1. O papel das Classificações da Resumo
OMS - CID e CIF nas definições de A Organização Mundial de Saúde tem hoje
duas classificações de referência para a
deficiência e incapacidade descrição dos estados de saúde: a Classifi-
cação Estatística Internacional de Doenças
e Problemas Relacionados à Saúde, que cor-
The role of WHO Classifications - ICD responde à décima revisão da Classificação
Internacional de Doenças (CID-10) e a Clas-
and ICF - on definitions of disability sificação Internacional de Funcionalidade,
Incapacidade e Saúde (CIF). A utilização
da CIF vem sendo aguardada com grande
expectativa pelas organizações de pessoas
com deficiências e instituições relaciona-
das. A falta de definição clara de “deficiên-
cia” ou “incapacidade” tem sido apontada
como um impedimento para a promoção
de saúde de pessoas com deficiência. É
importante que essas definições, especial-
mente no âmbito legislativo e regulamen-
tar, sejam consistentes e se fundamentem
num modelo coerente sobre o processo
que origina as situações de incapacidade.
Este artigo tem como objetivo apresentar
elementos da CID-10 e da CIF, e o papel
que desempenham para definir deficiência
e incapacidade. Os componentes da CIF
podem contribuir para diferentes campos
de aplicabilidade no que diz respeito ao
entendimento das definições de deficiência
ou incapacidade a partir do conceito de fun-
cionalidade e dos fatores contextuais.
Palavras-chave: Classificação. CID-10. CIF.
Deficiências. Incapacidade.
Heloisa Brunow Ventura Di Nubila
Cassia Maria Buchalla
Centro Colaborador da OMS para a Família de Classificações Internacionais em
Português, Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública
Universidade de São Paulo
Correspondência: Heloisa Brunow Ventura Di Nubila. Av. Dr. Arnaldo, 715 – sala 40 subsolo
(CBCD). CEP 01246-904 São Paulo, SP. E-mail: hdinubil@usp.br
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2. Abstract Introdução
The World Health Organization has two A definição e a mensuração da inca-
current reference classifications for the des- pacidade tornaram-se tema de crescente
cription of health conditions: ICD-10 (Inter- interesse, em especial a partir do momento
national Statistical Classification of Diseases em que as pessoas começaram a viver mais
and Health Related Problems) and ICF tempo, quando aumentaram as doenças
(International Classification of Functioning, crônicas e suas conseqüências1. A falta
Disability and Health). The utilization of the de uma definição clara de “deficiência ou
ICF is being awaited with high expectations incapacidade” tem sido apresentada como
by organizations of people with disabilities um impedimento para a promoção da saúde
and related institutions. The lack of a clear de pessoas com deficiência. A vigilância e a
definition of “disability” is being pointed out intervenção dependeriam da capacidade
as a deterrent for promoting the health of para identificar as pessoas que deveriam
people with disabilities. It is important that ser incluídas nesta definição2.
these definitions, especially for legal and Os termos “queixas médicas, moléstia,
regulatory fields, be consistent and based on enfermidade, doença crônica, distúrbio,
a coherent model on the process that leads limitações funcionais, deficiência e inca-
to situations of disability. This article aims pacidade para o trabalho” representam
to present elements of the ICD-10 and ICF fenômenos complexos e mal definidos. A
and their role on definitions of disability. deficiência muitas vezes não pode ser ob-
The ICF components could contribute to servada diretamente, mas pode ser inferida
different fields of applicability regarding the a partir de causas presumidas (prejuízos,
understanding of definitions of disability danos) com suas distintas conseqüências,
through functioning and contextual factor isto é, uma restrição ou incapacidade para
concepts. desempenhar normalmente vários papéis,
principalmente de trabalho. Danos à saúde
Kewwords: Classification. IDC-10. ICF. De- que causam deficiência precisam ser avalia-
ficiencies. Incapacity. dos medicamente, mas a certificação clínica
de dano, embora seja necessária, pode não
ser suficiente para atestar a incapacida-
de para o trabalho ou elegibilidade para
benefícios3. O processo de certificação de
deficiência ou incapacidade pode às vezes
ser bastante litigioso devido a diferenças
entre suas definições legais, administrativas,
sociais e culturais. Diferentes sistemas defi-
nem deficiência ou incapacidade de acordo
com suas próprias necessidades e regula-
ções, mas as definições em geral carecem
de critérios específicos, impossibilitando
determinações mais precisas4. Para quem
certifica a condição, para fins de acesso a
vários tipos de benefícios, a questão das de-
finições de deficiência apresenta-se de modo
constante. Quem é e quem não é elegível? Ao
utilizar habitualmente os códigos da CID-10
para cobrir exigências legais, os médicos e
outros profissionais podem questionar quais
são os limites, dentro de um conjunto de
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3. situações muito vasto e heterogêneo. Estes passou a ser uma classificação que incluiu
profissionais podem ainda questionar o uso todas as doenças e motivos de consultas,
de definições legais vagas como parâmetro, possibilitando seu uso em morbidade7.
estas fortemente ancoradas em diagnósti- O conceito de uma “Família” de Classifi-
cos médicos, com pouquíssima orientação cações foi surgindo na medida da percepção
quanto a aspectos funcionais. dos usuários de que uma classificação de
As definições de incapacidade de âmbito doenças não seria suficiente para todas as
legislativo e regulamentar têm de ser con- questões relacionadas à saúde. Segundo esse
sistentes e se fundamentar em um modelo conceito, a CID atenderia as necessidades
coerente sobre o processo que origina a de informação diagnóstica para finalidades
incapacidade, para que o desenvolvimento gerais, enquanto outras classificações se-
das políticas seja baseado em dados válidos riam usadas em conjunto com ela, tratando
e fiáveis sobre o estado funcional da popu- com diferentes enfoques informações sobre
lação5. A publicação da CIF neste caminho, procedimentos médicos e cirúrgicos e as
como classificação complementar à CID, incapacidades, entre outros. Assim, a partir
com seu foco na funcionalidade, trouxe o da Décima Revisão foi aprovada a idéia de
interesse em explorar as sobreposições e in- desenvolver uma “família” de classificações
terfaces das duas classificações, no que tan- para os mais diversos usos em administração
ge aos próprios limites a serem desenhados de serviços de saúde e epidemiologia6,7.
para as definições de deficiência. Associar A idéia de desenvolvimento da CIF
as categorias de diagnósticos de estados partiu da necessidade de cobrir as ques-
de saúde da CID-10 com os elementos da tões que não eram alcançadas pela CID, a
recém-apresentada CIF, oferecendo uma princípio as conseqüências das doenças.
discussão sobre a prática possível a partir Isto foi amplamente publicado, avaliado e
das duas classificações, pode contribuir revisado. Assim, a CIF pertence à “família”8
para um melhor entendimento de possíveis apresentada acima, e foi desenvolvida a
definições de deficiência ou incapacidade. partir da “Classificação Internacional das
Os autores, através de documentação as- Deficiências, Incapacidades e Desvanta-
sinada e enviada a RBE, declaram não existir gens” publicada em 1980 (nesta versão,
nenhum tipo de conflito de interesses. Classificação Internacional de Deficiências,
Incapacidades e Desvantagens ou Interna-
Breve histórico das duas classificações tional Classification of Impairments, Disa-
bilities and Handicaps, conhecidas pelas
A Classificação Internacional de Do- siglas CIDID em português ou ICIDH do
enças (CID) veio sendo estruturada, por nome em inglês), em caráter experimental
mais de um século, primeiro como forma para propósitos de teste, que incorporava
de responder à necessidade de conhecer categorias que correspondiam às conseqü-
as causas de morte. Passou a ser alvo de ências duradouras das doenças 9,10.
crescente interesse e seu uso foi ampliado A CIF foi desenvolvida após estudos de
para codificar situações de pacientes hospi- campo sistemáticos e consulta internacio-
talizados, depois consultas de ambulatório nal que começaram no início dos anos 90,
e atenção primária, sendo seu uso sedi- sendo então aprovada em maio de 2001
mentado também para morbidade. A sua para uso internacional8,11. Foi endossada
Décima Revisão, denominada “Classificação como segunda edição da ICIDH11, refletindo
Estatística Internacional de Doenças e Pro- o conhecimento e o pensamento de uma
blemas Relacionados à Saúde”, ou de forma década diferente12,13. Organizações como
abreviada “CID-10”, é a mais recente revisão a Rehabilitation International (RI) tiveram
da “Classificação de Bertillon” de 18936, que participação importante em questões con-
era inicialmente uma classificação de causas ceituais ao longo das revisões sucessivas
de morte, e apenas a partir da Sexta Revisão da CIDID/ICIDH até a versão final da CIF9.
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4. Foi um processo com ampla participação epidemiológicos gerais e administrativos
internacional, envolvendo mais de 50 países da saúde, incluindo análise de situação
e 1.800 peritos com todos os centros colabo- geral de saúde de grupos populacionais e
radores, grupos de trabalho específicos para o monitoramento da incidência e preva-
algumas partes, instituições internacionais lência de doenças e outros problemas de
representativas e redes internacionais11,13. saúde. Embora a CID seja adequada para
A versão final da Classificação Interna- estas aplicações, ela nem sempre permite a
cional de Funcionalidade, Incapacidade e inclusão de detalhes suficientes para algu-
Saúde, foi disponibilizada nos seis idiomas mas especialidades, e às vezes pode ser ne-
oficiais na página da família de classifica- cessária a informação acerca de diferentes
ções da OMS e publicada na língua portu- atributos das afecções classificadas6. A CID
guesa para todos os países lusófonos em registra uma condição anormal de saúde e
novembro de 2003 também disponível na suas causas, sem registrar o impacto destas
página http://www.fsp.usp.br/~cbcd11,13,14. condições na vida da pessoa ou paciente, e é
hoje uma exigência legal para todos os bene-
CID-10 e CIF fícios e atestados relacionados ao paciente15.
A maioria das leis no Brasil, que concede
A OMS agora tem duas classificações de benefícios a pessoas com deficiência, tem
referência para a descrição dos estados de como exigência a apresentação de laudo
saúde: a CID-10 e a CIF12. Na família de clas- médico, algumas vezes acompanhado da
sificações internacionais da OMS, as con- avaliação e assinatura de outros profissio-
dições ou estados de saúde propriamente nais de equipes multiprofissionais, com o
ditos (doenças, distúrbios, lesões, etc.) são preenchimento de campos específicos para
classificados principalmente na CID-10, que códigos da CID ou a simples informação
fornece um modelo basicamente etiológico, destes códigos em atestados médicos em
embora tenha uma estrutura com diferentes receituário comum assinado por médico.
eixos ou grandes linhas de construção, entre A CIF, como uma classificação que se
estes o etiológico, o anátomo-funcional, o propõe a retratar os aspectos de funciona-
anátomo-patológico, o clínico e o epide- lidade, incapacidade e saúde das pessoas, o
miológico. A funcionalidade e incapacidade que pode ser entendido como um objetivo
associadas aos estados de saúde são classi- geral, adquire um caráter multidisciplinar,
ficadas na CIF8,11. com possibilidade de aplicação em todas as
Uma classificação de doenças é definida culturas e trazendo pela primeira vez a in-
como um sistema de categorias atribuídas a corporação dos aspectos de contexto. Isto a
entidades mórbidas segundo algum critério torna um instrumento bem mais complexo
estabelecido, com vários eixos possíveis de que a CID, o que faz com que exija um maior
classificação. Um determinado eixo pode detalhamento. Entre seus objetivos espe-
ser selecionado, dependendo do uso das es- cíficos, está o de oferecer um modelo para
tatísticas elaboradas. Em uma classificação a compreensão dos estados de saúde e de
estatística de doenças, todas as entidades condições relacionadas, bem como de seus
mórbidas devem estar incluídas dentro de determinantes e efeitos, além de estabelecer
um número administrável de categorias6. uma linguagem comum para a descrição
Como a CID-10 é uma publicação oficial completa da experiência de saúde de um
da OMS, os países membros devem adotá-la indivíduo, melhorando a comunicação en-
para finalidade de apresentações estatísti- tre as pessoas interessadas e os profissionais
cas das causas de morte (mortalidade) ou da área. Como instrumento estatístico, a CIF
das doenças que levam a internações hos- pode servir para a apresentação e compa-
pitalares ou atendimentos ambulatoriais ração de dados entre países, disciplinas de
(morbidade). Hoje é a classificação diagnós- cuidados de saúde, entre diferentes tipos de
tica padrão internacional para propósitos serviços e longitudinalmente no tempo8,11.
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5. Estes objetivos estão interrelacionados e uso de instrumentos de avaliação podem
envolvem a necessidade de traduzir um ser codificados usando-se os termos da CIF.
modelo teórico em um sistema prático e útil Por exemplo, entre as funções do corpo, a
para aplicação em diferentes usos, especial- “visão” é definida como a possibilidade de
mente como base para estatística. uma pessoa ver objetos com nitidez a dis-
A CIF é uma classificação de saúde e tâncias variadas, além do campo visual e da
de domínios relacionados à saúde e estes qualidade da visão, enquanto a gravidade
são agrupados de acordo com suas carac- da dificuldade de visão pode ser codificada
terísticas comuns (tais como origem, tipo como de nível leve, moderado, grave ou
ou similaridade) e ordenados de um modo completo8,11.
significativo8. Com uma estrutura que obe- O uso de qualquer código da CIF deve
dece a um modelo, sua informação está ser acompanhado por pelo menos um
organizada em três componentes: qualificador, que dá a medida da gravidade
• O “Corpo”, compreendendo duas clas- do problema em questão, como apontado
sificações, uma para funções do corpo acima (leve, moderado, grave ou total). O
e uma para estruturas do corpo. Os qualificador é apresentado como mais um
códigos usados para funções corporais dígito adicionado ao código e completa a
são precedidos da letra “b” (de body informação fornecida. Sem os qualificado-
functions) e as estruturas corporais pela res, os códigos não têm significado quando
letra “s” (de structure); usados para avaliar a situação de saúde de
• “Atividade” e “Participação”, que é o que indivíduos ou em estudos de casos8,11. Assim,
o “corpo” realiza. Representam aspectos ao avaliar as condições das pessoas com
da funcionalidade a partir da perspecti- problemas, deficiências, doenças, quando
va individual e social, incluídas em uma estas interferem (ou não) na execução de
lista única que engloba todas as áreas atividades, os qualificadores permitem
vitais, das quais fazem parte desde a mensurar, tanto a interferência negativa,
aprendizagem básica até interações gerando uma limitação, como a positiva,
interpessoais ou de trabalho8,9. Os códi- melhorando a execução destas atividades.
gos para “atividades e participação são Essa avaliação pode ainda considerar o que
precedidos pela letra “d” (de domain). é possível fazer em um ambiente padrão, de
• O “contexto”, que é a circunstância em teste, e na vida real.
que o “corpo” realiza suas “atividades e Os domínios de Atividade e Participação
participação”. Entre os fatores contex- são qualificados por dois qualificadores: de-
tuais estão incluídos os “fatores am- sempenho e capacidade. O qualificador de
bientais”, que representam o ambiente desempenho descreve “o que um indivíduo
físico, social e de atitudes nos quais as faz no seu ambiente real”. Este “ambiente
pessoas vivem e conduzem suas vidas e real” representa o contexto social e físico
que têm um impacto sobre todos os três em que o indivíduo vive no seu dia-a-dia.
componentes. Estes são organizados em Assim, o qualificador “desempenho” pode
uma lista partindo do ambiente mais também ser entendido como “envolvimento
próximo do indivíduo para o ambiente em uma situação de vida” ou “a experiência
mais geral e são representados pelos vivida” da pessoa no contexto real em que
códigos que se iniciam com a letra “e” vive. O qualificador de capacidade descreve
(de environment). “a capacidade de um indivíduo para exe-
As definições operacionais da CIF cutar uma tarefa ou ação em um ambiente
descrevem os atributos essenciais de cada uniforme” e seria o nível provável mais
componente e contêm pontos de ancora- elevado que uma pessoa poderia alcançar
mento para avaliação, de modo que estas na execução de uma determinada tarefa
podem ser traduzidas em questionários ou, ou ação em um dado momento. Este “am-
ao contrário, os resultados obtidos com o biente uniforme” (ou neutro) representa os
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6. ambientes relevantes para a tarefa ou ação sobre o diagnóstico e sobre a funcionalidade
especificada, e não deve ter barreiras ou fornecem uma imagem mais ampla e mais
obstáculos, de modo a permitir a avaliação significativa para descrever a saúde das pes-
da total capacidade do indivíduo8,11. soas ou de populações, que pode ser utiliza-
Os fatores ambientais, que são externos da, entre outros, para propósitos de tomada
ao indivíduo, podem ter influência positiva de decisão8,11. Enquanto a CID-10 fornece
ou negativa sobre a sua participação como os códigos para mortalidade e morbidade,
um membro da sociedade, no desempenho a CIF fornece os códigos para descrever a
de atividades ou mesmo sobre alguma fun- variação completa de estados funcionais
ção ou estrutura corporal8,11. que capturam a experiência completa de
Os fatores pessoais, que ainda não são saúde16. O modelo mais amplo de funciona-
detalhados na CIF, são as características lidade, incapacidade e saúde oferecido pela
individuais de cada pessoa que não são CID-10 e pela CIF, quando aplicado para a
parte de uma condição de saúde ou estado construção de instrumentos para levanta-
de saúde, mas influem na maneira como o mentos de saúde e incapacidade, poderia
indivíduo lida com a doença e suas conse- reforçar o campo da pesquisa em saúde e
qüências. Incluem raça, gênero, idade, nível incapacidade, na infância17 , mas também
educacional, experiências, estilo de vida, nas outras etapas do ciclo de vida.
aptidões, outras condições de saúde, prepa-
ro físico, hábitos, modos de enfrentamento, Definições de deficiência ou
condição ou nível social, profissão e mesmo incapacidade da CIF
a experiência passada e atual8,11.
A informação sobre a doença e as ha- O desenvolvimento de uma terminologia
bilidades funcionais afetadas está incluída formal relacionada à funcionalidade e à inca-
nas descrições de estados de saúde. A CIF pacidade constitui um desafio, especialmente
oferece um perfil ou resumo destas habi- devido à ambigüidade conceitual dentro deste
lidades funcionais, que são definidas de campo. A CIF é uma grande fonte de termos
um modo padronizado para permitir de relevantes, conceitos e relações necessárias
alguma maneira observação e mensuração. para o desenvolvimento de terminologias
As descrições de saúde, partindo do modelo formais, e assim oferece um importante ponto
da CIF, podem oferecer uma ferramenta de partida neste desafio18.
útil para chegar a exercícios de avaliação Durante décadas foram disponibilizadas
conceitualmente compreensíveis e signi- ferramentas úteis para coletar dados sobre
ficantes. Usando o modelo da CIF, pode-se causas de morte e modos de estimar a mor-
estudar a mudança (adaptação, enfrenta- talidade da população. Embora as discipli-
mento, ajustamento e acomodação) após nas da reabilitação tenham produzido inú-
um evento que produz uma determinada meros instrumentos de avaliação e medidas
condição de saúde, uma vez que a CIF de qualidade de vida, faltava uma completa
permite a codificação e o uso de qualifica- classificação que pudesse assegurar coleta
dores para medidas de capacidade, fatores de dados confiáveis e comparabilidade in-
ambientais e fatores pessoais8,11. ternacional. Esta foi a primeira motivação
Em suma, a CID-10 e a CIF são consi- que levou ao desenvolvimento da CIF, que
deradas classificações complementares e agora serve como modelo da OMS para
os usuários são estimulados a utilizá-las saúde e incapacidade, como base conceitual
em conjunto. A CID-10 fornece um “diag- para a definição, medidas e formulações de
nóstico” de doenças, distúrbios ou outras política para todos os aspectos da deficiên-
condições de saúde e essas informações cia ou incapacidade19,20.
são complementadas pelas informações Ao construir as definições das categorias
adicionais fornecidas pela CIF sobre fun- da CIF, foram consideradas características
cionalidade. Em conjunto, as informações ideais das definições operacionais. São
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7. consideradas características ideais das fatores ambientais que interagem com
definições elas terem um significado e con- todos estes construtos8.
sistência do ponto de vista lógico, identifi-
cando unicamente o conceito mencionado Na CIF, o termo deficiência corresponde,
pela categoria; e serem exclusivas e precisas, como descrito acima, a alterações apenas no
apresentando as características ou qualida- nível do corpo, enquanto o termo incapaci-
des essenciais do conceito e obedecendo às dade seria bem mais abrangente, indicando
regras de taxonomia. Os termos utilizados os aspectos negativos da interação entre
devem ser neutros, sem conotações negati- um indivíduo (com uma determinada con-
vas. Cada definição contém, como também dição de saúde) e seus fatores contextuais
se observa na CID, notas de inclusão com (fatores ambientais ou pessoais)11, ou seja,
sinônimos e exemplos, bem como notas de algo que envolva uma relação dinâmica. Um
exclusão para alertar sobre possíveis confu- indivíduo pode apresentar uma deficiência
sões com termos relacionados11. (no nível do corpo) e não necessariamente
A seguir são alistadas as definições dos viver qualquer tipo de incapacidade. De
componentes da CIF. modo oposto, uma pessoa pode viver a in-
• Funções Corporais: são as funções fisio- capacidade sem ter nenhuma deficiência,
lógicas ou psicológicas dos sistemas do apenas em razão de estigma ou preconceito
corpo. (barreira de atitude).
• Estruturas Corporais: são as partes A CIF faz um deslocamento paradigmá-
anatômicas do corpo tais como órgãos, tico do eixo da doença para o eixo da saúde,
membros e outros componentes. trazendo uma visão diferente da saúde, que
• Deficiências: são problemas na função permite entender a condição ou estado
ou estrutura corporal, tais como um de saúde dentro de contextos específicos.
desvio ou perda significativos. Como classificação de saúde, a CIF introduz
• Funcionalidade: refere-se a todas as fun- um novo modo de compreender a situação
ções do corpo e desempenho de tarefas de saúde de indivíduos ou populações, mais
ou ações como um termo genérico. dinâmico e mais complexo, compatível com
• Incapacidade: serve como um termo o quadro multidimensional que envolve a
genérico para deficiências, limitações experiência completa de saúde.
de atividades e restrições à participação, O modelo dinâmico da CIF é mostrado
com os qualificadores de capacidade abaixo, na Figura 1, incluindo os fatores
ou desempenho. A CIF também alista contextuais.
Fonte: OMS, CIF, 200311 / Source: WHO, ICF, 2003
Figura 1 – Interações entre os componentes da CIF
Figure 1 – Interactions between ICF components
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8. Uma importante característica da abor- Na descrição de desfechos de saúde não
dagem que foi adotada na CIF é a “universa- fatais, a CIF pode funcionar como uma “Pe-
lização” do entendimento de deficiência ou dra de Rosetta”, assim como aponta Üstun
incapacidade, pois reconhece a população (2002), ou seja, como uma matriz de tradu-
inteira como sendo passível de apresentar ção para permitir a interlocução entre vários
uma doença crônica, deficiência ou inca- instrumentos usados para descrever ou ava-
pacidade, como uma condição humana liar diferentes estados de saúde. Segundo
compartilhada21. esta idéia, quase todos estes instrumentos
O esquema da CIF não fornece limites poderiam ser mapeados dentro da CIF, que
para definir quem é deficiente e quem não é; representaria um modelo comum11.
em vez disso, ela reconhece aspectos e graus Tanto no setor da saúde como em outros
de deficiência ou incapacidade ao longo de setores que necessitam avaliar o estado
toda a população. Muitos usos estatísticos funcional das pessoas, como é o caso da
de dados de deficiência ou incapacidade não previdência social, do emprego, da educa-
requerem o estabelecimento de limites, não ção e dos transportes, entre outros, a CIF
existindo necessidade, nestas abordagens, pode desempenhar um papel importante5.
de uma definição de quem se conta como Segundo Frank Mulcahy (2005), secre-
deficiente e quem não. Assim, a comparação tário da “Disabled Peoples’ International”
internacional de estatísticas de deficiência (DPI), “por muitos anos, esta organização
não requer necessariamente pontos de limite e muitas de outras organizações não-
para serem resolvidos21. A CID-10 e a CIF são governamentais (ONGs) internacionais não
classificações amplas, que podem descrever adotaram uma definição de deficiência ou
qualquer estado de saúde ou de funciona- incapacidade. Isto se deveu a muitas cir-
lidade, sem definir limites. Na realidade, a cunstâncias, incluindo as seguintes, mas
CID-10 faz parte do modelo da CIF, estando não restritas a estas: muitas definições di-
colocada no primeiro módulo da Figura 1, ferentes usadas na legislação em diferentes
que representa o seu modelo dinâmico, no países; a maioria das definições em uso
lugar reservado às condições ou estados de eram definições médicas; havia problemas
saúde, que incluem os distúrbios ou doenças. com traduções de diferentes definições;
É este modelo que se mostra como o mais aceitação em alguns países de termos rejei-
aproximado da descrição da experiência de tados em outros; a CIDID/ICIDH”22.
incapacidade vivida pelos indivíduos em A CIDID/ICIDH, como um dos motivos,
qualquer condição de saúde, e portanto útil defendidos por Mulcahy, para não adotar
para apreender as variáveis envolvidas nesta uma definição de deficiência ou incapa-
situação dinâmica de interação do indivíduo cidade, possivelmente se deve ao modelo
com um determinado contexto. médico no qual se baseava. Neste, a falta
Seus componentes descrevendo as ex- de mudança ao longo do tempo e o fluxo
periências relacionadas à saúde substituem unidirecional da deficiência para incapaci-
os termos “deficiência”, “incapacidade” dade e para desvantagem foi alvo de mui-
e “desvantagem”, usados anteriormente, tas críticas11. A adoção de representações
permitindo estender seus significados para gráficas alternativas resultou no modelo
incluir também, e principalmente, as expe- dinâmico multidirecional e interativo da
riências positivas. Os novos termos são defi- CIF11, apresentado na Figura 1.
nidos e detalhados dentro da classificação. Para Mulcahy, pode-se ter qualquer nú-
É importante lembrar que estes são usados mero de definições usadas para diferentes
com significados específicos e podem diferir legislações, e isto cabe, particularmente,
do seu uso corriqueiro8. Assim, é possível para definições de deficiência ou incapaci-
observar o uso intercambiável das palavras dade usadas para Pagamentos de Benefícios
deficiência e incapacidade, tanto na língua em comparação com as definições Educa-
portuguesa, como na inglesa e em outras. cionais, de Treinamento e Emprego22.
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9. A DPI foi representada no processo de dos no desenvolvimento de medidas para
revisão da CIDID/ICIDH para se chegar ao situações de incapacidade. A maioria dos
documento final, a CIF, que adota também o instrumentos mede uma mistura de expe-
modelo social de deficiência ou incapacida- riências que incluem sintomatologia, apoio
de, em comparação com o modelo médico social, carga sobre a família, satisfação,
previamente usado. Mulcahy22 afirma que a bem-estar subjetivo e qualidade de vida.
DPI se viu requisitada a declarar, em várias O modelo da CIF deverá servir como base
ocasiões, qual definição de deficiência ou para futuras definições de referência para o
incapacidade gostaria de ver utilizada e que fenômeno da incapacidade e deve constituir
a definição apresentada pelo modelo da o padrão para medidas que possam melhor
CIF poderia ser utilizada para os seus pro- informar a política pública, a alocação de
pósitos, ou seja. “o resultado da interação recursos, o gerenciamento de cuidados de
entre uma pessoa com uma deficiência e as saúde e muitos outros aspectos de uma
barreiras ambientais e de atitudes que possa necessária resposta social à situação de
enfrentar”. Assim, Mulcahy propõe que incapacidade1.
esta poderia ser utilizada para o momento Quando a definição de deficiência pre-
como definição preferida esperando que se cisa ser aplicada para a infância, a questão
possa ter uma definição melhorada quando adquire uma complexidade própria. A expe-
o Conselho Mundial da DPI permitir um riência de uma condição de saúde crônica e
debate sobre esta questão22. a incapacidade para crianças e jovens não é
Esta opção pela definição da CIF, com os a mesma dos adultos, em especial devido à
argumentos apresentados, possivelmente natureza variável do desenvolvimento. Este
se deve ao importante apoio e participação torna particularmente difícil medir ou mes-
das ONG de pessoas com deficiência na mo diagnosticar a incapacidade em crian-
mudança do modelo da CIDID/ICIDH até ças muito pequenas. Neste ciclo da vida,
o modelo atual da CIF, descrito como um tradicionalmente, a incapacidade tem sido
modelo bio-psico-social, mais adequado igualada à morbidade, e esta ambigüidade
para o entendimento das situações de inca- de definições faz com que os dois conceitos,
pacidade vividas em diferentes contextos. de condição de saúde crônica e de deficiên-
Para Chaterji e col. (1999), definições cia ou incapacidade sejam, com freqüência,
de “deficiência ou incapacidade” não de- medidos e identificados de modo incorreto.
veriam ser determinadas pelo modo como Levantamentos incluindo instrumentos
os dados serão usados. Elas deveriam ser baseados na CID-10 e na CIF, que possam
determinadas por um modelo conceitual medir de modo distinto condições de saúde
claro e coerente que se prestasse a testagem crônicas, os domínios de incapacidade e
empírica. As definições poderiam ser base- fatores ambientais que têm impacto sobre
adas em pontos de ancoramento e limites, a incapacidade, poderiam facilitar o en-
não meramente aqueles que se referem a tendimento da incapacidade e saúde nas
dificuldades e assistência, mas aqueles que crianças, no contexto do modelo de saúde
capturam o impacto na vida do indivíduo e internacional oferecido pela OMS 17.
incorporam medidas individuais e sociais. O uso combinado da CID-10 e da CIF
Referindo-se ao processo de revisão que oferece o compromisso de uma linguagem
veio a resultar na CIF, o processo de medida comum para documentar a natureza e
para avaliar a situação de incapacidade é distribuição da incapacidade em crianças
multidimensional: envolve funções e es- em sistemas de serviços de intervenção
truturas corporais, bem como as atividades precoce ou outros serviços mais gerais para
de uma pessoa e o contexto ambiental ou crianças23.
social da pessoa cuja funcionalidade está Na CIF é sugerida uma lista mínima
sendo avaliada. Não existe consenso sobre para sistemas ou pesquisas de informações
que componentes deveriam ser emprega- de saúde ideais e mínimos, que podem ser
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10. pontos de partida para a exploração de cate- A CIF, ao ser usada de uma forma mais
gorias da CIF para definições de deficiência ampla ou mais consistente, permitirá que
ou incapacidade. se adote uma nova terminologia, que se pa-
dronizem conceitos e que se reflita sobre o
Comentários finais tema, podendo contribuir para tornar mais
claro o uso das palavras, para conseguir um
A CIF foi desenvolvida ao longo de duas entendimento e uma comunicação mais
décadas que compõem o pano de fundo de uniforme entre as pessoas interessadas
importantes mudanças de concepções e no nesta área, buscando alcançar as vanta-
modelo da classificação, com a aprovação gens de sua terminologia padronizada. No
e publicação de documentos de extrema Brasil, algumas leis já contêm elementos
relevância para o movimento de direitos das de definição da CIDID/ICIDH, mas ainda
pessoas com deficiência no mundo. pouco se avançou para a incorporação da
A utilização da CIF pode contribuir de CIF. Algumas discussões ainda são pauta-
forma positiva para o estabelecimento de das nas definições da CIDID/ICIDH, com
políticas públicas voltadas para as pessoas o uso do seu modelo linear negativo e da
com deficiência ou incapacidade. O novo idéia de “handicap” ou “desvantagem”. Isto
modelo trazido pela CIF, ao ser utilizado, possivelmente se deve ao fato de o modelo
pode fornecer informações que ajudem a experimental da CIDID/ICIDH ter vigorado
estabelecer políticas de saúde, a promover por muitos anos antes de ser revisado resul-
a igualdade de oportunidades para todos e tando na CIF, sendo o modelo desta ainda
a apoiar a luta contra a discriminação das pouco conhecido e entendido. Isto aponta
pessoas com deficiência ou incapacidade. para a necessidade de que seja apresentado
A CIF foi incluída, mesmo antes da sua aos profissionais da área, grupos de pessoas
edição, como padrão para caracterização com deficiência, ativistas de direitos, enfim
da deficiência na proposta do Estatuto da a quantos grupos mais possam se tornar
Pessoa com Deficiência, apresentada em interlocutores e agentes multiplicadores
consulta pública ao Senado Federal, embora com especial senso crítico, para elaborar po-
esta menção tenha desaparecido e reapare- líticas mais justas e mais claras para pessoas
cido em minutas subseqüentes. Este pode com deficiência ou incapacidade.
ser o reflexo da grande expectativa com a Para o futuro, espera-se o desenvolvi-
qual é aguardada, no Brasil, a utilização mento de algoritmos que determinem di-
da CIF em português, em especial pelas reitos para benefícios e pensões, utilizando
organizações de pessoas com deficiências e um melhor entendimento das definições
instituições relacionadas. Outro exemplo de de deficiência ou incapacidade da CIF para
uso em nosso meio, mesmo reconhecendo as questões de elegibilidade. Definições e
a complexidade própria da classificação, é limites desenhados a partir da classificação
a aplicação da CIF em um instrumento de devem conter elementos de deficiência (no
avaliação para a concessão do Benefício de nível do corpo) associados com incapaci-
Prestação Continuada (BPC). O Ministério dade (aspecto negativo de interação entre
do Desenvolvimento Social e Combate à a condição de saúde e fatores contextuais),
Fome criou um Grupo de Trabalho Inter- com qualificadores de gravidade.
ministerial, para propor novos parâmetros É importante que o poder público e os
e procedimentos de avaliação das pessoas formuladores de políticas participem da
com deficiência para acesso ao BPC, que discussão para a obtenção de definições
optou por elaborar novos instrumentos e avaliações mais claras e mais justas da
de avaliação com base no modelo da CIF, deficiência ou incapacidade.
tendo já realizado estudo piloto com gru- A CIF é de propriedade de todos os seus
pos de médicos peritos do INSS, com boa usuários. A sociedade interessada, em espe-
aceitação. cial as pessoas com deficiência, as organiza-
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11. ções sociais e os formuladores de políticas, de vida das pessoas com deficiência venham
devem se apropriar do conhecimento sobre a fazer parte das estatísticas, permitindo
os usos potenciais da CID-10 e da CIF. O uso guiar ações e decisões, delinear políticas,
destas classificações como instrumentos definir intervenções e destinar orçamentos,
pode contribuir para que as reais condições entre outras.
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