Este documento discute as leituras bíblicas do primeiro domingo da Quaresma. Ele resume que: 1) A primeira leitura fala sobre o povo de Israel celebrando sua libertação por Deus; 2) O evangelho descreve as tentações de Jesus no deserto e sua recusa em usar poder ou prestígio para libertar as pessoas; 3) A segunda leitura diz que a salvação vem da fé em Jesus Cristo, não das obras da lei.
1. A LIBERTAÇÃO É DOM DE DEUS E CONQUISTA DAS PESSOAS
Pe. José Bortolini – Roteiros Homiléticos Anos A, B, C Festas e Solenidades – Paulus, 2007
* LIÇÃO DA SÉRIE: LECIONÁRIO DOMINICAL *
ANO: C – TEMPO LITÚRGICO: 1° DOMINGO DA QUARESMA – COR: ROXO
I. INTRODUÇÃO GERAL
1. O povo oprimido que busca a libertação se reúne para
celebrar a fé. Não a fé teórica e abstrata, mas a que vem da
consciência do Deus que liberta e promove a vida para todos.
Hoje o “cesto” que a comunidade põe diante do altar de Deus
está cheio dos primeiros frutos de libertação. Por isso nossa
fé merece ser celebrada, nosso Deus merece ser adorado (1ª
leitura, Dt 26,4-10).
2. O primeiro fruto de libertação é a vitória de Jesus sobre
todas as tentações, sobre todos os ídolos que escravizam a
humanidade. Celebramos seu projeto de vida. Esta celebração
e o tempo da Quaresma querem ser para nós como os “qua-
renta dias de Jesus no deserto”, durante os quais vamos ven-
cendo os “diabos” que nos afastam do projeto de Deus e
impedem às pessoas o acesso à educação, à vida etc. (evange-
lho, Lc 4,1-13).
3. Celebrar é professar nossa fé no senhorio de Jesus. Con-
fessamos com a boca e cremos com o coração, comprome-
tendo-nos na transformação do mundo (2ª leitura, Rm 10,8-
13).
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1ª leitura (Dt 26,4-10): Fé é reconhecer a ação libertadora
de Deus na história, comprometendo-se com ele
4. Os versículos da primeira leitura deste domingo perten-
cem ao Código Deuteronômico (Dt 12-26) e são um dos
trechos mais significativos do Antigo Testamento, pois cons-
tituem o “credo histórico de Israel”. A profissão de fé do
israelita é resultado de longa história de tribulações, opres-
sões, sofrimento, lutas pela libertação e, finalmente, posse da
terra prometida. O texto de hoje é a síntese final desse pro-
cesso lido à luz da fé no Deus libertador que esteve ao lado
dos oprimidos, suscitando força, dando expressão a seus
anseios e êxito a suas lutas.
5. O trecho contém um rito, uma oferta e a profissão de fé.
Todo israelita, ao colher os primeiros frutos da terra (primí-
cias), devia apresentá-los a Javé. Esse gesto tinha duplo signi-
ficado: por um lado suscitava a memória de que o processo
de libertação e a posse da terra são dom de Deus concedido
mediante as lutas e organização do povo; por outro lado, o
fato de oferecer a Deus os primeiros frutos estimulava à ge-
nerosidade, superando a tentação da ganância e do acúmulo
de bens. De fato, o rito se encerrava com uma festa, em que o
ofertante dava um almoço de confraternização às pessoas
mais próximas e aos levitas (v. 11), sustentadores de uma
sociedade alternativa, em que a partilha marcava o clima de
novidade em relação às sociedades escravizadoras.
6. Depois de ofertar os primeiros frutos, o israelita profes-
sava sua fé no Deus libertador que faz história com os opri-
midos: “Meu pai era um arameu errante, que desceu ao Egito
com um punhado de gente para habitar lá como estrangeiro.
Mas ele se tornou um povo grande, forte e numeroso” (v. 5).
A profissão de fé inicia com a memória das minorias migran-
tes, sem terra, forçadas a buscar vida no meio de gente estra-
nha que passa a oprimi-las, explorá-las e escravizá-las (v. 6).
7. No meio dessa história, Deus faz a opção preferencial
pelos oprimidos, ouvindo o clamor, vendo a opressão, cansa-
ço e angústia dos que sofrem (v. 7), e os liberta com grande
poder (v. 8), conduzindo-os à posse da terra onde corre leite e
mel (v. 9).
8. A fé do israelita está ancorada na história, e a expressão
dessa fé é a gratuidade e ação de graças: “Por isso, agora trago
os primeiros frutos da terra que o Senhor me deu” (v. 10a). A
seguir, o ofertante se prostrava em adoração diante do Deus
libertador (v. 10b), reconhecendo-o como o Deus que caminha
com os oprimidos da história.
9. Os povos vizinhos de Israel possuíam ritos semelhantes.
Ao oferecer os primeiros frutos da terra, eles recitavam o mito
da divindade que entrava no seio da terra e dela voltava em
forma de fruto. O fiel ficava à espera da ação mágica da divin-
dade, sem perspectivas de mudança. Para o israelita, porém, os
frutos da terra são memória sagrada de feitos libertadores, em
que Deus agiu ao lado do ser humano; são resultado da luta de
dois parceiros inseparáveis: de um lado o povo que luta para
sobreviver, e ao lado dele o Deus que deseja que as pessoas
tenham vida e liberdade. Deus se alia a um povo escravo, orga-
nizando-o e libertando-o, a fim de que venha a possuir a vida e
a liberdade. Uma vez liberto, o povo oferece os frutos dessa
liberdade, reconhecendo a Deus como o único capaz de dar
vida aos que dela foram privados. E na partilha fraterna celebra
a nova sociedade que esses dois parceiros construíram juntos.
Evangelho (Lc 4,1-13): Como Jesus realiza a libertação dos
oprimidos?
10. O trecho de Lucas lido na liturgia deste primeiro domingo
da Quaresma apresenta as tentações de Jesus. Elas são uma
síntese de todas as tentações que ele sofreu ao longo de sua
prática libertadora. São também as tentações ou tentativas his-
tóricas de grupos e pessoas para obter vida e liberdade.
11. Se situarmos o episódio das tentações de Jesus dentro de
seu contexto, poderemos entender melhor o alcance da questão.
Lucas o inseriu depois da genealogia de Jesus. Com isso ele
quis mostrar que Jesus é humano como qualquer pessoa e,
enquanto ser humano, vem de Deus. Por isso, as tentações por
ele sofridas são as mesmas que nós enfrentamos no esforço de
atuar o projeto divino.
12. Após ter superado as tentações, Jesus inicia sua atividade e
apresenta seu programa libertador (4,16-19). Como irá atuar
esse programa? Nesse sentido, as tentações são propostas que
ele rejeitou, porque por meio delas não é possível libertar os
oprimidos.
13. As tentações de Jesus acontecem no deserto, para onde é
conduzido pelo Espírito. O deserto lembra o tempo da gestação
do projeto de Deus para o povo do Antigo Testamento. Foi lá
que os hebreus forjaram, a duras penas, um projeto de socieda-
de alternativa, em que todos pudessem usufruir da vida em
liberdade, sem traços nem sinais da opressão vivida no Egito.
Lucas salienta que Jesus foi tentado durante quarenta dias. Esse
número é simbólico. Lembra o tempo em que Moisés ficou na
montanha (Ex 34,28), sem comer nem beber, a fim de escrever,
na intimidade com Deus, o contrato da aliança para a nova
sociedade. Lembra também o tempo em que Elias permaneceu
no monte Horeb, depois do qual desceu para transformar com-
pletamente a sociedade do ponto de vista político e religioso
(cf. 1Rs 19,8). Lembra, ainda, os quarenta anos de Israel no
deserto, com suas tentações de voltar ao Egito, mesmo que
fosse para viver como escravo, desde que de barriga cheia.
a. Primeira tentação: ser o messias da abundância (vv. 3-4)
14. O diabo é aquele que tem um projeto capaz de perverter o
projeto de Deus e de Jesus. Pode ser uma intuição, um projeto,
2. um tipo de sociedade, um partido político etc. A proposta que
ele faz é que Jesus liberte os oprimidos mediante um passe de
mágica, utilizando Deus em benefício próprio: “Se és Filho
de Deus, manda que esta pedra se torne pão” (v. 3). Ele quer
um deus que seja garantia de prosperidade, um deus de pa-
lanque. O diabo tenta Jesus num ponto crucial: a fome. Como
resolver o problema da falta de pão? Pensando somente em
si, na própria fome?
15. Jesus recusa ser o messias da abundância porque o proje-
to de Deus vai além de promessas eleitoreiras. “Não só de
pão vive o homem” (v. 4; cf. Dt 8,3). O texto do Deuteronô-
mio fala do tempo em que o povo vivia no deserto e se con-
tentava em viver assim desde que tivesse pão para comer. A
palavra de Javé, porém, tinha objetivos mais amplos: condu-
zir todo o povo à plena posse da vida e da dignidade. Jesus
recusa-se a ser o messias da abundância para si, pois sua
proposta é a partilha (11,41) e pão para todos (9,12-17).
b. Segunda tentação: ser o messias do poder (vv. 5-8)
16. O diabo volta à carga, tentando desta vez perverter o
projeto de Deus mediante a usurpação do poder. A proposta é
que ele liberte os oprimidos através do poder: “Eu te darei
todo o poder e a riqueza destes reinos, porque tudo isso foi
entregue a mim, e posso dá-lo a quem eu quiser. Portanto, se
te prostrares diante de mim, tudo isto será teu” (vv. 6-7).
17. Os adversários de Jesus diziam que ele expulsava demô-
nios por ordem de Belzebu, o príncipe dos demônios (cf. Lc
11,14-22). Jesus é tentado a resolver o problema dos oprimi-
dos tornando-se chefe político de estruturas injustas. Como
poderá libertá-los tornando-se dono das vidas e controlando a
liberdade das pessoas?
18. Jesus recusa ser o messias do poder: “A Escritura diz:
Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás” (v. 8; cf. Dt
6,13). – A citação completa desse versículo do Deuteronômio
mostra claramente que se absolutizar no poder é repetir a
ação opressora do Faraó –. Jesus tem outros projetos median-
te os quais libertará os oprimidos. Em Lucas, uma de suas
principais características é o serviço (cf. 22,27: “Eu estou no
meio de vocês como quem está servindo”).
c. Terceira tentação: ser o messias do prestígio (vv. 9-12)
19. Lucas inverteu propositadamente a ordem da segunda e
terceira tentações, reservando para Jerusalém o arremate
final, pois será nessa cidade que Jesus, ao longo de sua práti-
ca libertadora, irá enfrentar a morte.
20. O diabo tenta Jesus para que abuse do poder de Deus, a
fim de se livrar da morte. E desta vez utiliza um texto da
Bíblia (Sl 91,11-12). Jesus é convidado a se precipitar do
ponto mais alto do Templo de Jerusalém, para mostrar que
Deus está do lado dele e que será capaz de libertá-lo da mor-
te. Com essa demonstração comprovaria ser ele o Messias
pois, segundo a tradição, o pináculo do Templo seria o lugar
da manifestação do Messias.
21. Jesus recusa ser o messias do prestígio. Recusa, sobretu-
do, escapar da morte, pois o projeto de Deus, que é libertação
para os oprimidos, passa pela morte de Jesus: “Não tentarás o
Senhor teu Deus” (v. 12; cf. Dt 6,16). Ser messias do prestígio
constitui idolatria.
22. O evangelho conclui dizendo que “tendo esgotado todas as
formas de tentação, o diabo se afastou de Jesus, para voltar no
tempo oportuno” (v. 13). O tempo oportuno é o final da prática
libertadora de Jesus, onde vai enfrentar os chefes dos sacerdo-
tes, doutores da lei e anciãos (cf. cap. 20). Eles personificam as
tentações que Jesus venceu: crêem que Deus lhes garante a
prosperidade; acham que é o suporte político para as estruturas
injustas que defendem e promovem; vivem envolvidos pela
busca do prestígio.
23. Jesus vai enfrentá-los. É sua última tentação. Eles o ma-
tam. Mas a ressurreição é a prova de que o projeto do Pai é
mais forte que as forças de morte.
2ª leitura (Rm 10,8-13): “Confessar com a boca e crer no
coração”
24. O trecho da carta aos Romanos escolhido como segunda
leitura deste domingo faz parte de uma seção em que Paulo
mostra a fidelidade de Deus e a incredulidade de Israel (caps. 9-
11). O texto que antecede os versículos propostos para hoje
contrapõe a justiça que vem da lei e a justiça que vem da fé em
Jesus Cristo.
25. Em Jesus, Deus concedeu anistia à humanidade, pois esta
não podia, por si só, chegar à salvação. Em Jesus, Deus se tor-
nou próximo das pessoas (cf. v. 8), libertando-as gratuitamente
por meio da morte e ressurreição de seu Filho. – O povo de
Deus do Antigo Testamento acreditava que a salvação só podia
ser obtida mediante a prática da lei –. A libertação, pois, seria
mérito exclusivo das pessoas: se elas praticassem os manda-
mentos, Deus se sentiria como que obrigado a libertá-las.
26. Para Paulo, a justiça é pura graça de Deus em Cristo Jesus,
que mostrou às pessoas o rosto humano de Deus. O que resta,
portanto, aos cristãos? Como ir ao encontro da ação gratuita do
Deus que nos libertou em seu Filho? Em poucas palavras, o
texto de hoje mostra uma das primitivas sínteses da fé cristã.
Essa síntese se condensa em torno das expressões “Cristo é
Senhor” e “Deus o ressuscitou” (v. 9).
27. Chamar Jesus de Senhor é reconhecê-lo em pé de igualda-
de com o Deus do Antigo Testamento, ao qual os fiéis se diri-
giam chamando-o de “Senhor”. Para os cristãos, o senhorio de
Deus pertence também a seu Filho. Ele adquiriu esse título por
meio de sua obediência ao projeto do Pai até o fim, conseguin-
do para nós a libertação. A síntese da fé cristã é a confissão de
que Jesus é Senhor. Mas a profissão de fé do cristão não pára
aí. Não basta “professar com a boca”. Faz-se necessário “crer
no coração” que “Deus o ressuscitou”.
28. Segundo a antropologia semítica, o coração é a sede das
opções de vida. Portanto, “crer no coração” nada mais é do que
uma prática cristã capaz de traduzir em gestos gratuitos e liber-
tadores a fé que professamos. Crer no coração que Deus ressus-
citou a Jesus é pôr em movimento um processo de libertação
em que ninguém fique excluído (v. 12). Isso envolve todos os
setores da pastoral e da evangelização, sem deixar ninguém de
fora, pois “todo aquele que invocar o nome do Senhor será
salvo” (v. 13).
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
29. O tema central da liturgia da palavra deste domingo gira em torno da libertação e pode ser sintetizado na seguinte
expressão: A libertação é dom de Deus e conquista das pessoas. O projeto de Deus é libertar todos os oprimidos. Esta
é também a fé que professamos. Por isso podemos nos perguntar, em nível geral: Quais as ações do Deus libertador
que caminha conosco estão presentes em nossas celebrações? De quais ídolos Jesus nos quer libertar? Quais são as
tentações do cristão hoje? Quem promove e veicula essas tentações? O que significa, hoje, “confessar com a boca e
crer no coração”?