2. EnTREVIsTA
A sagração
da intimidade
O casamento por amor inicia a revolução da vida privada e abre caminho
para o nascimento de um novo humanismo
POr GErsOn GEnarO E JacksOn GUEdEs
A revolução da vida privada está em marcha.
Ao invés de chorarmos a morte das utopias e nos
abatermos com o caos moderno, é possível man-
ter o otimismo com a construção de uma socieda-
de mais humana, ainda que o cotidiano continue
limitado para a maioria das pessoas à tediosa e
banal lógica do “ônibus-trabalho-cama”, susten-
ta um dos mais polêmicos e inovadores filósofos
humanistas da atualidade, o ex-ministro da Edu-
cação da França, Luc Ferry, em entrevista exclu-
siva à L’uomo BrAsiL, para dissecar seu novo
livro, Famílias, amo vocês. seu livro anterior,
Aprender a viver, uma filosofia para os novos
tempos, foi best-seller em mais de 14 países.
O século XX agiu como um ácido sobre os valores
tradicionais, destaca Ferry. A sociedade ocidental
na era da globalização abandonou progressivamen-
te a militância política, a vida pública e entidades
tradicionais, como a idéia de Deus, Nação, Pátria,
hierarquias e os ideais revolucionários. Os princí-
pios de igualdade, liberdade e fraternidade foram
também desconstruídos. O sentido de nossas vidas
desceu do céu para se encarnar na terra. Houve um
recolhimento do homem moderno para a esfera
privada com o triunfo dos valores individualistas
após abandono da política e a conseqüente entrega
a um novo e sagrado modo de vida, o culto da inti-
midade em resposta ao caos moderno.
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3. E a força que alterou todo o jogo, detecta o filósofo francês,
é o advento da família constituída com base no casamento por
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amor. Nas palavras do autor, o amor, que constitui a base da
família moderna, provocou uma revolução sem precedentes na
organização político-social da sociedade moderna ao conferir
à esfera privada um status superior à vida pública, após rever-
ter os ditames da política remanescente do século XVIII. Já o
progressivo enclausuramento das pessoas a partir da ruptura
com a vida pública não significa algo necessariamente ruim,
argumenta Ferry.
“Na verdade, representa uma extraordinária oportuni-
dade de ampliação de nossos horizontes: a coroação de um
humanismo em plena maturidade, sem falsos idealismos.
Abre caminho também para que os partidos políticos pro-
curem representar os valores da intimidade com projetos e
programas a serviço dos indivíduos, mantido o direito de
cada um levar sua vida como bem entender”, destaca em
seu novo livro.
O novo humanismo precisa ainda romper com a servidão
ao consumismo viciante do shopping center, “um templo er-
guido à besteira e à obscenidade do dinheiro. Não é necessá-
rio consumir o tempo todo para ser feliz e dar um sentido à
vida. A pessoa não irá se realizar fazendo compras, mas sim
no cumprimento de certos deveres com relação a si mesmo e
aos outros”, aponta.
Os medos, angústias, responsabilidades e deveres do ho-
mem contemporâneo têm lotado muitas estantes nas seções
de auto-ajuda das livrarias, em publicações que prometem a
solução para essas aflições com uma psicanálise em cartilha.
Na contramão dessa tendência, o filósofo francês Luc Ferry
propõe uma nova abordagem desses temas. O tema do seu novo livro é a família moderna.
Ao deixar de lado o tratamento patológico característico da psicanálise, Ferry Qual a principal reflexão apresentada nesse
acredita que a filosofia pode ser empregada para o bem do homem do século novo trabalho? - Procurei traçar uma história da fa-
XXI, para quem temas como sucesso profissional, consumismo, medo da velhice mília moderna a partir do nascimento do casamento
e conflitos religiosos não se resolvem no divã. por amor. Além disso, o livro faz uma reflexão sobre as
Um dos principais defensores do Humanismo Secular, o filósofo, nascido em evoluções do sagrado ou do que consideramos como tal
Paris em 1951, nesta conversa com L’UOMO BRASIL fez um apanhado dos prin- nas sociedades laicas. Para simplificar, pode-se dizer que
cipais temas abordados em sua carreira, como a religião de O homem Deus, a houve, depois do Antigo Regime, três ordens de família.
busca pelo sucesso profissional de O que é uma vida bem-sucedida e a grande Na Idade Média, como os historiadores da vida co-
discussão iniciada em Aprender a viver: como a filosofia pode ajudar o ser hu- tidiana nos têm contado, jamais se casava por amor. O
mano a viver no século XXI? motivo do casamento era levar adiante a transmissão dos
sobrenomes, do patrimônio e de ordem econômica: ele se
encarrega de “fazer filhos” para alimentar a exploração
agrícola. De resto, ou não se casava ou se casava à força, por imposição da
família ou da comunidade. Isto é indiscutível!
O nascimento dos assalariados no capitalismo vai abalar essa situação
porque conduzirá à emancipação dos indivíduos da base das comunidades
tradicionais, o que se dá por uma razão simples: a jornada de trabalho que
nasce com o capitalismo implica que os indivíduos passem a trabalhar
nas cidades. Eles se dirigem aos centros urbanos para conseguir um tra-
balho, se liberam das normas tradicionais, religiosas e civis, de controle
social, e, ao mesmo tempo, adquirem, graças ao salário, justamente uma
autonomia financeira. É o que irá conduzi-los a desejar não mais casar à
força, mas a se casar por escolha e, portanto, por amor. É o nascimento do
casamento por amor.
Podemos afirmar que o casamento por amor originou a revolução
da vida privada? - Eu expliquei de forma bem resumida, mas as motivações
históricas estão bem embasadas. É possível afirmar que o casamento por amor
é a regra de quase todas as uniões hoje em dia, e houve na época intermediária
aquela da família burguesa que unia o casamento racional e o casamento sen-
timental em proporções variadas. Freqüentemente, mais notavelmente entre
pessoas de direito, as famílias não se divorciavam mesmo que houvesse arre-
pendimento. Mas é faltar com a verdade dizer que o divórcio não é mais que o
avesso do casamento por amor: significa que a ligação familiar está fundada no
sentimento e não sobre a economia ou patrimônio.
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4. Uma revolução sem precedentes surgiu da ainda muito pouco conhe-
cida história da família moderna. A política moderna, desde o final do
século XVIII, colocou a esfera pública infinitamente acima da esfera pri-
vada. Mas a forte tendência que pesa sobre nós há algumas décadas, sem
que tenhamos consciência disso, segue uma direção inversa. Hoje, para
a imensa maioria das pessoas, a verdadeira meta da existência, que lhe
dá sentido, sabor e valor, situa-se basicamente na vida privada. E essa
evolução só se torna compreensível quando colocada em perspectiva no
interior de uma história, a da família moderna, em que a família de modo
algum é um tema exclusivo da direita, como tantas vezes se repetiu, mas,
pelo contrário, é a mais bela característica da aventura democrática.
A vida amorosa ou afetiva sob todas as suas formas, os laços que se criam
com os filhos no decorrer da educação, a escolha de uma atividade profis-
sional enriquecedora também no plano pessoal, a relação com a felicidade,
mas também com a doença, o sofrimento e a morte ocupam um lugar infi-
nitamente mais eminente que a consideração de utopias políticas.
“Eu aconselho a todos que se reconciliem com
os pais antes da morte, porque depois, a meu
ver, será muito tarde
Qual é a grande discussão filosófica hoje em dia? - Há muitas,
como você pôde notar ao perguntar, mas a que me interessa mais, em
todo o caso, são as evoluções do sagrado, porque é a partir daí que se
decide a questão do sentido da vida que é, de resto, a questão cen-
tral da filosofia. O que efetivamente é o sagrado? Etimologicamente, é
aquilo pelo que se pode sacrificar, é o que nos parece tão importante
que poderíamos dar nossa vida por ele.
Historicamente, os humanos sacrificam-se por Deus, pela Pátria, pela
revolução. Hoje em dia, pelo menos na Europa, não há mais pessoas dis-
postas a morrer por essas entidades abstratas. Em resposta, seu efeito sobre
a história da família moderna, o sagrado está, por assim dizer, encarnado
na humanidade. Os entes por quem nos arriscaríamos seriamente a per-
der nossas vidas são os seres humanos, nossos filhos, por exemplo. É esta
novidade que desenvolvo em meu livro, que estamos bem apesar dos pro-
blemas. Por exemplo, o fato de que a dor de um ente amado nos traz o pior
sofrimento é também a mesma estrutura presente nas grandes religiões.
Como a filosofia pode ajudar as pessoas no século XXI? Ela
pode ser uma ferramenta pela qual as pessoas podem superar
seus medos na busca por equilíbrio e serenidade? Pode nos
ajudar a construir um novo humanismo baseado no amor a
nossos semelhantes? - Eu não diria que o humanismo está baseado no
amor ao próximo. Eu direi, entretanto, que o amor constitui o problema
fundamental do humanismo. No cristianismo, Jesus promete-nos que
seremos recebidos após a morte por aqueles que amamos em vida. É o
sentido do famoso episódio da morte de Lázaro, o amigo de Cristo.
Quando Lázaro morre, Cristo chora, mas é dito, portanto, que
o amor é mais forte que a morte e que haverá uma ressurreição de
Lázaro. No fundo, o cristianismo promete-nos que também seremos
trazidos depois da morte pelos nossos amados. No budismo, não há
uma promessa como aquela, mas nos é dito, como no estoicismo, que
não devemos nos prender aos outros. Podemos praticar a compaixão,
a amizade, mas não a união. O compromisso é se preparar para os
piores sofrimentos na hora da inevitável separação.
Nós, humanistas modernos, desejamos tudo: queremos nos ligar aos
nossos filhos, àqueles que amamos e não sofrer no momento da dor. É para
resolver essa equação impossível que fazemos uma busca de vida, uma de
amor, cuja fórmula é a seguinte: como viver com quem amamos posto que
ele ou ela chegará ao fim um dia ou outro? O que isso implica na vida co-
tidiana? Por exemplo, aconselho a todos que se reconciliem com os pais
antes da morte, porque depois, a meu ver, será muito tarde.
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Para a maioria, saber viver significa ser bem-sucedido, milionário,
conquistar bens materiais. Qual impacto desta pressão material na
vida das pessoas? Como a filosofia pode nos ensinar a viver melhor
na sociedade capitalista? A filosofia pode ajudar na reconquista
de valores? - Sejamos honestos! Todos precisamos
bastante de dinheiro para brilhar socialmente, ter re-
conhecimento profissional, respeito... E quase todas as neiras: uma separação, um divórcio, a perda de um emprego, até um simples
pessoas, exceto os religiosos (mas muito deles também) desapontamento é uma pequena morte. Tudo que nos faz sentir a irreversibi-
não resistem a esse desejo. Isto é horrível? Nem tanto. O lidade do tempo assemelha-se ao registro da morte. E as várias angústias situ-
verdadeiro problema é diverso. A verdade é que sabemos am-se no passado ou no porvir. O passado suscita as nostalgias e os remorsos,
que há duas ordens diferentes na realidade. A do amor o futuro, as esperanças e ambos nos impedem de viver o presente. Para amar
não é a mesma do dinheiro. Se você pergunta a um gran- um pouco mais, é preciso habitar mais no presente. Mas para alcançar isso, é
de empresário, um Bill Gates ou qualquer outro que te- necessário vencer o temor, o que será sempre o mote da filosofia.
nha passado sua vida experimentando grandes sucessos
social e profissional, se ele escolheria sua fortuna ou seus Algumas pessoas acreditam que a filosofia está morta ou passando
filhos, estou pronto a dizer que ele escolheria, na mes- por um momento de declínio. não precisamos dela para entender as
ma hora, seus filhos. O que nos remete à questão do mudanças e o fim das ideologias? A filosofia sucumbiu ao fastio da
sagrado, do que lhe dá sentido é a busca, que nos comunicação diária? - Eu imagino que são os psicanalistas que dizem isso,
aperfeiçoa e avança. mas a psicanálise e a filosofia não têm o mesmo papel no jogo. É preciso escla-
recer um ponto: a angústia de que se ocupa a psicanálise é patológica, nasce de
Os seres humanos desenvolveram muitas fo- um conflito interno, que é resolvido, respondido pelo processo de transferência
bias, entre elas o medo metafísico da morte ou no divã. Mas, imaginemos que o conflito chegou ao fim, que a psicanálise tenha
da finitude humana. Montaigne afirma que a dado bons resultados: uma ferida curada, uma perda elaborada, a superação de
filosofia é aprender a morrer. Existe realmente suas fobias, ainda assim restará enfrentar as dificuldades da vida objetiva e real:
uma idéia de que a morte não é o fim da vida? o fato de que você envelhecerá, que pode perder alguém próximo etc. Então aí,
O medo nos prende a nós mesmos? - Todos os onde não se está mais na patologia, mas na realidade que nenhuma psicologia
grandes filósofos gregos disseram que o mote da filo- pode atenuar ou anular, está o real que afronta o psicológico, no qual ele não
sofia é superar os medos, porque eles nos impedem de consegue se estabelecer.
ser livres, de pensar e amar. Há os medos sociais, como A angústia da morte, permanentemente recalcada decai, diluindo-se em uma
a timidez, os obstáculos psicológicos como fobias (do infinidade de “pequenos medos” particulares, muitas vezes ligados às mil e uma
escuro, dos insetos, de altura...), mas o grande temor, o inovações “diabólicas” que a ciência e o mundo moderno nos reservam. Por trás
que comanda todos os outros é o temor da morte. Dife- dessa proliferação de medo esconde-se uma inquietude mais profunda e surda,
rentemente dos outros, a morte de quem amamos nos que engloba todas as demais: a de uma nova forma de impotência pública, agora
inquieta mais do que a nossa própria. O temor também inerente à natureza da globalização e que poria os cidadãos das sociedades mo-
existe porque a morte instala-se na vida de diversas ma- dernas em uma situação de falta de controle sobre o andamento do mundo.
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