura deste livro, eles e os de sua geração
entenderão o valor supremo da santificação da vida e o segredo da
existência da eternidade de Israel.
   Expresso meu agradecimento e minha apreciação ao diretor-geral da
editora, Dov Eichenwald, que me estimulou a publicar as minhas memórias
e não descansou até que os seus esforços rendessem frutos. Tenho um
sincero reconhecimento a Anat Midan pela atenção e a Tirtsa Arazi pelo
trabalho completado e a grande sensibilidade.
   Também agradeço a Iekutiel [Kuti] Téper e aos membros de sua
equipe pelos esforços e os recursos que investiram na produção do livro e
sua edição.



                                      13
Lúlek


   Concluirei com uma oração ao Criador do universo, para que nenhum
povo erga a espada contra outro e não mais se guerreie. Porque nenhuma
criança no mundo todo deverá passar pela senda de sofrimentos que
trilhamos, meus companheiros e eu, até chegarmos como filhos que
retornam aos limites de sua terra.



   Israel Meir Lau
   Tel Aviv
   Adar B 5765 [2005]




                                      14
Primeira parte



O CUTELO, O FOGO E A LENHA




Disse, eis o fogo e a lenha
Onde está o cordeiro para o sacrifício?
...
Abraão estendeu a mão e tomou o cutelo
Lúlek




             Primeiras lembranças – Destruição da casa


   A imagem de meu pai, parado no campo dos expulsos. Esta é uma
imagem que me acompanha onde quer que eu vá; a primeira lembrança da
infância gravada em minha mente.
   Eu, um menino de cinco anos e quatro meses, baixinho e assustado,
estendo ao máximo o pescoço, elevando a cabeça, para ver o meu pai
parado no campo, o Umschlagplatz, junto à Grande Sinagoga da nossa
cidade, Piotrkow Trybunalski. Papai, com sua barba impressionante, em
seu terno preto de rabino, estava parado no centro, rodeado de judeus. De
um lado estavam os homens, do outro, as mulheres e as crianças.
   Eu também estava lá, do outro lado, junto com minha mãe e o meu
irmão Shmuel-Mílek, de treze anos. Meu irmão mais velho, Túlek-Naftali,
de dezesseis anos, se encontrava então na fábrica de vidro Hortênsia,
perto de Piotrkow, onde trabalhava. Um ano antes tinha sido levado
de nossa casa em Piotrkow e conduzido a Auschwitz. Dois oficiais da
SS, de fardas pretas, fitas vermelhas em seus braços com uma suástica
brilhando no meio delas, arrombaram a porta dianteira de nossa casa e
perguntaram aos berros a Naftali onde se encontrava o rabino. Não o tendo
encontrado, arrastaram Naftali consigo, o interrogaram e torturaram no
porão da Gestapo, e em 30 de junho o colocaram em um caminhão que
foi diretamente para Auschwitz. Ali foi empregado em trabalho forçado
e não cessou de tramar um projeto de fuga. No quadragésimo dia de sua
prisão, o projeto se concretizou e ele conseguiu fugir do inferno e voltar
para casa.

                                    16
Primeiras lembranças – Destruição da casa


   Os sintomas do inferno começaram a nos atingir também, em
Piotrkow.
   Na praça diante da sinagoga, sentia-se a tensão enorme na expectativa
de todos os presentes na praça das expulsões. Em torno reinava um silêncio
profundo e ameaçador. Repentinamente, o comandante da Gestapo
de Piotrkow aproximou-se do meu pai, com um olhar assassino. Parou
diante dele, sacou do cinto o seu maike, um porrete de borracha de um
metro de comprimento, e fustigou com toda a força as costas do meu pai.
Por causa da surpresa do golpe, desferido por trás, e de seu impacto, meu
pai foi empurrado alguns passos à frente. Seu corpo se curvou para dentro,
acachapado, parecia que estava para tombar. E então, em uma fração de
segundo, ele se endireitou, deu um passo para trás e retornou ao lugar
em que se encontrava antes de receber o golpe. Ali ele permaneceu ereto,
ocultando com forças supremas a dor física e a imensa humilhação. Eu
pude ver meu pai se empenhando, com toda a sua capacidade, para manter
o equilíbrio e não cair aos pés do alemão. Papai sabia que a sua queda
causaria a quebra dos judeus da cidade e tentou a todo custo evitar isto.
   Todos ao seu redor sabiam por que o alemão o fustigara. Os nazistas
ordenaram que os judeus raspassem as barbas. Muitos dos judeus de
Piotrkow se aconselharam com papai se deviam cumprir a ordem, e sua
resposta foi veemente: façam isto para se livrar de um castigo. Mas consigo
próprio ele foi mais rígido e manteve a barba e as peot, os cachos laterais,
para preservar o respeito pela instituição rabínica da cidade e a tradição
ancestral. Por causa desta sua desobediência, o porrete golpeou as suas
costas.
   Mas as pancadas tinham motivos adicionais. O comandante da
Gestapo nazista escolheu maltratar justamente o meu pai também pelo
fato de ele falar alemão fluentemente, assim como pelo fato de ser o rabino
da cidade. O meu pai era o representante dos judeus ante os alemães.
Muitas instruções dos homens da Gestapo para os judeus de Piotrkow
passavam por ele, assim como pedidos dos judeus para a Gestapo. Ele

                                            17
Lúlek


era uma figura muito respeitada na comunidade judaica. Espancá-lo e,
principalmente, humilhá-lo, era, do ponto de vista dos alemães, muito
mais do que espancar mais um judeu. Isto tinha um grande significado
simbólico e moral.
    E talvez houvesse ainda mais um motivo, ou, ao menos, uma conjunção
de fatos. Assim me contou posteriormente o Dr. Avraham Grinberg, diretor
do hospital judaico de Piotrkow, que escapou do inferno e se tornou um
famoso ginecologista em Tel Aviv. Ele se encontrava ao lado do meu pai
na praça da sinagoga, junto com o grupo judeu do conselho de anciães
da cidade, quando o meu pai disse aos judeus que estavam ao seu redor:
“Não sei por que nos encontramos aqui de braços cruzados. Mesmo não
possuindo armas, devemos atacá-los com nossas unhas. Não acho que
alguém de nós poderá se salvar por estar parado aqui. Não perderemos
nada se tentarmos lutar com eles”. Ele estava acabando a frase quando o
porrete do comandante da Gestapo atingiu as suas costas.
    Esta imagem está gravada em mim principalmente porque presenciei
a tremenda humilhação. Como menino, é verdade que não entendi tão
bem a questão da barba e o significado da ordem de raspá-la, mas entendi
que estavam espancando terrivelmente o meu pai. Uma criança não é
capaz de ver o seu pai, a figura de herói com a qual ele se identifica, sendo
humilhado. E eu, que sabia que o meu pai era o rabino-chefe da cidade,
que todos reverenciavam e amavam, não consegui suportar o golpe e a
humilhação, seja porque ele era o meu pai, seja porque era o rabino da
cidade. Mesmo hoje, quando olho para trás, para os seis anos daquela
guerra, é claro que a pior coisa pela qual passei na Shoá não foi a fome,
nem o frio ou as pancadas, mas a humilhação. Difícil, é quase impossível
suportar a terrível impotência ante uma humilhação sem qualquer culpa.
A sensação de impotência é parte da humilhação. Durante todos os anos
da guerra pairou na minha cabeça a palavra polonesa: latsgo, que significa
“por quê?” O que lhes fizemos para que vocês nos espezinhem? Quão
grande foi o nosso pecado para que este seja o seu castigo? E não houve

                                     18

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A história do menino que sobreviveu ao Holocausto

  • 1. LúLEK A HISTÓRIA DO MENINO QUE SAIU DO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO PARA SE TORNAR O GRÃO-RABINO DE ISRAEL
  • 2.
  • 3. Rabino Israel Meir Lau LúLEK A HISTÓRIA DO MENINO QUE SAIU DO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO PARA SE TORNAR O GRÃO-RABINO DE ISRAEL
  • 4. LÚLek a história do menino que saiu do campo de concentração para se tornar o grão-rabino de israel Título original: Al tshlach yadecha el hanaar (Não erga a mão contra o menino) 2011 © Rabino Israel Meir Lau Editor / Publisher Nissim Yehezkel Editora Executiva Raquel Yehezkel Tradução Nancy Rozenchan Revisão Raquel Yehezkel Projeto gráfico Vanderlucio Vieira Fotografias Peter Halmagyi www.PHphotos.us Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil ________________________________________________________________________________ Lau, Israel Meir Lúlek – A história do menino que saiu do campo de concentração para se tornar o Grão- Rabino de Israel / Israel Meir Lau ; [tradução do hebraico - Nancy Rozenchan]. — Belo Horizonte : Editora Leitura, 2011. 1. Guerra Mundial, 1939-1945 - Narrativas pessoais 2. Holocausto judeu (1939-1945) - Narrativas pessoais 3. Holocausto judeu (1939-1945) - Polônia - Narrativas pessoais 4. Lau, Isarel Meir, 1937 - 5. Autobiográficas 6. Rabinos - Autobiografia 7. Sobreviventes do Holocausto I. Título. 11-01923 CDD-920.0092924 ________________________________________________________________________________ Índices para catálogo sistemático: 1. Judeus sobreviventes do Holocausto : Memórias autobiográficas 920.0092924 ISBN 978-85-7358-982-5 Impresso no Brasil Todos os direitos reservados à © Editora Leitura Ltda. Rua Pedra Bonita, 870 Barroca – Cep 30431-065 Belo Horizonte – MG – Brasil – Telefax: (31) 3379-0620 www.editoraleitura.com.br | leitura@editoraleitura.com.br Acompanhe-nos: Blogs: http://blogeditoraleitura.com | Twitter: http://twitter.com/editoraleitura
  • 5. Consagrado à memória pura de meu pai, Rabino Moshê Chaim*, de minha mãe, Rabanit Chaia, de meu irmão, Shmuel Its’chak, de meu avô, Rabino Sim’cha Frenkel-Teomim, de meus tios e tias e de todos os membros da minha família que ascenderam ao céu em tempestade, junto com seis milhões de pessoas do povo de Israel. A voz de seu sangue brada a nós do solo. Ó terra, não encubra o sangue deles e não se possa ocultar o seu clamor. Hy”d ** * [N. da T.] Para as palavras em inglês, francês, alemão, espanhol, italiano, holandês, eslovaco e polonês, foi utilizada, na medida do possível, a grafia original. Palavras em hebraico, aramaico, iídiche, árabe, russo e japonês foram transliteradas foneticamente, na medida do possível. Nestas, ch serviu para o som correspondente a rr. ** [N. da T.] Hy”d, abreviatura de Hashem yicom damô [Que D´us vingue o seu sangue].
  • 6. Introdução ............................................................................................................ 9 PRIMEIRA PARTE: O CUTELO, O FOGO E A LENHA Primeiras lembranças – Destruição da casa ................................................16 A casa paterna ....................................................................................................34 O discurso que salvou a minha vida .............................................................60 Buchenwald – O túnel escuro e centelhas de luz...................................... 73 A libertação – Deixa-me ir porque amanheceu ....................................... 100 Visão dos ossos secos ..................................................................................... 123 Terra de Israel – Quem são estes que como nuvem voam... ..................144 ... E como pombas para os seus pombais ................................................... 169 No universo da Torá: adolescência ............................................................. 196 No universo da Torá: juventude ..................................................................225 As colunas de fogo ......................................................................................... 264 Portanto o homem deixará ...........................................................................303
  • 7. SEGUNDA PARTE: O CHIFRE DO CARNEIRO E não há quem fale, pois a dor cresceu muito ..........................................332 Cinge Israel de força .......................................................................................350 Quem pelo fogo... quem pela espada... quem será atormentado... quem será elevado .......................................................................................371 Its’chak Rábin – A ponte que ruiu ..............................................................394 Encontro em Castel Gandolfo..................................................................... 406 De Fidel Castro até Nelson Mandela ........................................................ 449 Praszow – Assim foi restaurada a sua antiga glória .............................. 486 Na terra dos vivos............................................................................................497 Apêndice Um soldado russo entre os justos ............................................................... 521 Receptor do Prêmio Israel ........................................................................... 524 Índice remissivo...............................................................................................529
  • 8.
  • 9. Introdução “O que você sentiu? No que pensou? O que você tinha diante dos olhos?” Estas perguntas e outras semelhantes me foram feitas depois de dizer o Cadish1 e versículos selecionados de Salmos na cerimônia que se realizou em Auschwitz-Birkenau, ao se completarem sessenta anos de nossa libertação. Caía muita neve. O frio era de congelar. Durante três horas tive pena dos milhares de presentes ali, dentre eles o presidente de Israel, o vice-presidente dos Estados Unidos, presidentes e primeiros- ministros dos países mais importantes da Europa. Tive mais pena deles do que do grande grupo de sobreviventes da Shoá, dentre eles o meu irmão Naftali, que se encontrava ali. Pois nós estávamos acostumados a isto. Permanecíamos de pé por horas em formação sem qualquer roupa que merecesse receber este nome. Uma túnica listada sobre o corpo, tamancos de madeira nos pés. E eis-nos aqui, sessenta anos depois, vivos e existindo, apesar de tudo. De olhos fechados eu recitei ali “Mesmo se eu seguir por um vale de sombras não temerei, pois Tu estarás comigo... pois salvaste minha alma da morte... caminharei diante do Senhor nas terras dos vivos... seja engrandecido e consagrado o Seu grande nome...” 1 [N. da T.] Literalmente: santificação. Oração de louvor a D´us recitada em celebrações a almas de entes falecidos. 9
  • 10. Lúlek Meus olhos estavam fechados, mas eu os enxerguei bem. Vi-os descendo dos vagões do trem, bem ao meu lado. Vi-os parados na seleção – quem para a vida e quem para a morte – exatamente neste lugar. Vi os olhares de espanto em seus olhos quando perceberam que tinham sido enganados e ficaram decepcionados. Vi os homens da Gestapo e seus ajudantes ucranianos golpeando, empurrando, tendo consigo seus terríveis cães, de goela escancarada. Vi como arrancavam crianças e bebês dos colos de seus pais. Vi a dissolução das famílias com crueldade animalesca. Sempre, diante dos meus olhos, há três coisas ligadas aos pesadelos da infância: trens, botas e cães... Ouvi os gritos “schnell, schnell”, rápido, rápido. Ouvi os latidos. Ouvi os gritos das crianças: “Mame! Tate!”, ouvi os apelos das mães e vi rostos cobertos de sangue de pais golpeados com os cabos das armas porque tentaram proteger uma criança no colo. Com todo o respeito a presidentes e chefes de governo, com todo o amor e destino compartilhado com meus irmãos e irmãs salvos do fogo, não avistei nenhum deles. Em nome deles eu recitei o Cadish por aqueles que foram cruelmente exterminados aqui, em Auschwitz-Birkenau, e nos demais campos de extermínio, nos campos de concentração, nos guetos, nas florestas e nas estradas. A recitação do Cadish em 17 do mês judaico de Shvat de 5765, [27 de janeiro de 2005], foi um acontecimento único. Em contraste, este livro que os senhores têm em mãos agora, é uma vela em memória perene. Uma recordação eterna que contará para as gerações que se seguirem a história naquele túnel escuro, sobre as faíscas de luz que se romperam dentro dele e as luzes de esperança e fé posteriores. Apesar das súplicas repetidas e recorrentes para escrever a minha bio- grafia, seja por mim ou por outros, recusei e respondi com uma negativa. Este livro não é uma autobiografia no sentido comum do termo. Vocês não 10
  • 11. Introdução lerão nele a respeito de quarenta e quatro anos de rabinato de forma gra- dual, da parte sul de Tel Aviv até o rabinato-chefe de Israel. Não se falará nele sobre os quinze anos de atuação nos tribunais rabínicos à testa dos presidentes de tribunais de Tel Aviv-Yafo e como presidente do grande tribunal rabínico de Jerusalém, e a respeito das histórias excitantes que ocorreram dentre aquelas paredes. Não será narrado a respeito dos onze anos de docência e educação nas instituições educacionais Tseitlin, em Tel Aviv, Brener e Achad Haam em Petach Tikva. Não descreverei aqui ex- periências de vinte e cinco anos de atuação no âmbito do serviço de reser- vistas do Exército de Israel, de Port Taufik, no sul, até Nabatiye, no norte. Não há neste livro a história das atividades interessantes no Conselho Público em prol dos judeus da União Soviética, na condução do Conselho Nacional para Prevenção de Acidentes de Trânsito, no Conselho Superior de Experiências Médicas em seres humanos, que autorizou a inseminação extracorpórea em Israel, na solução do difícil conflito em torno das obras do Hotel Ganê-Chamat, em Tiberíades, no Comitê Rabínico Central a respeito de transplante de coração e de fígado, no Conselho Público para o Progresso da Juventude em Natânia, à testa de entidades de benemerência e saúde e muitos outros setores de atuação, ausentes deste livro. O que, sim, encontrarão nele? Todas as lembranças da Shoá, do ponto de vista pessoal, de como me livrei dos temores do corpo e da alma, meu crescimento como menino e como adolescente sem pais e sem casa, junto com histórias de meu encontro com pessoas especiais e superiores, alia- das ou não, ligadas, algumas mais e outras menos, ao milagre da salvação nacional e pessoal. Minha saída do forno crematório, a construção da casa em minha pátria e a passagem da Shoá ao renascimento, esta é a história do livro. A chama que ilumina os sobreviventes se transformou com o passar do tempo em brasa. A natureza da brasa é bruxulear e apagar-se. Tento insuflar fogo na brasa para que ela não se apague jamais. Uma menina de 14 anos, Anne Frank, hy”d, conseguiu emocionar o mundo todo. Não há 11
  • 12. Lúlek motivo algum para que a história das circunstâncias de minha vida, tão di- ferentes, não chegue ao conhecimento das pessoas e lhes cause uma refle- xão adicional, de exame de consciência, e talvez também a conclusão que, apesar de todas as perguntas e apesar de todas as questões, “caminharei diante do Senhor nas terras dos vivos.” O rei Salomão disse na inauguração do Templo Sagrado: “Disse o Senhor que queria habitar nas trevas”. Justamente além da cortina de mistério, no mundo oculto, latente e desconhecido, ali habita a shechiná, a inspiração divina. O rebe2 de Kotsk costumava dizer: “Não sou capaz de servir a D´us quando todos os seus caminhos me são claros”. Se tudo é nítido, revelado e conhecido, isto eh uma amizade e não deidade. “Eis aqui as provas pelas quais ireis passar.” A fé é examinada justamente pelas coisas espantosas e incompreensíveis. Creio, e assim farei até o meu último dia. “Castigar, o Senhor me castigou, mas não me entregou à morte.” Não creio em casualidade, mas em providência superior. A pergunta para a qual não encontrei resposta é a pergunta do por quê? Por que isto precisou acontecer? Por que Mílek, meu irmão, hy”d, foi arrancado de minha mãe para a morte e eu fui separado dela para a vida? Pelo visto, jamais saberei, mas isto não é capaz de afetar a minha crença em quem disse “e houve o mundo.” “Em suas mãos depositarei o meu espírito.” “Cumprirei meus votos para com o Senhor na presença de todo o seu povo.” Ao acordar toda manhã de meu sono, digo com intenção integral: “Agradeço-Te, Rei vivo e eterno, que em mim restauraste minha alma com misericórdia...” Sou eternamente grato ao meu irmão Naftali, que arriscou a sua vida incontáveis vezes para cumprir o testamento de nosso pai, hy”d, de 2 [N. da T.] Rabino líder de grupo chassídico. 12
  • 13. Introdução cuidar de mim e garantir a dinastia rabínica. Apenas um mínimo deste seu ato se expressa no livro. Nosso irmão primogênito, Iehoshua, – nós o encontramos em Atlit ao chegarmos a Israel. Ele e Naftali, junto com meu tio, minha tia e mestres, investiram muita consideração e boa vontade em minha educação e em meu crescimento e fizeram tudo o que foi possível para afastar de mim a dor da orfandade precoce. Um agradecimento especial é reservado em meu coração para a minha esposa Chaita, que tenha longa vida, que assumiu uma missão nada fácil de estabelecer um lar e uma família com um companheiro de vida que não sabia exatamente o que eram um lar e uma família. Foram exigidas dela muita coragem e firmeza, e ela enfrentou honrosamente todas as dificuldades de nosso caminho comum. O primeiro alvo do meu livro são os meus filhos. Eles realmente ouviram de mim algo das atribulações do caminho, mas jamais contei a história toda. Fomos aquinhoados, minha esposa e eu, com filhos e filhas, genros, noras e netos, todos são uma geração abençoada de pessoas corretas, bem dotadas por D´us com características caras e maravilhosas. Eles são também a resposta a todos os anseios do coração. São fruto da vitória extraordinária diante de todos que se erguem contra nós. Tenho certeza de que à leitura deste livro, eles e os de sua geração entenderão o valor supremo da santificação da vida e o segredo da existência da eternidade de Israel. Expresso meu agradecimento e minha apreciação ao diretor-geral da editora, Dov Eichenwald, que me estimulou a publicar as minhas memórias e não descansou até que os seus esforços rendessem frutos. Tenho um sincero reconhecimento a Anat Midan pela atenção e a Tirtsa Arazi pelo trabalho completado e a grande sensibilidade. Também agradeço a Iekutiel [Kuti] Téper e aos membros de sua equipe pelos esforços e os recursos que investiram na produção do livro e sua edição. 13
  • 14. Lúlek Concluirei com uma oração ao Criador do universo, para que nenhum povo erga a espada contra outro e não mais se guerreie. Porque nenhuma criança no mundo todo deverá passar pela senda de sofrimentos que trilhamos, meus companheiros e eu, até chegarmos como filhos que retornam aos limites de sua terra. Israel Meir Lau Tel Aviv Adar B 5765 [2005] 14
  • 15. Primeira parte O CUTELO, O FOGO E A LENHA Disse, eis o fogo e a lenha Onde está o cordeiro para o sacrifício? ... Abraão estendeu a mão e tomou o cutelo
  • 16. Lúlek Primeiras lembranças – Destruição da casa A imagem de meu pai, parado no campo dos expulsos. Esta é uma imagem que me acompanha onde quer que eu vá; a primeira lembrança da infância gravada em minha mente. Eu, um menino de cinco anos e quatro meses, baixinho e assustado, estendo ao máximo o pescoço, elevando a cabeça, para ver o meu pai parado no campo, o Umschlagplatz, junto à Grande Sinagoga da nossa cidade, Piotrkow Trybunalski. Papai, com sua barba impressionante, em seu terno preto de rabino, estava parado no centro, rodeado de judeus. De um lado estavam os homens, do outro, as mulheres e as crianças. Eu também estava lá, do outro lado, junto com minha mãe e o meu irmão Shmuel-Mílek, de treze anos. Meu irmão mais velho, Túlek-Naftali, de dezesseis anos, se encontrava então na fábrica de vidro Hortênsia, perto de Piotrkow, onde trabalhava. Um ano antes tinha sido levado de nossa casa em Piotrkow e conduzido a Auschwitz. Dois oficiais da SS, de fardas pretas, fitas vermelhas em seus braços com uma suástica brilhando no meio delas, arrombaram a porta dianteira de nossa casa e perguntaram aos berros a Naftali onde se encontrava o rabino. Não o tendo encontrado, arrastaram Naftali consigo, o interrogaram e torturaram no porão da Gestapo, e em 30 de junho o colocaram em um caminhão que foi diretamente para Auschwitz. Ali foi empregado em trabalho forçado e não cessou de tramar um projeto de fuga. No quadragésimo dia de sua prisão, o projeto se concretizou e ele conseguiu fugir do inferno e voltar para casa. 16
  • 17. Primeiras lembranças – Destruição da casa Os sintomas do inferno começaram a nos atingir também, em Piotrkow. Na praça diante da sinagoga, sentia-se a tensão enorme na expectativa de todos os presentes na praça das expulsões. Em torno reinava um silêncio profundo e ameaçador. Repentinamente, o comandante da Gestapo de Piotrkow aproximou-se do meu pai, com um olhar assassino. Parou diante dele, sacou do cinto o seu maike, um porrete de borracha de um metro de comprimento, e fustigou com toda a força as costas do meu pai. Por causa da surpresa do golpe, desferido por trás, e de seu impacto, meu pai foi empurrado alguns passos à frente. Seu corpo se curvou para dentro, acachapado, parecia que estava para tombar. E então, em uma fração de segundo, ele se endireitou, deu um passo para trás e retornou ao lugar em que se encontrava antes de receber o golpe. Ali ele permaneceu ereto, ocultando com forças supremas a dor física e a imensa humilhação. Eu pude ver meu pai se empenhando, com toda a sua capacidade, para manter o equilíbrio e não cair aos pés do alemão. Papai sabia que a sua queda causaria a quebra dos judeus da cidade e tentou a todo custo evitar isto. Todos ao seu redor sabiam por que o alemão o fustigara. Os nazistas ordenaram que os judeus raspassem as barbas. Muitos dos judeus de Piotrkow se aconselharam com papai se deviam cumprir a ordem, e sua resposta foi veemente: façam isto para se livrar de um castigo. Mas consigo próprio ele foi mais rígido e manteve a barba e as peot, os cachos laterais, para preservar o respeito pela instituição rabínica da cidade e a tradição ancestral. Por causa desta sua desobediência, o porrete golpeou as suas costas. Mas as pancadas tinham motivos adicionais. O comandante da Gestapo nazista escolheu maltratar justamente o meu pai também pelo fato de ele falar alemão fluentemente, assim como pelo fato de ser o rabino da cidade. O meu pai era o representante dos judeus ante os alemães. Muitas instruções dos homens da Gestapo para os judeus de Piotrkow passavam por ele, assim como pedidos dos judeus para a Gestapo. Ele 17
  • 18. Lúlek era uma figura muito respeitada na comunidade judaica. Espancá-lo e, principalmente, humilhá-lo, era, do ponto de vista dos alemães, muito mais do que espancar mais um judeu. Isto tinha um grande significado simbólico e moral. E talvez houvesse ainda mais um motivo, ou, ao menos, uma conjunção de fatos. Assim me contou posteriormente o Dr. Avraham Grinberg, diretor do hospital judaico de Piotrkow, que escapou do inferno e se tornou um famoso ginecologista em Tel Aviv. Ele se encontrava ao lado do meu pai na praça da sinagoga, junto com o grupo judeu do conselho de anciães da cidade, quando o meu pai disse aos judeus que estavam ao seu redor: “Não sei por que nos encontramos aqui de braços cruzados. Mesmo não possuindo armas, devemos atacá-los com nossas unhas. Não acho que alguém de nós poderá se salvar por estar parado aqui. Não perderemos nada se tentarmos lutar com eles”. Ele estava acabando a frase quando o porrete do comandante da Gestapo atingiu as suas costas. Esta imagem está gravada em mim principalmente porque presenciei a tremenda humilhação. Como menino, é verdade que não entendi tão bem a questão da barba e o significado da ordem de raspá-la, mas entendi que estavam espancando terrivelmente o meu pai. Uma criança não é capaz de ver o seu pai, a figura de herói com a qual ele se identifica, sendo humilhado. E eu, que sabia que o meu pai era o rabino-chefe da cidade, que todos reverenciavam e amavam, não consegui suportar o golpe e a humilhação, seja porque ele era o meu pai, seja porque era o rabino da cidade. Mesmo hoje, quando olho para trás, para os seis anos daquela guerra, é claro que a pior coisa pela qual passei na Shoá não foi a fome, nem o frio ou as pancadas, mas a humilhação. Difícil, é quase impossível suportar a terrível impotência ante uma humilhação sem qualquer culpa. A sensação de impotência é parte da humilhação. Durante todos os anos da guerra pairou na minha cabeça a palavra polonesa: latsgo, que significa “por quê?” O que lhes fizemos para que vocês nos espezinhem? Quão grande foi o nosso pecado para que este seja o seu castigo? E não houve 18