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Aprendendo a olhar,




Com Alberto Caeiro
O meu olhar é nítido como um girassol
Tenho o costume de andar pelas
estradas
 Olhando para a direita e para a
esquerda,
 E de, vez em quando olhando para
trás...

E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do
Mundo...

  Creio no mundo como num
  malmequer, Porque o vejo.

      Mas não penso nele
      Porque pensar é não compreender
...
A criança que pensa em
fadas e acredita nas fadas
Age como um deus doente,
mas como um deus.

Porque embora afirme que
existe o que não existe
Sabe como é que as coisas
existem, que é existindo,

Sabe que existir existe e não
se explica,
Sabe que não há razão
nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar em um
ponto .
Só não sabe que o
pensamento não é um
ponto qualquer
A espantosa realidade
das coisas
É a minha descoberta de
todos os dias.

Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a
alguém quanto isso me
alegra,
E quanto isso me
basta.

Basta existir para se ser
 completo.
O Mundo não se fez para
pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos
olhos)
 Mas para olharmos para ele
e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho
sentidos...

 Se falo na Natureza não é
porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a
por isso,
Porque quem ama nunca
sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem
o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...
Ah! querem uma luz melhor que
a do Sol!
Querem prados mais verdes do
que estes!
Querem flores mais belas do que
estas que vejo!
A mim este Sol, estes prados,
estas flores contentam-me. Mas,
se acaso me descontentam,

O que quero é um sol mais sol
que o Sol,
O que quero é prados mais
prados que estes prados,
O que quero é flores mais estas
flores que estas flores —

Tudo mais ideal do que é do
mesmo modo e da mesma
maneira!
Gozo os campos sem reparar para
eles.
Perguntas-me por que os gozo.
Porque os gozo, respondo.
Gozar uma flor é estar ao pé dela
inconscientemente
E ter uma noção do seu perfume
nas nossas idéias mais apagadas.

Quando reparo, não gozo: vejo.
Fecho os olhos, e o meu corpo, que
está entre a erva,
Pertence inteiramente ao exterior
de quem fecha os olhos
À dureza fresca da terra cheirosa e
irregular;
E alguma coisa dos ruídos indistintos
das coisas a existir,
E só uma sombra encarnada de luz
me carrega levemente nas órbitas,
E só um resto de vida ouve.
O espelho reflete certo;
não erra porque não
pensa.
Pensar é essencialmente
errar.
Errar é essencialmente
estar cego e surdo.

O único mistério do
Universo é o mais e não o
menos.
Percebemos demais as
coisas — eis o erro, a
dúvida.
O que existe transcende
para mim o que julgo que
existe.
A Realidade é apenas real e não pensada.
Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as
flores.
É preciso também não ter
filosofia nenhuma.
Com filosofia não há
árvores: há idéias apenas.
Há só cada um de nós,
como uma cave.
Há só uma janela fechada, e
todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se
poderia ver se a janela se
abrisse,
Que nunca é o que se vê
quando se abre a janela
Quando está frio no tempo
do frio, para mim é como se
estivesse agradável,
Porque para o meu ser
adequado à existência das
coisas .

O natural é o agradável só
por ser natural. Aceito as
dificuldades da vida porque
são o destino,
Como aceito o frio excessivo
no alto do Inverno —
Calmamente, sem me queixar,
como quem meramente
aceita,
E encontra uma alegria no
fato de aceitar —
No fato sublimemente
científico e difícil de aceitar o
natural inevitável.
Aceito por
personalidade.
Nasci sujeito como os
outros a erros e a
defeitos,
Mas nunca ao erro de
querer compreender
demais,
Nunca ao erro de
querer compreender
só corri a
inteligência,
Nunca ao defeito de
exigir do Mundo
Que fosse qualquer
coisa que não fosse o
Mundo
• Vivemos antes de
  filosofar, existimos
  antes de o sabermos,
  E o primeiro fato
  merece ao menos a
  precedência e o
  culto.
• Sim, antes de sermos
  interior somos
  exterior.
  Por isso somos
  exterior
  essencialmente.
Se eu morrer muito novo, ouçam
isto:
Nunca fui senão uma criança que
brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os
homens não têm.

Fui feliz porque não pedi coisa
nenhuma,
Nem procurei achar nada,
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explicação
Que a palavra explicação não ter
sentido nenhum.

Não desejei senão estar ao sol
ou à chuva —
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Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.
Uma vez amei, julguei que me
amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única
grande razão —
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Consolei-me voltando ao sol e
à chuva,
E sentando-me outra vez à
porta de casa.

Os campos, afinal, não são tão
verdes para os que são amados
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Sentir é estar distraído.
Se depois de eu morrer, quiserem
escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples

Tem só duas datas — a da minha
nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra coisa todos os dias
são meus.

Sou fácil de definir.
Vi como um danado.

Amei as cousas sem sentimentalidade
nenhuma.

Nunca tive um desejo que não pudesse
realizar, porque nunca ceguei.

Mesmo ouvir nunca foi para mim
senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as coisas são
reais e todas diferentes umas
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Compreendi isto com os olhos,
nunca com o pensamento.

Compreender isto corri o
pensamento seria achá-las todas
iguais.

Um dia deu-me o sono como a
qualquer criança. Fechei os
olhos e dormi.

Além disso, fui o único poeta
da Natureza.
Tu, místico, vês uma significação em
todas as coisas.
Para ti tudo tem um sentido velado.
Há uma coisa oculta em cada coisa
que vês.

O que vês, vê-lo sempre para veres
outra coisa. Para mim, graças a ter
olhos só para ver,
Eu vejo ausência de significação em
todas as coisas;
Vejo-o e amo-me, porque ser uma
coisa é não significar nada.

Ser uma coisa é não ser susceptível
de interpretação.
Vive, dizes, no presente,
Vive só no presente. Mas eu não quero o
presente, quero a realidade;
Quero as coisas que existem, não o tempo que as
mede.

O que é o presente?
É uma coisa relativa ao passado e ao futuro.
É uma coisa que existe em virtude de outras
coisas existirem.
Eu quero só a realidade, as coisas sem presente.

Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas coisas como presentes;
quero pensar nelas como coisas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as
por presentes.
Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.

Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.
Tendo ideias e sentimentos por os ter
Como uma flor tem perfume e cor...

Há metafísica bastante em não pensar em
nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que ideia tenho eu das coisas?


O mistério das coisas? Sei lá o que é
mistério!
O único mistério é haver quem pense no
mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os
pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
Mas se Deus é as flores e as
árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração
e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e
pelos ouvidos.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que
Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver,
espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e
árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora
Sejamos simples e
calmos,
Como os regatos e as
árvores,
E Deus amar-nos-á
fazendo de nós
Belos como as árvores e
os regatos,
E dar-nos-á verdor na
sua primavera,
E um rio aonde ir ter
quando acabemos!
Da minha aldeia vejo quanto da
terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão
grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que
vejo
E não do tamanho da minha
altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo
deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham
a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram
o nosso olhar para longe de todo
o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos
tiram o que os nossos olhos nos
podem dar,
E tornam-nos pobres porque a
nossa única riqueza é ver.
A mim ,o Menino Jesus) ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas
flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas

Ele mora comigo na minha casa a meio do
outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.

É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu
sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
O que nós vemos das
coIsas são as coIsas.
Por que veríamos nós
uma coIsa se houvesse
outra?

Por que é que ver e
ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e
ouvir ?
O essencial é
saber ver,
Saber ver sem
estar a pensar,
Saber ver quando
se vê,
E nem pensar
quando se vê
Nem ver quando
se pensa.
Mas isso (tristes de nós
que trazemos a alma
vestida!),
Isso exige um estudo
profundo,
Uma aprendizagem de
desaprender
E uma sequestração na
liberdade daquele
convento
De que os poetas dizem
que as estrelas são as
freiras eternas
E as flores as penitentes
convictas de um só dia.
Pensar uma flor é vê-la e
cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe
o sentido.

Por isso quando num dia de
calor
Me sinto triste de gozá-lo
tanto,
E me deito ao comprido na
erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo
deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser
feliz.
É preciso ser de vez em quando
infeliz
Para se poder ser natural...

O que é preciso é ser-se natural e
calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-
se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a
noite que fica...

Assim é e assim seja...
O meu olhar azul como o céu
É calmo como a água ao sol.
É assim, azul e calmo,
Porque não interroga nem se
espanta...

Se eu interrogasse e me espantasse
Não nasciam flores novas nos prados
Nem mudaria qualquer cousa no sol
de modo a ele ficar mais belo.
(Mesmo se nascessem flores novas no
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E se o sol mudasse para mais belo,
Eu sentiria menos flores no prado
E achava mais feio o sol...
Porque tudo é como é
E assim é que é,
E eu aceito, e nem agradeço.
Para não parecer que penso nisso...)
Se quiserem que eu tenha
um misticismo, está bem,
tenho-o.

Sou místico, mas só com o
corpo.
A minha alma é simples e
não pensa.
O meu misticismo é não
querer saber.
É viver e não pensar nisso.
Não sei o que é a Natureza:
canto-a.

Vivo no cimo dum outeiro
Numa casa caiada e sozinha,
E essa é a minha definição.
(Louvado seja Deus que não
sou bom,
E tenho o egoísmo natural
das flores
E dos rios que seguem o seu
caminho
Preocupados sem o saber
Só com o florir e ir
correndo.

É essa a única missão no
Mundo,
Essa – existir claramente,
E saber fazê-lo sem pensar
nisso.)
Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso,
como quem constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não
está!...
Quando a única casa artística é a
Terra toda
Que varia e está sempre bem e é
sempre a mesma.

Penso nisto, não como quem
pensa, mas como quem respira,
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas (as flores) me
compreendem
Nem se eu as compreendo a
elas,

Mas sei que a verdade está
nelas e em mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver
pela Terra
E levar ao colo pelas Estações
contentes
E deixar que o vento cante
para adormecermos
E não termos sonhos no nosso
sono.
Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à
ideia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras.

Nem sempre consigo sentir o que
sei que devo sentir.

O meu pensamento só muito
devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os
homens o fizeram usar.
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de
lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me
pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções
verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não
Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a
Natureza produziu.

Sou o Argonauta das sensações
verdadeiras.
Trago ao Universo um novo
Universo
Porque trago ao Universo ele-
próprio.
Passa uma borboleta por
diante de mim
E pela primeira vez no
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Que as borboletas não têm
cor nem movimento,
Assim como as flores não têm
perfume nem cor.

A cor é que tem cor nas asas
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No movimento da borboleta
o movimento é que se move,
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no perfume da flor.
A borboleta é apenas
borboleta
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Porque o único sentido oculto das
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Sim, eis o que os meus sentidos
aprenderam sozinhos: –
As coisas não têm significação:
têm existência.

As coisas são o único sentido oculto
das coisas.
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1 Aprendendo A Olhar Com Alberto Caeiro

  • 1. Aprendendo a olhar, Com Alberto Caeiro
  • 2. O meu olhar é nítido como um girassol Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda, E de, vez em quando olhando para trás... E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto, E eu sei dar por isso muito bem... Sei ter o pasmo essencial Que tem uma criança se, ao nascer, Reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada momento Para a eterna novidade do Mundo... Creio no mundo como num malmequer, Porque o vejo. Mas não penso nele Porque pensar é não compreender ...
  • 3. A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas Age como um deus doente, mas como um deus. Porque embora afirme que existe o que não existe Sabe como é que as coisas existem, que é existindo, Sabe que existir existe e não se explica, Sabe que não há razão nenhuma para nada existir, Sabe que ser é estar em um ponto . Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer
  • 4. A espantosa realidade das coisas É a minha descoberta de todos os dias. Cada coisa é o que é, E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, E quanto isso me basta. Basta existir para se ser completo.
  • 5. O Mundo não se fez para pensarmos nele (Pensar é estar doente dos olhos) Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo... Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, Mas porque a amo, e amo-a por isso, Porque quem ama nunca sabe o que ama Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
  • 6. Amar é a eterna inocência, E a única inocência não pensar...
  • 7. Ah! querem uma luz melhor que a do Sol! Querem prados mais verdes do que estes! Querem flores mais belas do que estas que vejo! A mim este Sol, estes prados, estas flores contentam-me. Mas, se acaso me descontentam, O que quero é um sol mais sol que o Sol, O que quero é prados mais prados que estes prados, O que quero é flores mais estas flores que estas flores — Tudo mais ideal do que é do mesmo modo e da mesma maneira!
  • 8. Gozo os campos sem reparar para eles. Perguntas-me por que os gozo. Porque os gozo, respondo. Gozar uma flor é estar ao pé dela inconscientemente E ter uma noção do seu perfume nas nossas idéias mais apagadas. Quando reparo, não gozo: vejo. Fecho os olhos, e o meu corpo, que está entre a erva, Pertence inteiramente ao exterior de quem fecha os olhos À dureza fresca da terra cheirosa e irregular; E alguma coisa dos ruídos indistintos das coisas a existir, E só uma sombra encarnada de luz me carrega levemente nas órbitas, E só um resto de vida ouve.
  • 9. O espelho reflete certo; não erra porque não pensa. Pensar é essencialmente errar. Errar é essencialmente estar cego e surdo. O único mistério do Universo é o mais e não o menos. Percebemos demais as coisas — eis o erro, a dúvida. O que existe transcende para mim o que julgo que existe.
  • 10. A Realidade é apenas real e não pensada.
  • 11. Não basta abrir a janela Para ver os campos e o rio. Não é bastante não ser cego Para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma. Com filosofia não há árvores: há idéias apenas. Há só cada um de nós, como uma cave. Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora; E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse, Que nunca é o que se vê quando se abre a janela
  • 12. Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável, Porque para o meu ser adequado à existência das coisas . O natural é o agradável só por ser natural. Aceito as dificuldades da vida porque são o destino, Como aceito o frio excessivo no alto do Inverno — Calmamente, sem me queixar, como quem meramente aceita, E encontra uma alegria no fato de aceitar — No fato sublimemente científico e difícil de aceitar o natural inevitável.
  • 13. Aceito por personalidade. Nasci sujeito como os outros a erros e a defeitos, Mas nunca ao erro de querer compreender demais, Nunca ao erro de querer compreender só corri a inteligência, Nunca ao defeito de exigir do Mundo Que fosse qualquer coisa que não fosse o Mundo
  • 14. • Vivemos antes de filosofar, existimos antes de o sabermos, E o primeiro fato merece ao menos a precedência e o culto. • Sim, antes de sermos interior somos exterior. Por isso somos exterior essencialmente.
  • 15. Se eu morrer muito novo, ouçam isto: Nunca fui senão uma criança que brincava. Fui gentio como o sol e a água, De uma religião universal que só os homens não têm. Fui feliz porque não pedi coisa nenhuma, Nem procurei achar nada, Nem achei que houvesse mais explicação Que a palavra explicação não ter sentido nenhum. Não desejei senão estar ao sol ou à chuva — Ao sol quando havia sol E à chuva quando estava chovendo (E nunca a outra cousa), Sentir calor e frio e vento, E não ir mais longe.
  • 16. Uma vez amei, julguei que me amariam, Mas não fui amado. Não fui amado pela única grande razão — Porque não tinha que ser. Consolei-me voltando ao sol e à chuva, E sentando-me outra vez à porta de casa. Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados Como para os que o não são. Sentir é estar distraído.
  • 17. Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, Não há nada mais simples Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra coisa todos os dias são meus. Sou fácil de definir. Vi como um danado. Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma. Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei. Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
  • 18. Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes umas das outras; Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento. Compreender isto corri o pensamento seria achá-las todas iguais. Um dia deu-me o sono como a qualquer criança. Fechei os olhos e dormi. Além disso, fui o único poeta da Natureza.
  • 19. Tu, místico, vês uma significação em todas as coisas. Para ti tudo tem um sentido velado. Há uma coisa oculta em cada coisa que vês. O que vês, vê-lo sempre para veres outra coisa. Para mim, graças a ter olhos só para ver, Eu vejo ausência de significação em todas as coisas; Vejo-o e amo-me, porque ser uma coisa é não significar nada. Ser uma coisa é não ser susceptível de interpretação.
  • 20. Vive, dizes, no presente, Vive só no presente. Mas eu não quero o presente, quero a realidade; Quero as coisas que existem, não o tempo que as mede. O que é o presente? É uma coisa relativa ao passado e ao futuro. É uma coisa que existe em virtude de outras coisas existirem. Eu quero só a realidade, as coisas sem presente. Não quero incluir o tempo no meu esquema. Não quero pensar nas coisas como presentes; quero pensar nelas como coisas. Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes. Eu nem por reais as devia tratar. Eu não as devia tratar por nada. Eu devia vê-las, apenas vê-las; Vê-las até não poder pensar nelas, Vê-las sem tempo, nem espaço, Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê. É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.
  • 21. Tendo ideias e sentimentos por os ter Como uma flor tem perfume e cor... Há metafísica bastante em não pensar em nada. O que penso eu do mundo? Sei lá o que penso do mundo! Se eu adoecesse pensaria nisso. Que ideia tenho eu das coisas? O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério! O único mistério é haver quem pense no mistério. Quem está ao sol e fecha os olhos, Começa a não saber o que é o sol E a pensar muitas coisas cheias de calor. Mas abre os olhos e vê o sol, E já não pode pensar em nada, Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos De todos os filósofos e de todos os poetas.
  • 22. Mas se Deus é as flores e as árvores E os montes e sol e o luar, Então acredito nele, Então acredito nele a toda a hora, E a minha vida é toda uma oração e uma missa, E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos. E por isso eu obedeço-lhe, (Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?), Obedeço-lhe a viver, espontaneamente, Como quem abre os olhos e vê, E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes, E amo-o sem pensar nele, E penso-o vendo e ouvindo, E ando com ele a toda a hora
  • 23. Sejamos simples e calmos, Como os regatos e as árvores, E Deus amar-nos-á fazendo de nós Belos como as árvores e os regatos, E dar-nos-á verdor na sua primavera, E um rio aonde ir ter quando acabemos!
  • 24. Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo... Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer Porque eu sou do tamanho do que vejo E não do tamanho da minha altura... Nas cidades a vida é mais pequena Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro. Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave, Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu, Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar, E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
  • 25. A mim ,o Menino Jesus) ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as cousas. Aponta-me todas as cousas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas Quando a gente as tem na mão E olha devagar para elas Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro. Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. Ele é o humano que é natural, Ele é o divino que sorri e que brinca. É esta minha quotidiana vida de poeta, E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre, E que o meu mínimo olhar Me enche de sensação, E o mais pequeno som, seja do que for, Parece falar comigo.
  • 26. A Criança Nova que habita onde vivo Dá-me uma mão a mim E a outra a tudo que existe E assim vamos os três pelo caminho que houver, Saltando e cantando e rindo E gozando o nosso segredo comum Que é o de saber por toda a parte Que não há mistério no mundo E que tudo vale a pena. A Criança Eterna acompanha-me sempre. A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando. O meu ouvido atento alegremente a todos os sons São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas. Damo-nos tão bem um com o outro Na companhia de tudo Que nunca pensamos um no outro, Mas vivemos juntos e dois Com um acordo íntimo Como a mão direita e a esquerda.
  • 27. O que nós vemos das coIsas são as coIsas. Por que veríamos nós uma coIsa se houvesse outra? Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos Se ver e ouvir são ver e ouvir ?
  • 28. O essencial é saber ver, Saber ver sem estar a pensar, Saber ver quando se vê, E nem pensar quando se vê Nem ver quando se pensa.
  • 29. Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!), Isso exige um estudo profundo, Uma aprendizagem de desaprender E uma sequestração na liberdade daquele convento De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas E as flores as penitentes convictas de um só dia.
  • 30. Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido. Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto, E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes, Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz.
  • 31. Se eu pudesse trincar a terra toda E sentir-lhe um paladar, Seria mais feliz um momento... Mas eu nem sempre quero ser feliz. É preciso ser de vez em quando infeliz Para se poder ser natural... O que é preciso é ser-se natural e calmo Na felicidade ou na infelicidade, Sentir como quem olha, Pensar como quem anda, E quando se vai morrer, lembrar- se de que o dia morre, E que o poente é belo e é bela a noite que fica... Assim é e assim seja...
  • 32. O meu olhar azul como o céu É calmo como a água ao sol. É assim, azul e calmo, Porque não interroga nem se espanta... Se eu interrogasse e me espantasse Não nasciam flores novas nos prados Nem mudaria qualquer cousa no sol de modo a ele ficar mais belo. (Mesmo se nascessem flores novas no prado E se o sol mudasse para mais belo, Eu sentiria menos flores no prado E achava mais feio o sol... Porque tudo é como é E assim é que é, E eu aceito, e nem agradeço. Para não parecer que penso nisso...)
  • 33. Se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem, tenho-o. Sou místico, mas só com o corpo. A minha alma é simples e não pensa. O meu misticismo é não querer saber. É viver e não pensar nisso. Não sei o que é a Natureza: canto-a. Vivo no cimo dum outeiro Numa casa caiada e sozinha, E essa é a minha definição.
  • 34. (Louvado seja Deus que não sou bom, E tenho o egoísmo natural das flores E dos rios que seguem o seu caminho Preocupados sem o saber Só com o florir e ir correndo. É essa a única missão no Mundo, Essa – existir claramente, E saber fazê-lo sem pensar nisso.)
  • 35. Que triste não saber florir! Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro E ver se está bem, e tirar se não está!... Quando a única casa artística é a Terra toda Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma. Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira, E olho para as flores e sorrio...
  • 36. Não sei se elas (as flores) me compreendem Nem se eu as compreendo a elas, Mas sei que a verdade está nelas e em mim E na nossa comum divindade De nos deixarmos ir e viver pela Terra E levar ao colo pelas Estações contentes E deixar que o vento cante para adormecermos E não termos sonhos no nosso sono.
  • 37. Procuro dizer o que sinto Sem pensar em que o sinto. Procuro encostar as palavras à ideia E não precisar dum corredor Do pensamento para as palavras. Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir. O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.
  • 38. Procuro despir-me do que aprendi, Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro, Mas um animal humano que a Natureza produziu. Sou o Argonauta das sensações verdadeiras. Trago ao Universo um novo Universo Porque trago ao Universo ele- próprio.
  • 39. Passa uma borboleta por diante de mim E pela primeira vez no Universo eu reparo Que as borboletas não têm cor nem movimento, Assim como as flores não têm perfume nem cor. A cor é que tem cor nas asas da borboleta, No movimento da borboleta o movimento é que se move, O perfume é que tem perfume no perfume da flor. A borboleta é apenas borboleta E a flor é apenas flor.
  • 40. Porque o único sentido oculto das coisas É elas não terem sentido oculto nenhum, É mais estranho do que todas as estranhezas E do que os sonhos de todos os poetas E os pensamentos de todos os filósofos, Que as coisas sejam realmente o que parecem ser E não haja nada que compreender. Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: – As coisas não têm significação: têm existência. As coisas são o único sentido oculto das coisas.
  • 41. InovArte & Associados Rua Ceará, 1205 BH - Minas Gerais Espaçoinovarte.blogspot Espaço.inovarte@gmail.com