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EnTREVIsTA




                     A sagração
                         da intimidade
                             O casamento por amor inicia a revolução da vida privada e abre caminho
                             para o nascimento de um novo humanismo
                             POr GErsOn GEnarO E JacksOn GUEdEs




                                   A revolução da vida privada está em marcha.
                               Ao invés de chorarmos a morte das utopias e nos
                               abatermos com o caos moderno, é possível man-
                               ter o otimismo com a construção de uma socieda-
                               de mais humana, ainda que o cotidiano continue
                               limitado para a maioria das pessoas à tediosa e
                               banal lógica do “ônibus-trabalho-cama”, susten-
                               ta um dos mais polêmicos e inovadores filósofos
                               humanistas da atualidade, o ex-ministro da Edu-
                               cação da França, Luc Ferry, em entrevista exclu-
                               siva à L’uomo BrAsiL, para dissecar seu novo
                               livro, Famílias, amo vocês. seu livro anterior,
                               Aprender a viver, uma filosofia para os novos
                               tempos, foi best-seller em mais de 14 países.
                                                          O século XX agiu como um ácido sobre os valores
                                                       tradicionais, destaca Ferry. A sociedade ocidental
                                                       na era da globalização abandonou progressivamen-
                                                       te a militância política, a vida pública e entidades
                                                       tradicionais, como a idéia de Deus, Nação, Pátria,
                                                       hierarquias e os ideais revolucionários. Os princí-
                                                       pios de igualdade, liberdade e fraternidade foram
                                                       também desconstruídos. O sentido de nossas vidas
                                                       desceu do céu para se encarnar na terra. Houve um
                                                       recolhimento do homem moderno para a esfera
                                                       privada com o triunfo dos valores individualistas
                                                       após abandono da política e a conseqüente entrega
                                                       a um novo e sagrado modo de vida, o culto da inti-
                                                       midade em resposta ao caos moderno.

                                                                                                              31




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E a força que alterou todo o jogo, detecta o filósofo francês,
           é o advento da família constituída com base no casamento por




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           amor. Nas palavras do autor, o amor, que constitui a base da
           família moderna, provocou uma revolução sem precedentes na
           organização político-social da sociedade moderna ao conferir
           à esfera privada um status superior à vida pública, após rever-
           ter os ditames da política remanescente do século XVIII. Já o
           progressivo enclausuramento das pessoas a partir da ruptura
           com a vida pública não significa algo necessariamente ruim,
           argumenta Ferry.
              “Na verdade, representa uma extraordinária oportuni-
           dade de ampliação de nossos horizontes: a coroação de um
           humanismo em plena maturidade, sem falsos idealismos.
           Abre caminho também para que os partidos políticos pro-
           curem representar os valores da intimidade com projetos e
           programas a serviço dos indivíduos, mantido o direito de
           cada um levar sua vida como bem entender”, destaca em
           seu novo livro.
              O novo humanismo precisa ainda romper com a servidão
           ao consumismo viciante do shopping center, “um templo er-
           guido à besteira e à obscenidade do dinheiro. Não é necessá-
           rio consumir o tempo todo para ser feliz e dar um sentido à
           vida. A pessoa não irá se realizar fazendo compras, mas sim
           no cumprimento de certos deveres com relação a si mesmo e
           aos outros”, aponta.
              Os medos, angústias, responsabilidades e deveres do ho-
           mem contemporâneo têm lotado muitas estantes nas seções
           de auto-ajuda das livrarias, em publicações que prometem a
           solução para essas aflições com uma psicanálise em cartilha.
           Na contramão dessa tendência, o filósofo francês Luc Ferry
           propõe uma nova abordagem desses temas.                                                 O tema do seu novo livro é a família moderna.
              Ao deixar de lado o tratamento patológico característico da psicanálise, Ferry       Qual a principal reflexão apresentada nesse
           acredita que a filosofia pode ser empregada para o bem do homem do século               novo trabalho? - Procurei traçar uma história da fa-
           XXI, para quem temas como sucesso profissional, consumismo, medo da velhice             mília moderna a partir do nascimento do casamento
           e conflitos religiosos não se resolvem no divã.                                         por amor. Além disso, o livro faz uma reflexão sobre as
              Um dos principais defensores do Humanismo Secular, o filósofo, nascido em            evoluções do sagrado ou do que consideramos como tal
           Paris em 1951, nesta conversa com L’UOMO BRASIL fez um apanhado dos prin-               nas sociedades laicas. Para simplificar, pode-se dizer que
           cipais temas abordados em sua carreira, como a religião de O homem Deus, a              houve, depois do Antigo Regime, três ordens de família.
           busca pelo sucesso profissional de O que é uma vida bem-sucedida e a grande                Na Idade Média, como os historiadores da vida co-
           discussão iniciada em Aprender a viver: como a filosofia pode ajudar o ser hu-          tidiana nos têm contado, jamais se casava por amor. O
           mano a viver no século XXI?                                                             motivo do casamento era levar adiante a transmissão dos
                                                                                                   sobrenomes, do patrimônio e de ordem econômica: ele se
                                                                                                   encarrega de “fazer filhos” para alimentar a exploração
                                                                              agrícola. De resto, ou não se casava ou se casava à força, por imposição da
                                                                              família ou da comunidade. Isto é indiscutível!
                                                                                 O nascimento dos assalariados no capitalismo vai abalar essa situação
                                                                              porque conduzirá à emancipação dos indivíduos da base das comunidades
                                                                              tradicionais, o que se dá por uma razão simples: a jornada de trabalho que
                                                                              nasce com o capitalismo implica que os indivíduos passem a trabalhar
                                                                              nas cidades. Eles se dirigem aos centros urbanos para conseguir um tra-
                                                                              balho, se liberam das normas tradicionais, religiosas e civis, de controle
                                                                              social, e, ao mesmo tempo, adquirem, graças ao salário, justamente uma
                                                                              autonomia financeira. É o que irá conduzi-los a desejar não mais casar à
                                                                              força, mas a se casar por escolha e, portanto, por amor. É o nascimento do
                                                                              casamento por amor.

                                                                              Podemos afirmar que o casamento por amor originou a revolução
                                                                              da vida privada? - Eu expliquei de forma bem resumida, mas as motivações
                                                                              históricas estão bem embasadas. É possível afirmar que o casamento por amor
                                                                              é a regra de quase todas as uniões hoje em dia, e houve na época intermediária
                                                                              aquela da família burguesa que unia o casamento racional e o casamento sen-
                                                                              timental em proporções variadas. Freqüentemente, mais notavelmente entre
                                                                              pessoas de direito, as famílias não se divorciavam mesmo que houvesse arre-
                                                                              pendimento. Mas é faltar com a verdade dizer que o divórcio não é mais que o
                                                                              avesso do casamento por amor: significa que a ligação familiar está fundada no
                                                                              sentimento e não sobre a economia ou patrimônio.

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Uma revolução sem precedentes surgiu da ainda muito pouco conhe-
                     cida história da família moderna. A política moderna, desde o final do
                     século XVIII, colocou a esfera pública infinitamente acima da esfera pri-
                     vada. Mas a forte tendência que pesa sobre nós há algumas décadas, sem
                     que tenhamos consciência disso, segue uma direção inversa. Hoje, para
                     a imensa maioria das pessoas, a verdadeira meta da existência, que lhe
                     dá sentido, sabor e valor, situa-se basicamente na vida privada. E essa
                     evolução só se torna compreensível quando colocada em perspectiva no
                     interior de uma história, a da família moderna, em que a família de modo
                     algum é um tema exclusivo da direita, como tantas vezes se repetiu, mas,
                     pelo contrário, é a mais bela característica da aventura democrática.
                        A vida amorosa ou afetiva sob todas as suas formas, os laços que se criam
                     com os filhos no decorrer da educação, a escolha de uma atividade profis-
                     sional enriquecedora também no plano pessoal, a relação com a felicidade,
                     mas também com a doença, o sofrimento e a morte ocupam um lugar infi-
                     nitamente mais eminente que a consideração de utopias políticas.



                     “Eu aconselho a todos que se reconciliem com
                     os pais antes da morte, porque depois, a meu
                     ver, será muito tarde
                     Qual é a grande discussão filosófica hoje em dia? - Há muitas,
                     como você pôde notar ao perguntar, mas a que me interessa mais, em
                     todo o caso, são as evoluções do sagrado, porque é a partir daí que se
                     decide a questão do sentido da vida que é, de resto, a questão cen-
                     tral da filosofia. O que efetivamente é o sagrado? Etimologicamente, é
                     aquilo pelo que se pode sacrificar, é o que nos parece tão importante
                     que poderíamos dar nossa vida por ele.
                        Historicamente, os humanos sacrificam-se por Deus, pela Pátria, pela
                     revolução. Hoje em dia, pelo menos na Europa, não há mais pessoas dis-
                     postas a morrer por essas entidades abstratas. Em resposta, seu efeito sobre
                     a história da família moderna, o sagrado está, por assim dizer, encarnado
                     na humanidade. Os entes por quem nos arriscaríamos seriamente a per-
                     der nossas vidas são os seres humanos, nossos filhos, por exemplo. É esta
                     novidade que desenvolvo em meu livro, que estamos bem apesar dos pro-
                     blemas. Por exemplo, o fato de que a dor de um ente amado nos traz o pior
                     sofrimento é também a mesma estrutura presente nas grandes religiões.

                     Como a filosofia pode ajudar as pessoas no século XXI? Ela
                     pode ser uma ferramenta pela qual as pessoas podem superar
                     seus medos na busca por equilíbrio e serenidade? Pode nos
                     ajudar a construir um novo humanismo baseado no amor a
                     nossos semelhantes? - Eu não diria que o humanismo está baseado no
                     amor ao próximo. Eu direi, entretanto, que o amor constitui o problema
                     fundamental do humanismo. No cristianismo, Jesus promete-nos que
                     seremos recebidos após a morte por aqueles que amamos em vida. É o
                     sentido do famoso episódio da morte de Lázaro, o amigo de Cristo.
                         Quando Lázaro morre, Cristo chora, mas é dito, portanto, que
                     o amor é mais forte que a morte e que haverá uma ressurreição de
                     Lázaro. No fundo, o cristianismo promete-nos que também seremos
                     trazidos depois da morte pelos nossos amados. No budismo, não há
                     uma promessa como aquela, mas nos é dito, como no estoicismo, que
                     não devemos nos prender aos outros. Podemos praticar a compaixão,
                     a amizade, mas não a união. O compromisso é se preparar para os
                     piores sofrimentos na hora da inevitável separação.
                         Nós, humanistas modernos, desejamos tudo: queremos nos ligar aos
                     nossos filhos, àqueles que amamos e não sofrer no momento da dor. É para
                     resolver essa equação impossível que fazemos uma busca de vida, uma de
                     amor, cuja fórmula é a seguinte: como viver com quem amamos posto que
                     ele ou ela chegará ao fim um dia ou outro? O que isso implica na vida co-
                     tidiana? Por exemplo, aconselho a todos que se reconciliem com os pais
                     antes da morte, porque depois, a meu ver, será muito tarde.

                                                                                                          33




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foto DIVuLGAÇÃo
           Para a maioria, saber viver significa ser bem-sucedido, milionário,
           conquistar bens materiais. Qual impacto desta pressão material na
           vida das pessoas? Como a filosofia pode nos ensinar a viver melhor
           na sociedade capitalista? A filosofia pode ajudar na reconquista
           de valores? - Sejamos honestos! Todos precisamos
           bastante de dinheiro para brilhar socialmente, ter re-
           conhecimento profissional, respeito... E quase todas as      neiras: uma separação, um divórcio, a perda de um emprego, até um simples
           pessoas, exceto os religiosos (mas muito deles também)       desapontamento é uma pequena morte. Tudo que nos faz sentir a irreversibi-
           não resistem a esse desejo. Isto é horrível? Nem tanto. O    lidade do tempo assemelha-se ao registro da morte. E as várias angústias situ-
           verdadeiro problema é diverso. A verdade é que sabemos       am-se no passado ou no porvir. O passado suscita as nostalgias e os remorsos,
           que há duas ordens diferentes na realidade. A do amor        o futuro, as esperanças e ambos nos impedem de viver o presente. Para amar
           não é a mesma do dinheiro. Se você pergunta a um gran-       um pouco mais, é preciso habitar mais no presente. Mas para alcançar isso, é
           de empresário, um Bill Gates ou qualquer outro que te-       necessário vencer o temor, o que será sempre o mote da filosofia.
           nha passado sua vida experimentando grandes sucessos
           social e profissional, se ele escolheria sua fortuna ou seus Algumas pessoas acreditam que a filosofia está morta ou passando
           filhos, estou pronto a dizer que ele escolheria, na mes-     por um momento de declínio. não precisamos dela para entender as
           ma hora, seus filhos. O que nos remete à questão do          mudanças e o fim das ideologias? A filosofia sucumbiu ao fastio da
           sagrado, do que lhe dá sentido é a busca, que nos            comunicação diária? - Eu imagino que são os psicanalistas que dizem isso,
           aperfeiçoa e avança.                                         mas a psicanálise e a filosofia não têm o mesmo papel no jogo. É preciso escla-
                                                                        recer um ponto: a angústia de que se ocupa a psicanálise é patológica, nasce de
           Os seres humanos desenvolveram muitas fo-                    um conflito interno, que é resolvido, respondido pelo processo de transferência
           bias, entre elas o medo metafísico da morte ou               no divã. Mas, imaginemos que o conflito chegou ao fim, que a psicanálise tenha
           da finitude humana. Montaigne afirma que a                   dado bons resultados: uma ferida curada, uma perda elaborada, a superação de
           filosofia é aprender a morrer. Existe realmente              suas fobias, ainda assim restará enfrentar as dificuldades da vida objetiva e real:
           uma idéia de que a morte não é o fim da vida?                o fato de que você envelhecerá, que pode perder alguém próximo etc. Então aí,
           O medo nos prende a nós mesmos? - Todos os                   onde não se está mais na patologia, mas na realidade que nenhuma psicologia
           grandes filósofos gregos disseram que o mote da filo-        pode atenuar ou anular, está o real que afronta o psicológico, no qual ele não
           sofia é superar os medos, porque eles nos impedem de         consegue se estabelecer.
           ser livres, de pensar e amar. Há os medos sociais, como          A angústia da morte, permanentemente recalcada decai, diluindo-se em uma
           a timidez, os obstáculos psicológicos como fobias (do        infinidade de “pequenos medos” particulares, muitas vezes ligados às mil e uma
           escuro, dos insetos, de altura...), mas o grande temor, o    inovações “diabólicas” que a ciência e o mundo moderno nos reservam. Por trás
           que comanda todos os outros é o temor da morte. Dife-        dessa proliferação de medo esconde-se uma inquietude mais profunda e surda,
           rentemente dos outros, a morte de quem amamos nos            que engloba todas as demais: a de uma nova forma de impotência pública, agora
           inquieta mais do que a nossa própria. O temor também         inerente à natureza da globalização e que poria os cidadãos das sociedades mo-
           existe porque a morte instala-se na vida de diversas ma-     dernas em uma situação de falta de controle sobre o andamento do mundo.

      34




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A sagração da intimidade

  • 1. foto DIVuLGAÇÃo 30 L'10_miolo.indd 30 2/7/2008 23:22:34
  • 2. EnTREVIsTA A sagração da intimidade O casamento por amor inicia a revolução da vida privada e abre caminho para o nascimento de um novo humanismo POr GErsOn GEnarO E JacksOn GUEdEs A revolução da vida privada está em marcha. Ao invés de chorarmos a morte das utopias e nos abatermos com o caos moderno, é possível man- ter o otimismo com a construção de uma socieda- de mais humana, ainda que o cotidiano continue limitado para a maioria das pessoas à tediosa e banal lógica do “ônibus-trabalho-cama”, susten- ta um dos mais polêmicos e inovadores filósofos humanistas da atualidade, o ex-ministro da Edu- cação da França, Luc Ferry, em entrevista exclu- siva à L’uomo BrAsiL, para dissecar seu novo livro, Famílias, amo vocês. seu livro anterior, Aprender a viver, uma filosofia para os novos tempos, foi best-seller em mais de 14 países. O século XX agiu como um ácido sobre os valores tradicionais, destaca Ferry. A sociedade ocidental na era da globalização abandonou progressivamen- te a militância política, a vida pública e entidades tradicionais, como a idéia de Deus, Nação, Pátria, hierarquias e os ideais revolucionários. Os princí- pios de igualdade, liberdade e fraternidade foram também desconstruídos. O sentido de nossas vidas desceu do céu para se encarnar na terra. Houve um recolhimento do homem moderno para a esfera privada com o triunfo dos valores individualistas após abandono da política e a conseqüente entrega a um novo e sagrado modo de vida, o culto da inti- midade em resposta ao caos moderno. 31 L'10_miolo.indd 31 2/7/2008 23:22:36
  • 3. E a força que alterou todo o jogo, detecta o filósofo francês, é o advento da família constituída com base no casamento por foto DIVuLGAÇÃo amor. Nas palavras do autor, o amor, que constitui a base da família moderna, provocou uma revolução sem precedentes na organização político-social da sociedade moderna ao conferir à esfera privada um status superior à vida pública, após rever- ter os ditames da política remanescente do século XVIII. Já o progressivo enclausuramento das pessoas a partir da ruptura com a vida pública não significa algo necessariamente ruim, argumenta Ferry. “Na verdade, representa uma extraordinária oportuni- dade de ampliação de nossos horizontes: a coroação de um humanismo em plena maturidade, sem falsos idealismos. Abre caminho também para que os partidos políticos pro- curem representar os valores da intimidade com projetos e programas a serviço dos indivíduos, mantido o direito de cada um levar sua vida como bem entender”, destaca em seu novo livro. O novo humanismo precisa ainda romper com a servidão ao consumismo viciante do shopping center, “um templo er- guido à besteira e à obscenidade do dinheiro. Não é necessá- rio consumir o tempo todo para ser feliz e dar um sentido à vida. A pessoa não irá se realizar fazendo compras, mas sim no cumprimento de certos deveres com relação a si mesmo e aos outros”, aponta. Os medos, angústias, responsabilidades e deveres do ho- mem contemporâneo têm lotado muitas estantes nas seções de auto-ajuda das livrarias, em publicações que prometem a solução para essas aflições com uma psicanálise em cartilha. Na contramão dessa tendência, o filósofo francês Luc Ferry propõe uma nova abordagem desses temas. O tema do seu novo livro é a família moderna. Ao deixar de lado o tratamento patológico característico da psicanálise, Ferry Qual a principal reflexão apresentada nesse acredita que a filosofia pode ser empregada para o bem do homem do século novo trabalho? - Procurei traçar uma história da fa- XXI, para quem temas como sucesso profissional, consumismo, medo da velhice mília moderna a partir do nascimento do casamento e conflitos religiosos não se resolvem no divã. por amor. Além disso, o livro faz uma reflexão sobre as Um dos principais defensores do Humanismo Secular, o filósofo, nascido em evoluções do sagrado ou do que consideramos como tal Paris em 1951, nesta conversa com L’UOMO BRASIL fez um apanhado dos prin- nas sociedades laicas. Para simplificar, pode-se dizer que cipais temas abordados em sua carreira, como a religião de O homem Deus, a houve, depois do Antigo Regime, três ordens de família. busca pelo sucesso profissional de O que é uma vida bem-sucedida e a grande Na Idade Média, como os historiadores da vida co- discussão iniciada em Aprender a viver: como a filosofia pode ajudar o ser hu- tidiana nos têm contado, jamais se casava por amor. O mano a viver no século XXI? motivo do casamento era levar adiante a transmissão dos sobrenomes, do patrimônio e de ordem econômica: ele se encarrega de “fazer filhos” para alimentar a exploração agrícola. De resto, ou não se casava ou se casava à força, por imposição da família ou da comunidade. Isto é indiscutível! O nascimento dos assalariados no capitalismo vai abalar essa situação porque conduzirá à emancipação dos indivíduos da base das comunidades tradicionais, o que se dá por uma razão simples: a jornada de trabalho que nasce com o capitalismo implica que os indivíduos passem a trabalhar nas cidades. Eles se dirigem aos centros urbanos para conseguir um tra- balho, se liberam das normas tradicionais, religiosas e civis, de controle social, e, ao mesmo tempo, adquirem, graças ao salário, justamente uma autonomia financeira. É o que irá conduzi-los a desejar não mais casar à força, mas a se casar por escolha e, portanto, por amor. É o nascimento do casamento por amor. Podemos afirmar que o casamento por amor originou a revolução da vida privada? - Eu expliquei de forma bem resumida, mas as motivações históricas estão bem embasadas. É possível afirmar que o casamento por amor é a regra de quase todas as uniões hoje em dia, e houve na época intermediária aquela da família burguesa que unia o casamento racional e o casamento sen- timental em proporções variadas. Freqüentemente, mais notavelmente entre pessoas de direito, as famílias não se divorciavam mesmo que houvesse arre- pendimento. Mas é faltar com a verdade dizer que o divórcio não é mais que o avesso do casamento por amor: significa que a ligação familiar está fundada no sentimento e não sobre a economia ou patrimônio. 32 L'10_miolo.indd 32 2/7/2008 23:22:36
  • 4. Uma revolução sem precedentes surgiu da ainda muito pouco conhe- cida história da família moderna. A política moderna, desde o final do século XVIII, colocou a esfera pública infinitamente acima da esfera pri- vada. Mas a forte tendência que pesa sobre nós há algumas décadas, sem que tenhamos consciência disso, segue uma direção inversa. Hoje, para a imensa maioria das pessoas, a verdadeira meta da existência, que lhe dá sentido, sabor e valor, situa-se basicamente na vida privada. E essa evolução só se torna compreensível quando colocada em perspectiva no interior de uma história, a da família moderna, em que a família de modo algum é um tema exclusivo da direita, como tantas vezes se repetiu, mas, pelo contrário, é a mais bela característica da aventura democrática. A vida amorosa ou afetiva sob todas as suas formas, os laços que se criam com os filhos no decorrer da educação, a escolha de uma atividade profis- sional enriquecedora também no plano pessoal, a relação com a felicidade, mas também com a doença, o sofrimento e a morte ocupam um lugar infi- nitamente mais eminente que a consideração de utopias políticas. “Eu aconselho a todos que se reconciliem com os pais antes da morte, porque depois, a meu ver, será muito tarde Qual é a grande discussão filosófica hoje em dia? - Há muitas, como você pôde notar ao perguntar, mas a que me interessa mais, em todo o caso, são as evoluções do sagrado, porque é a partir daí que se decide a questão do sentido da vida que é, de resto, a questão cen- tral da filosofia. O que efetivamente é o sagrado? Etimologicamente, é aquilo pelo que se pode sacrificar, é o que nos parece tão importante que poderíamos dar nossa vida por ele. Historicamente, os humanos sacrificam-se por Deus, pela Pátria, pela revolução. Hoje em dia, pelo menos na Europa, não há mais pessoas dis- postas a morrer por essas entidades abstratas. Em resposta, seu efeito sobre a história da família moderna, o sagrado está, por assim dizer, encarnado na humanidade. Os entes por quem nos arriscaríamos seriamente a per- der nossas vidas são os seres humanos, nossos filhos, por exemplo. É esta novidade que desenvolvo em meu livro, que estamos bem apesar dos pro- blemas. Por exemplo, o fato de que a dor de um ente amado nos traz o pior sofrimento é também a mesma estrutura presente nas grandes religiões. Como a filosofia pode ajudar as pessoas no século XXI? Ela pode ser uma ferramenta pela qual as pessoas podem superar seus medos na busca por equilíbrio e serenidade? Pode nos ajudar a construir um novo humanismo baseado no amor a nossos semelhantes? - Eu não diria que o humanismo está baseado no amor ao próximo. Eu direi, entretanto, que o amor constitui o problema fundamental do humanismo. No cristianismo, Jesus promete-nos que seremos recebidos após a morte por aqueles que amamos em vida. É o sentido do famoso episódio da morte de Lázaro, o amigo de Cristo. Quando Lázaro morre, Cristo chora, mas é dito, portanto, que o amor é mais forte que a morte e que haverá uma ressurreição de Lázaro. No fundo, o cristianismo promete-nos que também seremos trazidos depois da morte pelos nossos amados. No budismo, não há uma promessa como aquela, mas nos é dito, como no estoicismo, que não devemos nos prender aos outros. Podemos praticar a compaixão, a amizade, mas não a união. O compromisso é se preparar para os piores sofrimentos na hora da inevitável separação. Nós, humanistas modernos, desejamos tudo: queremos nos ligar aos nossos filhos, àqueles que amamos e não sofrer no momento da dor. É para resolver essa equação impossível que fazemos uma busca de vida, uma de amor, cuja fórmula é a seguinte: como viver com quem amamos posto que ele ou ela chegará ao fim um dia ou outro? O que isso implica na vida co- tidiana? Por exemplo, aconselho a todos que se reconciliem com os pais antes da morte, porque depois, a meu ver, será muito tarde. 33 L'10_miolo.indd 33 2/7/2008 23:22:37
  • 5. foto DIVuLGAÇÃo Para a maioria, saber viver significa ser bem-sucedido, milionário, conquistar bens materiais. Qual impacto desta pressão material na vida das pessoas? Como a filosofia pode nos ensinar a viver melhor na sociedade capitalista? A filosofia pode ajudar na reconquista de valores? - Sejamos honestos! Todos precisamos bastante de dinheiro para brilhar socialmente, ter re- conhecimento profissional, respeito... E quase todas as neiras: uma separação, um divórcio, a perda de um emprego, até um simples pessoas, exceto os religiosos (mas muito deles também) desapontamento é uma pequena morte. Tudo que nos faz sentir a irreversibi- não resistem a esse desejo. Isto é horrível? Nem tanto. O lidade do tempo assemelha-se ao registro da morte. E as várias angústias situ- verdadeiro problema é diverso. A verdade é que sabemos am-se no passado ou no porvir. O passado suscita as nostalgias e os remorsos, que há duas ordens diferentes na realidade. A do amor o futuro, as esperanças e ambos nos impedem de viver o presente. Para amar não é a mesma do dinheiro. Se você pergunta a um gran- um pouco mais, é preciso habitar mais no presente. Mas para alcançar isso, é de empresário, um Bill Gates ou qualquer outro que te- necessário vencer o temor, o que será sempre o mote da filosofia. nha passado sua vida experimentando grandes sucessos social e profissional, se ele escolheria sua fortuna ou seus Algumas pessoas acreditam que a filosofia está morta ou passando filhos, estou pronto a dizer que ele escolheria, na mes- por um momento de declínio. não precisamos dela para entender as ma hora, seus filhos. O que nos remete à questão do mudanças e o fim das ideologias? A filosofia sucumbiu ao fastio da sagrado, do que lhe dá sentido é a busca, que nos comunicação diária? - Eu imagino que são os psicanalistas que dizem isso, aperfeiçoa e avança. mas a psicanálise e a filosofia não têm o mesmo papel no jogo. É preciso escla- recer um ponto: a angústia de que se ocupa a psicanálise é patológica, nasce de Os seres humanos desenvolveram muitas fo- um conflito interno, que é resolvido, respondido pelo processo de transferência bias, entre elas o medo metafísico da morte ou no divã. Mas, imaginemos que o conflito chegou ao fim, que a psicanálise tenha da finitude humana. Montaigne afirma que a dado bons resultados: uma ferida curada, uma perda elaborada, a superação de filosofia é aprender a morrer. Existe realmente suas fobias, ainda assim restará enfrentar as dificuldades da vida objetiva e real: uma idéia de que a morte não é o fim da vida? o fato de que você envelhecerá, que pode perder alguém próximo etc. Então aí, O medo nos prende a nós mesmos? - Todos os onde não se está mais na patologia, mas na realidade que nenhuma psicologia grandes filósofos gregos disseram que o mote da filo- pode atenuar ou anular, está o real que afronta o psicológico, no qual ele não sofia é superar os medos, porque eles nos impedem de consegue se estabelecer. ser livres, de pensar e amar. Há os medos sociais, como A angústia da morte, permanentemente recalcada decai, diluindo-se em uma a timidez, os obstáculos psicológicos como fobias (do infinidade de “pequenos medos” particulares, muitas vezes ligados às mil e uma escuro, dos insetos, de altura...), mas o grande temor, o inovações “diabólicas” que a ciência e o mundo moderno nos reservam. Por trás que comanda todos os outros é o temor da morte. Dife- dessa proliferação de medo esconde-se uma inquietude mais profunda e surda, rentemente dos outros, a morte de quem amamos nos que engloba todas as demais: a de uma nova forma de impotência pública, agora inquieta mais do que a nossa própria. O temor também inerente à natureza da globalização e que poria os cidadãos das sociedades mo- existe porque a morte instala-se na vida de diversas ma- dernas em uma situação de falta de controle sobre o andamento do mundo. 34 L'10_miolo.indd 34 2/7/2008 23:22:39