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Sumário

O Timoneiro .......................................... 2
O pião .................................................. 3
A partida .............................................. 4
O Brasão da Cidade................................ 5
Uma mensagem imperial ........................ 7
Cinco minicontos de Kafka

                      O Timoneiro

      “Não sou o timoneiro?” – exclamei. “Você?” – disse
um homem alto e escuro e esfregou as mãos nos olhos
como se espantasse um sonho. Eu estive ao leme na noi-
te escura, a lanterna ardendo fraca sobre minha cabeça
e agora vinha esse homem e queria me pôr de lado. E já
que eu não me afastava, ele calcou o pé no meu peito e
me empurrou para baixo devagar enquanto eu continuava
agarrado aos raios do leme e na queda o tirava comple-
tamente do lugar. Mas o homem o pegou, colocou-o em
ordem e me empurrou dali com um tranco. Eu porém me
recompus logo, corri até a escotilha que dava para o alo-
jamento da tripulação e gritei: “Tripulantes! Camaradas!
Venham logo! Um estranho me expulsou do leme!” Eles
vieram lentamente, subindo pela escada do navio, figu-
ras possantes que cambaleavam de cansaço. “Não sou o
timoneiro?” – perguntei. Eles assentiram com a cabeça,
mas seus olhares só se dirigiam ao estranho; ficaram em
semicírculo ao redor dele e, quando ele disse em voz de
comando: “Não me atrapalhem”, eles se juntaram, ace-
naram para mim com a cabeça e voltaram a descer pela
escada do navio. Que tipo de gente é essa? será que re-
almente pensam ou só se arrastam sem saber para onde
sobre a terra?




Página 2
Cinco minicontos de Kafka

                        O pião

       Um filósofo costumava circular onde brincavam
crianças. E se via um menino que tinha um pião já fica-
va à espreita. Mal o pião começava a rodar, o filósofo o
perseguia com a intenção de agarrá-lo. Não o preocupa-
va que as crianças fizessem o maior barulho e tentas-
sem impedi-lo de entrar na brincadeira; se ele pegava o
pião enquanto este ainda girava, ficava feliz, mas só por
um instante, depois atirava-o ao chão e ia embora. Na
verdade, acreditava que o conhecimento de qualquer in-
significância, por exemplo, o de um pião que girava, era
suficiente ao conhecimento do geral. Por isso não se ocu-
pava dos grandes problemas – era algo que lhe parecia
antieconômico. Se a menor de todas as ninharias fosse
realmente conhecida, então tudo estava conhecido; sendo
assim só se ocupava do pião rodando. E sempre que se
realizavam preparativos para fazer o pião girar, ele tinha
esperança de que agora ia conseguir; e se o pião girava,
a esperança se transformava em certeza enquanto corria
até perder o fôlego atrás dele. Mas quando depois retinha
na mão o estúpido pedaço de madeira, ele se sentia mal
e a gritaria das crianças – que ele até então não havia
escutado e agora de repente penetrava nos seus ouvidos
– afugentava-o dali e ele cambaleava como um pião lan-
çado com um golpe sem jeito da fieira.




                                                   Página 3
Cinco minicontos de Kafka

                            A partida

       Ordenei que tirassem meu cavalo da estrebaria. O
criado não me entendeu. Fui pessoalmente à estrebaria,
selei o cavalo e montei-o. Ouvi soar à distância uma trom-
pa, perguntei-lhe o que aquilo significava. Ele não sabia
de nada e não havia escutado nada. Perto do portão ele
me deteve e perguntou:
       – Para onde cavalga senhor?
       – Não sei direito – eu disse.
       – só sei que é para fora daqui, fora daqui. Fora da-
qui sem parar; só assim posso alcançar meu objetivo.
       – Conhece então o seu objetivo? – perguntou ele.
       – Sim
       – respondi – Eu já disse: “fora-daqui”, é esse o meu
objetivo.
       – O senhor não leva provisões – disse ele.
       – Não preciso de nenhuma – disse eu.
       – A viagem é tão longa que tenho de morrer de fome
se não receber nada no caminho. Nenhuma provisão pode
me salvar. Por sorte esta viagem é realmente imensa.




Página 4
Cinco minicontos de Kafka

              O Brasão da Cidade

       No início tudo estava numa ordem razoável na cons-
trução da Torre de Babel; talvez a ordem fosse até ex-
cessiva, pensava-se demais em sinalizações, intérpretes,
alojamentos de trabalhadores e vias de comunicação,
como se à frente houvesse séculos de livres possibilida-
des de trabalho. A opinião reinante na época chegava ao
ponto de que não se podia trabalhar com lentidão sufi-
ciente, ela não precisava ser muito enfatizada para que
se recuasse assustado ante o pensamento de assentar os
alicerces. Argumentava-se da seguinte maneira: o essen-
cial do empreendimento todo é a idéia de construir uma
torre que alcance o céu. Ao lado dela tudo o mais é se-
cundário. Uma vez apreendida na sua grandeza essa idéia
não pode mais desaparecer; enquanto existirem homens,
existirá também o forte desejo de construir a torre até o
fim. Mas nesse sentido não é preciso se preocupar com
o futuro; pelo contrário, o conhecimento da humanida-
de aumenta, a arquitetura fez e continuará fazendo mais
progressos, um trabalho para o qual necessitamos de um
ano será dentro de cem anos realizado, talvez em meio e
além disso melhor, com mais consistência. Por que então
esforçar-se ainda hoje até o limite das energias? Isso só
teria sentido se fosse possível construir a torre no espaço
de uma geração. Mas não se pode de modo algum espe-
rar por isso. Era preferível pensar que a geração seguinte,
com o seu saber aperfeiçoado, achará mau o trabalho da
geração precedente e arrasará o que foi construído, para
começar de novo. Esses pensamentos tolhiam as energias
e, mais do que com a construção da torre, as pessoas se
preocupavam com a construção da cidade dos trabalha-
dores. Cada nacionalidade queria ter o alojamento mais
bonito, resultaram daí disputas que evoluíram até lutas
sangrentas. Essas lutas não cessaram mais, para os lí-

                                                    Página 5
Cinco minicontos de Kafka

deres elas foram um novo argumento no sentido de que,
por falta da concentração necessária, a torre deveria ser
construída muito devagar ou de preferência só depois do
armistício geral. As pessoas porém não ocupavam o tem-
po apenas com batalhas, nos intervalos embelezava-se a
cidade, o que entretanto provocava nova inveja e novas
lutas. Assim passou o tempo da primeira geração, mas
nenhuma das seguintes foi diferente, sem interrupção só
se intensificava a destreza e com ela a belicosidade. A
isso se acrescentou que já a segunda ou terceira geração
reconheceu o sem-sentido da construção da torre do céu,
mas já estavam todos muito ligados entre si para aban-
donarem a cidade. Tudo o que nela surgiu de lendas e
canções está repleto de nostalgia elo dia profetizado em
que a cidade será destroçada por um punho gigantesco
com cinco golpes em rápida sucessão. Por isso a cidade
também tem um punho no seu brasão.




Página 6
Cinco minicontos de Kafka

          Uma mensagem imperial

       O imperador – assim dizem – enviou a ti, súdito
solitário e lastimável, sombra ínfima ante o sol imperial,
refugiada na mais remota distância, justamente a ti o im-
perador enviou, do leito de morte, uma mensagem. Fez
ajoelhar-se o mensageiro ao pé da cama e sussurrou-lhe
a mensagem no ouvido; tão importante lhe parecia, que
mandou repeti-la em seu próprio ouvido. Assentindo com
a cabeça, confirmou a exatidão das palavras. E, diante
da turba reunida para assistir à sua morte – haviam der-
rubado todas as paredes impeditivas, e na escadaria em
curva ampla e elevada, dispostos em círculo, estavam os
grandes do império –, diante de todos, despachou o men-
sageiro.
       De pronto, este se pôs em marcha, homem vigoro-
so, incansável. Estendendo ora um braço, ora outro, abre
passagem em meio à multidão; quando encontra obstá-
culo, aponta no peito a insígnia do sol; avança facilmen-
te, como ninguém. Mas a multidão é enorme; suas mo-
radas não têm fim. Fosse livre o terreno, como voaria,
breve ouvirias na porta o golpe magnífico de seu punho.
Mas, ao contrário, esforça-se inutilmente; comprime-se
nos aposentos do palácio central; jamais conseguirá atra-
vessá-los; e se conseguisse, de nada valeria; precisaria
empenhar-se em descer as escadas; e e as vencesse, de
nada valeria; teria que percorrer os pátios; e depois dos
pátios, o segundo palácio circundante; e novamente esca-
das e pátios; e mais outro palácio; e assim por milênios;
e quando finalmente escapasse pelo último portão – mas
isto nunca, nunca poderia acontecer – chegaria apenas à
capital, o centro do mundo, onde se acumula a prodigiosa
escória. Ninguém consegue passar por aí, muito menos
com a mensagem de um morto. Mas, sentado à janela, tu
a imaginas, enquanto a noite cai.

                                                   Página 7

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  • 1. Sumário O Timoneiro .......................................... 2 O pião .................................................. 3 A partida .............................................. 4 O Brasão da Cidade................................ 5 Uma mensagem imperial ........................ 7
  • 2. Cinco minicontos de Kafka O Timoneiro “Não sou o timoneiro?” – exclamei. “Você?” – disse um homem alto e escuro e esfregou as mãos nos olhos como se espantasse um sonho. Eu estive ao leme na noi- te escura, a lanterna ardendo fraca sobre minha cabeça e agora vinha esse homem e queria me pôr de lado. E já que eu não me afastava, ele calcou o pé no meu peito e me empurrou para baixo devagar enquanto eu continuava agarrado aos raios do leme e na queda o tirava comple- tamente do lugar. Mas o homem o pegou, colocou-o em ordem e me empurrou dali com um tranco. Eu porém me recompus logo, corri até a escotilha que dava para o alo- jamento da tripulação e gritei: “Tripulantes! Camaradas! Venham logo! Um estranho me expulsou do leme!” Eles vieram lentamente, subindo pela escada do navio, figu- ras possantes que cambaleavam de cansaço. “Não sou o timoneiro?” – perguntei. Eles assentiram com a cabeça, mas seus olhares só se dirigiam ao estranho; ficaram em semicírculo ao redor dele e, quando ele disse em voz de comando: “Não me atrapalhem”, eles se juntaram, ace- naram para mim com a cabeça e voltaram a descer pela escada do navio. Que tipo de gente é essa? será que re- almente pensam ou só se arrastam sem saber para onde sobre a terra? Página 2
  • 3. Cinco minicontos de Kafka O pião Um filósofo costumava circular onde brincavam crianças. E se via um menino que tinha um pião já fica- va à espreita. Mal o pião começava a rodar, o filósofo o perseguia com a intenção de agarrá-lo. Não o preocupa- va que as crianças fizessem o maior barulho e tentas- sem impedi-lo de entrar na brincadeira; se ele pegava o pião enquanto este ainda girava, ficava feliz, mas só por um instante, depois atirava-o ao chão e ia embora. Na verdade, acreditava que o conhecimento de qualquer in- significância, por exemplo, o de um pião que girava, era suficiente ao conhecimento do geral. Por isso não se ocu- pava dos grandes problemas – era algo que lhe parecia antieconômico. Se a menor de todas as ninharias fosse realmente conhecida, então tudo estava conhecido; sendo assim só se ocupava do pião rodando. E sempre que se realizavam preparativos para fazer o pião girar, ele tinha esperança de que agora ia conseguir; e se o pião girava, a esperança se transformava em certeza enquanto corria até perder o fôlego atrás dele. Mas quando depois retinha na mão o estúpido pedaço de madeira, ele se sentia mal e a gritaria das crianças – que ele até então não havia escutado e agora de repente penetrava nos seus ouvidos – afugentava-o dali e ele cambaleava como um pião lan- çado com um golpe sem jeito da fieira. Página 3
  • 4. Cinco minicontos de Kafka A partida Ordenei que tirassem meu cavalo da estrebaria. O criado não me entendeu. Fui pessoalmente à estrebaria, selei o cavalo e montei-o. Ouvi soar à distância uma trom- pa, perguntei-lhe o que aquilo significava. Ele não sabia de nada e não havia escutado nada. Perto do portão ele me deteve e perguntou: – Para onde cavalga senhor? – Não sei direito – eu disse. – só sei que é para fora daqui, fora daqui. Fora da- qui sem parar; só assim posso alcançar meu objetivo. – Conhece então o seu objetivo? – perguntou ele. – Sim – respondi – Eu já disse: “fora-daqui”, é esse o meu objetivo. – O senhor não leva provisões – disse ele. – Não preciso de nenhuma – disse eu. – A viagem é tão longa que tenho de morrer de fome se não receber nada no caminho. Nenhuma provisão pode me salvar. Por sorte esta viagem é realmente imensa. Página 4
  • 5. Cinco minicontos de Kafka O Brasão da Cidade No início tudo estava numa ordem razoável na cons- trução da Torre de Babel; talvez a ordem fosse até ex- cessiva, pensava-se demais em sinalizações, intérpretes, alojamentos de trabalhadores e vias de comunicação, como se à frente houvesse séculos de livres possibilida- des de trabalho. A opinião reinante na época chegava ao ponto de que não se podia trabalhar com lentidão sufi- ciente, ela não precisava ser muito enfatizada para que se recuasse assustado ante o pensamento de assentar os alicerces. Argumentava-se da seguinte maneira: o essen- cial do empreendimento todo é a idéia de construir uma torre que alcance o céu. Ao lado dela tudo o mais é se- cundário. Uma vez apreendida na sua grandeza essa idéia não pode mais desaparecer; enquanto existirem homens, existirá também o forte desejo de construir a torre até o fim. Mas nesse sentido não é preciso se preocupar com o futuro; pelo contrário, o conhecimento da humanida- de aumenta, a arquitetura fez e continuará fazendo mais progressos, um trabalho para o qual necessitamos de um ano será dentro de cem anos realizado, talvez em meio e além disso melhor, com mais consistência. Por que então esforçar-se ainda hoje até o limite das energias? Isso só teria sentido se fosse possível construir a torre no espaço de uma geração. Mas não se pode de modo algum espe- rar por isso. Era preferível pensar que a geração seguinte, com o seu saber aperfeiçoado, achará mau o trabalho da geração precedente e arrasará o que foi construído, para começar de novo. Esses pensamentos tolhiam as energias e, mais do que com a construção da torre, as pessoas se preocupavam com a construção da cidade dos trabalha- dores. Cada nacionalidade queria ter o alojamento mais bonito, resultaram daí disputas que evoluíram até lutas sangrentas. Essas lutas não cessaram mais, para os lí- Página 5
  • 6. Cinco minicontos de Kafka deres elas foram um novo argumento no sentido de que, por falta da concentração necessária, a torre deveria ser construída muito devagar ou de preferência só depois do armistício geral. As pessoas porém não ocupavam o tem- po apenas com batalhas, nos intervalos embelezava-se a cidade, o que entretanto provocava nova inveja e novas lutas. Assim passou o tempo da primeira geração, mas nenhuma das seguintes foi diferente, sem interrupção só se intensificava a destreza e com ela a belicosidade. A isso se acrescentou que já a segunda ou terceira geração reconheceu o sem-sentido da construção da torre do céu, mas já estavam todos muito ligados entre si para aban- donarem a cidade. Tudo o que nela surgiu de lendas e canções está repleto de nostalgia elo dia profetizado em que a cidade será destroçada por um punho gigantesco com cinco golpes em rápida sucessão. Por isso a cidade também tem um punho no seu brasão. Página 6
  • 7. Cinco minicontos de Kafka Uma mensagem imperial O imperador – assim dizem – enviou a ti, súdito solitário e lastimável, sombra ínfima ante o sol imperial, refugiada na mais remota distância, justamente a ti o im- perador enviou, do leito de morte, uma mensagem. Fez ajoelhar-se o mensageiro ao pé da cama e sussurrou-lhe a mensagem no ouvido; tão importante lhe parecia, que mandou repeti-la em seu próprio ouvido. Assentindo com a cabeça, confirmou a exatidão das palavras. E, diante da turba reunida para assistir à sua morte – haviam der- rubado todas as paredes impeditivas, e na escadaria em curva ampla e elevada, dispostos em círculo, estavam os grandes do império –, diante de todos, despachou o men- sageiro. De pronto, este se pôs em marcha, homem vigoro- so, incansável. Estendendo ora um braço, ora outro, abre passagem em meio à multidão; quando encontra obstá- culo, aponta no peito a insígnia do sol; avança facilmen- te, como ninguém. Mas a multidão é enorme; suas mo- radas não têm fim. Fosse livre o terreno, como voaria, breve ouvirias na porta o golpe magnífico de seu punho. Mas, ao contrário, esforça-se inutilmente; comprime-se nos aposentos do palácio central; jamais conseguirá atra- vessá-los; e se conseguisse, de nada valeria; precisaria empenhar-se em descer as escadas; e e as vencesse, de nada valeria; teria que percorrer os pátios; e depois dos pátios, o segundo palácio circundante; e novamente esca- das e pátios; e mais outro palácio; e assim por milênios; e quando finalmente escapasse pelo último portão – mas isto nunca, nunca poderia acontecer – chegaria apenas à capital, o centro do mundo, onde se acumula a prodigiosa escória. Ninguém consegue passar por aí, muito menos com a mensagem de um morto. Mas, sentado à janela, tu a imaginas, enquanto a noite cai. Página 7