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LEIALDO PULZ
UM MUNDO CHAMADO
RÚSSIA
Explorando o interior e a alma de um país.
SUMÁRIO
SUMÁRIO ..........................................................................................4
INTRODUÇÃO..................................................................................6
ANTES DE TUDO…....................................................................... 11
VENTO DE MUDANÇAS...............................................................15
KRASNODAR 40 GRAUS..............................................................22
PRIMEIRAS IMPRESSÕES: VIAGEM AO PASSADO ................28
PRIMEIRO INVERNO ....................................................................37
MEDICINA ......................................................................................48
SISTEMA DE EDUCAÇÃO RUSSO ..............................................58
OS CONTRASTES ..........................................................................75
CURIOSIDADES CULTURAIS......................................................84
AALMA RUSSA: DO MISTICISMO AO CRISTIANISMO .........97
O INTERIOR DA RÚSSIA ............................................................ 110
DOLMENS E KURGANS .............................................................132
RUSSOS OU COSSACOS: O SUL DA RÚSSIA..........................148
O CÁUCASO NORTE: DE SOCHI ATÉ NALCHIK....................158
POLO NORTE: SALEKHARD .....................................................197
SALEKHARD, O RETORNO .......................................................222
STALINGRADO ............................................................................248
MOSCOU: CAPITAL DE TODAS AS RÚSSIAS.........................260
EXPERIÊNCIAS FUTEBOLÍSTICAS..........................................273
A VOLTA PARA CASA .................................................................288
CONCLUSÃO ................................................................................295
CONTATOS....................................................................................298
FOTOS............................................................................................299
INTRODUÇÃO
A Rússia é o maior país do mundo em extensão
territorial. Sua fundação remonta ao IX século, mas por
aquelas terras sempre vagaram contingentes humanos deste
uma época já esquecida na escuridão dos tempos. A região foi
palco de revoluções, conquistas, guerras, dramas e paixões
eternizadas pela História.
Mas sempre parece que aquele gigante se mostra aos
olhos do mundo de uma forma enigmática, fria e tenebrosa. A
Rússia é um mistério que muitos tentaram e ainda tentam
desvendar.
Nossa proposta neste livro não é chegarmos a uma
resposta final sobre todas as questões que envolvem este povo.
Gostaríamos de contribuir, mesmo que de forma modesta,
para que nossos leitores descubram um pouco mais das
“terras enevoadas e de trevas nos limites do mundo, às
margens do Oceano”, como descreveu Homero em sua famosa
Odisseia ao falar daquela região...
Ao olharmos a literatura disponível em nossa língua,
podemos perceber uma grande lacuna de livros sobre o tema
se compararmos ao tamanho da influência e representação da
Rússia ao longo da História.
Mas gostaria de citar aqui o caso de alguns livros
escritos por brasileiros que lá estiveram. O livro Os Caminhos
da Eterna Rússia de Tite De Lamare (1997) foi importante pelo
fato de ter sido escrito por uma embaixatriz brasileira, numa
envolvente visão da História russa, com todas as suas nuances
sócio-políticas e religiosas. Ainda poderia citar o livro de
Angelo Segrillo, que morou na URSS por alguns anos e
posteriormente na Rússia, fazendo um trabalho muito
semelhante ao da embaixatriz em seu livro Os Russos. Mais
recentemente foi lançado o livro Com Vista para o Kremlin,
da jornalista Vivian Oswald, que morou em Moscou entre
2007-2009, com um enfoque na Rússia atual, suas questões
políticas e econômicas. Ainda podemos citar Lágrimas na
chuva de Sergio Faraco, que conta sua experiência pessoal na
URSS nos anos de 1960.
Tenho que reconhecer, entretanto, que ao ler estes
livros, senti a falta de um olhar mais descompromissado com
sequências históricas (apesar de eu ser um historiador), ou
mesmo de um desapego à política e a assuntos da aristocracia
e dos altos escalões. Percebi que pouco ou quase nada era dito
do ponto de vista do povo em si, ou mesmo da vida cotidiana
do interior daquele que é o maior país do mundo. Notei que
esta lacuna poderia ser preenchida, de alguma forma pelas
nossas experiências de vida lá.
Moramos numa cidade que ficava longe dos grandes
centros como Moscou e São Petersburgo. Estávamos mais
deslocados para o sul, onde a vida passava num ritmo mais
cadenciado e provinciano. Apesar de Krasnodar ser a capital
do estado com o mesmo nome e ter quase um milhão de
habitantes, muitos que residem ali são oriundos de lugares
isolados, quase perdidos no mapa do Leste Europeu, Cáucaso
ou da Ásia Central. As mais de 70 etnias representadas em
Krasnodar dão o tamanho da multicolorida sociedade local.
O desejo neste livro era buscar um olhar mais objetivo,
da vida cotidiana e das dificuldades, alegrias, orgulhos de um
povo que não se representa pelos empresários ou cúpula
política de Moscou. De certa forma, buscamos trazer para o
leitor um pequeno pedaço da alma russa, vista do enfoque de
brasileiros que lá estiveram.
Tentar reproduzir nestas páginas nossa vida na Rússia
é sim, uma maneira de não deixar com que o tempo apague
essas experiências que fazem agora parte de nossa história
como família e como indivíduos. Queremos reproduzir aqui os
fatos da forma mais vívida possível, transmitindo na medida
do possível as emoções pela qual passamos.
Nossa viagem levará o leitor a fatos históricos que
servirão de base para elucidar algum conceito, uma visão de
mundo, algum aspecto da alma russa. Somos em grande parte
fruto de nossa história e da de outros. Não há como nos
separar do aspecto histórico! E especialmente viver na Rússia é
deparar-se constantemente com a História.
Mas de igual forma passearemos pelo interior russo, de
cidades e vilarejos desconhecidos e esquecidos, cruzaremos o
país de sul ao norte numa viagem de trem, atingiremos a
região polar, brincaremos no frio de trinta graus negativos,
entraremos em regiões muçulmanas, encontraremos cidades
de mais de 2600 anos, quase congelaremos no inverno russo, e
nos queimaremos no verão abrasador. Enfim, uma viagem
pela Rússia como você talvez nunca tenha visto!
Quando fizermos nas páginas seguintes uma análise
cultural, ou contarmos alguma situação vivida por nós, não
estaremos fazendo um julgamento de se isto ou aquilo é certo
ou errado, mas apenas colocaremos fatos e eventualmente
faremos comparações apenas com a intenção de dar ao leitor
uma ideia mais específica do tema abordado. Não existem
culturas melhores ou piores, mas apenas culturas diferentes, e
este é o objetivo neste livro, deixar diante do leitor as
diferenças e semelhanças entre a cultura destes dois países,
Brasil e Rússia, sob o ponto de vista de brasileiros que lá
moraram.
Tentamos deixar o livro com uma leitura leve, sem
compromisso com estilos ou estruturas rígidas. Buscamos
apenas manter os capítulos com tamanhos iguais para não
sobrecarregar um assunto e deixar outros com menos
conteúdo. Os capítulos são independentes e podem até ser
lidos de forma aleatória sem comprometer a compreensão do
leitor.
Assim, convido a todos para embarcar nesta viagem
para o interior da Rússia, e desfrutar de uma leitura clara e
objetiva, mas sem dúvida, totalmente passional!
ANTES DE TUDO…
Quando era ainda adolescente, folheei os primeiros
manuais de língua russa, pronunciei as primeiras palavras em
russo (da, niet, tavarish,...). Foram anos colhendo informações
que chegavam esparsas pelos noticiários da televisão, ou
notícias de rádio e jornal. Quantas horas teriam sido dedicadas
a escutar estações de rádio que transmitiam em russo pelas OC
(Ondas Curtas). Ainda tenho algumas cartas que recebi da
Rádio Central de Moscou, em português “estrangeiro”, ou
russificado, diretamente da própria emissora situada na
capital russa (que naquele tempo ainda era soviética).
Naquela época, nos anos 80, felizmente, manter algum
vínculo com o gigante soviético já não representava um
perigo. A guerra fria estava dando suas últimas respiradas, o
fantasma do holocausto comunista havia passado, as previsões
dos profetas apocalípticos não se cumpriram e a policia tinha
outras coisas a fazer do que rastrear “subversivos políticos”.
Os anos que se seguiram aos eventos que
protagonizaram do fim da União Soviética, como o pouso do
pequeno avião alemão em plena Praça Vermelha (1987) e a
queda do muro de Berlim (1989), foram de euforia e
instabilidade em toda aquela região. Muitos saudavam a
liberdade que estava chegando, mas outros a viam com
desconfiança, típica dos russos. Grande parte da população se
via traída e enganada por longos anos do regime socialista.
Outros, que viveram o auge soviético, choravam o
desmantelamento eminente de seu país, a URSS.
No ocidente, nesta época, começamos a conhecer um
pouco mais daquele país. Mais precisamente, no Brasil, o
produto russo que apareceu (além da vodca, é claro!), foi o
Lada. Naqueles tempos, as instabilidades políticas eram
comuns em ambos os lados do Oceano. Foi precisamente em
1990, que o então presidente Fernando Collor autorizou a
importação desta marca para o Brasil. Os preços baixos das
unidades impulsionaram muitos a comprar aqueles modelos
soviéticos, apesar do design já ser considerado ultrapassado.
Este fator fez com que a empresa perdesse terreno em solo
brasileiro.
E a questão do design pareceu-me ser um dos fatores
que mais chama a atenção nos produtos que eram produzidos
por lá. Não eram somente os carros que tinham a aparência
ultrapassada, mas em geral, tudo que era feito pela indústria
daquele país, tinha sérios problemas nesta área. Disto pude me
convencer in loco.
Foi em 2002 que eu e minha esposa fomos pela
primeira vez à Rússia, numa espécie de reconhecimento de
campo, quando ficamos um mês. Naquela oportunidade,
entramos no país pelo Sheremetovo. O aeroporto era ainda do
tempo soviético, antigo, banheiros sujos, com máquinas velhas
e nem sempre funcionando. Na migração, as cabines não
tinham iluminação direito, pois algumas fluorescentes
estavam queimadas ou ausentes. A fila para estrangeiros era
mais demorada e sempre havia um guarda com um uniforme
verde-oliva passeando entre os passageiros, fumando, e
olhando minuciosamente cada pessoa (acho que era uma
espécie de raio-X que existia por detrás daquele óculos).
Parecia que seríamos todos pegos e levados para um caminhão
ou vagão de trem e enviados para algum lugar na Sibéria!
Mas passado aquele momento de intimidação, fomos
pegar nossas malas, numa esteira que honestamente eu estava
torcendo para que funcionasse, ou que não arrebentasse! Os
carrinhos para levar as malas eram alugados. Caso não
quisesse pagar, a pessoa podia tranquilamente levar todas as
malas na mão.
Aquele mês não foi algo realmente empolgante. Creio
que o mais positivo, neste sentido, foi conhecer a Praça
Vermelha. Esta sim, magnífica e bela. Aliás, como um todo,
Moscou é maravilhosa, com seus parques, metrô e as igrejas
ortodoxas em todos os lugares. Mas sobre isto falaremos mais
adiante.
Neste mês ainda, visitamos o sul do país, onde
provavelmente iríamos morar dali a algum tempo. E o interior
do país, como bem se sabe, é algo absolutamente distinto das
grandes metrópoles.
Aquele primeiro contato passou rápido, e levamos
muitas impressões daquela experiência. Mas os nossos
caminhos anos depois ainda iriam cruzar as estepes russas
mais uma vez…
VENTO DE MUDANÇAS
Lembro-me, ainda com certo grau de detalhes, de estar
olhando pela janela do avião e observando as nuvens lá fora. O avião
descia lentamente, dançando entre elas, numa espécie de balé russo.
Naqueles momentos que antecediam a chegada ao aeroporto
Domodedovo, em Moscou, pensei nos anos de preparo para estar ali,
prestes a encarar anos de vida num dos países mais enigmáticos do
mundo.
Mas lá estávamos nós naquele avião. Sim, eu estava com
minha esposa, porém desta vez estávamos com nossas duas filhas,
que tinham na época 1 e 5 anos. Minha esposa mal sabia algumas
palavras em russo, e nossas filhas, logicamente não tinham nenhum
conhecimento da língua. Toda nossa vida e bens materiais estavam
restringidos em sete malas no compartimento de bagagens, e alguns
dólares que carregávamos.
Lembro-me que ao chegarmos no Domodedovo, tive a
primeira boa impressão da nova Rússia. O aeroporto era mais
moderno do que o Sheremetovo, o outro aeroporto internacional da
capital. Por isto, passei a amar o Domodedovo, mais que o
Sheremetovo e o Vnukovo, os outros aeroportos internacionais da
capital russa! Havia sempre carrinhos de malas à vontade. A esteira
funcionava como em qualquer aeroporto que se preze. Os soldados
de verde-oliva com seus óculos foram dispensados, e já existia uma
iluminação aceitável nas cabines da migração. Naqueles três anos,
parece que muita coisa mudou!
O país como um todo havia entrado numa era de
modernização. A própria capital estava em franca mudança. Moscou
ficara mais colorida, mais alegre e jovial. Nos próximos anos que
viveríamos na Rússia, ouviríamos as histórias de outros estrangeiros,
que chegaram na década de 90, contando todas as mudanças que
desde então vinham ocorrendo a passos largos no país. Eram
histórias de quando a Rússia ainda saia de um regime socialista e se
aventurava num sistema capitalista, um capitalismo à sua moda é
claro!
As particularidades deste sistema capitalista russo se davam
por conta de toda sua história como nação. A Rússia viveu sob a
autoridade dos príncipes (knyaz), num sistema feudal até a chegada
dos mongóis no século XIII. Por dois séculos permaneceu sobre o
“jugo” da “Horda de Ouro”, um modelo de subjugação adotado pelos
mongóis sobre toda a extensão territorial russa por eles controlada,
que mantinha o sistema de servidão especialmente para os
camponeses.
Com a derrota dos mongóis e a chegada da era dos Czares
(séc. XV), o país foi unificado e começou a fase de expansão, que
iria originar toda a imensidão territorial que hoje é a Rússia, com 1/6
das terras emersas do mundo. Em todos estes períodos, aquela região
viveu num sistema econômico que poderíamos classificar como
Feudal.
Porém, uma característica marcante do sistema social russo
era a mir. Certamente influenciada pela severidade do clima, e por
uma compreensão da necessidade de solidariedade com o objetivo de
sobrevivência, este povo eslavo unia-se em comunidades, que viria a
servir de modelo para os revolucionários do século XX. Marx, certa
vez teria dito que a construção do comunismo só seria inicialmente
possível num país como a Rússia. Não é à toa que décadas depois
deste pensamento ser pronunciado, a revolução russa traria ao mundo
uma nova proposta de estruturação econômica e social.
Mas o país vivera um capitalismo antes de chegar aos
caminhos socialistas. Entre 1861 e a revolução russa, o país foi
iniciado no sistema que estava em fase desenvolvida, tanto na
Europa, quanto nos Estados Unidos. O ano de 1861 foi importante,
pois naquela data o país colocou em vigor uma lei que dava aos
camponeses uma liberdade nunca vista até então, a chamada Lei dos
camponeses. Uma luta de décadas para aumentar o direito dos
trabalhadores do campo havia chegado ao seu objetivo. Esta Lei
pode ser comparada, tanto nos pontos positivos quanto nos
negativos, com a importância econômica e social da Lei da libertação
dos escravos no Brasil em 1888.
Foram promulgadas várias reformas com o intuito de colocar
o país entre as grandes nações industrializadas do Ocidente. Por fim,
a Rússia estava pronta para o desafio de entrar no mercado mundial.
Foi a época das grandes expedições, inaugurações de estradas de
ferro, como a Transiberiana, a mais longa linha do mundo, unindo
Moscou à Vladivostok, no mar do Japão. As indústrias começavam a
se instalar, e grandes fluxos de comércio com o mundo iam se
estabelecendo.
Mas a riqueza que estava sendo gerada não chegava ao
trabalhador comum. E esta pressão foi aumentando cada vez mais,
até chegarmos ao início do século XX. Apesar da devoção dos russos
ao seu Czar, sustentada em grande parte pela Igreja Ortodoxa Russa,
o povo foi persuadido pelas promessas de igualdade e prosperidade
comum. Para isto, muito valeu aos revolucionários a base ideológica
contida na concepção da mir.
Depois de conturbadas reviravoltas no cenário político, em
1917, os bolcheviques tomam o poder, sendo liderados por Lênin. O
país novamente estava entrando num processo de isolamento com
relação ao Ocidente, fato nada novo na sua História, pois a Rússia
sempre oscilou entre o caminho da ocidentalização e a
“russificação”.
Os anos que se seguiram à revolução bolchevique, com uma
guerra civil entre o exército bolchevique (Exército Vermelho) e os
contra-revolucionários (Exército Branco, apoiado pelas nações
ocidentais), levaram o país ao caos econômico. Para piorar a
situação, o sul do país, considerado o celeiro da Rússia, passou por
anos de desordens climáticas, que gerou falta de trigo e outros
gêneros alimentícios, além de ser um reduto dos “brancos”, pois ali
estava a população cossaca, tradicionalmente leal ao Czar, pelos
motivos que iremos apresentar mais à frente.
A situação chegou a um limite tão desesperador que o
próprio Lênin lança um programa intitulado Nova Política
Econômica (1921),que seria segundo ele “um passo atrás necessário
para fortalecer os passos rumo ao Comunismo”. Na pratica, a NPE
era uma abertura de certos setores da economia russa para
investimentos capitalistas. Com a morte de Lênin, e a chegada de
Stalin ao poder, tais medidas foram abandonadas (1928) e o período
de centralização total da economia teve seu início.
A guerra civil da década de 20, a fome avassaladora da
década de 30 e a Segunda Guerra Mundial na de 40, deixaram o país
sempre numa situação complicada economicamente. A década de 50
foi o período em que a URSS finalmente teve oportunidade de
crescer, especialmente com os Estados satélites do Leste Europeu
como uma das fontes de recursos. O ápice chegou com a década
seguinte. Ainda hoje, russos que viveram a década de 60 se referem à
ela com um alto grau de nostalgia e apresso. O orgulho russo se
estampava na pessoa de Yuri Gagarin, o primeiro homem a dar a
volta ao mundo no espaço, símbolo daquele período.
Mas o otimismo soviético começou a dar sinais de desgaste
já na década seguinte. E os anos 80 foram marcados pela estagnação
total na economia. Gorbatchov tomou a iniciativa de implementar a
Glasnost (Transparência) e a Perestroyka (Reestruturação) para
forçar uma mudança nas bases do sistema. Visto como grande
estadista, homem corajoso e forte figura política aqui no ocidente,
em seu próprio território ele era e ainda é tido como um traidor e
responsável pela “venda” da URSS para o ocidente.
Todos vimos como o Muro de Berlim caiu. Em 1989 ele veio
abaixo, e com ele todo um sistema econômico e político. A
experiência soviética havia fracassado.
Neste novo contexto, vemos Bóris Yeltsin tomar o poder.
Resistiu a um golpe que tinha como proposta o retrocesso ao sistema
antigo soviético. Para a Rússia, não havia mais espaço para o
socialismo. Neste vácuo político e econômico, o capitalismo se
oferece como única alternativa, mas ele não escaparia de sofrer as
influências do país onde estávamos por entrar. O modelo capitalista
russo tinha suas características distintas, pois foi moldado e ditado
pela crescente máfia local. Os burocratas privilegiados do sistema
soviético davam lugar aos grandes empresários russos que, muita das
vezes, eram operários nas empresas estatais que, da noite para o dia,
haviam se apossado de máquinas, equipamentos e de fábricas
inteiras, pois o antigo dono (o Estado), já não estava mais presente.
Adécada de 90 foi marcada pelo caos em todas as esferas da
sociedade. Poucos são os russos que não se lamentam por aqueles
tempos. Muitas histórias ouvimos dos próprios cidadãos sobre o
período de terror social que se passou naqueles anos conturbados. O
país estava se desmantelando, e antigas rixas étnicas afloravam,
especialmente no sul. O mais conhecido destes movimentos de
libertação se manifestou nas guerras da Chechênia.
Os anos Putin, que começam em 1999, foram caracterizados
pela estabilização do país. As revoltas foram sufocadas (ou
compradas), a inflação galopante controlada, o rublo fortalecido
frente às moedas estrangeiras. A economia começou a reagir,
especialmente pela alta da produção e exportação do petróleo e gás.
Enfim, o país saiu dos anos de estagnação e começou o caminho
rumo ao crescimento. E isto não se deu apenas na área econômica,
mas na própria política internacional.
Tudo que foi declarado acima pode ser lido em qualquer
livro de História do século XX que trate do assunto. Contudo, toda a
política e economia têm reflexos na vida diária do cidadão comum, e
foi isto que sentimos ao chegar à Rússia naquele momento de
transição. Isto vai desde a melhoria nas estruturas dos aeroportos, até
uma avenida na cidade que é rearborizada e sua calçada renovada.
Isto influi na aquisição de carros importados e na abertura de
mercados maiores, com produtos trazidos de todo o mundo, inclusive
brasileiros. E neste sentido, nenhum lugar melhor para ver esta
transformação tão dramática da nova Rússia, do que nas regiões
periféricas. Moscou mudou muito nestes anos, mas é no interior do
país onde estas transformações são mais sentidas. Passear pelo
interior russo é algo que realmente descortina todas as condições de
um país milenar, que está aprendendo novas lições a cada dia.
Aqui começamos nossa aventura pela Rússia!
KRASNODAR 40 GRAUS
Saímos de Moscou na manhã do dia 17 de agosto de 2005,
onde a temperatura estava em torno dos 8 graus positivos. Estávamos
usando casacos e roupas apropriados para o frio daquela manhã.
O vôo até Krasnodar leva cerca de 2 horas. Chegamos ao
aeroporto e o comandante anunciou a temperatura externa. Pensei
que não havia entendido direito aquela voz que falava baixinho e
através de um sistema de som de alto-falantes já desgastados pelo
tempo.
Bem, ao menos naquele momento havia entendido
corretamente, 40°C!!! Tivemos que rapidamente tirar os casacos,
pegar nossas malas de mão e descer do avião. Desta vez não
precisaríamos descer pela cauda do avião, como ocorreu três anos
antes. Mas mesmo assim, tínhamos que caminhar até o transporte
que nos levaria para o prédio principal do aeroporto. E lá tivemos o
primeiro contato com o calor sufocante do sul da Rússia! Nenhuma
brisa, sol do meio-dia, umidade baixa, e ainda mais uma mudança
inteira para pegar. Para nossa alegria, o local de retirar as malas
estava coberto e fechado, bem diferente da última vez que estivemos
lá, quando se pegava as malas a céu aberto! Viva a nova Rússia...
Do lado de fora do prédio, alguns amigos estrangeiros que
havíamos conhecido na primeira viagem vieram nos recepcionar.
Nunca nos esquecemos do fato deles terem levado uma vela
aromática como sinal de boas-vindas, mas haviam deixado no carro.
Ao chegarmos no carro, com aquele calor tropical, a vela havia
amolecido e entortado, mais parecendo uma obra de arte!
Eles nos levaram para nosso novo lar. Bem, a primeira
impressão não foi das melhores. O edifício não tinha condomínio (na
realidade, nenhum tinha), a porta de acesso ficava aberta
permanentemente, sendo segura apenas por um tijolo. As escadas
estavam somente no cimento e o corrimão parecia peça retirada de
alguma escavação arqueológica. Coloquei todas as nossas malas no
pequeno elevador, para só depois descobrir que para o 2° andar, onde
ficava nosso apartamento, ele não ia. Ao subir com as malas pela
escada, minha esposa notou um rastro de sangue. Seus olhos me
fitaram apavorados, e nossa amiga ao perceber seu espanto, explicou
que deveria ser de alguém que havia comprado carne na feira.
Acreditamos, mais por medo de descobrir que fosse mentira, do que
pela veracidade da explicação.
O calor era insuportável, pois ar-condicionado ainda seria
um luxo que teríamos que esperar por mais dois anos. Numa situação
destas, o melhor é sair e conhecer a vizinhança. Descobrimos que na
nossa rua não passava carro, apenas a linha de bonde. Era admirável
como existiam árvores, e parecia às vezes que estávamos numa
floresta. Descobriríamos logo a utilidade daquilo nos dias de muito
calor que estavam pela frente.
Os primeiros dias foram um tempo dedicado para
descobertas. O mais simples ato, quando se está numa cultura
totalmente nova, torna-se um peso que faz esvair todas as forças.
Quando se vai passar apenas alguns dias ou semanas num lugar, não
existe um compromisso em entender o que se passa, nem mesmo
uma preocupação em estabelecer pontes com pessoas. Mas
estávamos ali para ficar por um bom tempo, por isto era vital
mergulharmos logo no nosso novo país. Comprar pão e leite era uma
atividade que gerava ansiedade. Como entender o vendedor? Como
saber se a conta estava certa,e o troco? Como parecer o menos idiota
possível quando uma pessoa falava algo, perguntando ou
exclamando?
Para nossa sorte, na nova Rússia já existia uma rede de
pequenos mercados de bairro que tinham caixas com leitor de barras,
e consequentemente um monitor que mostrava o valor das compras.
Na Rússia de poucos anos antes, que conhecemos em nossa primeira
visita, encontramos lojas onde usavam ábacos para fazerem as
contas, e o resultado era apresentado como se pudéssemos “ler” o
ábaco! Enfim, foi um alívio ver tudo nos “novos’ monitores!!!
Mas isto não impediu de passarmos por pessoas desprovidas
de qualquer inteligência naquele começo. Em certa ocasião, ao
chegar ao caixa, a vendedora passa os produtos e pergunta: “a paketa
nujna?”. Vinte segundos de silêncio e olhares que pareceram mil
anos. A vendedora repete umas três vezes, até que desiste e pucha
uma sacola e balança na nossa frente. Convenhamos, “paketa” parece
com pacote, “nujna” é “precisa”... Hum, entendi, ela estava
perguntando se precisávamos de sacolas plásticas. Aliviado, respondi
confiante “niet!”. No dia seguinte, pegamos a fila maior para ter a
mesma mulher no caixa. Engraçado como o ser humano sempre
busca estabelecer padrões. Ela sorriu (no estilo russo, sem
demonstrar que estava sorrindo!) e disse “Paketa nujna?”. Senti-me
como um nativo respondendo já de primeira, “niet”.
Ela então perguntou se éramos estrangeiros. Parecia sermos
os primeiros que ela tinha visto em toda sua vida. Descobrimos que
realmente muitos russos nunca haviam conversado ou visto alguém
de outro país fora da URSS. Com esta mulher do caixa do
mercadinho tivemos nossa primeira aula de russo. Todos os dias
passávamos lá para comprar algo, e acabamos tendo verdadeiras
conversas de duas três frases, o que, naquele estágio, eram diálogos
profundos, quase filosóficos. Pouco tempo depois, ficamos sabendo
que ela já não trabalhava mais ali. Lamentei solenemente a perda de
uma “amiga” tão fiel! Mas a vida ainda tinha muitas surpresas para
nós naquele lugar.
O sistema de água quente e fria nos domicílios é oferecido
por uma companhia da prefeitura. Pareceu-nos algo muito importante
ter água quente no apartamento, pois a imagem de ter que acordar no
inverno, abrir a torneira e lavar rosto com água fria causava, no
mínimo, calafrios. Isto se agravava pelo fato da água fria ser gelada,
mesmo naquele calor de Krasnodar.
Depois de alguns dias, acordamos sem água quente.
Esperamos horas e ela não voltou. No dia seguinte, fomos falar com
o dono do apartamento. Ele então explicou, sem entender o motivo
de nossa inquirição, que por uma semana a água quente seria
desligada por motivos profiláticos (e vai entender isto em russo,
depois de apenas alguns dias no país!!!). Resumindo, ficamos
tomando banho de caneca por duas semanas! Mais uma lição
aprendida.
Como minha esposa tinha um vocabulário muito reduzido, e
praticamente não podia se comunicar em russo e eu, nitidamente,
precisava aprimorar muito, estávamos matriculados num curso de
russo na faculdade preparatória para estrangeiros da Universidade
Estatal da cidade.
O curso era para começar na primeira semana de setembro,
mas como estávamos para descobrir, algumas datas para início ou
término de algo servem apenas como uma referência, não sendo
necessariamente seguida à risca. As aulas começariam somente duas
semanas depois do previsto.
Quando finalmente começaram as aulas,o calor do sul estava
se despedindo de Krasnodar. Fomos para a aula ansiosos pela nova
etapa.
Entramos num corredor escuro, com paredes mofadas e
seguimos até a porta indicada. Entramos e sentamos. Em pouco
tempo outros entraram, e em seguida a professora de russo. Uma
senhora já de idade, bem vestida e com seus cabelos brancos
impecavelmente arrumados. Ela, que exibia as feições nitidamente
eslavas, deu as boas-vindas, em russo, ao pequeno grupo que ali se
formara. Eram dois quenianos, um sírio, um holandês, um chinês,
três coreanas e dois brasileiros. O único que sabia alguma coisa de
russo era eu. Pensei naquele momento que esta seria uma missão
impossível para aquela senhora eslava. Aprendi com ela que não
existem missões impossíveis! No fim do curso, todos falavam russo
de forma muito satisfatória!
Nas aulas seguintes a este início, a professora Liudmila, que
se tornou o nosso primeiro anjo naquelas terras, me indicou uma
turma mais avançada, pois não havia motivos para ficar com os
principiantes. Minha esposa ficou, e acabou por se aproximar da
professora, pois era a mais experiente do grupo, que era constituído
por jovens solteiros entre 20-25 anos.
Ainda hoje falamos daquela professora que lecionava russo
para estrangeiros há 39 anos, da sua experiência e capacidade de,
sem usar uma palavra em inglês, ensinar uma das línguas mais
complexas e ricas do mundo. Nossos colegas e amigos estrangeiros
de fora da universidade se surpreendiam com o avanço de minha
esposa, mas em grande parte, isto se deu graças à professora
Liudmila. No ano seguinte, ela deixou a sala de aula, o que
lamentamos, pois profissionais de tamanha experiência sempre farão
falta.
PRIMEIRAS IMPRESSÕES: VIAGEM
AO PASSADO
Krasnodar é a capital de um estado fronteiriço que leva o
mesmo nome. Sua população está por volta de um milhão de
pessoas, apesar de oficialmente ter pouco mais de 700 mil. Foi
fundada em 1793, inicialmente como uma fortificação avançada
russa na conquista do sul do país.
Seu primeiro nome foi Ekaterinodar, que significa “Presente
de Catarina”, a czarina da época e uma das maiores personalidades
da história russa. Após a Revolução Russa do início do século XX,
seu nome foi mudado para Krasnodar, que significa “Presente
bonito”, ou “Presente vermelho” - lembrando que esta cor era o
símbolo do Socialismo. Atualmente, movimentos cossacos tentam
reverter o nome da cidade ao original, mas enfrentam grande
resistência em algumas esferas políticas e práticas. Este processo de
mudança de nome para uma nomenclatura pré-socialista por sinal é
um fenômeno comum dentro da Rússia pós-soviética.
Mas os problemas da cidade (e de todo o país) não estavam
localizados apenas na questão de nomes. Se em Moscou as mudanças
eram visíveis e ocorriam em alta velocidade, no interior do país, que
não era alvo das companhias estrangeiras ou de turistas, as mudanças
vinham em uma lentidão agonizante.
Começamos nossa descrição pelos automóveis em geral. A
frota em 2003 era basicamente constituída de carros do tipo Lada
soviético. Os ônibus pareciam peças de museu, com lataria muito
acabada, sofrida pela ação do tempo e falta de manutenção. As ruas
eram quase sem sinalização, especialmente no asfalto.
Enquanto isto, nós víamos em Moscou uma frota de carros
trazidos do Japão rodando pelas ruas. Eram carros com volante do
lado direito (mão inglesa), mas o sistema de tráfego na Rússia segue
o sistema europeu continental, como é o sistema no Brasil. Em outras
palavras, o motorista sempre estava do “lado errado” do carro.
Em 2005, a frota de carros de Moscou havia se
“europeizada” muito, e era muito mais difícil encontrar carros do
estilo japonês. Para onde foram aqueles carros que vinham do Japão
como segunda mão e rodavam em Moscou? Eles foram
“periferizados”. Krasnodar estava na rota desse fenômeno. Nos
nossos primeiros anos, a taxa de veículos de mão direita chegava a
40% da frota na cidade, outros 50% eram de Ladas,e o restante eram
de carros “europeizados (leia-se aqui, marcas alemãs, suecas e
francesas).
A grande procura dos russos por esses veículos “japoneses”
se dava principalmente pelo preço bem mais em conta, e sem dúvida,
pela qualidade do produto japonês. O aumento de carros
“importados” (de segunda mão) para Krasnodar, fez com que os
antigos Ladas fossem naturalmente empurrados para o interior e
outras pequenas repúblicas da Federação Russa.
O aumento da frota na cidade gerou um fenômeno conhecido
em todas as grandes cidades do mundo: congestionamentos. E esta
era uma das palavras mais usadas nas desculpas que se ouviam dos
russos. Aprendi logo que ela era poderosa em várias situações. Os
congestionamentos se davam, muitas das vezes, por acidentes
envolvendo dois carros, bonde ou mesmo algum ônibus. E esta é
uma característica notada por todo o estrangeiro na Rússia, a grande
falta de preparo dos motoristas para dirigir, sendo que existem
inúmeros fatores para este tipo de problema. Em parte se deve ao
sistema de “compra de carteiras”, que gera um negócio muito bem
estruturado. O russo admite que passar nos exames para se obter a
carta de motorista é algo tecnicamente impossível, pois os
interessados no comércio das carteiras de motorista são os próprios
agentes que regularizam este setor.
Sei bem como o esquema funciona, pois precisei tirar uma
carta de motorista para dirigir o carro que compramos dois anos
depois, em 2007. Pedi a um amigo russo que ligasse para o
departamento responsável pela expedição de cartas. Preferi este
caminho, pois, além de não ter que me enrolar com a língua, aprendi
que o preço para estrangeiro sempre é muito diferente do que para
um russo. Resumindo, o valor cobrado seria de 20.000 rublos (cerca
de US$ 800 na época). Pedi para meu amigo informar que eu já tinha
carta do Brasil, e apenas queria uma correspondente russa. Eu não
queria fazer todo o “processo”.
- Ah, então o seu amigo é estrangeiro? Neste caso o valor é
de 40.000 rublos. - respondeu o “simpático” responsável.
Acabei optando, então, pela tradução da carteira brasileira,
pois como estrangeiros ainda eram novidade, até mesmo para a
poderosa polícia urbana russa, isto dava certa liberdade.
Este é apenas um dos fatores para a fama dos motoristas
russos, a corrupção da polícia de transito. Mas existe outro ponto
muito importante nesta equação. Nos anos da URSS, o carro era um
artigo de luxo. Poucas pessoas possuíam um, e isto gerou uma baixa
cultura automobilística. Com o fim do sistema soviético, a avalanche
de carros oriunda principalmente do Japão, encheu o mercado de um
produto que poucos sabiam manusear. Da noite para o dia, todos
eram motoristas “experientes”, e as ruas foram inundadas de
verdadeiros “profissionais” do volante.
Mas voltando à questão dos congestionamentos, qualquer
encostada era motivo para o trânsito parar. Inúmeras vezes eu vi as
avenidas principais da cidade totalmente travadas, e quando se
chegava à fonte, verificava-se que eram dois carros que haviam
encostado (não batido) e estavam com seus pisca-alertas acionados
esperando a polícia técnica chegar (o que poderia levar horas!).
Poucos acidentes (na cidade) que vi realmente tinham alguma perda
material considerável. Literalmente, cada vez que precisava sair de
casa, nos preparávamos psicologicamente para a aventura. Sair
sempre era um risco, ou de acabar num acidente, ou ficar horas
parado por causa de um arranhão, ou pior, ser parado pela polícia de
trânsito.
Em 2010 foi feita uma pesquisa por um jornal moscovita
entre os estrangeiros, perguntando qual era o maior medo deles na
Rússia. Em primeiro lugar, sem chance para as outras alternativas,
apareceu o medo em relação aos policiais de trânsito. Absolutamente
não estranheieste apontamento. Creio que até mesmo os russos iriam
na mesma direção.A fama é tão grande, que quase metade das piadas
em programas de humor envolve os acima mencionados. Vi e
presenciei muitas situações constrangedoras, e passei por momentos
tensos, como narrarei mais à frente.
Mas vou deixar este assunto um pouco e focar em outro
ponto, que está mesmo assim relacionado. Quando chegamos em
2005, Krasnodar estava se modernizando, mas faltava muito para
deixar os ares soviéticos para trás. As ruas eram muito esburacadas,
quase sem sinalização. Muitas ruas na cidade eram de chão batido.
Em algumas áreas havia pedaços de asfalto ilhados no meio da rua, o
que levava a crer que em tempos passados, ali existira asfalto, mas
que a falta de manutenção nas décadas de 80-90 cobrou o seu preço.
Algumas ruas eram intransitáveis, mesmo a pé. Na zona central da
cidade, certas ruas eram a mistura de tudo isto, chão batido em
partes, logo depois alguns restos de asfalto, e mais para frente,
asfalto muito danificado.
Lembrei-me de minha infância, quando na minha cidade
natal as ruas começaram a ser totalmente asfaltadas. Esta era minha
impressão geral da Rússia, um Brasil há 30 anos. Lembro a todos que
estamos falando da capital do estado, não de regiões de interior, as
quais até hoje estão em situação precárias. Olhando toda esta
situação, ainda tínhamos que ouvir pessoas perguntando se
morávamos em árvores no Brasil, ou criávamos macacos em casa!
As calçadas eram esburacadas e em grande parte quebradas.
Outra característica da região é o solo, que é argiloso, conhecida
como “argila preta”. Isto torna o solo impermeável, gerando poças
em todos os lugares, e quando os carros ou veículos de maior porte
passam por elas, a lama se espalha praticamente por todos os lados.
Especialmente no verão, quando as chuvas ficam mais constantes, as
poças aparecem pela cidade, e o movimento dos carros se encarrega
de levar o barro para todos os lados. Depois vem o sol e seca aquele
lodo, dando uma aparência nada agradável às ruas.
Por isto, nas casas é obrigatória a retirada dos calçados
quando se vem de fora. Nas escolas, as crianças sempre vão com a
smenka, que são os sapatos reserva a serem utilizados na sala para
não embarrar tudo. Aliás, esta não é somente uma característica do
sul, mas em toda a Rússia. Existe até um termo russo para a época
em que as chuvas dissolvem o país, rasputitsa (dissolver).
Locomover-se, especialmente pelo interior, se torna uma tarefa
penosa.
O sistema de atendimento médico e os postos de saúde são
uma categoria à parte, mas apenas menciono aqui para enfatizar a
linha que viemos seguindo neste capítulo. Todo o sistema estava nas
mãos da prefeitura, e em 2005 começaram a aparecer clínicas
especializadas, em número ainda insignificante para uma cidade
como Krasnodar. Os consultórios e centros de saúde eram velhos e
com material que deviam estar em uso ha mais de 40 anos, apenas se
julgando pelo design. As técnicas de atendimento e de consulta
remontavam a esta época, ou quem sabe até mais.
O sistema de transporte público, basicamente ônibus,
trólebus e bondes, também eram originários de muitas décadas atrás.
Muitos quebravam durante o percurso, o que no caso de trólebus e
bondes, provocavam o congestionamento de toda a linha. Alguns
descarrilamentos de bondes e cabos que se rompiam por tempo de
uso eram motivo de irritação constante.
Bem, o leitor agora deve estar se perguntando se apenas
pontos negativos existiam. Deixe-me explicar com as seguintes
palavras: o choque visual e cultural é algo comum entre pessoas que
trocam de ambiente cultural, seja dentro do próprio país ou para fora
dele. Quando se chega num lugar, logo se começa a fazer
comparações. No caso da Rússia, as diferenças, se comparadas com
outros países ocidentais, são muito gritantes. O país praticamente
parou com o investimento maciço na infraestrutura durante a década
de 60.
Neste caso, é evidente que saltavam aos olhos as diferenças
mais marcantes, e com o tempo iríamos ver descortinar diante de nós
os outros aspectos da vida lá. O principal é que vivemos outra
revolução russa bem na nossa frente. O país que havia parado no
tempo por longos anos, a partir do início deste século deu um salto. É
como se a Rússia saísse da década de 60 e entrado no mundo
moderno num espaço de poucos anos. Quando chegamos em 2005,
por exemplo, o comércio era feito basicamente em feiras
permanentes e numa rede local de minimercados nos bairros. Em
2007 abriu em Krasnodar o primeiro supermercado, de uma marca
francesa. Depois vieram os shoppings e em 2009 uma rede de
lanchonetes americana (não que isto eu considere progresso, mas
para muitos estrangeiros, viver sem o produto daquela marca era
como viver na idade da pedra).
No ano seguinte de nossa chegada, as avenidas ganharam
pavimentação nova, arborização, canteiros com flores e parques
foram sendo melhorados. Bondes modernos foram trazidos de fora, e
os antigos ônibus começaram a dar lugar aos seus “netos”.
O nível de vida dos russos melhorou muito nos últimos anos.
Não era raro ver as lixeiras dos edifícios entulhadas de caixas de
modernos utensílios domésticos, e principalmente de estrutura de
janelas em madeira. E isto era algo muito significativo. Um dos
símbolos do progresso e da modernidade na Rússia eram as janelas
de plástico, que levavam o nome de “janelas alemãs”. A grande
vantagem das novas janelas era que impediam a perda de calor do
ambiente, causando um isolamento muito bom que era algo vital,
especialmente no rigoroso inverno. Nosso apartamento tinha “janelas
alemãs” e no inverno precisávamos abri-las um pouco para esfriar
um pouco o ambiente.
Aliado a esta questão das janelas, aprendemos rapidamente
uma palavra usada por todos, remont. Talvez esta palavra defina bem
o estado em que se encontrava todo o país, conserto. Esta era a
palavra de ordem, e que aparecia em qualquer propaganda ou cartas
espalhado pela cidade.
Lembro muito bem do grande remont que foi feito no nosso
prédio. Incomodava muito o fato do prédio estar com uma porta que
absolutamente não podia ser trancada. Qualquer um podia entrar e
fazer tudo o que queria no elevador e escadas. E entenda, caro leitor,
não estou usando a palavra TUDO em vão! Se uma pessoa passasse
mal na rua, ou mesmo por questões de uma bebedeira, o melhor
refúgio era um bom prédio com uma porta destrancada. Vi muita
coisa por aquelas escadas!
Mas finalmente foi convocada uma espécie de reunião dos
moradores do prédio. Nesta reunião, feita ali mesmo do lado de fora
do prédio, literalmente no meio da rua, havia uma única proposta na
pauta. O senhor que comandava a reunião, sintetizou a questão
dizendo:
- Precisamos colocar uma porta nova com interfone e código
de entrada neste bloco! Precisamos trazer a civilização para nosso
prédio!
O argumento daquele senhor convenceu seus compatriotas,
que em uníssono concordaram com a proposta. Lá de nosso
apartamento rimos muito, pois finalmente a civilização chegaria,
literalmente, às nossas portas. Este era o espírito!
Outra marca dos últimos anos foi a luta do governo contra a
corrupção, especialmente na polícia, além do investimento nas
escolas e nos postos de saúde. As ambulâncias foram modernizadas
(aquelas da era soviética pareciam Kombis um pouco mais robustas,
que dava medo só de olhar!!). Os ábacos foram extintos e não vi
mais nenhum sendo usado com objetivos comerciais. Nossa internet,
que inicialmente era de 128 kpbs, pulou para 1 Mega de velocidade,
sendo que já existiam muitas opções neste sentido. Os celulares,
artigo que no início da década era fiscalizado pela polícia na rua,
virou mania nacional.
Como disse, a sensação é que a cada dia avançávamos várias
semanas ou meses na escala evolutiva tecnológica e de infraestrutura
PRIMEIRO INVERNO
Quando falamos em Rússia, a imagem inevitável que vem às
pessoas é a de um campo coberto de neve, muito frio e ursos polares.
E tal associação tem seu motivo. Realmente o país registra as
menores temperaturas do mundo (desconsiderando-se as regiões
polares). Falar de frio é lembrar-se da Sibéria, onde por sinal foi
registrada a menor temperatura em localidade urbana, na remota
região da Yakutia, num vilarejo chamado Oymyakon, quando foi
atingida a temperatura de -71,2° C no ano de 1926.
Mas precisamos lembrar que temperaturas assim não
acontecem em todos os lugares, nem o ano todo! Quanto mais para o
sul nos deslocamos, mais as temperaturas médias vão se elevando.
Como verificamos anteriormente, o verão também sabe mostrar sua
força em terras russas.
As surpresas em relação ao clima que tivemos nos primeiros
dias na Rússia eram apenas o início de uma série que se
prolongariam por cerca de um ano.
Após o escaldante verão, o tempo começou a mudar, e a
entrada do outono parecia trazer um alívio no clima sufocante. Mas
com as temperaturas mais amenas, começaram também as chuvas.
Elas não eram fortes como no Brasil, sendo muito mais amenas e
passageiras. Contudo, as consequências eram enormes. Começava a
temporada da Rasputitsa, que pode ser traduzido como “temporada
de estradas ruins”. Segundo alguns historiadores, este foi um dos
fatores para o atraso no processo de invasão das tropas alemãs na
Segunda Guerra Mundial. O plano inicial era chegar até Moscou
antes das chuvas de outono, que deixavam as estradas impraticáveis
para o deslocamento. Descobri as razões do temor alemão naquele
nosso primeiro ano. Especialmente em Krasnodar, que tem um solo
argiloso, a água tem dificuldades de escoar e o solo quase não
absorve esta água. Como falamos no outro capítulo, nestes casos o
barro que fica nos canteiros e nos “estacionamentos improvisados”
onde não existe asfalto ou cascalhos, acaba por ser levado por estes
mesmos carros para a rua. Em pouco tempo, a rua fica toda cheia de
lama. A água que escoa destes canteiros também entra na rua
provocando mais sujeira. Com a queda das folhas das árvores, o
material orgânico começa a se decompor, e caminhar pelas ruas
começa a ficar um tanto quanto desagradável. Chega-se em casa com
os calçados todos sujos, e as calças respingadas de lama. É uma
estação que desafia o autocontrole emocional!
Com o avanço do outono, a paisagem vai se tornando
acinzentada, pois o verde dá lugar aos troncos que parecem definhar
em relação à vida. As pessoas usam cores escuras (preto, marrom e
cinza). O céu está constantemente nublado ou chovendo. A
arquitetura dos prédios da era soviética tem uma tonalidade
igualmente cinza. Com o tempo, o ar começa a ficar saturado, pois a
poluição e a falta de verde contribuem para isto. O sistema nervoso
começa a ser perturbado, e a falta de cores vivas e dos raios do sol
vão encurralando as pessoas num beco de seriedade e falta de
paciência. Eu dizia que nestes casos, todos ficavam igualmente
cinzas por dentro. Logo aprendemos uma palavra russa que não tem
uma tradução definitiva. Ouvíamos os russos constantemente falando
de Nastroenie e entendíamos o que diziam pelo contexto, mas não
conseguíamos traduzir, ao ponto de, como família, incorporarmos a
palavra em nosso vocabulário. Nastroenie é um “estado de espírito”,
bom ou mau humor, astral, enfim, é como a pessoa está num
determinado momento. E o clima influencia muito na Nastroenie.
Ainda oficialmente no outono tivemos nosso primeiro
contato com a neve. Não foi exatamente o que se esperaria de um dia
de neve. A temperatura estava em 20° C positivos durante o dia,
conforme marcava o termômetro oficial bem no alto de um prédio no
centro da cidade. Lembro-me de ter passado por ele e olhado bem,
pois estava muito “quente” para um dia outonal. Voltamos para casa
com a família e lá pelas nove da noite colocamos as meninas para
dormir. Fiquei olhando pela janela, pois o quadro geral havia
mudado, e soprava agora um vento gelado. Alguns instantes depois,
uma chuva fina começou, dando a entender que existia a
possibilidade daquilo virar neve. A expectativa aumentou. Olhando
contra a luz de um poste em frente ao nosso prédio, pude distinguir
pequenos anjinhos brancos que caiam levemente entre as gotas da
chuva, mas que ao tocarem o chão, desapareciam. Dentro de poucos
minutos aqueles pequenos anjinhos estavam por toda a parte, e cada
vez mais intensa era sua descida. O vento parou e eles começaram a
dançar pelo ar. Corri para minha esposa que estava no quarto, e como
uma criança que ganha um presente inesperadamente, gritei para ela
“neve! neve!”, e a convenci de ir até a janela. Agora os anjinhos
estavam por toda a parte, e caiam no chão sem mais desaparecer. No
friso da janela, alguns anjinhos também apareceram e se
acumularam. Chamamos nossas filhas entusiasmadamente para ver a
neve. Elas acordaram, foram até a janela do quarto delas e uma delas
disse: “Legal pai! Posso voltar pra cama?”. Não disfarço meu
desapontamento, mas como pai entendi o cansaço delas e as coloquei
de volta. Retornei para a janela da sala e lá fiquei sozinho, assistindo
aquele espetáculo.
No dia seguinte, saímos para passear e ver a neve em
Krasnodar, o que todos diziam ser algo relativamente raro. As
crianças se divertiam, rolavam na neve e riam, vivendo seus
momentos de criança. Os russos passavam por elas olhando
assustados como que a pensar “parece que nunca viram neve!!”. O
que era a mais absoluta verdade.
A neve logo derreteu, e em algumas horas restavam apenas
possas de água no chão. Mas ela retornaria algumas semanas depois,
e ficaria ali por muito tempo. Ao todo, a neve ficou no chão por
aproximadamente três meses, com intervalos pequenos em que ela
quase desapareceu. Quando achávamos que não haveria mais neve, o
fenômeno voltava.
Na Rússia é tradição que após o início do ano, o país inteiro
tire uma espécie de férias de inverno, onde tudo fecha por quase duas
semanas. Não havíamos sido informados disto, e tivemos problemas,
pois algumas lojas e mercados ficaram fechados, e especialmente os
bancos não funcionaram. Ficamos com pouco dinheiro em casa, e
aqueles dias foram apertados, pois precisávamos controlar para não
gastar (se conseguíssemos achar algo aberto!).
Janeiro ainda tinha outras surpresas. A temperatura estava
muito baixa, sempre rondando entre -5°C e -12°C. O sistema de
calefação do apartamento (ligado já em outubro) estava funcionando
de forma satisfatória e, ao contrário do que muitos pensam, dentro
dos ambientes geralmente a temperatura fica acima dos +20°C, o que
permite às pessoas usarem roupas leves. Dentro do nosso
apartamento a temperatura era constante +25°C, e podíamos andar de
bermuda e camisa. Em alguns casos, precisávamos até mesmo abrir
um pouco a janela para deixar a umidade e ar mais gelado entrar,
pois o ambiente acabava se tornando quente e seco demais, o que era
prejudicial para a saúde...
Com o fim das “férias de inverno”, tínhamos que voltar a
acordar cedo de manhã e ir para a universidade, minha esposa e eu,
para o curso de russo. As temperaturas na rua não eram convidativas,
e apenas nosso compromisso nos levava a abrir a porta e aventurar-
nos pela gelada Krasnodar.
Na metade de janeiro ouvimos pela primeira vez a expressão
“batismo de frio”, usada pelos russos para designar uma semana que
tradicionalmente é a mais fria do inverno, e na qual os ortodoxos
fazem seus batismos em buracos abertos nos rios congelados de toda
a Rússia. Tivemos a oportunidade de verificar a veracidade desta
tradição em relação ao período mais frio do ano. Exatamente na data
marcada, uma forte onda de frio vinda da Sibéria havia se deslocado
para a nossa região, e as temperaturas atingiram os -29°C, a menor
temperatura em 30 anos em Krasnodar, e a segunda menor registrada
na história da cidade. O sistema de calefação estava no limite, e a
prefeitura já alertava que se a onda continuasse por mais alguns dias,
o sistema poderia entrar em colapso. Neste dia lembro-me de ter
levantado pela manhã, tomado o café e reunido toda a coragem que
tinha para sair pela porta numa caminhada de uns 20 minutos a pé até
a universidade. No meio da tarde, juntamente com nossa filha mais
velha, saímos para tirar algumas fotos num lago congelado perto do
centro da cidade. A temperatura já havia subido e os termômetros
marcavam “agradáveis” -22°C. Chegando ao local, fiquei admirado
com a beleza do branco cobrindo o lago. Percebia no rosto que o ar
estava frio, mas pensei que o frio não era tão intenso assim e decidi
tirar as luvas especiais que tinha. Imediatamente após tirá-las senti
como que mil agulhas sendo fincadas em minha mão, e precisei
recolocar as luvas imediatamente. Percebi naquele momento que
com o frio não se podia brincar!
Havíamos levado nossa máquina fotográfica digital e quando
chegamos ao local adequado para uma foto, liguei-a. Ela iniciou o
processo para abrir e expor a lente, mas no meio do caminho,
simplesmente parou. Pensei que havia quebrado ou algo assim.
Coloquei-a de volta dentro do casaco. Depois a tirei e tentei
novamente. Mesmo resultado. “Será que é a bateria?” - pensei
enquanto guardava-a no casaco. Repetio processo algumas vezes até
perceber que o problema era o frio intenso, que fazia com que ela
parasse de funcionar. Para tirar as fotos, eu deixava a câmera ligada
dentro do casaco,e na hora que ia bater a foto, tirava-a rapidamente e
fotografava, inserindo-a depois rapidamente no casaco para não
congelar outra vez.
Indubitavelmente o inverno é uma estação que tem suas
atrações, ainda mais quando a neve aparece. As crianças, mesmo as
russas, ficam agitadas e querem sair para a rua e se divertir um
pouco. Neste período começa o desfile de pais puxando os trenós
com os filhos e nós compramos um destes trenós para as nossas
meninas. Íamos de nossa casa até o parque ou o lago congelado perto
da Universidade sempre que nevava. A raridade da neve em
Krasnodar era um atrativo a mais, pois nunca sabíamos quanto tempo
ela estaria acumulada e quando voltaria a nevar na cidade.
Atravessávamos distâncias enormes (levando-se em conta que com
neve fica mais cansativo andar) apenas para puxar o trenó com elas
em cima. O frio era intenso, mas a diversão sempre foi proporcional.
Brincar na neve é algo que todos gostam de fazer. Em certo
sentido, todos viramos crianças. Fazer bolinhas de neve e jogar nos
amigos, parentes ou conhecidos é um ato quase involuntário, não se
pode resistir a isto. Nem mesmo os russos, já acostumados com neve,
deixam de aproveitar. E não importa a idade!
Nossa filha, sempre que nevava, demorava muito tempo para
voltar para casa da escola, que ficava a uns 250 metros de casa.
Quando ela entrava pela porta, estava cheia de neve no cabelo, nas
botas, luvas, e na roupa. Suas bochechas rosadas denunciavam que
estivera muito tempo exposta ao ar gelado. Nunca entrávamos nos
detalhes do que ocorria, pois era evidente. Anos depois ela confessou
que sempre saia da escola e ia “brincar” com as colegas no pátio e
pela rua, fazendo com que o caminho até em casa se tornasse mais
cumprido do que o habitual.
Toda esta atividade fora de casa, na neve, seja uma
caminhada ou uma visita na praça perto de casa, exigia que na volta a
mamãe preparasse um gostoso chocolate quente. Às vezes
duvidávamos se saiam para se divertir ou para poderem depois voltar
e se aquecer na calefação tomando um delicioso chocolate quente.
Certo dia, nas minhas caminhadas pela cidade, fui até um
parque que fica ao lado do rio Kuban, que banha a cidade. Andava
solitário pelo meio dos montes de neve, no que seria a calçada da via
principal do local. Estava sozinho, pois apesar dos russos gostarem
de passear pelas ruas nos dias frios (dizem que faz bem para a
saúde!!!), não havia ninguém por perto. As tendas e quiosques que
no verão ficam abertas e cheias de pessoas que buscam diversão,
estavam abandonadas, cobertas de neve. Mas ao chegar perto de um
dos braços do rio que entra em direção ao parque, percebi pequenos
pontos que destoavam do monótono branco. Com dificuldades desci
o barranco em direção ao rio congelado. Andei calmamente sobre as
águas congeladas e enquanto caminhava percebi que aqueles pontos
eram pessoas sentadas em cadeiras de campo. O que estariam
fazendo ali paradas sentadas no meio do nada? Cheguei mais perto e
percebi uma vara de pescar em suas mãos, um pote ao lado e a
inseparável garrafa de vodca Assisti aquela cena por alguns
segundos, sem que fosse notado pelos destemidos pescadores. A
temperatura estava abaixo dos -15° C naquele dia de intensa neve.
Com o passar dos anos, descobri que aquela prática era uma espécie
de terapia para os russos. Eles abriam um buraco no gelo e lançavam
o anzol com a isca ali mesmo. Não é uma questão de quantos peixes,
nem mesmo o tamanho dos mesmos, é apenas uma forma de relaxar
e curtir o frio.
Entretanto, sair para estas caminhadas e aventuras pelas ruas
congeladas era uma tarefa um tanto quanto perigosa. Constantemente
na televisão eram emitidos alertas para as pessoas em relação a um
perigo silencioso, as sosulki (plural). Mas que é isto? Também
demoramos para descobrir. Certo dia apareceu no jornal que uma
pessoa havia ficado gravemente ferida por uma sosulka (singular)
que havia caído de um prédio. Descobrimos então que eram
pingentes de gelo (estalactites de gelo) que se formam nos telhados, e
que por algum motivo podem cair lá de cima, acertando na cabeça de
um transeunte, o que pode provocar até mesmo a morte. Depois
disto, sempre ficávamos longe de qualquer ponto perigoso. Ao passar
por alguns prédios, pude perceber as afiadas e mortais sosulki, e me
lembrava de nunca brincar com a sorte, pois um dia poderia virar
azar…
Ainda existia outro perigo, os escorregões no gelo. Muitas
vezes vi as pessoas patinarem, escorregarem, dançar e cair no chão
devido ao gelo. Não era incomum ver nas ruas este tipo de cena. O
que me chamava a atenção era que ninguém ria ou se encabulava por
estes “imprevistos”. Descobri depois que não havia pessoa imune a
isto, todos, mais cedo ou mais tarde caiam. Um dia eu estava saindo
de um mercadinho perto de casa com duas sacolas com leite. Nevava
de forma arrastada, tranquila e sem maiores pretensões. De repente,
senti o chão indo embora e ocorrendo uma súbita inversão de polos
em minha cabeça. Imediatamente depois, vi a neve caindo em meu
rosto e as sacolas voando pelo ar e caindo logo à frente. Uma senhora
que passava perto olhou para mim e perguntou se eu havia me
machucado. Levantei-me depressa e verifiquei se estava tudo em
ordem, batendo a neve da roupa. O casaco amortizou a queda e tudo
estava bem. Peguei as sacolas e fui para casa. Esta cena se repetiu
pelos anos seguintes, com pequenas variações no enredo.
Apesar de alguns “imprevistos”, sempre gostei de caminhar
na neve. O barulho dos sapatos quando se caminha e a neve sendo
prensada é muito interessante. Uma das caminhadas mais fascinantes
que fiz foi em uma floresta perto de Moscou. Estávamos num evento,
e numa hora livre resolvi explorar a região. Andei até a floresta e
comecei a andar por ela, vendo as árvores cobertas de neve, troncos
caídos, pequenos córregos congelados e os raios de sol que
penetravam por entre as árvores. Mais para dentro da floresta, ouvi
repentinamente um som seco, ritmado. Andei em sua direção. O
silêncio na floresta era ensurdecedor, nada se movia, nada respirava,
nada fazia barulho, só aquele som ecoando por toda a floresta. Em
certo momento, olhei para o alto de uma árvore de onde eu
imaginava vir o som. Bem lá no alto havia um pássaro, que não pude
identificar ao certo, mas parecia um pica-pau. Ele estava procurando
bichos que se escondiam dentro das árvores. Fiquei um tempo ali
observando o trabalho dele, depois resolvi continuar a exploração.
Alguns metros adiante vi pegadas na neve, que tinham sido feitas ha
pouco tempo. Era de um animal grande. Eu estava sozinho numa
floresta congelada, e meu espírito aventureiro deu lugar a um instinto
de auto-preservação. Dei meia-volta e resolvi não arriscar em
descobrir o dono daquelas pegadas...
Muitas foram as aventuras nos invernos que passamos por lá.
O que posso dizer para finalizar é que, em minha opinião, não vi
nada mais lindo na Rússia do que um dia de neve sem vento. Assistir
os flocos caindo calmamente, manhosamente é algo espetacular. Um
dia na universidade fiquei olhando pela janela a dança dos flocos,
que por uma brisa qualquer, formavam um verdadeiro balé diante dos
olhos.
Sim, o inverno tem seus encantos, e posso dizer que são
muitos!
MEDICINA
A mudança para outro país pode ser, para muitos uma
aventura e para outros uma loucura, especialmente para lugares tão
“distantes” do nosso Brasil.
O enriquecimento cultural e de vida é um contrapeso no
meio de tantas perdas. Quem já passou pela experiência de ter
contato com o mundo lá fora, sabe bem o que é isto.
Mas a mudança também afeta outros pontos, que talvez não
fossem tão desejados. E mesmo assim, aprendemos. Existe um
provérbio russo que diz: “Viva por um século e aprenda por um
século”.
Uma das áreas que mais preocupa nestas adaptações é a
saúde. Pode ser que não exista nada tão desesperador quanto estar
doente em um lugar onde você não tem meios de ser atendido ou
entendido, ou ainda, desconhecer por que está naquele estado.
E nossos problemas começaram antes mesmo de sair para a
Rússia. Minha esposa havia feito exames pouco antes da data
marcada para o voo. Na sexta-feira (viagem marcada para
domingo!), o médico nos passa o resultado dos mesmos. Ela
precisava fazer um tratamento e a recomendação médica era de que
não viajássemos. Bem, não era uma viagem de férias ou um passeio,
era uma mudança para o outro lado do mundo! Por fim, resolvemos
comprar os medicamentos e fazer o tratamento lá na Rússia mesmo.
Chegando lá, já depois do período inicial de adaptação,
buscamos informações de como fazer os exames que eram
necessários para ver se o problema havia desaparecido.
Preciso fazer um parêntese aqui. Como estávamos na Rússia
com o visto de estudantes, pois faríamos o curso de russo pela
Universidade de Krasnodar, precisávamos alguns exames de rotina, o
mesmo que os alunos russos precisam fazer anualmente. Como
éramos estrangeiros, nosso plano era pago, mas fazíamos no lugar
indicado pela universidade, que era onde os alunos precisavam fazer.
Era uma única policlínica para todos os estudantes da cidade.
Conseguir chegar ao local foi complicado, pois informações
não são algo que o pessoal gosta de dar, ainda mais quando o
inquiridor é um “esquisito estrangeiro que não entende as coisas”.
Mas, chegando no local, a dificuldade ainda seria a de identificar
qual guichê e qual fila pegar. Isto num mar de estudantes que estão
de muito mau humor, pois gostariam de estar em qualquer outro
lugar, menos ali, naquela confusão. Realmente tudo isto é
simplesmente uma tarefa de tirar qualquer um do sério.
Quando finalmente, depois de muito tempo rodando,
achamos o local exato, disseram que haviam fechado e que só iriam
atender no dia seguinte! E não adianta reclamar, chorar, esmurrar,
eles são a lei!
No dia seguinte chegamos cedo para enfrentar a fila.
Descobri que os russos adoram duas coisas: fazer filas e furar filas,
sendo isto uma espécie de esporte nacional. Enfim…
Conseguimos chegar à enfermeira (de mau humor!) e
mostrar nossos papéis requisitando os testes. Ela explicou o que
deveríamos fazer: teste de sangue, fezes e urina. Mostrou umas
caixinhas de fósforos em uma mesa. Na parte de baixo da mesa,
garrafas de vidro de vários tamanhos e tipos, com um líquido
amarelado… Entendi, nem precisava abrir as caixinhas de fósforo
para entender o que tinha dentro! O sangue seria coletado na outra
sala…
Fomos para a sala e a enfermeira começou com um papo
estranho. Viu que éramos estrangeiros e disse que se “ajudássemos”
nem precisaríamos tirar o sangue. “Ajudar”? Está bem, entendi tudo,
mas resolvi usar minha prerrogativa de estrangeiro. Ela explicou
umas 3 ou 4 vezes o que entendia por “ajudar”. Quando viu que não
“ajudaríamos”, pegou o estilete e cravou no dedo de minha esposa.
Apertou e pingou o sangue numa lâmina de vidro. Humor totalmente
azedado. Fomos embora para casa com vontade de explodir tudo
aquilo.
Fechando este parêntese e voltando ao caso de minha esposa
e sua questão médica, havíamos decidido buscar formas mais
“humanas” de tratamento. Onde encontrar uma Clínica particular?
Não existia internet confiável ainda para nós. Páginas amarelas,
respondiam alguns. E foi o que fizemos, procuramos as páginas
amarelas ou um catálogo. Ninguém com quem conversávamos sabia
dizer se isto existia de verdade por lá.
Por uma coincidência divina, nosso apartamento ficava
exatamente em cima de uma Clínica particular, que naquela época
deveria ser a única da cidade. Não prestamos atenção de imediato
nela, pois a propaganda era voltada para a área de oftalmologia, mas
descobrimos que ali havia várias especialidades! Inclusive a que
estávamos precisando no momento.
Já era outubro e ainda tínhamos muito a aprender em relação
à língua, pois as aulas haviam começado somente na metade de
setembro. Para a primeira consulta, minha esposa havia convidado
uma amiga, também estrangeira e que morava ha mais tempo na
Rússia, para acompanhá-la na ida ao médico.
A médica olhou tudo e tentou entender o que aquelas duas
estrangeiras estavam querendo. Depois de tentarem explicar o que
precisavam, a médica disse que para fazer os exames era necessário
tomar uma injeção que deixaria a paciente com sintomas de gripe
forte. Como essa ideia não foi aceita,ela deu a outra opção: comer na
noite anterior ao exame um peixe defumado, uma salada bem picante
e tomar um litro de cerveja, comparecendo no dia seguinte em jejum
para os exames médicos.
Todos nós achamos aquilo muito estranho, nunca tínhamos
ouvido falar que comer e beber algo antes de um exame pode “baixar
a imunidade” como a médica disse que teria que acontecer para que
os exames fossem feitos com sucesso. Mas, isso seria melhor do que
injetar algo desconhecido no corpo, num país onde não nos
sentíamos seguros.
Minha esposa compareceu na manhã seguinte, fez tudo
certinho e esperou pelos resultados.
Uma semana depois, voltou para saber como estava sua
saúde, e a surpresa foi muito mais do que podíamos esperar. No
resultado dos exames apareceram quatro doenças venéreas, e a
médica começou informando que aquilo podia estar incubado em um
dos cônjuges já antes de casarem, não significando necessariamente
alguma traição. A consulta mais parecia psicológica do que médica.
A doutora perguntou se estávamos dispostos a fazer o tratamento.
Como minha esposa ficou muito desconfiada desse resultado, ela
disse que iria para casa, conversar com o marido e então resolver o
que fazer.
Bom, levamos os exames para casa e fomos procurar na
internet informações sobre as tais doenças. Nenhum sintoma de
nenhuma delas nós tínhamos. Desconfiados de que o exame teria
sido trocado, fomos procurar outro lugar para tirar a “prova” e,
infelizmente, tal lugar havia somente em Moscou. A clínica de
Moscou era particular e com médicos internacionais. Mas o efeito
colateral de sua “idoneidade” era um preço de matar qualquer um.
Esperamos até fevereiro, quando o inverno estava
começando a perder força para então ir à Moscou. Precisamos levar
uma amiga que falava inglês fluente junto, pois na clínica tudo era
feito com médicos estrangeiros e que falavam inglês.
Tudo foi tranquilo. Exame feito, resultado enviado via e-mail
e depois de tanto tempo nessa tensão e expectativa, o resultado foi
que estava tudo normal.
Nunca mais procuramos aquela médica. Guardamos o
cartãozinho com o nome dela para não marcar por engano alguma
consulta com ela. Ainda tivemos que usar os serviços médicos
daquela clínica em Krasnodar até o último mês em que moramos lá,
pois nossa saúde estava sempre sendo afetada.
Um problema muito grave que tivemos que enfrentar foi com
nossa filha mais velha, com seis anos na época. Num passeio num
dia de verão, comemos um pastel à moda russa numa lanchonete de
rua, no centro da cidade, pois nos informaram que lá era muito bom.
Por causa do alimento, nossa filha contraiu uma infecção intestinal e
devido ao fato de sermos estrangeiros, o seguro saúde que minha
esposa e eu tínhamos com a Universidade não atendia à nossa
família, somente a nós. Então fomos tentar no posto de saúde, pois
na Rússia todo sistema de saúde é público. Negaram atendê-la e
ficamos tentando em casa com várias receitas caseiras fazê-la
melhorar, e nada. Depois de uma semana com vômito e diarréia,
pedimos a um amigo que chamasse uma ambulância de algum
hospital infantil. Quando a ambulância chegou, a médica examinou-
a. Nossa filha nem conseguia mais ficar em pé e a médica disse que
ela precisava de internação urgente. Ela iria de ambulância para o
hospital acompanhada pela mãe.
Chegando ao hospital, que ficava do outro lado da cidade, a
enfermeira que nos recebeu, e que provavelmente não sabia ler outro
alfabeto além do russo, assim que pegou o passaporte disse que nossa
filha não poderia ficar internada lá. A médica da ambulância entrou
na sala e tentou explicar que nós residíamos na cidade e que o caso
era grave, mas a resposta foi a mesma. “Aqui não podem ficar!”,
dizia repetidamente. A mãe ficou em estado de choque, já não sabia o
que pensar, o que dizer, o que seria da sua filhinha.
Nessa confusão, uma médica que passava pelo corredor
entrou para ver o que estava acontecendo. Quando soube da situação,
foi examinar a menina e depois foi falar com a mãe em particular:
- Se você quiser que a sua filha seja internada no hospital, eu
consigo que isso aconteça, mas aqui é um lugar terrível para este
caso, e não aconselho que vocês dêem prosseguimento ao caso aqui.
Se quiserem ir para casa com a filha, me comprometo em ir todos os
dias na sua casa para examinar a menina.
E foi essa a decisão tomada. Nossa filha foi pra casa e
ficamos duas semanas com um mini hospital em nosso apartamento.
Precisávamos esterilizar o banheiro a cada uso, e como não existe
álcool na Rússia (o de farmácia, é claro!), por indicação da própria
médica, usamos vodca.
A médica passou duas semanas indo até nosso apartamento
para verificar o quadro. Quando não podia estar presente
pessoalmente, ela ligava e pedia nosso “relatório”. Nossa filha
passou por uma dieta rigorosa, e todos nós tivemos que entrar num
ritmo completamente novo para acompanhá-la.
Ao fim do prazo que a doutora havia estipulado para o
tratamento, nossa filha já estava recuperada. A médica ficou muito
contente de ver o progresso que tivemos, e elogiou muito minha
esposa. “Não achei honestamente que vocês conseguiriam” - disse
ela finalmente. Reconheceu que o quadro era muito grave e que
havia inclusive risco de vida, e este era o motivo do interesse da
médica que foi tão prontamente atenciosa. Ela, doutora Oksana, foi
mais um daqueles anjos que passaram em nossa vida pela Rússia.
Em outra ocasião, nossa filha mais nova estava com
problemas, recorremos à Dra. Oksana. Ela não podia atender o caso,
pois estava de licença gestante, mas disse que ligaria para outra
pessoa no Hospital Infantil. Em alguns minutos ela retorna a ligação
e nos dá todas as orientações de como chegar ao Hospital e como
proceder, com quem falar e o que dizer para quem nos atendesse,
“...a médica já está esperando vocês!” - disse ela por fim.
Assim como apareceu de lugar algum, a doutora Oksana
também desapareceu, como nos contos. Seremos eternamente gratos
a ela!
Neste sentido teríamos que citar ainda outras pessoas que
foram nossos anjos da guarda naqueles tempos. Janna Petrovna, por
exemplo, a médica ginecologista que cuidou de minha esposa. Houve
ainda um médico anônimo que fez uma pequena cirurgia em minha
esposa, com eficiência notável. Ele não cobrou nenhum tipo de
“presente”, algo totalmente incomum na Rússia, pois o caso havia
sido indicado por uma colega dele que atendeu minha esposa na
Clínica.
Aos poucos fomos aprendendo como lidar com a questão de
saúde na Rússia. Descobrimos que era preciso evitar os caminhos
“normais”. Todas as vezes que tentávamos fazer a “coisa certa”,
pelos caminhos oficiais, tudo emperrava na burocracia e mau
atendimento (quando acontecia o atendimento!). O caminho das
indicações se mostrou o mais eficaz.
Lembro-me que quando precisamos colocar nossa filha na
escola russa, uns dos requisitos para matricular uma criança era a
carteira da policlínica onde ela deveria ser atendida. Buscamos
informações de como obter a tal carteirinha. Logo de cara, percebi
que estávamos entrando em mais uma das ruas sem saídas do sistema
burocrático russo. Descobrimos onde seria a policlínica que atenderia
a nossa filha, contudo, lá ninguém sabia informar nada, pois não
tínhamos passaporte russo.
- Como fazer? Como vocês não têm passaporte russo?
Alguém nos disse que precisaríamos entrar com um pedido
numa repartição que regulamentava as tais carteirinhas. “Mas onde
é? Não sei!” Por fim, um amigo russo resolveu nos ajudar. Ele
encontrou o local e foi conosco para resolver o impasse. Lá
chegando, depois de preencher fichas e tudo mais, perdendo um
tempo enorme para conseguir alguma informação. A funcionária
disse que aparentemente as carteirinhas haviam sido suspensas para
os não-russos, mas que era para esperarmos o resultado. Até hoje
estamos esperando!
Sem carteira, nossa filha não podia entrar na escola, mas
como estávamos na Rússia, a diretora vendo nosso caso, resolveu
autorizar o ingresso dela mesmo assim.
O problema era quando os fiscais de saúde passavam pela
escola e viam que a aluna X não tinha documentação. A enfermeira
da escola e a diretora sempre davam um jeitinho de deixar as coisas
na base do “deixa pra lá, vai!”. Anjos...
Ficamos tão familiarizados com o sistema russo e
conhecemos tantos caminhos alternativos, que no fim acabávamos
servindo de referência para outros estrangeiros da cidade. Eles
ligavam para nossa casa e pediam ajuda: “qual médico procurar?”,
“como era o nome do remédio tal?”, “você pode ir comigo na
consulta?”
Certo dia uma amiga estrangeira pediu para minha esposa
acompanhá-la ao médico para ajudar a “traduzir” o que ele diria. As
duas foram até a clínica, e a estrangeira (uma americana) que estava
ha pouco tempo no país, mal falava russo. Minha esposa não fala
inglês, de forma que, quando o médico falava, usando termos
específicos da área médica, minha esposa se virava para a americana
e traduzia do russo para o “russo de estrangeiros”. A americana
assentia positivamente fazendo gestos de positivo e pronunciando
algumas palavras em russo. Assim foi a consulta inteira. Minha
esposa conta que havia momentos em que o médico ficava sem
entender o que aquela brasileira estava fazendo ali, traduzindo do
russo para um “russo estragado”! Às vezes a tradução era literal, ou
seja, palavra por palavra, mas para a americana, talvez por causa do
sotaque do médico, ou medo de algo, sentia mais à vontade com a
presença de uma “tradutora”.
Gosto de pensar que de certa forma, também servimos de
anjos para outros. Mas o que seria da vida sem estes anjos
protetores?
SISTEMA DE EDUCAÇÃO RUSSO
Nossos primeiros dias em Krasnodar foram tempos de
adaptação ao novo ambiente. Precisávamos aprender coisas tão
básicas, que até mesmo uma criança pequena sabia, ou seja, era
necessário aprender em poucos dias o que as pessoas levam anos
para assimilar e descobrir.
Quando se muda de país, a questão da língua é um fator que
contribui muito para o estresse, mas compreender a dinâmica da vida
em todas as suas nuances, é algo que pode acabar com qualquer
pessoa. Pensando que este processo de aprendizagem precisa ser
rápido e com qualidade, nós não poupamos esforços para entrar logo
na cultura local.
Nas poucas semanas que tivemos antes das aulas na
Universidade, conseguimos ter avanços significativos. Mas o começo
das aulas mostrou o quão longe estávamos ainda de entender a
Rússia!
Em primeiro lugar, descobrimos que as datas são apenas uma
aproximação, especialmente quando se fala dos inícios de algum
processo longo. Ao menos deu para entender o que o responsável
pelos estrangeiros tinha em mente quando disse que “as aulas
começam lá pelo início de setembro”. Isto significava que, por
estarem esperando outros alunos atrasados chegarem à Rússia,
efetivamente tudo começou a andar já na segunda quinzena de
setembro.
A universidade não impressionava muito, pelo contrário,
corredores escuros, canos expostos pela parede, banheiros que eram
precários (nenhuma novidade no quesito banheiros!), salas com
carteiras e cadeiras quebradas, entre outros. O que mais “chocou”
neste início foi o hábito dos professores apagarem o que escreviam
no quadro-negro, usando um pano-de-chão encharcado com água.
Ficávamos olhando aquilo e vendo o borrão de giz que ficava
espalhado pela lousa. Depois que me acostumei com a cena, percebi
que aquilo evitava que o pó de giz se espalhasse no ar e pela mão de
quem limpava o quadro (tarefa dos alunos).
Mas estas primeiras impressões se deram nas aulas de russo
para estrangeiros que a universidade oferecia para aqueles que
estavam pretendendo entrar em alguma faculdade. A sala de aula era
algo surreal. Numa sala pequena, que ficava dentro do dormitório
dos alunos, havia algumas carteiras e o quadro. Todos ali eram
estrangeiros, vindos literalmente de todos os continentes, perfazendo
cerca de 10 pessoas. Ninguém falava um “i” de russo, exceto eu e
duas coreanas que ao menos bom-dia sabiam dizer.
O primeiro passo foi aprender o alfabeto. Era muito
engraçado ver todos, já adultos, repetindo o que a professora dizia.
Parecia que estávamos numa sala de crianças de 1° série.
Depois de algumas aulas a professora veio falar comigo e
disse que sugeriria para o responsável pelos estrangeiros de colocar
eu e as coreanas na outra turma, a mais avançada. Assim, deixei
minha esposa com a turma principiante e parti para a “avançada”.
Enquanto eu me adaptava à nova turma e à professora, agora
ao menos numa sala mais clara, minha esposa continuou avançando a
passos largos. Cada dia ela vinha mais afiada no russo. Foi realmente
muito bom para todos aquela separação, pois quem já tinha uma base
pode galgar níveis mais altos, e o pessoal iniciante não tinha que se
preocupar com os mais adiantados, e acabaram, creio, tendo
resultados muito melhores até mesmo que alguns da outra turma.
Aprender língua não é o suficiente, precisa-se entender e
participar da cultura, pois ambas são inseparáveis. E em questões
culturais, os russos são muito bem servidos. Pudemos aproveitar
muito nosso tempo lá, pois sabíamos que para termos acesso ao
mesmo tipo cultural aqui no Brasil custaria muito caro, e lá na
Rússia, tudo era muito acessível.
Acabei passando, algumas semanas depois, para outra turma
de russo, pois nossa professora estava sendo requisitada para dar
aulas para um grupo novo que acabara de chegar. Esta minha nova
turma era bem mais adiantada, e tudo que acontecia, especialmente
as conversas, era unicamente em russo (na turma de minha esposa
ainda não haviam chegado no nível de conversação direta). Este era
um ambiente estimulante, onde a maioria realmente estava ali para
aprender russo, já que tinham necessidade disto, tendo em vista que
aquele era o último estágio antes do ingresso nas faculdades.
Cabe dizer que nem todos estavam lá por causa da faculdade,
ou estudos. Alguns queriam passar um tempo na Rússia e este era um
meio de se conseguir visto e até mesmo certa liberdade. Outros
queriam um certificado para poder mostrar em seus empregos
(Companhias multinacionais, especialmente coreanas). Ainda havia o
pessoal da festa ou do tipo “papai me mandou para cá”.
Porém, quem precisava e tinha planos mais sérios, descobriu
que aqueles meses de preparo seriam a diferença entre a vida e a
morte na faculdade.
Passado o primeiro ano, havia aprendido a lidar com algumas
questões dentro da cultura acadêmica russa. Desconhecer certas
“regras’ era trilhar caminhos nada fáceis dali para frente.
No ano letivo seguinte, minha esposa se inscreveu para o ano
avançado de russo, ou seja, a turma que eu estava no ano anterior.
Ela iria enfrentar mais um ano de russo na universidade, o que achei
corajoso e sábio ao mesmo tempo. Suas aulas continuariam no
período da manhã. Contudo, eu teria que mudar de turno, e teria aula
à tarde, pois a faculdade que eu escolhera somente tinha aulas
naquele período.
Tivemos alguns contratempos por causa das crianças, que no
ano anterior ficavam em casa com uma babá. Entretanto, com as
novas regras do jogo, tivemos que fazer adaptações. Feitas as
adaptações, prosseguimos com nossa rotina.
Lembro com exatidão o primeiro dia na Faculdade de
Filosofia, História, Sociologia e Relações Internacionais. (FISMO,
em russo). O longo corredor tinha algumas luminárias funcionando,
outras nem tanto, e algumas que realmente tinham perdido sua
função há muito tempo. Havia uma multidão no corredor, pois além
dos alunos dos cursos da Faculdade em cada especialidade, o
corredor era uma ligação entre dois prédios da Universidade, e o
trânsito sempre era intenso por ali. Consegui ver no quadro o local da
primeira aula. Cheguei à frente da sala e percebi haver uma multidão
que já se aglomerava ao redor da porta.
Quando ela se abriu, e o pessoal da manhã começou a sair,
lembrei daqueles dias em que você tenta pegar um ônibus lotado
num ponto de ônibus que está mais lotado ainda. O empurra-empurra
generalizado se justificou pouco tempo depois. Eram 55 alunos para
uma sala que tinha menos de 50 cadeiras. Como decidi ser mais
educado na entrada, especialmente com as damas, tive que ir pro
fundo da sala. Havia uma cadeira sem o acento, apenas a parte de
ferro. Era a única coisa que restara.Alguns já estavam em pé contra a
parede. Pensei nas horas que ficaria naquela sala, e decidi sentar ali
mesmo. Resumindo, não era nada confortável, mas era o que tinha.
Outros mais educados dividiam a cadeira com uma amiga, ou amigo.
Eu não tinha conhecidos ali, todos eram alunos russos.
A sala, além da falta de carteiras e cadeiras, visivelmente
carecia de uma manutenção. Tive o trabalho de contar quantas
lâmpadas incandescestes queimadas havia nos lustres. O total foi de
70%! O chão tinha uma lâmina parecida com tacos, mas em alguns
locais ela já havia desaparecido, sobrando apenas o chão de madeira,
e ao longo dos meses tive a nítida impressão que estes buracos na
lâmina iam aumentando em seu diâmetro. As janelas tinham vidros
quebrados e o vento que entrava no outono e inverno eram de
congelar os ossos. Por causa da sensação de segurança que o fundo
da sala sempre trás ao aluno menos preparado para perguntas dos
professores, acabei achando um canto lá nas últimas carteiras. No
fim da primeira semana todos os lugares estavam marcados.
Logo descobri que a presença em sala de aula não é algo
notado ou anotado pelo professor. Isto fez com que começassem a
sobrar cadeiras mais dignas para se sentar ao longo do primeiro
semestre. Mas para mim era imprescindível estar nas aulas. Em
primeiro lugar, o controle sobre os estrangeiros era muito eficaz.
Alguns que apreciavam “passear”, como dizem os russos, acabavam
sendo chamados e inquiridos pelo diretor de assuntos internacionais.
Resolvi não ter problemas com ele. Em segundo lugar, estar nas
aulas era uma forma de aprender russo, familiarizar-se com o
vocabulário mais científico e serviria de argumentação junto ao
professor na hora das provas.
Descobriria posteriormente que a sala de aula que mencionei
acima era a melhor que havia na faculdade. As outras eram muito
mais precárias: quadro-negro no chão, na posição vertical e com a
parte superior encostado na parede As carteiras davam lugar a uma
mesa de madeira com inúmeras camadas de tintas sobrepostas, onde
eu imaginava que seria necessária uma espécie de prática de
escavação arqueológica até se chegar às camadas pré-históricas da
tinta original. As cadeiras eram na verdade bancos de madeira sem
encosto. E as lâmpadas, deixo à imaginação do leitor!
Agora algumas palavras sobre os professores. Era perceptível
que havia uma renovação do quadro, pois alguns professores estavam
se aposentando, ou ao menos deveriam fazê-lo logo! Especialmente
nesta área, História, muitas mudanças ocorreram nos últimos anos,
em especial após a queda da URSS. Não que os fatos históricos
tenham mudado em si, mas a forma ideológica como eram
interpretados havia mudado. Apesar de matérias serem abandonadas
(como História do Partido Comunista da União Soviética, por
exemplo), para muitos professores se desfazer de um passado repleto
da ideologia partidária ainda era um problema.
Outros que eram comunistas enquanto a União existia,
passaram a dizer o que pensavam de verdade, abriam seus arquivos
secretos e desenterravam leituras antes subversivas. Preferi este
segundo grupo.
Sempre existem aqueles professores que aprendemos a
evitar, e aqueles que se pudéssemos daríamos um jeito de escanear
todo o seu conhecimento. Com estes últimos, nunca era demais ter
aula. Eles entram em nossas vidas, e mesmo que depois de alguns
anos de estudo não os vejamos mais, eles jamais sairão dela.
Aquela questão que mencionei no início do capítulo sobre a
necessidade de aprender em pouco tempo o que uma pessoa nativa
daquela cultura levou anos para descobrir, estruturar e decodificar,
fala muito alto em momentos como o tempo das provas e exames na
universidade. Aprender o jeito, a manha de tudo aquilo requer uma
força extra de todo estrangeiro. Cada país tem um sistema, cada povo
tem uma maneira de fazer as coisas, e as diferenças de como tudo é
feito na Rússia neste sentido, é tão grande quanto a imensa distância
geográfica que separa o Brasil de lá.
Resumidamente o sistema funciona assim (claro que
descobri isto depois das primeiras provas!): O professor disponibiliza
para a responsável da turma a lista de perguntas que irão cair na
prova. Elas podem variar de 50 à 150 perguntas. O aluno deve se
orientar por elas para estudar. No dia da prova, os alunos entram em
pequenos grupos na sala da prova (geralmente 5 alunos). Ao entrar,
com sua carteira de notas na mão, ele deve pegar um dos bilhetes que
se encontram sobre a mesa do professor onde estão as perguntas
viradas para baixo. Geralmente existem duas perguntas em cada
bilhete (daquelas que foram dadas pelo professor). O aluno diz o
número do bilhete que pegou entre os que estão na mesa e vai sentar-
se para responder às perguntas. Ali naquele papel (dado pelo
professor) ele deve lançar tudo que sabe sobre o tema em questão.
Ao acabar, o aluno responderá oralmente às questões do bilhete,
podendo usar o rascunho que esboçou naquele tempo em que teve
para se preparar. O tempo de preparo gira em torno de 30 minutos. O
aluno pode pedir para pegar outro bilhete, mas isto já acarreta no
desconto da nota a ser dada.
E isto não é tudo! Quando o aluno termina de dissertar sobra
a pergunta “A”, o professor pode (e certamente faz) perguntas
chamadas de “perguntas complementares” que envolvam o tema.
Aprendi a odiar esta expressão!
A nota final varia entre 2, 3, 4 ou 5. Neste caso, a nota 2
significa reprovado, e o aluno irá precisar fazer outro exame. 3 é algo
igual à “escapei por pouco!”. 4 já é algo considerável; mas 5 é mais
para os super-dotados intelectualmente! Não tive muitos 5 na
Rússia…
Como isto é avaliado? O professor é que decide a nota que o
aluno irá receber. Leva-se em consideração outros fatores, como
participação nas aulas práticas, frequência, comportamento em sala,
e outros fatores que nunca descobri. Sempre achei este método muito
aleatório, vago e injusto. Houve vezes em que pensei “hoje eu levo o
meu primeiro 5”, e o professor me deu 3. Outras vezes achei que
seria esculachado pelas respostas dadas, mas recebia uma nota 4.
Nunca sabia se iria bem ou mal na prova.
Na verdade tudo ali era como um jogo, onde sempre quem
podia perder era só o aluno!
Ao final do exame, o professor pegava a carteira de notas do
aluno e escrevia nela o nome da matéria, a nota e assinava.
Descobri também que existiam tipos diferentes de
professores na época das provas e exames. Os bonzinhos durante o
semestre poderiam ser os devastadores na hora da prova, com
perguntas que jamais poderíamos pensar que pudessem ser feitas.
Outros “monstros” da sala acabavam por relaxar e deixar passar na
boa.
Mas o mais terrível de todos era o tipo “vocês não vão
conseguir passar, por isto para que se matar estudando? É só ajudar
com as compras de Fim de ano, que tudo fica bem”. Houve um caso
em que existia uma tabela de preços. Quem estivesse interessado
numa nota 3, deveria contribuir com X rublos. Se o apetite do aluno
era maior, o número na tabela também era acrescido no seu valor.
Agora se a pretensão era o desejado 5, aí era preciso desembolsar
mais. Já outro professor facilitou as coisas, era só comprar o livro de
sua autoria (e somente ele vendia, é claro!), e dar uma lida que a nota
estava garantida!
Na época da URSS, muita corrupção existia nos
estabelecimentos de ensino (e em toda a parte). Contudo, nos últimos
anos o governo russo começou uma cruzada contra este tipo de
atitude, e os professores universitários não ficaram fora da ação.
Durante o tempo que estive na universidade, tive um professor que
foi demitido por “comportamento inadequado”. Isto fez estancar
muito este processo de “cobranças” de fim de semestre, e a partir do
3 ano não tive mais notícias, pelo menos abertamente, desta prática.
As mudanças também ocorreram nas dependências da
Universidade. O início do popular remont (conserto) chegou em
2007. Os alunos que moravam nos dormitórios tiveram a felicidade
de ver suas janelas dos quartos trocadas pelas famosas “janelas
alemãs”. Além disto, pintaram o corredor e instalaram um sistema
contra incêndio nos prédios.
Algumas faculdades começaram a ter corredores arrumados
e salas refeitas. O estádio da universidade, que até então era um
campo de futebol com uma grama esparsa e trilhos por onde
passavam os alunos, acabou por ser totalmente reformado, ganhando
grama sintética, pista de atletismo e até mesmo arquibancadas, com
direito a iluminação noturna!
As mudanças demoraram um pouco mais a chegar na nossa
faculdade, mas foram bem recebidas quando apareceram por lá. O
corredor, que era uma penumbra por falta de lâmpadas, foi
iluminado. Os gabinetes das Cátedras e sala de professores
totalmente reformadas. Durante semanas passamos pelos corredores
que serviram de depósitos de móveis dessas salas e que iriam para
lugar mais apropriado, o lixo. Mas a mais esperada de todas as
reformas era na sala de aula principal, aquela que foi descrita
anteriormente. No dia da “inauguração”, todos estavam ansiosos para
estrear a nova sala. As luminárias foram trocadas e colocadas novas
lâmpadas fluorescentes, as paredes perderam o tom marrom escuro
(imagine como era antes numa sala marrom escuro e com lâmpadas
queimadas). As janelas também viraram “alemãs” e a calefação foi
trocada. Carteiras e cadeiras substituídas e o chão ganhou
revestimento novo. O quadro negro virou branco e ganhamos um
projetor de imagens.
A reforma no âmbito físico também estava acontecendo na
estrutura do próprio sistema de Ensino Superior. A Rússia mantinha
seu sistema, que basicamente era o seguinte: ensino superior de 5
anos, sendo o quinto ano a Especialização. Depois deste grau, vinha
o nível de “Aspirantura”, que era composto de 3 anos. A inserção do
“novo estilo” (4 anos de superior, depois mestrado e por fim
doutorado) foi uma opção à disposição dos alunos a partir de 2007. A
minha turma foi a última que se formou exclusivamente pelo estilo
antigo. Esta mudança não agradou a todos. Especialmente os
professores não estavam totalmente convencidos que isto traria
alguma melhora significativa. Na verdade, nem eles entendiam como
iria funcionar este novo sistema e qual sua correspondência com o
sistema russo. Resumindo, todos estavam confusos, inclusive eu, e
até hoje esta relação é obscura.
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Preciso fazer agora uma menção ao sistema fundamental de
ensino na Rússia, pois também participamos de mais esta área da
vida naquele país. Isto ocorreu por que nossa filha mais velha estava
entrando em idade escolar.
Desde o momento que decidimos ir morar lá, fomos
unânimes na questão de colocar nossas filhas em escolas locais. Em
geral, todo o sistema de formação fundamental está nas mãos do
Estado. Ficamos sabendo depois que havia uma escola particular em
outro bairro um pouco longe de nossa região, mas que quase
ninguém sabia dar maiores informações. Alguns estrangeiros davam
aula em casa para seus filhos (home school), outros mandavam seus
filhos para escolas na Europa.
Nossa opção de mandar a filha mais velha, e depois a mais
nova, para uma escola local se deu por alguns motivos práticos.
Primeiramente, ficamos sabendo que o Brasil não reconhece
o sistema de “escola em casa”, e exige que as crianças que moram
fora do país com os pais, ao retornar para o Brasil comprovem ter
freqüentado um estabelecimento de ensino reconhecido no país de
origem, mostrando a papelada devidamente documentada e
traduzida. Com a orientação do pessoal da Embaixada do Brasil em
Moscou, conseguimos fazer todo o processo legal para que elas
fossem aceitas no sistema brasileiro quando voltaram. Em geral,
brasileiros mantêm pouco ou mesmo nenhuma preocupação com este
ponto. Mas isto é fundamental na volta para o país.
Em segundo lugar, acreditávamos que, se estávamos num
outro país, o conhecimento da língua seria importantíssimo para um
desenvolvimento natural e social de nossas filhas. Neste ponto
víamos a dificuldade de filhos de outros que tinham seu sistema de
“home school”. Eles estavam isolados do mundo, das pessoas. Não
podiam ir ao teatro, cinema, conversar livremente com pessoas,
enfim, viver a vida normalmente.
Em terceiro lugar, nossas filhas aprenderam outra língua,
outra cultura. Elas foram expostas a situações de vida real, e não
ficaram guardadas num gueto, longe da realidade.
Obviamente esta posição cobrou também um preço, tanto
dos pais, como das meninas. Creio que todos sabem como crianças
podem ser duras umas com as outras. Quem nunca sofreu algum tipo
de pressão na escola? Quem nunca se sentiu agredido verbalmente ou
mesmo discriminado em algum momento da vida escolar? Ser
estrangeiro sempre é um belo motivo para se sofrer este tipo de
pressão. Mas felizmente nunca tivemos casos de agressão física ou
mesmo o chamado bulling, como se observa em muitos países do
mundo. O fato de muitas crianças na escola delas serem também de
origem georgiana e armênia trazia certa compreensão dos colegas.
Certa vez, conversando com um colega de nossa filha, ele
perguntou se éramos estrangeiros mesmo. Falamos que sim. Nisto
ele olha para nós com ar de importância e disse que também era
estrangeiro, georgiano, apesar de ter nascido ali mesmo na Rússia.
A relação interpessoal na Rússia é muito complicada, e as
crianças não são uma exceção. O fato de se ter poucos amigos é algo
absolutamente comum, pois as pessoas são muito desconfiadas,
especialmente com gente de fora. Os pais não permitiam que seus
filhos se aproximassem das nossas crianças ao perceberem que elas
não eram russas.
Mas tivemos boas e não tão boas experiências com este lado
da vida, a escola. O fato de não serem russas teve seus
complicadores. Para matricular uma criança, precisa-se de alguns
documentos que não possuíamos, como uma apólice de saúde
infantil, que é dada pelo governo às crianças russas, como
mencionamos no capítulo anterior. O mais complicado era que não
tínhamos direito a nada, como foi no caso do hospital quando nossa
filha foi rejeitada, mesmo em estado grave.
Mas se por um lado não existia o amparo do Estado, por
outro contamos com a ajuda daqueles anjos divinos. A vice-diretora
da escola onde a nossa filha mais velha iria estudar foi a professora
dela na aula de “preparação para a escola”. Esta era uma aula de
adaptação para a escola e uma pré-alfabetização. As aulas duravam
alguns meses, e ajudava as crianças no processo de integração à vida
escolar, e ainda auxiliava a própria professora a conhecer os alunos
num ambiente ainda pré-escolar. Na Rússia não existe prézinho, as
crianças vão direto para o primeiro ano.
Este fato da vice-diretora naquele ano dar a aulinha ajudou-a
a conhecer nossa situação, e no momento de fazer a matrícula na
escola, apesar da falta de alguns papéis oficiais, ela e a diretora
foram amplamente compreensivas, e aceitaram nossa filha sem
maiores dificuldades. Esta porta aberta com elas nos foi importante
ao longo do processo de ensino das meninas.
Algumas vezes tivemos que bater no gabinete da diretora
para explicar algumas situações, outras precisamos de uma ajuda
para entender os processos educativos, e ainda houve momentos que
precisamos falar sério sobre questões envolvendo atitudes de uma
professora. Apesar de toda a seriedade e frieza com que a diretora
nos tratava (e fazia isto com todas as pessoas!), ela sempre nos ouviu
e foi uma pessoa profissionalmente bem equilibrada em suas
posições.
Aprendemos muito com as experiências na escola. Vivemos
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Explorando a Rússia interior e alma país

  • 1.
  • 2.
  • 3. LEIALDO PULZ UM MUNDO CHAMADO RÚSSIA Explorando o interior e a alma de um país.
  • 4. SUMÁRIO SUMÁRIO ..........................................................................................4 INTRODUÇÃO..................................................................................6 ANTES DE TUDO…....................................................................... 11 VENTO DE MUDANÇAS...............................................................15 KRASNODAR 40 GRAUS..............................................................22 PRIMEIRAS IMPRESSÕES: VIAGEM AO PASSADO ................28 PRIMEIRO INVERNO ....................................................................37 MEDICINA ......................................................................................48 SISTEMA DE EDUCAÇÃO RUSSO ..............................................58 OS CONTRASTES ..........................................................................75 CURIOSIDADES CULTURAIS......................................................84 AALMA RUSSA: DO MISTICISMO AO CRISTIANISMO .........97
  • 5. O INTERIOR DA RÚSSIA ............................................................ 110 DOLMENS E KURGANS .............................................................132 RUSSOS OU COSSACOS: O SUL DA RÚSSIA..........................148 O CÁUCASO NORTE: DE SOCHI ATÉ NALCHIK....................158 POLO NORTE: SALEKHARD .....................................................197 SALEKHARD, O RETORNO .......................................................222 STALINGRADO ............................................................................248 MOSCOU: CAPITAL DE TODAS AS RÚSSIAS.........................260 EXPERIÊNCIAS FUTEBOLÍSTICAS..........................................273 A VOLTA PARA CASA .................................................................288 CONCLUSÃO ................................................................................295 CONTATOS....................................................................................298 FOTOS............................................................................................299
  • 6. INTRODUÇÃO A Rússia é o maior país do mundo em extensão territorial. Sua fundação remonta ao IX século, mas por aquelas terras sempre vagaram contingentes humanos deste uma época já esquecida na escuridão dos tempos. A região foi palco de revoluções, conquistas, guerras, dramas e paixões eternizadas pela História. Mas sempre parece que aquele gigante se mostra aos olhos do mundo de uma forma enigmática, fria e tenebrosa. A Rússia é um mistério que muitos tentaram e ainda tentam desvendar. Nossa proposta neste livro não é chegarmos a uma resposta final sobre todas as questões que envolvem este povo. Gostaríamos de contribuir, mesmo que de forma modesta, para que nossos leitores descubram um pouco mais das
  • 7. “terras enevoadas e de trevas nos limites do mundo, às margens do Oceano”, como descreveu Homero em sua famosa Odisseia ao falar daquela região... Ao olharmos a literatura disponível em nossa língua, podemos perceber uma grande lacuna de livros sobre o tema se compararmos ao tamanho da influência e representação da Rússia ao longo da História. Mas gostaria de citar aqui o caso de alguns livros escritos por brasileiros que lá estiveram. O livro Os Caminhos da Eterna Rússia de Tite De Lamare (1997) foi importante pelo fato de ter sido escrito por uma embaixatriz brasileira, numa envolvente visão da História russa, com todas as suas nuances sócio-políticas e religiosas. Ainda poderia citar o livro de Angelo Segrillo, que morou na URSS por alguns anos e posteriormente na Rússia, fazendo um trabalho muito semelhante ao da embaixatriz em seu livro Os Russos. Mais recentemente foi lançado o livro Com Vista para o Kremlin, da jornalista Vivian Oswald, que morou em Moscou entre 2007-2009, com um enfoque na Rússia atual, suas questões políticas e econômicas. Ainda podemos citar Lágrimas na chuva de Sergio Faraco, que conta sua experiência pessoal na URSS nos anos de 1960. Tenho que reconhecer, entretanto, que ao ler estes
  • 8. livros, senti a falta de um olhar mais descompromissado com sequências históricas (apesar de eu ser um historiador), ou mesmo de um desapego à política e a assuntos da aristocracia e dos altos escalões. Percebi que pouco ou quase nada era dito do ponto de vista do povo em si, ou mesmo da vida cotidiana do interior daquele que é o maior país do mundo. Notei que esta lacuna poderia ser preenchida, de alguma forma pelas nossas experiências de vida lá. Moramos numa cidade que ficava longe dos grandes centros como Moscou e São Petersburgo. Estávamos mais deslocados para o sul, onde a vida passava num ritmo mais cadenciado e provinciano. Apesar de Krasnodar ser a capital do estado com o mesmo nome e ter quase um milhão de habitantes, muitos que residem ali são oriundos de lugares isolados, quase perdidos no mapa do Leste Europeu, Cáucaso ou da Ásia Central. As mais de 70 etnias representadas em Krasnodar dão o tamanho da multicolorida sociedade local. O desejo neste livro era buscar um olhar mais objetivo, da vida cotidiana e das dificuldades, alegrias, orgulhos de um povo que não se representa pelos empresários ou cúpula política de Moscou. De certa forma, buscamos trazer para o leitor um pequeno pedaço da alma russa, vista do enfoque de brasileiros que lá estiveram.
  • 9. Tentar reproduzir nestas páginas nossa vida na Rússia é sim, uma maneira de não deixar com que o tempo apague essas experiências que fazem agora parte de nossa história como família e como indivíduos. Queremos reproduzir aqui os fatos da forma mais vívida possível, transmitindo na medida do possível as emoções pela qual passamos. Nossa viagem levará o leitor a fatos históricos que servirão de base para elucidar algum conceito, uma visão de mundo, algum aspecto da alma russa. Somos em grande parte fruto de nossa história e da de outros. Não há como nos separar do aspecto histórico! E especialmente viver na Rússia é deparar-se constantemente com a História. Mas de igual forma passearemos pelo interior russo, de cidades e vilarejos desconhecidos e esquecidos, cruzaremos o país de sul ao norte numa viagem de trem, atingiremos a região polar, brincaremos no frio de trinta graus negativos, entraremos em regiões muçulmanas, encontraremos cidades de mais de 2600 anos, quase congelaremos no inverno russo, e nos queimaremos no verão abrasador. Enfim, uma viagem pela Rússia como você talvez nunca tenha visto! Quando fizermos nas páginas seguintes uma análise cultural, ou contarmos alguma situação vivida por nós, não estaremos fazendo um julgamento de se isto ou aquilo é certo
  • 10. ou errado, mas apenas colocaremos fatos e eventualmente faremos comparações apenas com a intenção de dar ao leitor uma ideia mais específica do tema abordado. Não existem culturas melhores ou piores, mas apenas culturas diferentes, e este é o objetivo neste livro, deixar diante do leitor as diferenças e semelhanças entre a cultura destes dois países, Brasil e Rússia, sob o ponto de vista de brasileiros que lá moraram. Tentamos deixar o livro com uma leitura leve, sem compromisso com estilos ou estruturas rígidas. Buscamos apenas manter os capítulos com tamanhos iguais para não sobrecarregar um assunto e deixar outros com menos conteúdo. Os capítulos são independentes e podem até ser lidos de forma aleatória sem comprometer a compreensão do leitor. Assim, convido a todos para embarcar nesta viagem para o interior da Rússia, e desfrutar de uma leitura clara e objetiva, mas sem dúvida, totalmente passional!
  • 11. ANTES DE TUDO… Quando era ainda adolescente, folheei os primeiros manuais de língua russa, pronunciei as primeiras palavras em russo (da, niet, tavarish,...). Foram anos colhendo informações que chegavam esparsas pelos noticiários da televisão, ou notícias de rádio e jornal. Quantas horas teriam sido dedicadas a escutar estações de rádio que transmitiam em russo pelas OC (Ondas Curtas). Ainda tenho algumas cartas que recebi da Rádio Central de Moscou, em português “estrangeiro”, ou russificado, diretamente da própria emissora situada na capital russa (que naquele tempo ainda era soviética). Naquela época, nos anos 80, felizmente, manter algum vínculo com o gigante soviético já não representava um perigo. A guerra fria estava dando suas últimas respiradas, o
  • 12. fantasma do holocausto comunista havia passado, as previsões dos profetas apocalípticos não se cumpriram e a policia tinha outras coisas a fazer do que rastrear “subversivos políticos”. Os anos que se seguiram aos eventos que protagonizaram do fim da União Soviética, como o pouso do pequeno avião alemão em plena Praça Vermelha (1987) e a queda do muro de Berlim (1989), foram de euforia e instabilidade em toda aquela região. Muitos saudavam a liberdade que estava chegando, mas outros a viam com desconfiança, típica dos russos. Grande parte da população se via traída e enganada por longos anos do regime socialista. Outros, que viveram o auge soviético, choravam o desmantelamento eminente de seu país, a URSS. No ocidente, nesta época, começamos a conhecer um pouco mais daquele país. Mais precisamente, no Brasil, o produto russo que apareceu (além da vodca, é claro!), foi o Lada. Naqueles tempos, as instabilidades políticas eram comuns em ambos os lados do Oceano. Foi precisamente em 1990, que o então presidente Fernando Collor autorizou a importação desta marca para o Brasil. Os preços baixos das unidades impulsionaram muitos a comprar aqueles modelos soviéticos, apesar do design já ser considerado ultrapassado. Este fator fez com que a empresa perdesse terreno em solo
  • 13. brasileiro. E a questão do design pareceu-me ser um dos fatores que mais chama a atenção nos produtos que eram produzidos por lá. Não eram somente os carros que tinham a aparência ultrapassada, mas em geral, tudo que era feito pela indústria daquele país, tinha sérios problemas nesta área. Disto pude me convencer in loco. Foi em 2002 que eu e minha esposa fomos pela primeira vez à Rússia, numa espécie de reconhecimento de campo, quando ficamos um mês. Naquela oportunidade, entramos no país pelo Sheremetovo. O aeroporto era ainda do tempo soviético, antigo, banheiros sujos, com máquinas velhas e nem sempre funcionando. Na migração, as cabines não tinham iluminação direito, pois algumas fluorescentes estavam queimadas ou ausentes. A fila para estrangeiros era mais demorada e sempre havia um guarda com um uniforme verde-oliva passeando entre os passageiros, fumando, e olhando minuciosamente cada pessoa (acho que era uma espécie de raio-X que existia por detrás daquele óculos). Parecia que seríamos todos pegos e levados para um caminhão ou vagão de trem e enviados para algum lugar na Sibéria! Mas passado aquele momento de intimidação, fomos pegar nossas malas, numa esteira que honestamente eu estava
  • 14. torcendo para que funcionasse, ou que não arrebentasse! Os carrinhos para levar as malas eram alugados. Caso não quisesse pagar, a pessoa podia tranquilamente levar todas as malas na mão. Aquele mês não foi algo realmente empolgante. Creio que o mais positivo, neste sentido, foi conhecer a Praça Vermelha. Esta sim, magnífica e bela. Aliás, como um todo, Moscou é maravilhosa, com seus parques, metrô e as igrejas ortodoxas em todos os lugares. Mas sobre isto falaremos mais adiante. Neste mês ainda, visitamos o sul do país, onde provavelmente iríamos morar dali a algum tempo. E o interior do país, como bem se sabe, é algo absolutamente distinto das grandes metrópoles. Aquele primeiro contato passou rápido, e levamos muitas impressões daquela experiência. Mas os nossos caminhos anos depois ainda iriam cruzar as estepes russas mais uma vez…
  • 15. VENTO DE MUDANÇAS Lembro-me, ainda com certo grau de detalhes, de estar olhando pela janela do avião e observando as nuvens lá fora. O avião descia lentamente, dançando entre elas, numa espécie de balé russo. Naqueles momentos que antecediam a chegada ao aeroporto Domodedovo, em Moscou, pensei nos anos de preparo para estar ali, prestes a encarar anos de vida num dos países mais enigmáticos do mundo. Mas lá estávamos nós naquele avião. Sim, eu estava com minha esposa, porém desta vez estávamos com nossas duas filhas, que tinham na época 1 e 5 anos. Minha esposa mal sabia algumas palavras em russo, e nossas filhas, logicamente não tinham nenhum conhecimento da língua. Toda nossa vida e bens materiais estavam restringidos em sete malas no compartimento de bagagens, e alguns dólares que carregávamos. Lembro-me que ao chegarmos no Domodedovo, tive a primeira boa impressão da nova Rússia. O aeroporto era mais
  • 16. moderno do que o Sheremetovo, o outro aeroporto internacional da capital. Por isto, passei a amar o Domodedovo, mais que o Sheremetovo e o Vnukovo, os outros aeroportos internacionais da capital russa! Havia sempre carrinhos de malas à vontade. A esteira funcionava como em qualquer aeroporto que se preze. Os soldados de verde-oliva com seus óculos foram dispensados, e já existia uma iluminação aceitável nas cabines da migração. Naqueles três anos, parece que muita coisa mudou! O país como um todo havia entrado numa era de modernização. A própria capital estava em franca mudança. Moscou ficara mais colorida, mais alegre e jovial. Nos próximos anos que viveríamos na Rússia, ouviríamos as histórias de outros estrangeiros, que chegaram na década de 90, contando todas as mudanças que desde então vinham ocorrendo a passos largos no país. Eram histórias de quando a Rússia ainda saia de um regime socialista e se aventurava num sistema capitalista, um capitalismo à sua moda é claro! As particularidades deste sistema capitalista russo se davam por conta de toda sua história como nação. A Rússia viveu sob a autoridade dos príncipes (knyaz), num sistema feudal até a chegada dos mongóis no século XIII. Por dois séculos permaneceu sobre o “jugo” da “Horda de Ouro”, um modelo de subjugação adotado pelos mongóis sobre toda a extensão territorial russa por eles controlada, que mantinha o sistema de servidão especialmente para os camponeses. Com a derrota dos mongóis e a chegada da era dos Czares (séc. XV), o país foi unificado e começou a fase de expansão, que
  • 17. iria originar toda a imensidão territorial que hoje é a Rússia, com 1/6 das terras emersas do mundo. Em todos estes períodos, aquela região viveu num sistema econômico que poderíamos classificar como Feudal. Porém, uma característica marcante do sistema social russo era a mir. Certamente influenciada pela severidade do clima, e por uma compreensão da necessidade de solidariedade com o objetivo de sobrevivência, este povo eslavo unia-se em comunidades, que viria a servir de modelo para os revolucionários do século XX. Marx, certa vez teria dito que a construção do comunismo só seria inicialmente possível num país como a Rússia. Não é à toa que décadas depois deste pensamento ser pronunciado, a revolução russa traria ao mundo uma nova proposta de estruturação econômica e social. Mas o país vivera um capitalismo antes de chegar aos caminhos socialistas. Entre 1861 e a revolução russa, o país foi iniciado no sistema que estava em fase desenvolvida, tanto na Europa, quanto nos Estados Unidos. O ano de 1861 foi importante, pois naquela data o país colocou em vigor uma lei que dava aos camponeses uma liberdade nunca vista até então, a chamada Lei dos camponeses. Uma luta de décadas para aumentar o direito dos trabalhadores do campo havia chegado ao seu objetivo. Esta Lei pode ser comparada, tanto nos pontos positivos quanto nos negativos, com a importância econômica e social da Lei da libertação dos escravos no Brasil em 1888. Foram promulgadas várias reformas com o intuito de colocar o país entre as grandes nações industrializadas do Ocidente. Por fim, a Rússia estava pronta para o desafio de entrar no mercado mundial.
  • 18. Foi a época das grandes expedições, inaugurações de estradas de ferro, como a Transiberiana, a mais longa linha do mundo, unindo Moscou à Vladivostok, no mar do Japão. As indústrias começavam a se instalar, e grandes fluxos de comércio com o mundo iam se estabelecendo. Mas a riqueza que estava sendo gerada não chegava ao trabalhador comum. E esta pressão foi aumentando cada vez mais, até chegarmos ao início do século XX. Apesar da devoção dos russos ao seu Czar, sustentada em grande parte pela Igreja Ortodoxa Russa, o povo foi persuadido pelas promessas de igualdade e prosperidade comum. Para isto, muito valeu aos revolucionários a base ideológica contida na concepção da mir. Depois de conturbadas reviravoltas no cenário político, em 1917, os bolcheviques tomam o poder, sendo liderados por Lênin. O país novamente estava entrando num processo de isolamento com relação ao Ocidente, fato nada novo na sua História, pois a Rússia sempre oscilou entre o caminho da ocidentalização e a “russificação”. Os anos que se seguiram à revolução bolchevique, com uma guerra civil entre o exército bolchevique (Exército Vermelho) e os contra-revolucionários (Exército Branco, apoiado pelas nações ocidentais), levaram o país ao caos econômico. Para piorar a situação, o sul do país, considerado o celeiro da Rússia, passou por anos de desordens climáticas, que gerou falta de trigo e outros gêneros alimentícios, além de ser um reduto dos “brancos”, pois ali estava a população cossaca, tradicionalmente leal ao Czar, pelos motivos que iremos apresentar mais à frente.
  • 19. A situação chegou a um limite tão desesperador que o próprio Lênin lança um programa intitulado Nova Política Econômica (1921),que seria segundo ele “um passo atrás necessário para fortalecer os passos rumo ao Comunismo”. Na pratica, a NPE era uma abertura de certos setores da economia russa para investimentos capitalistas. Com a morte de Lênin, e a chegada de Stalin ao poder, tais medidas foram abandonadas (1928) e o período de centralização total da economia teve seu início. A guerra civil da década de 20, a fome avassaladora da década de 30 e a Segunda Guerra Mundial na de 40, deixaram o país sempre numa situação complicada economicamente. A década de 50 foi o período em que a URSS finalmente teve oportunidade de crescer, especialmente com os Estados satélites do Leste Europeu como uma das fontes de recursos. O ápice chegou com a década seguinte. Ainda hoje, russos que viveram a década de 60 se referem à ela com um alto grau de nostalgia e apresso. O orgulho russo se estampava na pessoa de Yuri Gagarin, o primeiro homem a dar a volta ao mundo no espaço, símbolo daquele período. Mas o otimismo soviético começou a dar sinais de desgaste já na década seguinte. E os anos 80 foram marcados pela estagnação total na economia. Gorbatchov tomou a iniciativa de implementar a Glasnost (Transparência) e a Perestroyka (Reestruturação) para forçar uma mudança nas bases do sistema. Visto como grande estadista, homem corajoso e forte figura política aqui no ocidente, em seu próprio território ele era e ainda é tido como um traidor e responsável pela “venda” da URSS para o ocidente. Todos vimos como o Muro de Berlim caiu. Em 1989 ele veio
  • 20. abaixo, e com ele todo um sistema econômico e político. A experiência soviética havia fracassado. Neste novo contexto, vemos Bóris Yeltsin tomar o poder. Resistiu a um golpe que tinha como proposta o retrocesso ao sistema antigo soviético. Para a Rússia, não havia mais espaço para o socialismo. Neste vácuo político e econômico, o capitalismo se oferece como única alternativa, mas ele não escaparia de sofrer as influências do país onde estávamos por entrar. O modelo capitalista russo tinha suas características distintas, pois foi moldado e ditado pela crescente máfia local. Os burocratas privilegiados do sistema soviético davam lugar aos grandes empresários russos que, muita das vezes, eram operários nas empresas estatais que, da noite para o dia, haviam se apossado de máquinas, equipamentos e de fábricas inteiras, pois o antigo dono (o Estado), já não estava mais presente. Adécada de 90 foi marcada pelo caos em todas as esferas da sociedade. Poucos são os russos que não se lamentam por aqueles tempos. Muitas histórias ouvimos dos próprios cidadãos sobre o período de terror social que se passou naqueles anos conturbados. O país estava se desmantelando, e antigas rixas étnicas afloravam, especialmente no sul. O mais conhecido destes movimentos de libertação se manifestou nas guerras da Chechênia. Os anos Putin, que começam em 1999, foram caracterizados pela estabilização do país. As revoltas foram sufocadas (ou compradas), a inflação galopante controlada, o rublo fortalecido frente às moedas estrangeiras. A economia começou a reagir, especialmente pela alta da produção e exportação do petróleo e gás. Enfim, o país saiu dos anos de estagnação e começou o caminho
  • 21. rumo ao crescimento. E isto não se deu apenas na área econômica, mas na própria política internacional. Tudo que foi declarado acima pode ser lido em qualquer livro de História do século XX que trate do assunto. Contudo, toda a política e economia têm reflexos na vida diária do cidadão comum, e foi isto que sentimos ao chegar à Rússia naquele momento de transição. Isto vai desde a melhoria nas estruturas dos aeroportos, até uma avenida na cidade que é rearborizada e sua calçada renovada. Isto influi na aquisição de carros importados e na abertura de mercados maiores, com produtos trazidos de todo o mundo, inclusive brasileiros. E neste sentido, nenhum lugar melhor para ver esta transformação tão dramática da nova Rússia, do que nas regiões periféricas. Moscou mudou muito nestes anos, mas é no interior do país onde estas transformações são mais sentidas. Passear pelo interior russo é algo que realmente descortina todas as condições de um país milenar, que está aprendendo novas lições a cada dia. Aqui começamos nossa aventura pela Rússia!
  • 22. KRASNODAR 40 GRAUS Saímos de Moscou na manhã do dia 17 de agosto de 2005, onde a temperatura estava em torno dos 8 graus positivos. Estávamos usando casacos e roupas apropriados para o frio daquela manhã. O vôo até Krasnodar leva cerca de 2 horas. Chegamos ao aeroporto e o comandante anunciou a temperatura externa. Pensei que não havia entendido direito aquela voz que falava baixinho e através de um sistema de som de alto-falantes já desgastados pelo tempo. Bem, ao menos naquele momento havia entendido corretamente, 40°C!!! Tivemos que rapidamente tirar os casacos, pegar nossas malas de mão e descer do avião. Desta vez não precisaríamos descer pela cauda do avião, como ocorreu três anos antes. Mas mesmo assim, tínhamos que caminhar até o transporte que nos levaria para o prédio principal do aeroporto. E lá tivemos o primeiro contato com o calor sufocante do sul da Rússia! Nenhuma brisa, sol do meio-dia, umidade baixa, e ainda mais uma mudança
  • 23. inteira para pegar. Para nossa alegria, o local de retirar as malas estava coberto e fechado, bem diferente da última vez que estivemos lá, quando se pegava as malas a céu aberto! Viva a nova Rússia... Do lado de fora do prédio, alguns amigos estrangeiros que havíamos conhecido na primeira viagem vieram nos recepcionar. Nunca nos esquecemos do fato deles terem levado uma vela aromática como sinal de boas-vindas, mas haviam deixado no carro. Ao chegarmos no carro, com aquele calor tropical, a vela havia amolecido e entortado, mais parecendo uma obra de arte! Eles nos levaram para nosso novo lar. Bem, a primeira impressão não foi das melhores. O edifício não tinha condomínio (na realidade, nenhum tinha), a porta de acesso ficava aberta permanentemente, sendo segura apenas por um tijolo. As escadas estavam somente no cimento e o corrimão parecia peça retirada de alguma escavação arqueológica. Coloquei todas as nossas malas no pequeno elevador, para só depois descobrir que para o 2° andar, onde ficava nosso apartamento, ele não ia. Ao subir com as malas pela escada, minha esposa notou um rastro de sangue. Seus olhos me fitaram apavorados, e nossa amiga ao perceber seu espanto, explicou que deveria ser de alguém que havia comprado carne na feira. Acreditamos, mais por medo de descobrir que fosse mentira, do que pela veracidade da explicação. O calor era insuportável, pois ar-condicionado ainda seria um luxo que teríamos que esperar por mais dois anos. Numa situação destas, o melhor é sair e conhecer a vizinhança. Descobrimos que na nossa rua não passava carro, apenas a linha de bonde. Era admirável como existiam árvores, e parecia às vezes que estávamos numa
  • 24. floresta. Descobriríamos logo a utilidade daquilo nos dias de muito calor que estavam pela frente. Os primeiros dias foram um tempo dedicado para descobertas. O mais simples ato, quando se está numa cultura totalmente nova, torna-se um peso que faz esvair todas as forças. Quando se vai passar apenas alguns dias ou semanas num lugar, não existe um compromisso em entender o que se passa, nem mesmo uma preocupação em estabelecer pontes com pessoas. Mas estávamos ali para ficar por um bom tempo, por isto era vital mergulharmos logo no nosso novo país. Comprar pão e leite era uma atividade que gerava ansiedade. Como entender o vendedor? Como saber se a conta estava certa,e o troco? Como parecer o menos idiota possível quando uma pessoa falava algo, perguntando ou exclamando? Para nossa sorte, na nova Rússia já existia uma rede de pequenos mercados de bairro que tinham caixas com leitor de barras, e consequentemente um monitor que mostrava o valor das compras. Na Rússia de poucos anos antes, que conhecemos em nossa primeira visita, encontramos lojas onde usavam ábacos para fazerem as contas, e o resultado era apresentado como se pudéssemos “ler” o ábaco! Enfim, foi um alívio ver tudo nos “novos’ monitores!!! Mas isto não impediu de passarmos por pessoas desprovidas de qualquer inteligência naquele começo. Em certa ocasião, ao chegar ao caixa, a vendedora passa os produtos e pergunta: “a paketa nujna?”. Vinte segundos de silêncio e olhares que pareceram mil anos. A vendedora repete umas três vezes, até que desiste e pucha uma sacola e balança na nossa frente. Convenhamos, “paketa” parece
  • 25. com pacote, “nujna” é “precisa”... Hum, entendi, ela estava perguntando se precisávamos de sacolas plásticas. Aliviado, respondi confiante “niet!”. No dia seguinte, pegamos a fila maior para ter a mesma mulher no caixa. Engraçado como o ser humano sempre busca estabelecer padrões. Ela sorriu (no estilo russo, sem demonstrar que estava sorrindo!) e disse “Paketa nujna?”. Senti-me como um nativo respondendo já de primeira, “niet”. Ela então perguntou se éramos estrangeiros. Parecia sermos os primeiros que ela tinha visto em toda sua vida. Descobrimos que realmente muitos russos nunca haviam conversado ou visto alguém de outro país fora da URSS. Com esta mulher do caixa do mercadinho tivemos nossa primeira aula de russo. Todos os dias passávamos lá para comprar algo, e acabamos tendo verdadeiras conversas de duas três frases, o que, naquele estágio, eram diálogos profundos, quase filosóficos. Pouco tempo depois, ficamos sabendo que ela já não trabalhava mais ali. Lamentei solenemente a perda de uma “amiga” tão fiel! Mas a vida ainda tinha muitas surpresas para nós naquele lugar. O sistema de água quente e fria nos domicílios é oferecido por uma companhia da prefeitura. Pareceu-nos algo muito importante ter água quente no apartamento, pois a imagem de ter que acordar no inverno, abrir a torneira e lavar rosto com água fria causava, no mínimo, calafrios. Isto se agravava pelo fato da água fria ser gelada, mesmo naquele calor de Krasnodar. Depois de alguns dias, acordamos sem água quente. Esperamos horas e ela não voltou. No dia seguinte, fomos falar com o dono do apartamento. Ele então explicou, sem entender o motivo
  • 26. de nossa inquirição, que por uma semana a água quente seria desligada por motivos profiláticos (e vai entender isto em russo, depois de apenas alguns dias no país!!!). Resumindo, ficamos tomando banho de caneca por duas semanas! Mais uma lição aprendida. Como minha esposa tinha um vocabulário muito reduzido, e praticamente não podia se comunicar em russo e eu, nitidamente, precisava aprimorar muito, estávamos matriculados num curso de russo na faculdade preparatória para estrangeiros da Universidade Estatal da cidade. O curso era para começar na primeira semana de setembro, mas como estávamos para descobrir, algumas datas para início ou término de algo servem apenas como uma referência, não sendo necessariamente seguida à risca. As aulas começariam somente duas semanas depois do previsto. Quando finalmente começaram as aulas,o calor do sul estava se despedindo de Krasnodar. Fomos para a aula ansiosos pela nova etapa. Entramos num corredor escuro, com paredes mofadas e seguimos até a porta indicada. Entramos e sentamos. Em pouco tempo outros entraram, e em seguida a professora de russo. Uma senhora já de idade, bem vestida e com seus cabelos brancos impecavelmente arrumados. Ela, que exibia as feições nitidamente eslavas, deu as boas-vindas, em russo, ao pequeno grupo que ali se formara. Eram dois quenianos, um sírio, um holandês, um chinês, três coreanas e dois brasileiros. O único que sabia alguma coisa de russo era eu. Pensei naquele momento que esta seria uma missão
  • 27. impossível para aquela senhora eslava. Aprendi com ela que não existem missões impossíveis! No fim do curso, todos falavam russo de forma muito satisfatória! Nas aulas seguintes a este início, a professora Liudmila, que se tornou o nosso primeiro anjo naquelas terras, me indicou uma turma mais avançada, pois não havia motivos para ficar com os principiantes. Minha esposa ficou, e acabou por se aproximar da professora, pois era a mais experiente do grupo, que era constituído por jovens solteiros entre 20-25 anos. Ainda hoje falamos daquela professora que lecionava russo para estrangeiros há 39 anos, da sua experiência e capacidade de, sem usar uma palavra em inglês, ensinar uma das línguas mais complexas e ricas do mundo. Nossos colegas e amigos estrangeiros de fora da universidade se surpreendiam com o avanço de minha esposa, mas em grande parte, isto se deu graças à professora Liudmila. No ano seguinte, ela deixou a sala de aula, o que lamentamos, pois profissionais de tamanha experiência sempre farão falta.
  • 28. PRIMEIRAS IMPRESSÕES: VIAGEM AO PASSADO Krasnodar é a capital de um estado fronteiriço que leva o mesmo nome. Sua população está por volta de um milhão de pessoas, apesar de oficialmente ter pouco mais de 700 mil. Foi fundada em 1793, inicialmente como uma fortificação avançada russa na conquista do sul do país. Seu primeiro nome foi Ekaterinodar, que significa “Presente de Catarina”, a czarina da época e uma das maiores personalidades da história russa. Após a Revolução Russa do início do século XX, seu nome foi mudado para Krasnodar, que significa “Presente bonito”, ou “Presente vermelho” - lembrando que esta cor era o símbolo do Socialismo. Atualmente, movimentos cossacos tentam reverter o nome da cidade ao original, mas enfrentam grande resistência em algumas esferas políticas e práticas. Este processo de mudança de nome para uma nomenclatura pré-socialista por sinal é
  • 29. um fenômeno comum dentro da Rússia pós-soviética. Mas os problemas da cidade (e de todo o país) não estavam localizados apenas na questão de nomes. Se em Moscou as mudanças eram visíveis e ocorriam em alta velocidade, no interior do país, que não era alvo das companhias estrangeiras ou de turistas, as mudanças vinham em uma lentidão agonizante. Começamos nossa descrição pelos automóveis em geral. A frota em 2003 era basicamente constituída de carros do tipo Lada soviético. Os ônibus pareciam peças de museu, com lataria muito acabada, sofrida pela ação do tempo e falta de manutenção. As ruas eram quase sem sinalização, especialmente no asfalto. Enquanto isto, nós víamos em Moscou uma frota de carros trazidos do Japão rodando pelas ruas. Eram carros com volante do lado direito (mão inglesa), mas o sistema de tráfego na Rússia segue o sistema europeu continental, como é o sistema no Brasil. Em outras palavras, o motorista sempre estava do “lado errado” do carro. Em 2005, a frota de carros de Moscou havia se “europeizada” muito, e era muito mais difícil encontrar carros do estilo japonês. Para onde foram aqueles carros que vinham do Japão como segunda mão e rodavam em Moscou? Eles foram “periferizados”. Krasnodar estava na rota desse fenômeno. Nos nossos primeiros anos, a taxa de veículos de mão direita chegava a 40% da frota na cidade, outros 50% eram de Ladas,e o restante eram de carros “europeizados (leia-se aqui, marcas alemãs, suecas e francesas). A grande procura dos russos por esses veículos “japoneses” se dava principalmente pelo preço bem mais em conta, e sem dúvida,
  • 30. pela qualidade do produto japonês. O aumento de carros “importados” (de segunda mão) para Krasnodar, fez com que os antigos Ladas fossem naturalmente empurrados para o interior e outras pequenas repúblicas da Federação Russa. O aumento da frota na cidade gerou um fenômeno conhecido em todas as grandes cidades do mundo: congestionamentos. E esta era uma das palavras mais usadas nas desculpas que se ouviam dos russos. Aprendi logo que ela era poderosa em várias situações. Os congestionamentos se davam, muitas das vezes, por acidentes envolvendo dois carros, bonde ou mesmo algum ônibus. E esta é uma característica notada por todo o estrangeiro na Rússia, a grande falta de preparo dos motoristas para dirigir, sendo que existem inúmeros fatores para este tipo de problema. Em parte se deve ao sistema de “compra de carteiras”, que gera um negócio muito bem estruturado. O russo admite que passar nos exames para se obter a carta de motorista é algo tecnicamente impossível, pois os interessados no comércio das carteiras de motorista são os próprios agentes que regularizam este setor. Sei bem como o esquema funciona, pois precisei tirar uma carta de motorista para dirigir o carro que compramos dois anos depois, em 2007. Pedi a um amigo russo que ligasse para o departamento responsável pela expedição de cartas. Preferi este caminho, pois, além de não ter que me enrolar com a língua, aprendi que o preço para estrangeiro sempre é muito diferente do que para um russo. Resumindo, o valor cobrado seria de 20.000 rublos (cerca de US$ 800 na época). Pedi para meu amigo informar que eu já tinha carta do Brasil, e apenas queria uma correspondente russa. Eu não
  • 31. queria fazer todo o “processo”. - Ah, então o seu amigo é estrangeiro? Neste caso o valor é de 40.000 rublos. - respondeu o “simpático” responsável. Acabei optando, então, pela tradução da carteira brasileira, pois como estrangeiros ainda eram novidade, até mesmo para a poderosa polícia urbana russa, isto dava certa liberdade. Este é apenas um dos fatores para a fama dos motoristas russos, a corrupção da polícia de transito. Mas existe outro ponto muito importante nesta equação. Nos anos da URSS, o carro era um artigo de luxo. Poucas pessoas possuíam um, e isto gerou uma baixa cultura automobilística. Com o fim do sistema soviético, a avalanche de carros oriunda principalmente do Japão, encheu o mercado de um produto que poucos sabiam manusear. Da noite para o dia, todos eram motoristas “experientes”, e as ruas foram inundadas de verdadeiros “profissionais” do volante. Mas voltando à questão dos congestionamentos, qualquer encostada era motivo para o trânsito parar. Inúmeras vezes eu vi as avenidas principais da cidade totalmente travadas, e quando se chegava à fonte, verificava-se que eram dois carros que haviam encostado (não batido) e estavam com seus pisca-alertas acionados esperando a polícia técnica chegar (o que poderia levar horas!). Poucos acidentes (na cidade) que vi realmente tinham alguma perda material considerável. Literalmente, cada vez que precisava sair de casa, nos preparávamos psicologicamente para a aventura. Sair sempre era um risco, ou de acabar num acidente, ou ficar horas parado por causa de um arranhão, ou pior, ser parado pela polícia de trânsito.
  • 32. Em 2010 foi feita uma pesquisa por um jornal moscovita entre os estrangeiros, perguntando qual era o maior medo deles na Rússia. Em primeiro lugar, sem chance para as outras alternativas, apareceu o medo em relação aos policiais de trânsito. Absolutamente não estranheieste apontamento. Creio que até mesmo os russos iriam na mesma direção.A fama é tão grande, que quase metade das piadas em programas de humor envolve os acima mencionados. Vi e presenciei muitas situações constrangedoras, e passei por momentos tensos, como narrarei mais à frente. Mas vou deixar este assunto um pouco e focar em outro ponto, que está mesmo assim relacionado. Quando chegamos em 2005, Krasnodar estava se modernizando, mas faltava muito para deixar os ares soviéticos para trás. As ruas eram muito esburacadas, quase sem sinalização. Muitas ruas na cidade eram de chão batido. Em algumas áreas havia pedaços de asfalto ilhados no meio da rua, o que levava a crer que em tempos passados, ali existira asfalto, mas que a falta de manutenção nas décadas de 80-90 cobrou o seu preço. Algumas ruas eram intransitáveis, mesmo a pé. Na zona central da cidade, certas ruas eram a mistura de tudo isto, chão batido em partes, logo depois alguns restos de asfalto, e mais para frente, asfalto muito danificado. Lembrei-me de minha infância, quando na minha cidade natal as ruas começaram a ser totalmente asfaltadas. Esta era minha impressão geral da Rússia, um Brasil há 30 anos. Lembro a todos que estamos falando da capital do estado, não de regiões de interior, as quais até hoje estão em situação precárias. Olhando toda esta situação, ainda tínhamos que ouvir pessoas perguntando se
  • 33. morávamos em árvores no Brasil, ou criávamos macacos em casa! As calçadas eram esburacadas e em grande parte quebradas. Outra característica da região é o solo, que é argiloso, conhecida como “argila preta”. Isto torna o solo impermeável, gerando poças em todos os lugares, e quando os carros ou veículos de maior porte passam por elas, a lama se espalha praticamente por todos os lados. Especialmente no verão, quando as chuvas ficam mais constantes, as poças aparecem pela cidade, e o movimento dos carros se encarrega de levar o barro para todos os lados. Depois vem o sol e seca aquele lodo, dando uma aparência nada agradável às ruas. Por isto, nas casas é obrigatória a retirada dos calçados quando se vem de fora. Nas escolas, as crianças sempre vão com a smenka, que são os sapatos reserva a serem utilizados na sala para não embarrar tudo. Aliás, esta não é somente uma característica do sul, mas em toda a Rússia. Existe até um termo russo para a época em que as chuvas dissolvem o país, rasputitsa (dissolver). Locomover-se, especialmente pelo interior, se torna uma tarefa penosa. O sistema de atendimento médico e os postos de saúde são uma categoria à parte, mas apenas menciono aqui para enfatizar a linha que viemos seguindo neste capítulo. Todo o sistema estava nas mãos da prefeitura, e em 2005 começaram a aparecer clínicas especializadas, em número ainda insignificante para uma cidade como Krasnodar. Os consultórios e centros de saúde eram velhos e com material que deviam estar em uso ha mais de 40 anos, apenas se julgando pelo design. As técnicas de atendimento e de consulta remontavam a esta época, ou quem sabe até mais.
  • 34. O sistema de transporte público, basicamente ônibus, trólebus e bondes, também eram originários de muitas décadas atrás. Muitos quebravam durante o percurso, o que no caso de trólebus e bondes, provocavam o congestionamento de toda a linha. Alguns descarrilamentos de bondes e cabos que se rompiam por tempo de uso eram motivo de irritação constante. Bem, o leitor agora deve estar se perguntando se apenas pontos negativos existiam. Deixe-me explicar com as seguintes palavras: o choque visual e cultural é algo comum entre pessoas que trocam de ambiente cultural, seja dentro do próprio país ou para fora dele. Quando se chega num lugar, logo se começa a fazer comparações. No caso da Rússia, as diferenças, se comparadas com outros países ocidentais, são muito gritantes. O país praticamente parou com o investimento maciço na infraestrutura durante a década de 60. Neste caso, é evidente que saltavam aos olhos as diferenças mais marcantes, e com o tempo iríamos ver descortinar diante de nós os outros aspectos da vida lá. O principal é que vivemos outra revolução russa bem na nossa frente. O país que havia parado no tempo por longos anos, a partir do início deste século deu um salto. É como se a Rússia saísse da década de 60 e entrado no mundo moderno num espaço de poucos anos. Quando chegamos em 2005, por exemplo, o comércio era feito basicamente em feiras permanentes e numa rede local de minimercados nos bairros. Em 2007 abriu em Krasnodar o primeiro supermercado, de uma marca francesa. Depois vieram os shoppings e em 2009 uma rede de lanchonetes americana (não que isto eu considere progresso, mas
  • 35. para muitos estrangeiros, viver sem o produto daquela marca era como viver na idade da pedra). No ano seguinte de nossa chegada, as avenidas ganharam pavimentação nova, arborização, canteiros com flores e parques foram sendo melhorados. Bondes modernos foram trazidos de fora, e os antigos ônibus começaram a dar lugar aos seus “netos”. O nível de vida dos russos melhorou muito nos últimos anos. Não era raro ver as lixeiras dos edifícios entulhadas de caixas de modernos utensílios domésticos, e principalmente de estrutura de janelas em madeira. E isto era algo muito significativo. Um dos símbolos do progresso e da modernidade na Rússia eram as janelas de plástico, que levavam o nome de “janelas alemãs”. A grande vantagem das novas janelas era que impediam a perda de calor do ambiente, causando um isolamento muito bom que era algo vital, especialmente no rigoroso inverno. Nosso apartamento tinha “janelas alemãs” e no inverno precisávamos abri-las um pouco para esfriar um pouco o ambiente. Aliado a esta questão das janelas, aprendemos rapidamente uma palavra usada por todos, remont. Talvez esta palavra defina bem o estado em que se encontrava todo o país, conserto. Esta era a palavra de ordem, e que aparecia em qualquer propaganda ou cartas espalhado pela cidade. Lembro muito bem do grande remont que foi feito no nosso prédio. Incomodava muito o fato do prédio estar com uma porta que absolutamente não podia ser trancada. Qualquer um podia entrar e fazer tudo o que queria no elevador e escadas. E entenda, caro leitor, não estou usando a palavra TUDO em vão! Se uma pessoa passasse
  • 36. mal na rua, ou mesmo por questões de uma bebedeira, o melhor refúgio era um bom prédio com uma porta destrancada. Vi muita coisa por aquelas escadas! Mas finalmente foi convocada uma espécie de reunião dos moradores do prédio. Nesta reunião, feita ali mesmo do lado de fora do prédio, literalmente no meio da rua, havia uma única proposta na pauta. O senhor que comandava a reunião, sintetizou a questão dizendo: - Precisamos colocar uma porta nova com interfone e código de entrada neste bloco! Precisamos trazer a civilização para nosso prédio! O argumento daquele senhor convenceu seus compatriotas, que em uníssono concordaram com a proposta. Lá de nosso apartamento rimos muito, pois finalmente a civilização chegaria, literalmente, às nossas portas. Este era o espírito! Outra marca dos últimos anos foi a luta do governo contra a corrupção, especialmente na polícia, além do investimento nas escolas e nos postos de saúde. As ambulâncias foram modernizadas (aquelas da era soviética pareciam Kombis um pouco mais robustas, que dava medo só de olhar!!). Os ábacos foram extintos e não vi mais nenhum sendo usado com objetivos comerciais. Nossa internet, que inicialmente era de 128 kpbs, pulou para 1 Mega de velocidade, sendo que já existiam muitas opções neste sentido. Os celulares, artigo que no início da década era fiscalizado pela polícia na rua, virou mania nacional. Como disse, a sensação é que a cada dia avançávamos várias semanas ou meses na escala evolutiva tecnológica e de infraestrutura
  • 37. PRIMEIRO INVERNO Quando falamos em Rússia, a imagem inevitável que vem às pessoas é a de um campo coberto de neve, muito frio e ursos polares. E tal associação tem seu motivo. Realmente o país registra as menores temperaturas do mundo (desconsiderando-se as regiões polares). Falar de frio é lembrar-se da Sibéria, onde por sinal foi registrada a menor temperatura em localidade urbana, na remota região da Yakutia, num vilarejo chamado Oymyakon, quando foi atingida a temperatura de -71,2° C no ano de 1926. Mas precisamos lembrar que temperaturas assim não acontecem em todos os lugares, nem o ano todo! Quanto mais para o sul nos deslocamos, mais as temperaturas médias vão se elevando. Como verificamos anteriormente, o verão também sabe mostrar sua força em terras russas. As surpresas em relação ao clima que tivemos nos primeiros dias na Rússia eram apenas o início de uma série que se prolongariam por cerca de um ano.
  • 38. Após o escaldante verão, o tempo começou a mudar, e a entrada do outono parecia trazer um alívio no clima sufocante. Mas com as temperaturas mais amenas, começaram também as chuvas. Elas não eram fortes como no Brasil, sendo muito mais amenas e passageiras. Contudo, as consequências eram enormes. Começava a temporada da Rasputitsa, que pode ser traduzido como “temporada de estradas ruins”. Segundo alguns historiadores, este foi um dos fatores para o atraso no processo de invasão das tropas alemãs na Segunda Guerra Mundial. O plano inicial era chegar até Moscou antes das chuvas de outono, que deixavam as estradas impraticáveis para o deslocamento. Descobri as razões do temor alemão naquele nosso primeiro ano. Especialmente em Krasnodar, que tem um solo argiloso, a água tem dificuldades de escoar e o solo quase não absorve esta água. Como falamos no outro capítulo, nestes casos o barro que fica nos canteiros e nos “estacionamentos improvisados” onde não existe asfalto ou cascalhos, acaba por ser levado por estes mesmos carros para a rua. Em pouco tempo, a rua fica toda cheia de lama. A água que escoa destes canteiros também entra na rua provocando mais sujeira. Com a queda das folhas das árvores, o material orgânico começa a se decompor, e caminhar pelas ruas começa a ficar um tanto quanto desagradável. Chega-se em casa com os calçados todos sujos, e as calças respingadas de lama. É uma estação que desafia o autocontrole emocional! Com o avanço do outono, a paisagem vai se tornando acinzentada, pois o verde dá lugar aos troncos que parecem definhar em relação à vida. As pessoas usam cores escuras (preto, marrom e cinza). O céu está constantemente nublado ou chovendo. A
  • 39. arquitetura dos prédios da era soviética tem uma tonalidade igualmente cinza. Com o tempo, o ar começa a ficar saturado, pois a poluição e a falta de verde contribuem para isto. O sistema nervoso começa a ser perturbado, e a falta de cores vivas e dos raios do sol vão encurralando as pessoas num beco de seriedade e falta de paciência. Eu dizia que nestes casos, todos ficavam igualmente cinzas por dentro. Logo aprendemos uma palavra russa que não tem uma tradução definitiva. Ouvíamos os russos constantemente falando de Nastroenie e entendíamos o que diziam pelo contexto, mas não conseguíamos traduzir, ao ponto de, como família, incorporarmos a palavra em nosso vocabulário. Nastroenie é um “estado de espírito”, bom ou mau humor, astral, enfim, é como a pessoa está num determinado momento. E o clima influencia muito na Nastroenie. Ainda oficialmente no outono tivemos nosso primeiro contato com a neve. Não foi exatamente o que se esperaria de um dia de neve. A temperatura estava em 20° C positivos durante o dia, conforme marcava o termômetro oficial bem no alto de um prédio no centro da cidade. Lembro-me de ter passado por ele e olhado bem, pois estava muito “quente” para um dia outonal. Voltamos para casa com a família e lá pelas nove da noite colocamos as meninas para dormir. Fiquei olhando pela janela, pois o quadro geral havia mudado, e soprava agora um vento gelado. Alguns instantes depois, uma chuva fina começou, dando a entender que existia a possibilidade daquilo virar neve. A expectativa aumentou. Olhando contra a luz de um poste em frente ao nosso prédio, pude distinguir pequenos anjinhos brancos que caiam levemente entre as gotas da chuva, mas que ao tocarem o chão, desapareciam. Dentro de poucos
  • 40. minutos aqueles pequenos anjinhos estavam por toda a parte, e cada vez mais intensa era sua descida. O vento parou e eles começaram a dançar pelo ar. Corri para minha esposa que estava no quarto, e como uma criança que ganha um presente inesperadamente, gritei para ela “neve! neve!”, e a convenci de ir até a janela. Agora os anjinhos estavam por toda a parte, e caiam no chão sem mais desaparecer. No friso da janela, alguns anjinhos também apareceram e se acumularam. Chamamos nossas filhas entusiasmadamente para ver a neve. Elas acordaram, foram até a janela do quarto delas e uma delas disse: “Legal pai! Posso voltar pra cama?”. Não disfarço meu desapontamento, mas como pai entendi o cansaço delas e as coloquei de volta. Retornei para a janela da sala e lá fiquei sozinho, assistindo aquele espetáculo. No dia seguinte, saímos para passear e ver a neve em Krasnodar, o que todos diziam ser algo relativamente raro. As crianças se divertiam, rolavam na neve e riam, vivendo seus momentos de criança. Os russos passavam por elas olhando assustados como que a pensar “parece que nunca viram neve!!”. O que era a mais absoluta verdade. A neve logo derreteu, e em algumas horas restavam apenas possas de água no chão. Mas ela retornaria algumas semanas depois, e ficaria ali por muito tempo. Ao todo, a neve ficou no chão por aproximadamente três meses, com intervalos pequenos em que ela quase desapareceu. Quando achávamos que não haveria mais neve, o fenômeno voltava. Na Rússia é tradição que após o início do ano, o país inteiro tire uma espécie de férias de inverno, onde tudo fecha por quase duas
  • 41. semanas. Não havíamos sido informados disto, e tivemos problemas, pois algumas lojas e mercados ficaram fechados, e especialmente os bancos não funcionaram. Ficamos com pouco dinheiro em casa, e aqueles dias foram apertados, pois precisávamos controlar para não gastar (se conseguíssemos achar algo aberto!). Janeiro ainda tinha outras surpresas. A temperatura estava muito baixa, sempre rondando entre -5°C e -12°C. O sistema de calefação do apartamento (ligado já em outubro) estava funcionando de forma satisfatória e, ao contrário do que muitos pensam, dentro dos ambientes geralmente a temperatura fica acima dos +20°C, o que permite às pessoas usarem roupas leves. Dentro do nosso apartamento a temperatura era constante +25°C, e podíamos andar de bermuda e camisa. Em alguns casos, precisávamos até mesmo abrir um pouco a janela para deixar a umidade e ar mais gelado entrar, pois o ambiente acabava se tornando quente e seco demais, o que era prejudicial para a saúde... Com o fim das “férias de inverno”, tínhamos que voltar a acordar cedo de manhã e ir para a universidade, minha esposa e eu, para o curso de russo. As temperaturas na rua não eram convidativas, e apenas nosso compromisso nos levava a abrir a porta e aventurar- nos pela gelada Krasnodar. Na metade de janeiro ouvimos pela primeira vez a expressão “batismo de frio”, usada pelos russos para designar uma semana que tradicionalmente é a mais fria do inverno, e na qual os ortodoxos fazem seus batismos em buracos abertos nos rios congelados de toda a Rússia. Tivemos a oportunidade de verificar a veracidade desta tradição em relação ao período mais frio do ano. Exatamente na data
  • 42. marcada, uma forte onda de frio vinda da Sibéria havia se deslocado para a nossa região, e as temperaturas atingiram os -29°C, a menor temperatura em 30 anos em Krasnodar, e a segunda menor registrada na história da cidade. O sistema de calefação estava no limite, e a prefeitura já alertava que se a onda continuasse por mais alguns dias, o sistema poderia entrar em colapso. Neste dia lembro-me de ter levantado pela manhã, tomado o café e reunido toda a coragem que tinha para sair pela porta numa caminhada de uns 20 minutos a pé até a universidade. No meio da tarde, juntamente com nossa filha mais velha, saímos para tirar algumas fotos num lago congelado perto do centro da cidade. A temperatura já havia subido e os termômetros marcavam “agradáveis” -22°C. Chegando ao local, fiquei admirado com a beleza do branco cobrindo o lago. Percebia no rosto que o ar estava frio, mas pensei que o frio não era tão intenso assim e decidi tirar as luvas especiais que tinha. Imediatamente após tirá-las senti como que mil agulhas sendo fincadas em minha mão, e precisei recolocar as luvas imediatamente. Percebi naquele momento que com o frio não se podia brincar! Havíamos levado nossa máquina fotográfica digital e quando chegamos ao local adequado para uma foto, liguei-a. Ela iniciou o processo para abrir e expor a lente, mas no meio do caminho, simplesmente parou. Pensei que havia quebrado ou algo assim. Coloquei-a de volta dentro do casaco. Depois a tirei e tentei novamente. Mesmo resultado. “Será que é a bateria?” - pensei enquanto guardava-a no casaco. Repetio processo algumas vezes até perceber que o problema era o frio intenso, que fazia com que ela parasse de funcionar. Para tirar as fotos, eu deixava a câmera ligada
  • 43. dentro do casaco,e na hora que ia bater a foto, tirava-a rapidamente e fotografava, inserindo-a depois rapidamente no casaco para não congelar outra vez. Indubitavelmente o inverno é uma estação que tem suas atrações, ainda mais quando a neve aparece. As crianças, mesmo as russas, ficam agitadas e querem sair para a rua e se divertir um pouco. Neste período começa o desfile de pais puxando os trenós com os filhos e nós compramos um destes trenós para as nossas meninas. Íamos de nossa casa até o parque ou o lago congelado perto da Universidade sempre que nevava. A raridade da neve em Krasnodar era um atrativo a mais, pois nunca sabíamos quanto tempo ela estaria acumulada e quando voltaria a nevar na cidade. Atravessávamos distâncias enormes (levando-se em conta que com neve fica mais cansativo andar) apenas para puxar o trenó com elas em cima. O frio era intenso, mas a diversão sempre foi proporcional. Brincar na neve é algo que todos gostam de fazer. Em certo sentido, todos viramos crianças. Fazer bolinhas de neve e jogar nos amigos, parentes ou conhecidos é um ato quase involuntário, não se pode resistir a isto. Nem mesmo os russos, já acostumados com neve, deixam de aproveitar. E não importa a idade! Nossa filha, sempre que nevava, demorava muito tempo para voltar para casa da escola, que ficava a uns 250 metros de casa. Quando ela entrava pela porta, estava cheia de neve no cabelo, nas botas, luvas, e na roupa. Suas bochechas rosadas denunciavam que estivera muito tempo exposta ao ar gelado. Nunca entrávamos nos detalhes do que ocorria, pois era evidente. Anos depois ela confessou que sempre saia da escola e ia “brincar” com as colegas no pátio e
  • 44. pela rua, fazendo com que o caminho até em casa se tornasse mais cumprido do que o habitual. Toda esta atividade fora de casa, na neve, seja uma caminhada ou uma visita na praça perto de casa, exigia que na volta a mamãe preparasse um gostoso chocolate quente. Às vezes duvidávamos se saiam para se divertir ou para poderem depois voltar e se aquecer na calefação tomando um delicioso chocolate quente. Certo dia, nas minhas caminhadas pela cidade, fui até um parque que fica ao lado do rio Kuban, que banha a cidade. Andava solitário pelo meio dos montes de neve, no que seria a calçada da via principal do local. Estava sozinho, pois apesar dos russos gostarem de passear pelas ruas nos dias frios (dizem que faz bem para a saúde!!!), não havia ninguém por perto. As tendas e quiosques que no verão ficam abertas e cheias de pessoas que buscam diversão, estavam abandonadas, cobertas de neve. Mas ao chegar perto de um dos braços do rio que entra em direção ao parque, percebi pequenos pontos que destoavam do monótono branco. Com dificuldades desci o barranco em direção ao rio congelado. Andei calmamente sobre as águas congeladas e enquanto caminhava percebi que aqueles pontos eram pessoas sentadas em cadeiras de campo. O que estariam fazendo ali paradas sentadas no meio do nada? Cheguei mais perto e percebi uma vara de pescar em suas mãos, um pote ao lado e a inseparável garrafa de vodca Assisti aquela cena por alguns segundos, sem que fosse notado pelos destemidos pescadores. A temperatura estava abaixo dos -15° C naquele dia de intensa neve. Com o passar dos anos, descobri que aquela prática era uma espécie de terapia para os russos. Eles abriam um buraco no gelo e lançavam
  • 45. o anzol com a isca ali mesmo. Não é uma questão de quantos peixes, nem mesmo o tamanho dos mesmos, é apenas uma forma de relaxar e curtir o frio. Entretanto, sair para estas caminhadas e aventuras pelas ruas congeladas era uma tarefa um tanto quanto perigosa. Constantemente na televisão eram emitidos alertas para as pessoas em relação a um perigo silencioso, as sosulki (plural). Mas que é isto? Também demoramos para descobrir. Certo dia apareceu no jornal que uma pessoa havia ficado gravemente ferida por uma sosulka (singular) que havia caído de um prédio. Descobrimos então que eram pingentes de gelo (estalactites de gelo) que se formam nos telhados, e que por algum motivo podem cair lá de cima, acertando na cabeça de um transeunte, o que pode provocar até mesmo a morte. Depois disto, sempre ficávamos longe de qualquer ponto perigoso. Ao passar por alguns prédios, pude perceber as afiadas e mortais sosulki, e me lembrava de nunca brincar com a sorte, pois um dia poderia virar azar… Ainda existia outro perigo, os escorregões no gelo. Muitas vezes vi as pessoas patinarem, escorregarem, dançar e cair no chão devido ao gelo. Não era incomum ver nas ruas este tipo de cena. O que me chamava a atenção era que ninguém ria ou se encabulava por estes “imprevistos”. Descobri depois que não havia pessoa imune a isto, todos, mais cedo ou mais tarde caiam. Um dia eu estava saindo de um mercadinho perto de casa com duas sacolas com leite. Nevava de forma arrastada, tranquila e sem maiores pretensões. De repente, senti o chão indo embora e ocorrendo uma súbita inversão de polos em minha cabeça. Imediatamente depois, vi a neve caindo em meu
  • 46. rosto e as sacolas voando pelo ar e caindo logo à frente. Uma senhora que passava perto olhou para mim e perguntou se eu havia me machucado. Levantei-me depressa e verifiquei se estava tudo em ordem, batendo a neve da roupa. O casaco amortizou a queda e tudo estava bem. Peguei as sacolas e fui para casa. Esta cena se repetiu pelos anos seguintes, com pequenas variações no enredo. Apesar de alguns “imprevistos”, sempre gostei de caminhar na neve. O barulho dos sapatos quando se caminha e a neve sendo prensada é muito interessante. Uma das caminhadas mais fascinantes que fiz foi em uma floresta perto de Moscou. Estávamos num evento, e numa hora livre resolvi explorar a região. Andei até a floresta e comecei a andar por ela, vendo as árvores cobertas de neve, troncos caídos, pequenos córregos congelados e os raios de sol que penetravam por entre as árvores. Mais para dentro da floresta, ouvi repentinamente um som seco, ritmado. Andei em sua direção. O silêncio na floresta era ensurdecedor, nada se movia, nada respirava, nada fazia barulho, só aquele som ecoando por toda a floresta. Em certo momento, olhei para o alto de uma árvore de onde eu imaginava vir o som. Bem lá no alto havia um pássaro, que não pude identificar ao certo, mas parecia um pica-pau. Ele estava procurando bichos que se escondiam dentro das árvores. Fiquei um tempo ali observando o trabalho dele, depois resolvi continuar a exploração. Alguns metros adiante vi pegadas na neve, que tinham sido feitas ha pouco tempo. Era de um animal grande. Eu estava sozinho numa floresta congelada, e meu espírito aventureiro deu lugar a um instinto de auto-preservação. Dei meia-volta e resolvi não arriscar em descobrir o dono daquelas pegadas...
  • 47. Muitas foram as aventuras nos invernos que passamos por lá. O que posso dizer para finalizar é que, em minha opinião, não vi nada mais lindo na Rússia do que um dia de neve sem vento. Assistir os flocos caindo calmamente, manhosamente é algo espetacular. Um dia na universidade fiquei olhando pela janela a dança dos flocos, que por uma brisa qualquer, formavam um verdadeiro balé diante dos olhos. Sim, o inverno tem seus encantos, e posso dizer que são muitos!
  • 48. MEDICINA A mudança para outro país pode ser, para muitos uma aventura e para outros uma loucura, especialmente para lugares tão “distantes” do nosso Brasil. O enriquecimento cultural e de vida é um contrapeso no meio de tantas perdas. Quem já passou pela experiência de ter contato com o mundo lá fora, sabe bem o que é isto. Mas a mudança também afeta outros pontos, que talvez não fossem tão desejados. E mesmo assim, aprendemos. Existe um provérbio russo que diz: “Viva por um século e aprenda por um século”. Uma das áreas que mais preocupa nestas adaptações é a saúde. Pode ser que não exista nada tão desesperador quanto estar doente em um lugar onde você não tem meios de ser atendido ou entendido, ou ainda, desconhecer por que está naquele estado.
  • 49. E nossos problemas começaram antes mesmo de sair para a Rússia. Minha esposa havia feito exames pouco antes da data marcada para o voo. Na sexta-feira (viagem marcada para domingo!), o médico nos passa o resultado dos mesmos. Ela precisava fazer um tratamento e a recomendação médica era de que não viajássemos. Bem, não era uma viagem de férias ou um passeio, era uma mudança para o outro lado do mundo! Por fim, resolvemos comprar os medicamentos e fazer o tratamento lá na Rússia mesmo. Chegando lá, já depois do período inicial de adaptação, buscamos informações de como fazer os exames que eram necessários para ver se o problema havia desaparecido. Preciso fazer um parêntese aqui. Como estávamos na Rússia com o visto de estudantes, pois faríamos o curso de russo pela Universidade de Krasnodar, precisávamos alguns exames de rotina, o mesmo que os alunos russos precisam fazer anualmente. Como éramos estrangeiros, nosso plano era pago, mas fazíamos no lugar indicado pela universidade, que era onde os alunos precisavam fazer. Era uma única policlínica para todos os estudantes da cidade. Conseguir chegar ao local foi complicado, pois informações não são algo que o pessoal gosta de dar, ainda mais quando o inquiridor é um “esquisito estrangeiro que não entende as coisas”. Mas, chegando no local, a dificuldade ainda seria a de identificar qual guichê e qual fila pegar. Isto num mar de estudantes que estão de muito mau humor, pois gostariam de estar em qualquer outro lugar, menos ali, naquela confusão. Realmente tudo isto é simplesmente uma tarefa de tirar qualquer um do sério. Quando finalmente, depois de muito tempo rodando,
  • 50. achamos o local exato, disseram que haviam fechado e que só iriam atender no dia seguinte! E não adianta reclamar, chorar, esmurrar, eles são a lei! No dia seguinte chegamos cedo para enfrentar a fila. Descobri que os russos adoram duas coisas: fazer filas e furar filas, sendo isto uma espécie de esporte nacional. Enfim… Conseguimos chegar à enfermeira (de mau humor!) e mostrar nossos papéis requisitando os testes. Ela explicou o que deveríamos fazer: teste de sangue, fezes e urina. Mostrou umas caixinhas de fósforos em uma mesa. Na parte de baixo da mesa, garrafas de vidro de vários tamanhos e tipos, com um líquido amarelado… Entendi, nem precisava abrir as caixinhas de fósforo para entender o que tinha dentro! O sangue seria coletado na outra sala… Fomos para a sala e a enfermeira começou com um papo estranho. Viu que éramos estrangeiros e disse que se “ajudássemos” nem precisaríamos tirar o sangue. “Ajudar”? Está bem, entendi tudo, mas resolvi usar minha prerrogativa de estrangeiro. Ela explicou umas 3 ou 4 vezes o que entendia por “ajudar”. Quando viu que não “ajudaríamos”, pegou o estilete e cravou no dedo de minha esposa. Apertou e pingou o sangue numa lâmina de vidro. Humor totalmente azedado. Fomos embora para casa com vontade de explodir tudo aquilo. Fechando este parêntese e voltando ao caso de minha esposa e sua questão médica, havíamos decidido buscar formas mais “humanas” de tratamento. Onde encontrar uma Clínica particular? Não existia internet confiável ainda para nós. Páginas amarelas,
  • 51. respondiam alguns. E foi o que fizemos, procuramos as páginas amarelas ou um catálogo. Ninguém com quem conversávamos sabia dizer se isto existia de verdade por lá. Por uma coincidência divina, nosso apartamento ficava exatamente em cima de uma Clínica particular, que naquela época deveria ser a única da cidade. Não prestamos atenção de imediato nela, pois a propaganda era voltada para a área de oftalmologia, mas descobrimos que ali havia várias especialidades! Inclusive a que estávamos precisando no momento. Já era outubro e ainda tínhamos muito a aprender em relação à língua, pois as aulas haviam começado somente na metade de setembro. Para a primeira consulta, minha esposa havia convidado uma amiga, também estrangeira e que morava ha mais tempo na Rússia, para acompanhá-la na ida ao médico. A médica olhou tudo e tentou entender o que aquelas duas estrangeiras estavam querendo. Depois de tentarem explicar o que precisavam, a médica disse que para fazer os exames era necessário tomar uma injeção que deixaria a paciente com sintomas de gripe forte. Como essa ideia não foi aceita,ela deu a outra opção: comer na noite anterior ao exame um peixe defumado, uma salada bem picante e tomar um litro de cerveja, comparecendo no dia seguinte em jejum para os exames médicos. Todos nós achamos aquilo muito estranho, nunca tínhamos ouvido falar que comer e beber algo antes de um exame pode “baixar a imunidade” como a médica disse que teria que acontecer para que os exames fossem feitos com sucesso. Mas, isso seria melhor do que injetar algo desconhecido no corpo, num país onde não nos
  • 52. sentíamos seguros. Minha esposa compareceu na manhã seguinte, fez tudo certinho e esperou pelos resultados. Uma semana depois, voltou para saber como estava sua saúde, e a surpresa foi muito mais do que podíamos esperar. No resultado dos exames apareceram quatro doenças venéreas, e a médica começou informando que aquilo podia estar incubado em um dos cônjuges já antes de casarem, não significando necessariamente alguma traição. A consulta mais parecia psicológica do que médica. A doutora perguntou se estávamos dispostos a fazer o tratamento. Como minha esposa ficou muito desconfiada desse resultado, ela disse que iria para casa, conversar com o marido e então resolver o que fazer. Bom, levamos os exames para casa e fomos procurar na internet informações sobre as tais doenças. Nenhum sintoma de nenhuma delas nós tínhamos. Desconfiados de que o exame teria sido trocado, fomos procurar outro lugar para tirar a “prova” e, infelizmente, tal lugar havia somente em Moscou. A clínica de Moscou era particular e com médicos internacionais. Mas o efeito colateral de sua “idoneidade” era um preço de matar qualquer um. Esperamos até fevereiro, quando o inverno estava começando a perder força para então ir à Moscou. Precisamos levar uma amiga que falava inglês fluente junto, pois na clínica tudo era feito com médicos estrangeiros e que falavam inglês. Tudo foi tranquilo. Exame feito, resultado enviado via e-mail e depois de tanto tempo nessa tensão e expectativa, o resultado foi que estava tudo normal.
  • 53. Nunca mais procuramos aquela médica. Guardamos o cartãozinho com o nome dela para não marcar por engano alguma consulta com ela. Ainda tivemos que usar os serviços médicos daquela clínica em Krasnodar até o último mês em que moramos lá, pois nossa saúde estava sempre sendo afetada. Um problema muito grave que tivemos que enfrentar foi com nossa filha mais velha, com seis anos na época. Num passeio num dia de verão, comemos um pastel à moda russa numa lanchonete de rua, no centro da cidade, pois nos informaram que lá era muito bom. Por causa do alimento, nossa filha contraiu uma infecção intestinal e devido ao fato de sermos estrangeiros, o seguro saúde que minha esposa e eu tínhamos com a Universidade não atendia à nossa família, somente a nós. Então fomos tentar no posto de saúde, pois na Rússia todo sistema de saúde é público. Negaram atendê-la e ficamos tentando em casa com várias receitas caseiras fazê-la melhorar, e nada. Depois de uma semana com vômito e diarréia, pedimos a um amigo que chamasse uma ambulância de algum hospital infantil. Quando a ambulância chegou, a médica examinou- a. Nossa filha nem conseguia mais ficar em pé e a médica disse que ela precisava de internação urgente. Ela iria de ambulância para o hospital acompanhada pela mãe. Chegando ao hospital, que ficava do outro lado da cidade, a enfermeira que nos recebeu, e que provavelmente não sabia ler outro alfabeto além do russo, assim que pegou o passaporte disse que nossa filha não poderia ficar internada lá. A médica da ambulância entrou na sala e tentou explicar que nós residíamos na cidade e que o caso era grave, mas a resposta foi a mesma. “Aqui não podem ficar!”,
  • 54. dizia repetidamente. A mãe ficou em estado de choque, já não sabia o que pensar, o que dizer, o que seria da sua filhinha. Nessa confusão, uma médica que passava pelo corredor entrou para ver o que estava acontecendo. Quando soube da situação, foi examinar a menina e depois foi falar com a mãe em particular: - Se você quiser que a sua filha seja internada no hospital, eu consigo que isso aconteça, mas aqui é um lugar terrível para este caso, e não aconselho que vocês dêem prosseguimento ao caso aqui. Se quiserem ir para casa com a filha, me comprometo em ir todos os dias na sua casa para examinar a menina. E foi essa a decisão tomada. Nossa filha foi pra casa e ficamos duas semanas com um mini hospital em nosso apartamento. Precisávamos esterilizar o banheiro a cada uso, e como não existe álcool na Rússia (o de farmácia, é claro!), por indicação da própria médica, usamos vodca. A médica passou duas semanas indo até nosso apartamento para verificar o quadro. Quando não podia estar presente pessoalmente, ela ligava e pedia nosso “relatório”. Nossa filha passou por uma dieta rigorosa, e todos nós tivemos que entrar num ritmo completamente novo para acompanhá-la. Ao fim do prazo que a doutora havia estipulado para o tratamento, nossa filha já estava recuperada. A médica ficou muito contente de ver o progresso que tivemos, e elogiou muito minha esposa. “Não achei honestamente que vocês conseguiriam” - disse ela finalmente. Reconheceu que o quadro era muito grave e que havia inclusive risco de vida, e este era o motivo do interesse da médica que foi tão prontamente atenciosa. Ela, doutora Oksana, foi
  • 55. mais um daqueles anjos que passaram em nossa vida pela Rússia. Em outra ocasião, nossa filha mais nova estava com problemas, recorremos à Dra. Oksana. Ela não podia atender o caso, pois estava de licença gestante, mas disse que ligaria para outra pessoa no Hospital Infantil. Em alguns minutos ela retorna a ligação e nos dá todas as orientações de como chegar ao Hospital e como proceder, com quem falar e o que dizer para quem nos atendesse, “...a médica já está esperando vocês!” - disse ela por fim. Assim como apareceu de lugar algum, a doutora Oksana também desapareceu, como nos contos. Seremos eternamente gratos a ela! Neste sentido teríamos que citar ainda outras pessoas que foram nossos anjos da guarda naqueles tempos. Janna Petrovna, por exemplo, a médica ginecologista que cuidou de minha esposa. Houve ainda um médico anônimo que fez uma pequena cirurgia em minha esposa, com eficiência notável. Ele não cobrou nenhum tipo de “presente”, algo totalmente incomum na Rússia, pois o caso havia sido indicado por uma colega dele que atendeu minha esposa na Clínica. Aos poucos fomos aprendendo como lidar com a questão de saúde na Rússia. Descobrimos que era preciso evitar os caminhos “normais”. Todas as vezes que tentávamos fazer a “coisa certa”, pelos caminhos oficiais, tudo emperrava na burocracia e mau atendimento (quando acontecia o atendimento!). O caminho das indicações se mostrou o mais eficaz. Lembro-me que quando precisamos colocar nossa filha na escola russa, uns dos requisitos para matricular uma criança era a
  • 56. carteira da policlínica onde ela deveria ser atendida. Buscamos informações de como obter a tal carteirinha. Logo de cara, percebi que estávamos entrando em mais uma das ruas sem saídas do sistema burocrático russo. Descobrimos onde seria a policlínica que atenderia a nossa filha, contudo, lá ninguém sabia informar nada, pois não tínhamos passaporte russo. - Como fazer? Como vocês não têm passaporte russo? Alguém nos disse que precisaríamos entrar com um pedido numa repartição que regulamentava as tais carteirinhas. “Mas onde é? Não sei!” Por fim, um amigo russo resolveu nos ajudar. Ele encontrou o local e foi conosco para resolver o impasse. Lá chegando, depois de preencher fichas e tudo mais, perdendo um tempo enorme para conseguir alguma informação. A funcionária disse que aparentemente as carteirinhas haviam sido suspensas para os não-russos, mas que era para esperarmos o resultado. Até hoje estamos esperando! Sem carteira, nossa filha não podia entrar na escola, mas como estávamos na Rússia, a diretora vendo nosso caso, resolveu autorizar o ingresso dela mesmo assim. O problema era quando os fiscais de saúde passavam pela escola e viam que a aluna X não tinha documentação. A enfermeira da escola e a diretora sempre davam um jeitinho de deixar as coisas na base do “deixa pra lá, vai!”. Anjos... Ficamos tão familiarizados com o sistema russo e conhecemos tantos caminhos alternativos, que no fim acabávamos servindo de referência para outros estrangeiros da cidade. Eles ligavam para nossa casa e pediam ajuda: “qual médico procurar?”,
  • 57. “como era o nome do remédio tal?”, “você pode ir comigo na consulta?” Certo dia uma amiga estrangeira pediu para minha esposa acompanhá-la ao médico para ajudar a “traduzir” o que ele diria. As duas foram até a clínica, e a estrangeira (uma americana) que estava ha pouco tempo no país, mal falava russo. Minha esposa não fala inglês, de forma que, quando o médico falava, usando termos específicos da área médica, minha esposa se virava para a americana e traduzia do russo para o “russo de estrangeiros”. A americana assentia positivamente fazendo gestos de positivo e pronunciando algumas palavras em russo. Assim foi a consulta inteira. Minha esposa conta que havia momentos em que o médico ficava sem entender o que aquela brasileira estava fazendo ali, traduzindo do russo para um “russo estragado”! Às vezes a tradução era literal, ou seja, palavra por palavra, mas para a americana, talvez por causa do sotaque do médico, ou medo de algo, sentia mais à vontade com a presença de uma “tradutora”. Gosto de pensar que de certa forma, também servimos de anjos para outros. Mas o que seria da vida sem estes anjos protetores?
  • 58. SISTEMA DE EDUCAÇÃO RUSSO Nossos primeiros dias em Krasnodar foram tempos de adaptação ao novo ambiente. Precisávamos aprender coisas tão básicas, que até mesmo uma criança pequena sabia, ou seja, era necessário aprender em poucos dias o que as pessoas levam anos para assimilar e descobrir. Quando se muda de país, a questão da língua é um fator que contribui muito para o estresse, mas compreender a dinâmica da vida em todas as suas nuances, é algo que pode acabar com qualquer pessoa. Pensando que este processo de aprendizagem precisa ser rápido e com qualidade, nós não poupamos esforços para entrar logo na cultura local. Nas poucas semanas que tivemos antes das aulas na Universidade, conseguimos ter avanços significativos. Mas o começo das aulas mostrou o quão longe estávamos ainda de entender a Rússia! Em primeiro lugar, descobrimos que as datas são apenas uma
  • 59. aproximação, especialmente quando se fala dos inícios de algum processo longo. Ao menos deu para entender o que o responsável pelos estrangeiros tinha em mente quando disse que “as aulas começam lá pelo início de setembro”. Isto significava que, por estarem esperando outros alunos atrasados chegarem à Rússia, efetivamente tudo começou a andar já na segunda quinzena de setembro. A universidade não impressionava muito, pelo contrário, corredores escuros, canos expostos pela parede, banheiros que eram precários (nenhuma novidade no quesito banheiros!), salas com carteiras e cadeiras quebradas, entre outros. O que mais “chocou” neste início foi o hábito dos professores apagarem o que escreviam no quadro-negro, usando um pano-de-chão encharcado com água. Ficávamos olhando aquilo e vendo o borrão de giz que ficava espalhado pela lousa. Depois que me acostumei com a cena, percebi que aquilo evitava que o pó de giz se espalhasse no ar e pela mão de quem limpava o quadro (tarefa dos alunos). Mas estas primeiras impressões se deram nas aulas de russo para estrangeiros que a universidade oferecia para aqueles que estavam pretendendo entrar em alguma faculdade. A sala de aula era algo surreal. Numa sala pequena, que ficava dentro do dormitório dos alunos, havia algumas carteiras e o quadro. Todos ali eram estrangeiros, vindos literalmente de todos os continentes, perfazendo cerca de 10 pessoas. Ninguém falava um “i” de russo, exceto eu e duas coreanas que ao menos bom-dia sabiam dizer. O primeiro passo foi aprender o alfabeto. Era muito engraçado ver todos, já adultos, repetindo o que a professora dizia.
  • 60. Parecia que estávamos numa sala de crianças de 1° série. Depois de algumas aulas a professora veio falar comigo e disse que sugeriria para o responsável pelos estrangeiros de colocar eu e as coreanas na outra turma, a mais avançada. Assim, deixei minha esposa com a turma principiante e parti para a “avançada”. Enquanto eu me adaptava à nova turma e à professora, agora ao menos numa sala mais clara, minha esposa continuou avançando a passos largos. Cada dia ela vinha mais afiada no russo. Foi realmente muito bom para todos aquela separação, pois quem já tinha uma base pode galgar níveis mais altos, e o pessoal iniciante não tinha que se preocupar com os mais adiantados, e acabaram, creio, tendo resultados muito melhores até mesmo que alguns da outra turma. Aprender língua não é o suficiente, precisa-se entender e participar da cultura, pois ambas são inseparáveis. E em questões culturais, os russos são muito bem servidos. Pudemos aproveitar muito nosso tempo lá, pois sabíamos que para termos acesso ao mesmo tipo cultural aqui no Brasil custaria muito caro, e lá na Rússia, tudo era muito acessível. Acabei passando, algumas semanas depois, para outra turma de russo, pois nossa professora estava sendo requisitada para dar aulas para um grupo novo que acabara de chegar. Esta minha nova turma era bem mais adiantada, e tudo que acontecia, especialmente as conversas, era unicamente em russo (na turma de minha esposa ainda não haviam chegado no nível de conversação direta). Este era um ambiente estimulante, onde a maioria realmente estava ali para aprender russo, já que tinham necessidade disto, tendo em vista que aquele era o último estágio antes do ingresso nas faculdades.
  • 61. Cabe dizer que nem todos estavam lá por causa da faculdade, ou estudos. Alguns queriam passar um tempo na Rússia e este era um meio de se conseguir visto e até mesmo certa liberdade. Outros queriam um certificado para poder mostrar em seus empregos (Companhias multinacionais, especialmente coreanas). Ainda havia o pessoal da festa ou do tipo “papai me mandou para cá”. Porém, quem precisava e tinha planos mais sérios, descobriu que aqueles meses de preparo seriam a diferença entre a vida e a morte na faculdade. Passado o primeiro ano, havia aprendido a lidar com algumas questões dentro da cultura acadêmica russa. Desconhecer certas “regras’ era trilhar caminhos nada fáceis dali para frente. No ano letivo seguinte, minha esposa se inscreveu para o ano avançado de russo, ou seja, a turma que eu estava no ano anterior. Ela iria enfrentar mais um ano de russo na universidade, o que achei corajoso e sábio ao mesmo tempo. Suas aulas continuariam no período da manhã. Contudo, eu teria que mudar de turno, e teria aula à tarde, pois a faculdade que eu escolhera somente tinha aulas naquele período. Tivemos alguns contratempos por causa das crianças, que no ano anterior ficavam em casa com uma babá. Entretanto, com as novas regras do jogo, tivemos que fazer adaptações. Feitas as adaptações, prosseguimos com nossa rotina. Lembro com exatidão o primeiro dia na Faculdade de Filosofia, História, Sociologia e Relações Internacionais. (FISMO, em russo). O longo corredor tinha algumas luminárias funcionando, outras nem tanto, e algumas que realmente tinham perdido sua
  • 62. função há muito tempo. Havia uma multidão no corredor, pois além dos alunos dos cursos da Faculdade em cada especialidade, o corredor era uma ligação entre dois prédios da Universidade, e o trânsito sempre era intenso por ali. Consegui ver no quadro o local da primeira aula. Cheguei à frente da sala e percebi haver uma multidão que já se aglomerava ao redor da porta. Quando ela se abriu, e o pessoal da manhã começou a sair, lembrei daqueles dias em que você tenta pegar um ônibus lotado num ponto de ônibus que está mais lotado ainda. O empurra-empurra generalizado se justificou pouco tempo depois. Eram 55 alunos para uma sala que tinha menos de 50 cadeiras. Como decidi ser mais educado na entrada, especialmente com as damas, tive que ir pro fundo da sala. Havia uma cadeira sem o acento, apenas a parte de ferro. Era a única coisa que restara.Alguns já estavam em pé contra a parede. Pensei nas horas que ficaria naquela sala, e decidi sentar ali mesmo. Resumindo, não era nada confortável, mas era o que tinha. Outros mais educados dividiam a cadeira com uma amiga, ou amigo. Eu não tinha conhecidos ali, todos eram alunos russos. A sala, além da falta de carteiras e cadeiras, visivelmente carecia de uma manutenção. Tive o trabalho de contar quantas lâmpadas incandescestes queimadas havia nos lustres. O total foi de 70%! O chão tinha uma lâmina parecida com tacos, mas em alguns locais ela já havia desaparecido, sobrando apenas o chão de madeira, e ao longo dos meses tive a nítida impressão que estes buracos na lâmina iam aumentando em seu diâmetro. As janelas tinham vidros quebrados e o vento que entrava no outono e inverno eram de congelar os ossos. Por causa da sensação de segurança que o fundo
  • 63. da sala sempre trás ao aluno menos preparado para perguntas dos professores, acabei achando um canto lá nas últimas carteiras. No fim da primeira semana todos os lugares estavam marcados. Logo descobri que a presença em sala de aula não é algo notado ou anotado pelo professor. Isto fez com que começassem a sobrar cadeiras mais dignas para se sentar ao longo do primeiro semestre. Mas para mim era imprescindível estar nas aulas. Em primeiro lugar, o controle sobre os estrangeiros era muito eficaz. Alguns que apreciavam “passear”, como dizem os russos, acabavam sendo chamados e inquiridos pelo diretor de assuntos internacionais. Resolvi não ter problemas com ele. Em segundo lugar, estar nas aulas era uma forma de aprender russo, familiarizar-se com o vocabulário mais científico e serviria de argumentação junto ao professor na hora das provas. Descobriria posteriormente que a sala de aula que mencionei acima era a melhor que havia na faculdade. As outras eram muito mais precárias: quadro-negro no chão, na posição vertical e com a parte superior encostado na parede As carteiras davam lugar a uma mesa de madeira com inúmeras camadas de tintas sobrepostas, onde eu imaginava que seria necessária uma espécie de prática de escavação arqueológica até se chegar às camadas pré-históricas da tinta original. As cadeiras eram na verdade bancos de madeira sem encosto. E as lâmpadas, deixo à imaginação do leitor! Agora algumas palavras sobre os professores. Era perceptível que havia uma renovação do quadro, pois alguns professores estavam se aposentando, ou ao menos deveriam fazê-lo logo! Especialmente nesta área, História, muitas mudanças ocorreram nos últimos anos,
  • 64. em especial após a queda da URSS. Não que os fatos históricos tenham mudado em si, mas a forma ideológica como eram interpretados havia mudado. Apesar de matérias serem abandonadas (como História do Partido Comunista da União Soviética, por exemplo), para muitos professores se desfazer de um passado repleto da ideologia partidária ainda era um problema. Outros que eram comunistas enquanto a União existia, passaram a dizer o que pensavam de verdade, abriam seus arquivos secretos e desenterravam leituras antes subversivas. Preferi este segundo grupo. Sempre existem aqueles professores que aprendemos a evitar, e aqueles que se pudéssemos daríamos um jeito de escanear todo o seu conhecimento. Com estes últimos, nunca era demais ter aula. Eles entram em nossas vidas, e mesmo que depois de alguns anos de estudo não os vejamos mais, eles jamais sairão dela. Aquela questão que mencionei no início do capítulo sobre a necessidade de aprender em pouco tempo o que uma pessoa nativa daquela cultura levou anos para descobrir, estruturar e decodificar, fala muito alto em momentos como o tempo das provas e exames na universidade. Aprender o jeito, a manha de tudo aquilo requer uma força extra de todo estrangeiro. Cada país tem um sistema, cada povo tem uma maneira de fazer as coisas, e as diferenças de como tudo é feito na Rússia neste sentido, é tão grande quanto a imensa distância geográfica que separa o Brasil de lá. Resumidamente o sistema funciona assim (claro que descobri isto depois das primeiras provas!): O professor disponibiliza para a responsável da turma a lista de perguntas que irão cair na
  • 65. prova. Elas podem variar de 50 à 150 perguntas. O aluno deve se orientar por elas para estudar. No dia da prova, os alunos entram em pequenos grupos na sala da prova (geralmente 5 alunos). Ao entrar, com sua carteira de notas na mão, ele deve pegar um dos bilhetes que se encontram sobre a mesa do professor onde estão as perguntas viradas para baixo. Geralmente existem duas perguntas em cada bilhete (daquelas que foram dadas pelo professor). O aluno diz o número do bilhete que pegou entre os que estão na mesa e vai sentar- se para responder às perguntas. Ali naquele papel (dado pelo professor) ele deve lançar tudo que sabe sobre o tema em questão. Ao acabar, o aluno responderá oralmente às questões do bilhete, podendo usar o rascunho que esboçou naquele tempo em que teve para se preparar. O tempo de preparo gira em torno de 30 minutos. O aluno pode pedir para pegar outro bilhete, mas isto já acarreta no desconto da nota a ser dada. E isto não é tudo! Quando o aluno termina de dissertar sobra a pergunta “A”, o professor pode (e certamente faz) perguntas chamadas de “perguntas complementares” que envolvam o tema. Aprendi a odiar esta expressão! A nota final varia entre 2, 3, 4 ou 5. Neste caso, a nota 2 significa reprovado, e o aluno irá precisar fazer outro exame. 3 é algo igual à “escapei por pouco!”. 4 já é algo considerável; mas 5 é mais para os super-dotados intelectualmente! Não tive muitos 5 na Rússia… Como isto é avaliado? O professor é que decide a nota que o aluno irá receber. Leva-se em consideração outros fatores, como participação nas aulas práticas, frequência, comportamento em sala,
  • 66. e outros fatores que nunca descobri. Sempre achei este método muito aleatório, vago e injusto. Houve vezes em que pensei “hoje eu levo o meu primeiro 5”, e o professor me deu 3. Outras vezes achei que seria esculachado pelas respostas dadas, mas recebia uma nota 4. Nunca sabia se iria bem ou mal na prova. Na verdade tudo ali era como um jogo, onde sempre quem podia perder era só o aluno! Ao final do exame, o professor pegava a carteira de notas do aluno e escrevia nela o nome da matéria, a nota e assinava. Descobri também que existiam tipos diferentes de professores na época das provas e exames. Os bonzinhos durante o semestre poderiam ser os devastadores na hora da prova, com perguntas que jamais poderíamos pensar que pudessem ser feitas. Outros “monstros” da sala acabavam por relaxar e deixar passar na boa. Mas o mais terrível de todos era o tipo “vocês não vão conseguir passar, por isto para que se matar estudando? É só ajudar com as compras de Fim de ano, que tudo fica bem”. Houve um caso em que existia uma tabela de preços. Quem estivesse interessado numa nota 3, deveria contribuir com X rublos. Se o apetite do aluno era maior, o número na tabela também era acrescido no seu valor. Agora se a pretensão era o desejado 5, aí era preciso desembolsar mais. Já outro professor facilitou as coisas, era só comprar o livro de sua autoria (e somente ele vendia, é claro!), e dar uma lida que a nota estava garantida! Na época da URSS, muita corrupção existia nos estabelecimentos de ensino (e em toda a parte). Contudo, nos últimos
  • 67. anos o governo russo começou uma cruzada contra este tipo de atitude, e os professores universitários não ficaram fora da ação. Durante o tempo que estive na universidade, tive um professor que foi demitido por “comportamento inadequado”. Isto fez estancar muito este processo de “cobranças” de fim de semestre, e a partir do 3 ano não tive mais notícias, pelo menos abertamente, desta prática. As mudanças também ocorreram nas dependências da Universidade. O início do popular remont (conserto) chegou em 2007. Os alunos que moravam nos dormitórios tiveram a felicidade de ver suas janelas dos quartos trocadas pelas famosas “janelas alemãs”. Além disto, pintaram o corredor e instalaram um sistema contra incêndio nos prédios. Algumas faculdades começaram a ter corredores arrumados e salas refeitas. O estádio da universidade, que até então era um campo de futebol com uma grama esparsa e trilhos por onde passavam os alunos, acabou por ser totalmente reformado, ganhando grama sintética, pista de atletismo e até mesmo arquibancadas, com direito a iluminação noturna! As mudanças demoraram um pouco mais a chegar na nossa faculdade, mas foram bem recebidas quando apareceram por lá. O corredor, que era uma penumbra por falta de lâmpadas, foi iluminado. Os gabinetes das Cátedras e sala de professores totalmente reformadas. Durante semanas passamos pelos corredores que serviram de depósitos de móveis dessas salas e que iriam para lugar mais apropriado, o lixo. Mas a mais esperada de todas as reformas era na sala de aula principal, aquela que foi descrita anteriormente. No dia da “inauguração”, todos estavam ansiosos para
  • 68. estrear a nova sala. As luminárias foram trocadas e colocadas novas lâmpadas fluorescentes, as paredes perderam o tom marrom escuro (imagine como era antes numa sala marrom escuro e com lâmpadas queimadas). As janelas também viraram “alemãs” e a calefação foi trocada. Carteiras e cadeiras substituídas e o chão ganhou revestimento novo. O quadro negro virou branco e ganhamos um projetor de imagens. A reforma no âmbito físico também estava acontecendo na estrutura do próprio sistema de Ensino Superior. A Rússia mantinha seu sistema, que basicamente era o seguinte: ensino superior de 5 anos, sendo o quinto ano a Especialização. Depois deste grau, vinha o nível de “Aspirantura”, que era composto de 3 anos. A inserção do “novo estilo” (4 anos de superior, depois mestrado e por fim doutorado) foi uma opção à disposição dos alunos a partir de 2007. A minha turma foi a última que se formou exclusivamente pelo estilo antigo. Esta mudança não agradou a todos. Especialmente os professores não estavam totalmente convencidos que isto traria alguma melhora significativa. Na verdade, nem eles entendiam como iria funcionar este novo sistema e qual sua correspondência com o sistema russo. Resumindo, todos estavam confusos, inclusive eu, e até hoje esta relação é obscura. --------------------------------------------------- Preciso fazer agora uma menção ao sistema fundamental de ensino na Rússia, pois também participamos de mais esta área da vida naquele país. Isto ocorreu por que nossa filha mais velha estava entrando em idade escolar. Desde o momento que decidimos ir morar lá, fomos
  • 69. unânimes na questão de colocar nossas filhas em escolas locais. Em geral, todo o sistema de formação fundamental está nas mãos do Estado. Ficamos sabendo depois que havia uma escola particular em outro bairro um pouco longe de nossa região, mas que quase ninguém sabia dar maiores informações. Alguns estrangeiros davam aula em casa para seus filhos (home school), outros mandavam seus filhos para escolas na Europa. Nossa opção de mandar a filha mais velha, e depois a mais nova, para uma escola local se deu por alguns motivos práticos. Primeiramente, ficamos sabendo que o Brasil não reconhece o sistema de “escola em casa”, e exige que as crianças que moram fora do país com os pais, ao retornar para o Brasil comprovem ter freqüentado um estabelecimento de ensino reconhecido no país de origem, mostrando a papelada devidamente documentada e traduzida. Com a orientação do pessoal da Embaixada do Brasil em Moscou, conseguimos fazer todo o processo legal para que elas fossem aceitas no sistema brasileiro quando voltaram. Em geral, brasileiros mantêm pouco ou mesmo nenhuma preocupação com este ponto. Mas isto é fundamental na volta para o país. Em segundo lugar, acreditávamos que, se estávamos num outro país, o conhecimento da língua seria importantíssimo para um desenvolvimento natural e social de nossas filhas. Neste ponto víamos a dificuldade de filhos de outros que tinham seu sistema de “home school”. Eles estavam isolados do mundo, das pessoas. Não podiam ir ao teatro, cinema, conversar livremente com pessoas, enfim, viver a vida normalmente. Em terceiro lugar, nossas filhas aprenderam outra língua,
  • 70. outra cultura. Elas foram expostas a situações de vida real, e não ficaram guardadas num gueto, longe da realidade. Obviamente esta posição cobrou também um preço, tanto dos pais, como das meninas. Creio que todos sabem como crianças podem ser duras umas com as outras. Quem nunca sofreu algum tipo de pressão na escola? Quem nunca se sentiu agredido verbalmente ou mesmo discriminado em algum momento da vida escolar? Ser estrangeiro sempre é um belo motivo para se sofrer este tipo de pressão. Mas felizmente nunca tivemos casos de agressão física ou mesmo o chamado bulling, como se observa em muitos países do mundo. O fato de muitas crianças na escola delas serem também de origem georgiana e armênia trazia certa compreensão dos colegas. Certa vez, conversando com um colega de nossa filha, ele perguntou se éramos estrangeiros mesmo. Falamos que sim. Nisto ele olha para nós com ar de importância e disse que também era estrangeiro, georgiano, apesar de ter nascido ali mesmo na Rússia. A relação interpessoal na Rússia é muito complicada, e as crianças não são uma exceção. O fato de se ter poucos amigos é algo absolutamente comum, pois as pessoas são muito desconfiadas, especialmente com gente de fora. Os pais não permitiam que seus filhos se aproximassem das nossas crianças ao perceberem que elas não eram russas. Mas tivemos boas e não tão boas experiências com este lado da vida, a escola. O fato de não serem russas teve seus complicadores. Para matricular uma criança, precisa-se de alguns documentos que não possuíamos, como uma apólice de saúde infantil, que é dada pelo governo às crianças russas, como
  • 71. mencionamos no capítulo anterior. O mais complicado era que não tínhamos direito a nada, como foi no caso do hospital quando nossa filha foi rejeitada, mesmo em estado grave. Mas se por um lado não existia o amparo do Estado, por outro contamos com a ajuda daqueles anjos divinos. A vice-diretora da escola onde a nossa filha mais velha iria estudar foi a professora dela na aula de “preparação para a escola”. Esta era uma aula de adaptação para a escola e uma pré-alfabetização. As aulas duravam alguns meses, e ajudava as crianças no processo de integração à vida escolar, e ainda auxiliava a própria professora a conhecer os alunos num ambiente ainda pré-escolar. Na Rússia não existe prézinho, as crianças vão direto para o primeiro ano. Este fato da vice-diretora naquele ano dar a aulinha ajudou-a a conhecer nossa situação, e no momento de fazer a matrícula na escola, apesar da falta de alguns papéis oficiais, ela e a diretora foram amplamente compreensivas, e aceitaram nossa filha sem maiores dificuldades. Esta porta aberta com elas nos foi importante ao longo do processo de ensino das meninas. Algumas vezes tivemos que bater no gabinete da diretora para explicar algumas situações, outras precisamos de uma ajuda para entender os processos educativos, e ainda houve momentos que precisamos falar sério sobre questões envolvendo atitudes de uma professora. Apesar de toda a seriedade e frieza com que a diretora nos tratava (e fazia isto com todas as pessoas!), ela sempre nos ouviu e foi uma pessoa profissionalmente bem equilibrada em suas posições. Aprendemos muito com as experiências na escola. Vivemos