2.
Florbela Espanca é a poetisa da dor, da insatisfação constante e
principalmente do amor, mas não do amor completo, leve e bem
resolvido e sim do amor conturbado, do amor nunca plenamente
encontrado ou correspondido, um sentimento profundamente
sofrido. Veio ao mundo com uma predisposição para a
obsessão. Assim como dizia nos versos do soneto Amar ela
buscava um outro tipo de amor:
“Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!
3. Ela amava o próprio sentimento de amar. Era isto o que Florbela ansiava e
que consequentemente lhe trouxe toda a sorte de decepções por toda sua
existência. Padeceu por toda a vida o problema da neurastenia,
possivelmente herdada pela mão que morrera jovem de neurose, o que a
deixava constantemente exausta tanto física quanto mentalmente Mas ao
mesmo tempo que a dor e a doença provocaram-lhe todo o tipo de
infortúnios também trouxe-lhe a contribuição na elaboração de seus versos
e contos. Escreveu os livros de sonetos: Livro de Mágoas, Livro de Sóror
Saudade. Charneca em Flor e Reliquiae. Aventurou-se também pelos contos
escrevendo as obras: As Máscaras do Destino, Diário do Último Ano, O
Dominó Preto.
Teve a favor e contra si própria constituir-se como um mito o que de certa
forma desmereceu a sua figura como poetisa e seus méritos literários.
Profundamente incompreendida pela sociedade de sua época teve sua
escrita comparada a das poetisas de salão que proliferavam no momento.
Muitos consideravam seus versos patéticos frutos de uma futilidade de seu
mundo burguês, outros os consideravam um despautério devido a
conotações sensuais. Seus versos sofreram todo o tipo de alteração quando
publicados. Por vezes perdiam-se até mesmo as rimas devido às tamanhas
alterações sofridas o que lhe provocava revolta e desgosto.
A dificuldade em enquadra-la em certo tipo de cânone estético fora outro
problema ao seu reconhecimento. A verdade é que apresentou variados
traços estéticos das escolas finisseculares.
4. Florbela é tida por muitos autores como Neo-romântica demonstrando
isto em seu subjetivismo, individualismo, pessimismo, desencanto e
principalmente na tendência e convicção de superioridade de destino
dos poetas românticos que viam o sofrer como a glória e a libertação.
Outros atribuem a Florbela características decadentistas- simbolistas
comparando-a ao contemporâneo Mario de Sá Carneiro em suas
explosões de temas angustiantes, no lirismo e na expansão de
sensibilidade inquieta em estado de crise onde proliferaram os
claustros, as quimeras, os castelos junto aos céus, elementos cambiantes
e sinestésicos que lembram muito este período literário.
A escolha pelo soneto leva-a a ligações com traços parnasianos.
Escolheu o soneto decassílabo talvez por pura inconsciência a princípio,
porém elegeu-o como principal forma estética, sendo também desta
maneira uma cultora da forma onde recebe influencias desde Camões
até Antero de Quental um dos escritores que mais teve influencia sobre
sua obra.
Ao Modernismo possivelmente pouco ou nada se tem em sua escrita. A
atitude de vanguarda de Florbela, o feminismo a flor da pele são as suas
características modernistas, porém elementos estéticos que se afinem ao
Modernismo ou ao movimento Orpheu não sobressaem em sua obra.
De seu contemporâneo Antonio Nobre, poeta decadentista, surge a
aproximação e a profunda admiração. Ela própria se intitula “A ANTO”
em um dos seus sonetos:
5. A Anto!
Poeta da saudade, ó meu poeta querido
Que a morte arrebatou em seu sorrir fatal,
Ao escrever o Só pensaste enternecido
Que era o mais triste livro deste Portugal,
Pensaste nos que liam esse teu missal,
Tua bíblia de dor, teu chorar sentido
Temeste que esse altar pudesse fazer mal
Aos que comungam nele a soluçar contigo!
Ó Anto! Eu adoro os teus estranhos versos,
Soluços que eu uni e que senti dispersos
Por todo o livro triste! Achei teu coração…
Amo-te como não te quis nunca ninguém,
Como se eu fosse, ó Anto, a tua própria mãe
Beijando-te já frio no fundo do caixão!
6. Refere-se assim muitas vezes a Antonio e julga-se incapaz de chegar a
altura deste poeta o que nos mostra certo contraste de caráter devido ao
seu egotismo constante.
De Américo Durão, Colega de Florbela na Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa e um dos mais próximos da poetisa durante os
seus estudos universitários, recebe a alcunha “Irmã soror saudade” e
encarna com louvor o papel por ele atribuído:
Irmã; Sóror Saudade, ah! Se eu pudesse
Tocar de aspiração a nossa vida,
Fazer do mundo a Terra Prometida
Que ainda em sonho às vezes me aparece!
Américo Durão
Ela de pronto responde com um soneto:
7.
Soror Saudade
Irmã, Soror Saudade, me chamaste...
E na minh'alma o nome iluminou-se
Como um vitral ao sol, como se fosse
A luz do próprio sonho que sonhaste.
Numa tarde de Outono o murmuraste;
Toda a mágoa do Outono ele me trouxe;
Jamais me hão de chamar outro mais doce:
Com ele bem mais triste me tornaste...
E baixinho, na alma de minh'alma,
Como benção de sol que afaga e acalma,
Nas horas más de febre e de ansiedade,
Como se fossem pétalas caindo,
Digo as palavras desse nome lindo
Que tu me deste: Irmã, Soror Saudade...
8. Florbela é atribuída a chamada classe de “Outros Poetas” ou
Poeta “Sui Generis” por constituir como única em seu
gênero. Dessa forma mostra traços de certas escolas, mas
não é possível enquadrá-la potencialmente a alguma. A sua
linguagem foi marcadamente pessoal, totalmente
influenciada por sua vida. Nada do social entrou em sua
obra, para Florbela o que importava eram os seus
sentimentos, suas emoções, seu mundo particular que não
suportando guarda-lo para si, explodiu em seus versos.·.
Decerto o que se pode ter ao estudar-se Florbela, é a
convicção de que ao contrário do que os detratores daquela
sociedade patriarcal profanavam nada tem esta poetisa de
vulgar ou comum. Seus versos são carregados de um
lirismo a toda prova, de uma beleza profunda, o erotismo
também se faz presente, e o narcisismo chega as raias da
obsessão. Possuiu uma atitude caracterizada
como fabulística, por agir de forma naturalmente muito
complexa e dissimulada, vivendo e representando em seus
versos papéis e visões ínsitas de contos de fadas. Considera-
se «poetisa eleita» e dona de inspiração e versos perfeitos.
Florbela constantemente chama a si mesma de princesa,
9. coloca-se acima dos outros em seus palácios, sente-se especial e
por isso mesmo incompreendida.
Esta atitude pode ter sido uma forma de fuga de Florbela. Nada
lhe proporcionava um real prazer e o que a principio poderia
causar-lhe alguma felicidade logo se desfazia. Nada a satisfez e a
ânsia constante, o desejo constante produziu-lhe um desgaste
profundo. Florbela ama o amor, quer um deus, não se satisfaz com
nenhum homem. É dona de um profundo Donjuanismo feminino
onde a busca pela conquista é constante, porém sempre frustrada
quando finalmente alcançada.
Julga as mulheres de sua época como animais ambientados aos
costumes medievais, submetendo-se as convenções castradoras de
uma sociedade que ela não compreendia nem aceitava. É diferente
e mostra-se diferente. O culto de Florbela começa nela mesma.
Quando a insatisfação chega ao ápice Florbela explode, não
aguenta os nervos que estão fracos, o sonho se esvai. Deixa a vida
e o destino triste dos poetas ressaltado no Soneto Tormento do
Ideal de Antero de Quental: “Recebi o batismo dos poetas e para
sempre fiquei pálido e triste.” Florbela deixa-nos uma obra
admirada e exaltada por muitos, mas leva consigo o sentimento e
sua figura enigmática, majestosa e extraordinária para todo o
sempre.