SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 2
Baixar para ler offline
Rio de Janeiro, 29 de maio de 2005.



                                          
                                         Simulacro da brancur  
                                                             a


         Comum nos EUA e na África do Sul, o debate em torno da branquitude tem chamado a 
atenção   de   alguns   pesquisadores   brasileiros.   Sem   pretender   adentrar   muito   no   tema,   a 
branquitude   consiste   em   um   conjunto   de   mecanismos   no   qual   a   identidade   dominante   nos 
diversos contextos pós­coloniais, a de homem branco, prevalece e exerce poder sobre as outras 
identidades,   hierarquizando   visões   de   mundo   e   determinando,   conseqüentemente,   a 
“redistribuição” de espaços de poder, ou seja, fazendo o poder circular no interior de somente um 
grupo.   O   termo   não   substitui   a   idéia   clássica   de   dominação   de   classe   ou   outra   categoria 
sociológica   qualquer.   Pelo   contrário,   se   pensada   de   maneira   interrelacionada   com   outras 
categorias   explicativas   de   subalternidades   raciais   e   sociais,   esta   termina   por   potencializar   em 
muito a compreensão das lógicas de dominação nos mais variados contextos. No caso brasileiro, 
a   branquitude   tem   se   afirmado   enquanto   espaço   de   exercício   de   poder   dos   grupos   brancos 
(notem   o   plural)   sobre   as   outras   coletividades,   notadamente   as   coletividades   negras.   O 
mecanismo é tão bem construído que os próprios brancos “esquecem” que o possuem. Teóricos e 
analistas   sociais   importantes   das   ciências   sociais   e   das   humanidades,   mesmo   ao   elaborar 
explicações   das   relações   raciais   brasileiras,   deixam   de   lado   ou   não   problematizam 
suficientemente seu próprio lugar enquanto pesquisadores brancos. Selam assim com os demais 
o chamado pacto silencioso da brancura. Por lugar de branco entenda­se espaço de reprodução e 
usufruto   de   poder:   poder   econômico,   social,   simbólico,   de   produção   cultural,   de   interpretar 
realidades, enfim, um conjunto abrangente de poderes que ideologizam a dominação e que, vez 
ou outra, conta com a bondosa colaboração de membros dos grupos subaternizados. Em outros 
termos, ser branco no Brasil significa capitalizar todos os bônus sociais e psicológicos advindos 
disso.   Quer   dizer   que   um   branco   pobre,   desempregado,   etc,   também   usufruiu   deste   bônus? 
Secamente   falando,   sim.   Por   mais   que   continue   pobre,   desempregado   e   digno   de   políticas 
públicas de inclusão social, esse branco termina por levar vantagem se comparado a um negro. 
Neste sentido, todo bônus pressupõe um ônus. 

        Quando Ronaldo diz que é branco, o que ele quer na verdade dizer é isso: “também quero 
esse   bônus   que   a   brancura   traz.   Também   quero   capitalizar   para   mim   as   vantagens   que   a 
(suposta)   democracia   racial   brasileira   (ou   se   preferirem,   o   racismo   brasileiro   camuflado   de 
democrático)   me   possibilita   por   passar­me   branco,   casando­me   com   brancas   e  cegando   meu 
passado de negro. 

        Se a branquitude é a ideologia oculta dos brancos, a declaração de Ronaldo acaba de 
atestar que ela também pode servir para alguns negros. Não como válvula de escape do mulato, 
como propagado por muitos tempos atrás, mas como atalho ao mundo branco tão profundamente 
sonhado e desejado. Sem receio de errar, podemos dizer que o sonho de Ronaldo será a exata 
desgraça cognitiva de milhares de crianças e adolescentes negros brasileiros, registrados como 
pardos, pretos  ou mesmo brancos  em suas certidões  de nascimento.  O “Fenômeno”,  que boa 
parte deles entendiam por negro, diz que é, na verdade, branco. Como na letra da música: “ovelha 
branca da raça, traidor!!” Não custa, estórias assim vão começar a pipocar lares afora: “Papai, 
também vou dizer por ai que sou branco, tipo o Ronaldinho. Quem sabe assim aquela menininha 
branquinha lá da escola não olha pra mim. Quem sabe assim a professora não me faz elogios 
também” (essa uma ficção). Ou então: “Mãe, queria pegar a doença do Michael Jackson e ficar 
branco”. “O que é isso, pra quê que filho?” “Porque na minha escola ninguém quer brincar comigo, 
falam  que é porque  eu sou preto”.  Silêncio...  Angústia...  Novamente  o silêncio...  Com  o choro 
aprisionado, a irmã me chama: “André, vem aqui falar com ele, pois já não sei....” (essa, verídica, 
aconteceu lá em casa com o meu sobrinho. Felizmente o pretinho continua gostando das músicas 
do Michael, mas não tá nem ai pra doença dele. Agora prefere ouvir os Racionais). 

        O desserviço para a auto­estima das crianças negras e não­brancas feito por Ronaldinho 
Antifenomenal   é   de   tamanha   proporção   que   prevejo   um   mercado   de   trabalho   promissor   para 
psicólogos sociais que se formarão daqui a uns cinquenta anos. O craque dos gramados jogou a 
merda  no ventilador  ao denegar  sua identidade  racial,  dando  descarga  no vaso com todas  as 
forças   à   sua   negritude.   Só   em   pensar   que   crianças,   adolescentes   e   mesmo   adultos   de 
praticamente todo o planeta se inspiram em sua história de “superação” da pobreza e de sucesso 
profissional, dá um arrepio grande. 

         Lembro   de  um   filme   americano   (pra   variar)   muito   interessante   chamado   Esquadrão   da 
Reforma (Drop Squad) que expressa bem a idéia desse ensaio. Um grupo de afro­americanos 
radicais tipo Panteras Negras dos anos 90 seqüestram outros afro­americanos que trabalham em 
empresas de brancos e ao ascenderem socialmente “esquecem” totalmente suas comunidades e 
de condição de negros. Os seqüestrados ficam durante semanas, meses, sob tortura psicológica 
pesada, revendo momentos emblemáticos da cultura negra norte­americana e a luta pelos direitos 
civis   até   recobrarem   a   “lembrança”   do   lugar   de   onde   vieram.   Alguns   simplesmente   não 
“respondem”   bem   ao   processo   e   ficam   durante   longos   meses   imersos   na   brancura   recém 
conquistada e outros, após muito Marvin Gaye e Harold Melvin na mente, voltam pouco a pouco a 
valorizar   seu   real   pertencimento.   Não   que   esteja   proponho   o   seqüestro   (ao   menos 
metaforicamente) do nosso ex­Fenômeno, mas bem que ele devia passar uns meseszinhos preso 
para   parar   de   brincar   de   ser   branco.   Ser   branco   é  mole,   quero   ver   é   ficar   com   a   cara   preta 
estampada as porradas da realidade e ainda por cima ter orgulho de ser o que se é. Não basta 
dizer­se contra o racismo e a discriminação racial, como declarou. Há que se ter coerência. O anti­
racismo racista brasileiro já expôs a sua total falácia: ao confessar que há racismo nega que seja 
racista. Ou seja, lava as mãos. Estamos longe da pretensão de estabelecer o que seria certo ou 
errado neste sentido. Quem tem boca, afinal, fala o que quer. Agora, peralá... Tudo tem limite. 
Esse   menino   está   brincando   com   os   nossos   brios.   Levamos   quase   o   século   20   inteiro   para 
convencer a negligente elite brasileira e a sociedade a reconhecer minimamente a existência do 
racismo e a começar a nos tratar com a dignidade que exigimos e vem esses ex­negros brincar de 
ser branco!! Sinceramente, fica difícil.

       Melhor   torcermos   desde   já   para   essa   onda   não   se   espalhar   feito   uma   tsunami 
embranquecedora.   Imaginem   se   o   Robinho   resolve   aparecer   amanhã   e   dizer   que   é   branco 
também, ou então o Cafu, o Grafite, o Romário, o Ronaldinho Gaúcho, o Junior Baiano, o Pelé... 
Bom, quanto ao Pelé, melhor deixar pra lá por enquanto. É... e muitos duvidavam da eficácia do 
sistema.


Marcio André dos Santos é sociólogo e mestrando em ciências sociais na Universidade do Estado  
                                                                            do Rio de Janeiro.
                                                             E­mail: marcre27@yahoo.com.br

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

O poder do macho
O poder do machoO poder do macho
O poder do machoJuliana
 
2011 2eq ciencias_humanas_tecnologias_parte2
2011 2eq ciencias_humanas_tecnologias_parte22011 2eq ciencias_humanas_tecnologias_parte2
2011 2eq ciencias_humanas_tecnologias_parte2+ Aloisio Magalhães
 
Artigo quilombolas e novo constitucionalismo 1
Artigo quilombolas e novo constitucionalismo 1Artigo quilombolas e novo constitucionalismo 1
Artigo quilombolas e novo constitucionalismo 1Thiago Almeida
 
VI ENAPS - Tribuna de Debates - APS e a questão racial
VI ENAPS - Tribuna de Debates - APS e a questão racialVI ENAPS - Tribuna de Debates - APS e a questão racial
VI ENAPS - Tribuna de Debates - APS e a questão racialRafael Digal
 
Homicídios de jovens negros análise de contexto
Homicídios de jovens negros   análise de contextoHomicídios de jovens negros   análise de contexto
Homicídios de jovens negros análise de contextosandersonnc
 
Preconceito de cor e racismo no brasil1
Preconceito de cor e racismo no brasil1Preconceito de cor e racismo no brasil1
Preconceito de cor e racismo no brasil1Geraa Ufms
 
Proposta de redação Preconceito
Proposta de redação PreconceitoProposta de redação Preconceito
Proposta de redação PreconceitoProfFernandaBraga
 

Mais procurados (13)

racismo e_anti_racismo
racismo e_anti_racismoracismo e_anti_racismo
racismo e_anti_racismo
 
O poder do macho
O poder do machoO poder do macho
O poder do macho
 
Conflitos Territoriais
Conflitos TerritoriaisConflitos Territoriais
Conflitos Territoriais
 
35041604 na-casa-de-meu-pai-resenha
35041604 na-casa-de-meu-pai-resenha35041604 na-casa-de-meu-pai-resenha
35041604 na-casa-de-meu-pai-resenha
 
anglo-redacao-temas
anglo-redacao-temasanglo-redacao-temas
anglo-redacao-temas
 
2011 2eq ciencias_humanas_tecnologias_parte2
2011 2eq ciencias_humanas_tecnologias_parte22011 2eq ciencias_humanas_tecnologias_parte2
2011 2eq ciencias_humanas_tecnologias_parte2
 
Apresentação guerreiro
Apresentação guerreiroApresentação guerreiro
Apresentação guerreiro
 
Artigo quilombolas e novo constitucionalismo 1
Artigo quilombolas e novo constitucionalismo 1Artigo quilombolas e novo constitucionalismo 1
Artigo quilombolas e novo constitucionalismo 1
 
VI ENAPS - Tribuna de Debates - APS e a questão racial
VI ENAPS - Tribuna de Debates - APS e a questão racialVI ENAPS - Tribuna de Debates - APS e a questão racial
VI ENAPS - Tribuna de Debates - APS e a questão racial
 
Homicídios de jovens negros análise de contexto
Homicídios de jovens negros   análise de contextoHomicídios de jovens negros   análise de contexto
Homicídios de jovens negros análise de contexto
 
Preconceito de cor e racismo no brasil1
Preconceito de cor e racismo no brasil1Preconceito de cor e racismo no brasil1
Preconceito de cor e racismo no brasil1
 
Proposta de redação Preconceito
Proposta de redação PreconceitoProposta de redação Preconceito
Proposta de redação Preconceito
 
Ensino de História da África
Ensino de História da ÁfricaEnsino de História da África
Ensino de História da África
 

Destaque

Marca-páginas mascota
Marca-páginas mascotaMarca-páginas mascota
Marca-páginas mascotasrvbest
 
Classificação Geral Contra Relogio Campeonato Araguarino
Classificação Geral Contra Relogio Campeonato AraguarinoClassificação Geral Contra Relogio Campeonato Araguarino
Classificação Geral Contra Relogio Campeonato Araguarinosammoraes
 
QP3 Gestão da BE/CRE
QP3 Gestão da BE/CREQP3 Gestão da BE/CRE
QP3 Gestão da BE/CRELuisa Lamas
 
Equipo Directivo Ep3
Equipo Directivo Ep3Equipo Directivo Ep3
Equipo Directivo Ep3guestff49542
 
Lineamientos estratégicos para la comunicación global efectiva de mi marca
Lineamientos estratégicos para la comunicación global efectiva de mi marca Lineamientos estratégicos para la comunicación global efectiva de mi marca
Lineamientos estratégicos para la comunicación global efectiva de mi marca gladibelm
 
Microsoft Word AnáLise E ComentáRio CríTico à PresençA De ReferêNcias A R…
Microsoft Word   AnáLise E ComentáRio CríTico à PresençA De ReferêNcias A R…Microsoft Word   AnáLise E ComentáRio CríTico à PresençA De ReferêNcias A R…
Microsoft Word AnáLise E ComentáRio CríTico à PresençA De ReferêNcias A R…catiarodriguessousa
 
Fq Poster Ana Diana
Fq Poster Ana DianaFq Poster Ana Diana
Fq Poster Ana DianaLuisa Lamas
 
Quando O Homem Respeita A Natureza
Quando O Homem Respeita A NaturezaQuando O Homem Respeita A Natureza
Quando O Homem Respeita A Naturezagilmar silva junior
 
El RincóN De Los Poemas
El RincóN De Los PoemasEl RincóN De Los Poemas
El RincóN De Los Poemasguestfe2a8d6
 
Ativ 2 8poster Mvilalon
Ativ 2 8poster MvilalonAtiv 2 8poster Mvilalon
Ativ 2 8poster MvilalonMaria Vilalon
 
Métodos de Arte y diseño en la actulidad
Métodos de Arte y diseño en la actulidadMétodos de Arte y diseño en la actulidad
Métodos de Arte y diseño en la actulidadKarina Hdz
 
The hard road to electronic invoicing
The hard road to electronic invoicingThe hard road to electronic invoicing
The hard road to electronic invoicingFriso de Jong
 

Destaque (20)

Diretoria Do Sintect 6
Diretoria Do Sintect  6Diretoria Do Sintect  6
Diretoria Do Sintect 6
 
Marca-páginas mascota
Marca-páginas mascotaMarca-páginas mascota
Marca-páginas mascota
 
Sessao Tabagismo
Sessao TabagismoSessao Tabagismo
Sessao Tabagismo
 
Classificação Geral Contra Relogio Campeonato Araguarino
Classificação Geral Contra Relogio Campeonato AraguarinoClassificação Geral Contra Relogio Campeonato Araguarino
Classificação Geral Contra Relogio Campeonato Araguarino
 
QP3 Gestão da BE/CRE
QP3 Gestão da BE/CREQP3 Gestão da BE/CRE
QP3 Gestão da BE/CRE
 
Equipo Directivo Ep3
Equipo Directivo Ep3Equipo Directivo Ep3
Equipo Directivo Ep3
 
Carta De Pelotas
Carta De PelotasCarta De Pelotas
Carta De Pelotas
 
Lineamientos estratégicos para la comunicación global efectiva de mi marca
Lineamientos estratégicos para la comunicación global efectiva de mi marca Lineamientos estratégicos para la comunicación global efectiva de mi marca
Lineamientos estratégicos para la comunicación global efectiva de mi marca
 
Microsoft Word AnáLise E ComentáRio CríTico à PresençA De ReferêNcias A R…
Microsoft Word   AnáLise E ComentáRio CríTico à PresençA De ReferêNcias A R…Microsoft Word   AnáLise E ComentáRio CríTico à PresençA De ReferêNcias A R…
Microsoft Word AnáLise E ComentáRio CríTico à PresençA De ReferêNcias A R…
 
Fq Poster Ana Diana
Fq Poster Ana DianaFq Poster Ana Diana
Fq Poster Ana Diana
 
Jornal Catarina
Jornal CatarinaJornal Catarina
Jornal Catarina
 
Quando O Homem Respeita A Natureza
Quando O Homem Respeita A NaturezaQuando O Homem Respeita A Natureza
Quando O Homem Respeita A Natureza
 
302.0046.2009
302.0046.2009302.0046.2009
302.0046.2009
 
El RincóN De Los Poemas
El RincóN De Los PoemasEl RincóN De Los Poemas
El RincóN De Los Poemas
 
Ativ 2 8poster Mvilalon
Ativ 2 8poster MvilalonAtiv 2 8poster Mvilalon
Ativ 2 8poster Mvilalon
 
Métodos de Arte y diseño en la actulidad
Métodos de Arte y diseño en la actulidadMétodos de Arte y diseño en la actulidad
Métodos de Arte y diseño en la actulidad
 
Objetivos
ObjetivosObjetivos
Objetivos
 
No Natal, OfereçA Livros!
No Natal, OfereçA Livros!No Natal, OfereçA Livros!
No Natal, OfereçA Livros!
 
The hard road to electronic invoicing
The hard road to electronic invoicingThe hard road to electronic invoicing
The hard road to electronic invoicing
 
DST
DSTDST
DST
 

Semelhante a Branquitude e identidade racial no futebol brasileiro

80272028 gentili-e-a-inteligencia-do-seculo-xxi
80272028 gentili-e-a-inteligencia-do-seculo-xxi80272028 gentili-e-a-inteligencia-do-seculo-xxi
80272028 gentili-e-a-inteligencia-do-seculo-xxityromello
 
Racismo sexismo-e-desigualdade-sueli-carneiro-1
Racismo sexismo-e-desigualdade-sueli-carneiro-1Racismo sexismo-e-desigualdade-sueli-carneiro-1
Racismo sexismo-e-desigualdade-sueli-carneiro-1ZuleikaCamara
 
Revista a cor_brasil_2010
Revista a cor_brasil_2010Revista a cor_brasil_2010
Revista a cor_brasil_2010Gilcleia
 
A mulher negra no cinema
A mulher negra no cinemaA mulher negra no cinema
A mulher negra no cinemaAndréa Matias
 
A presença do comunismo internacional no brasil
A presença do comunismo internacional no brasilA presença do comunismo internacional no brasil
A presença do comunismo internacional no brasilIsabel Silva
 
Racismo no brasil
Racismo no brasilRacismo no brasil
Racismo no brasilFabio Cruz
 
A ética democrática e seus inimigos
A ética democrática e seus inimigosA ética democrática e seus inimigos
A ética democrática e seus inimigosJorge Miklos
 
Racismo-Estrutural-uma-perspectiva-histórico-crítica (1).pdf
Racismo-Estrutural-uma-perspectiva-histórico-crítica (1).pdfRacismo-Estrutural-uma-perspectiva-histórico-crítica (1).pdf
Racismo-Estrutural-uma-perspectiva-histórico-crítica (1).pdfTiagoTrombonista
 
Desigualdades raciais
Desigualdades raciaisDesigualdades raciais
Desigualdades raciaisprimeiraopcao
 

Semelhante a Branquitude e identidade racial no futebol brasileiro (20)

80272028 gentili-e-a-inteligencia-do-seculo-xxi
80272028 gentili-e-a-inteligencia-do-seculo-xxi80272028 gentili-e-a-inteligencia-do-seculo-xxi
80272028 gentili-e-a-inteligencia-do-seculo-xxi
 
Movimento negro lei do caô
Movimento negro lei do caôMovimento negro lei do caô
Movimento negro lei do caô
 
Movimento negro lei do caô (2)
Movimento negro lei do caô (2)Movimento negro lei do caô (2)
Movimento negro lei do caô (2)
 
Movimento negro lei do caô
Movimento negro lei do caôMovimento negro lei do caô
Movimento negro lei do caô
 
Racismo sexismo-e-desigualdade-sueli-carneiro-1
Racismo sexismo-e-desigualdade-sueli-carneiro-1Racismo sexismo-e-desigualdade-sueli-carneiro-1
Racismo sexismo-e-desigualdade-sueli-carneiro-1
 
Movimento negro lei do caô
Movimento negro lei do caôMovimento negro lei do caô
Movimento negro lei do caô
 
Movimento negro lei do caô
Movimento negro lei do caôMovimento negro lei do caô
Movimento negro lei do caô
 
Movimento negro lei do caô
Movimento negro lei do caôMovimento negro lei do caô
Movimento negro lei do caô
 
07
0707
07
 
Revista a cor_brasil_2010
Revista a cor_brasil_2010Revista a cor_brasil_2010
Revista a cor_brasil_2010
 
A mulher negra no cinema
A mulher negra no cinemaA mulher negra no cinema
A mulher negra no cinema
 
A presença do comunismo internacional no brasil
A presença do comunismo internacional no brasilA presença do comunismo internacional no brasil
A presença do comunismo internacional no brasil
 
Educação Antirracista-1.pptx
Educação Antirracista-1.pptxEducação Antirracista-1.pptx
Educação Antirracista-1.pptx
 
Clínica e política
Clínica e políticaClínica e política
Clínica e política
 
Racismo no brasil
Racismo no brasilRacismo no brasil
Racismo no brasil
 
A ética democrática e seus inimigos
A ética democrática e seus inimigosA ética democrática e seus inimigos
A ética democrática e seus inimigos
 
Racismo-Estrutural-uma-perspectiva-histórico-crítica (1).pdf
Racismo-Estrutural-uma-perspectiva-histórico-crítica (1).pdfRacismo-Estrutural-uma-perspectiva-histórico-crítica (1).pdf
Racismo-Estrutural-uma-perspectiva-histórico-crítica (1).pdf
 
Desigualdades raciais
Desigualdades raciaisDesigualdades raciais
Desigualdades raciais
 
O Haiti é Aqui
O Haiti é AquiO Haiti é Aqui
O Haiti é Aqui
 
O Haiti é Aqui
O Haiti é AquiO Haiti é Aqui
O Haiti é Aqui
 

Mais de guesta7e113

Capacita%C3%A7%C3%A3o Sapucaia
Capacita%C3%A7%C3%A3o SapucaiaCapacita%C3%A7%C3%A3o Sapucaia
Capacita%C3%A7%C3%A3o Sapucaiaguesta7e113
 
Marlene Consc.Negra
Marlene Consc.NegraMarlene Consc.Negra
Marlene Consc.Negraguesta7e113
 
Caravana Da Anistia Cut
Caravana Da Anistia CutCaravana Da Anistia Cut
Caravana Da Anistia Cutguesta7e113
 
Folder+Encontros+Pedag%C3%93 Gicos+Dezembro
Folder+Encontros+Pedag%C3%93 Gicos+DezembroFolder+Encontros+Pedag%C3%93 Gicos+Dezembro
Folder+Encontros+Pedag%C3%93 Gicos+Dezembroguesta7e113
 
Pranchasentimentos
PranchasentimentosPranchasentimentos
Pranchasentimentosguesta7e113
 
Trabalho P%C3%B3s
Trabalho P%C3%B3sTrabalho P%C3%B3s
Trabalho P%C3%B3sguesta7e113
 
Trabalho P%C3%B3s
Trabalho P%C3%B3sTrabalho P%C3%B3s
Trabalho P%C3%B3sguesta7e113
 
Projeto 100% Negro
Projeto 100% NegroProjeto 100% Negro
Projeto 100% Negroguesta7e113
 
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos SantosSimulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santosguesta7e113
 
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos SantosSimulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santosguesta7e113
 
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos SantosSimulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santosguesta7e113
 
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos SantosSimulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santosguesta7e113
 
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos SantosSimulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santosguesta7e113
 
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos SantosSimulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santosguesta7e113
 
Pesquisa Retrato Das Desigualdades
Pesquisa Retrato Das DesigualdadesPesquisa Retrato Das Desigualdades
Pesquisa Retrato Das Desigualdadesguesta7e113
 

Mais de guesta7e113 (20)

Sites
SitesSites
Sites
 
Capacita%C3%A7%C3%A3o Sapucaia
Capacita%C3%A7%C3%A3o SapucaiaCapacita%C3%A7%C3%A3o Sapucaia
Capacita%C3%A7%C3%A3o Sapucaia
 
Cartilha06
Cartilha06Cartilha06
Cartilha06
 
Marlene Consc.Negra
Marlene Consc.NegraMarlene Consc.Negra
Marlene Consc.Negra
 
Apostila Dv
Apostila DvApostila Dv
Apostila Dv
 
Caravana Da Anistia Cut
Caravana Da Anistia CutCaravana Da Anistia Cut
Caravana Da Anistia Cut
 
Folder+Encontros+Pedag%C3%93 Gicos+Dezembro
Folder+Encontros+Pedag%C3%93 Gicos+DezembroFolder+Encontros+Pedag%C3%93 Gicos+Dezembro
Folder+Encontros+Pedag%C3%93 Gicos+Dezembro
 
Pranchasentimentos
PranchasentimentosPranchasentimentos
Pranchasentimentos
 
Prancha12opcoes
Prancha12opcoesPrancha12opcoes
Prancha12opcoes
 
Prancha6opçOes
Prancha6opçOesPrancha6opçOes
Prancha6opçOes
 
Trabalho P%C3%B3s
Trabalho P%C3%B3sTrabalho P%C3%B3s
Trabalho P%C3%B3s
 
Trabalho P%C3%B3s
Trabalho P%C3%B3sTrabalho P%C3%B3s
Trabalho P%C3%B3s
 
Projeto 100% Negro
Projeto 100% NegroProjeto 100% Negro
Projeto 100% Negro
 
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos SantosSimulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santos
 
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos SantosSimulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santos
 
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos SantosSimulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santos
 
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos SantosSimulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santos
 
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos SantosSimulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santos
 
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos SantosSimulacro Da Brancura   Marcio Andre Dos Santos
Simulacro Da Brancura Marcio Andre Dos Santos
 
Pesquisa Retrato Das Desigualdades
Pesquisa Retrato Das DesigualdadesPesquisa Retrato Das Desigualdades
Pesquisa Retrato Das Desigualdades
 

Branquitude e identidade racial no futebol brasileiro

  • 1. Rio de Janeiro, 29 de maio de 2005.   Simulacro da brancur    a Comum nos EUA e na África do Sul, o debate em torno da branquitude tem chamado a  atenção   de   alguns   pesquisadores   brasileiros.   Sem   pretender   adentrar   muito   no   tema,   a  branquitude   consiste   em   um   conjunto   de   mecanismos   no   qual   a   identidade   dominante   nos  diversos contextos pós­coloniais, a de homem branco, prevalece e exerce poder sobre as outras  identidades,   hierarquizando   visões   de   mundo   e   determinando,   conseqüentemente,   a  “redistribuição” de espaços de poder, ou seja, fazendo o poder circular no interior de somente um  grupo.   O   termo   não   substitui   a   idéia   clássica   de   dominação   de   classe   ou   outra   categoria  sociológica   qualquer.   Pelo   contrário,   se   pensada   de   maneira   interrelacionada   com   outras  categorias   explicativas   de   subalternidades   raciais   e   sociais,   esta   termina   por   potencializar   em  muito a compreensão das lógicas de dominação nos mais variados contextos. No caso brasileiro,  a   branquitude   tem   se   afirmado   enquanto   espaço   de   exercício   de   poder   dos   grupos   brancos  (notem   o   plural)   sobre   as   outras   coletividades,   notadamente   as   coletividades   negras.   O  mecanismo é tão bem construído que os próprios brancos “esquecem” que o possuem. Teóricos e  analistas   sociais   importantes   das   ciências   sociais   e   das   humanidades,   mesmo   ao   elaborar  explicações   das   relações   raciais   brasileiras,   deixam   de   lado   ou   não   problematizam  suficientemente seu próprio lugar enquanto pesquisadores brancos. Selam assim com os demais  o chamado pacto silencioso da brancura. Por lugar de branco entenda­se espaço de reprodução e  usufruto   de   poder:   poder   econômico,   social,   simbólico,   de   produção   cultural,   de   interpretar  realidades, enfim, um conjunto abrangente de poderes que ideologizam a dominação e que, vez  ou outra, conta com a bondosa colaboração de membros dos grupos subaternizados. Em outros  termos, ser branco no Brasil significa capitalizar todos os bônus sociais e psicológicos advindos  disso.   Quer   dizer   que   um   branco   pobre,   desempregado,   etc,   também   usufruiu   deste   bônus?  Secamente   falando,   sim.   Por   mais   que   continue   pobre,   desempregado   e   digno   de   políticas  públicas de inclusão social, esse branco termina por levar vantagem se comparado a um negro.  Neste sentido, todo bônus pressupõe um ônus.  Quando Ronaldo diz que é branco, o que ele quer na verdade dizer é isso: “também quero  esse   bônus   que   a   brancura   traz.   Também   quero   capitalizar   para   mim   as   vantagens   que   a  (suposta)   democracia   racial   brasileira   (ou   se   preferirem,   o   racismo   brasileiro   camuflado   de  democrático)   me   possibilita   por   passar­me   branco,   casando­me   com   brancas   e  cegando   meu  passado de negro.  Se a branquitude é a ideologia oculta dos brancos, a declaração de Ronaldo acaba de  atestar que ela também pode servir para alguns negros. Não como válvula de escape do mulato,  como propagado por muitos tempos atrás, mas como atalho ao mundo branco tão profundamente  sonhado e desejado. Sem receio de errar, podemos dizer que o sonho de Ronaldo será a exata  desgraça cognitiva de milhares de crianças e adolescentes negros brasileiros, registrados como  pardos, pretos  ou mesmo brancos  em suas certidões  de nascimento.  O “Fenômeno”,  que boa  parte deles entendiam por negro, diz que é, na verdade, branco. Como na letra da música: “ovelha  branca da raça, traidor!!” Não custa, estórias assim vão começar a pipocar lares afora: “Papai,  também vou dizer por ai que sou branco, tipo o Ronaldinho. Quem sabe assim aquela menininha  branquinha lá da escola não olha pra mim. Quem sabe assim a professora não me faz elogios  também” (essa uma ficção). Ou então: “Mãe, queria pegar a doença do Michael Jackson e ficar  branco”. “O que é isso, pra quê que filho?” “Porque na minha escola ninguém quer brincar comigo,  falam  que é porque  eu sou preto”.  Silêncio...  Angústia...  Novamente  o silêncio...  Com  o choro  aprisionado, a irmã me chama: “André, vem aqui falar com ele, pois já não sei....” (essa, verídica, 
  • 2. aconteceu lá em casa com o meu sobrinho. Felizmente o pretinho continua gostando das músicas  do Michael, mas não tá nem ai pra doença dele. Agora prefere ouvir os Racionais).  O desserviço para a auto­estima das crianças negras e não­brancas feito por Ronaldinho  Antifenomenal   é   de   tamanha   proporção   que   prevejo   um   mercado   de   trabalho   promissor   para  psicólogos sociais que se formarão daqui a uns cinquenta anos. O craque dos gramados jogou a  merda  no ventilador  ao denegar  sua identidade  racial,  dando  descarga  no vaso com todas  as  forças   à   sua   negritude.   Só   em   pensar   que   crianças,   adolescentes   e   mesmo   adultos   de  praticamente todo o planeta se inspiram em sua história de “superação” da pobreza e de sucesso  profissional, dá um arrepio grande.  Lembro   de  um   filme   americano   (pra   variar)   muito   interessante   chamado   Esquadrão   da  Reforma (Drop Squad) que expressa bem a idéia desse ensaio. Um grupo de afro­americanos  radicais tipo Panteras Negras dos anos 90 seqüestram outros afro­americanos que trabalham em  empresas de brancos e ao ascenderem socialmente “esquecem” totalmente suas comunidades e  de condição de negros. Os seqüestrados ficam durante semanas, meses, sob tortura psicológica  pesada, revendo momentos emblemáticos da cultura negra norte­americana e a luta pelos direitos  civis   até   recobrarem   a   “lembrança”   do   lugar   de   onde   vieram.   Alguns   simplesmente   não  “respondem”   bem   ao   processo   e   ficam   durante   longos   meses   imersos   na   brancura   recém  conquistada e outros, após muito Marvin Gaye e Harold Melvin na mente, voltam pouco a pouco a  valorizar   seu   real   pertencimento.   Não   que   esteja   proponho   o   seqüestro   (ao   menos  metaforicamente) do nosso ex­Fenômeno, mas bem que ele devia passar uns meseszinhos preso  para   parar   de   brincar   de   ser   branco.   Ser   branco   é  mole,   quero   ver   é   ficar   com   a   cara   preta  estampada as porradas da realidade e ainda por cima ter orgulho de ser o que se é. Não basta  dizer­se contra o racismo e a discriminação racial, como declarou. Há que se ter coerência. O anti­ racismo racista brasileiro já expôs a sua total falácia: ao confessar que há racismo nega que seja  racista. Ou seja, lava as mãos. Estamos longe da pretensão de estabelecer o que seria certo ou  errado neste sentido. Quem tem boca, afinal, fala o que quer. Agora, peralá... Tudo tem limite.  Esse   menino   está   brincando   com   os   nossos   brios.   Levamos   quase   o   século   20   inteiro   para  convencer a negligente elite brasileira e a sociedade a reconhecer minimamente a existência do  racismo e a começar a nos tratar com a dignidade que exigimos e vem esses ex­negros brincar de  ser branco!! Sinceramente, fica difícil. Melhor   torcermos   desde   já   para   essa   onda   não   se   espalhar   feito   uma   tsunami  embranquecedora.   Imaginem   se   o   Robinho   resolve   aparecer   amanhã   e   dizer   que   é   branco  também, ou então o Cafu, o Grafite, o Romário, o Ronaldinho Gaúcho, o Junior Baiano, o Pelé...  Bom, quanto ao Pelé, melhor deixar pra lá por enquanto. É... e muitos duvidavam da eficácia do  sistema. Marcio André dos Santos é sociólogo e mestrando em ciências sociais na Universidade do Estado   do Rio de Janeiro. E­mail: marcre27@yahoo.com.br