Este documento discute os desafios da educação em agroecologia no Brasil. A formação tradicional em ciências agrárias tem perpetuado o modelo produtivista da agricultura convencional, enquanto a agroecologia propõe uma abordagem mais holística e sustentável. Nos últimos 30 anos, educadores e estudantes vêm promovendo iniciativas para incluir a agroecologia nos currículos e estimular uma educação comprometida com o desenvolvimento rural e a agricultura familiar. Apesar dos avanços, ainda há trabalho a ser fe
2. Editorial
C
om o avanço global da agricultura industrial,
as áreas irrigadas no planeta triplicaram entre
1950 e 2003 e absorvem hoje mais de 70% EXPERIÊNCIAS EM AGROECOLOGIA
da água bombeada de rios, lagos e aquíferos. Somente o vo-
lume de água desperdiçada na agricultura é superior à soma ISSN: 1807-491X
Revista Agriculturas: experiências em agroecologia, v.7, n.4
dos demais consumos humanos. Apesar da baixa eficiência na (corresponde ao v. 26, n. 4 da Revista Leisa)
conversão de água em alimentos e de provocarem acelerada Revista Agriculturas: experiências em agroecologia é uma publicação da AS-
degradação dos solos e o esgotamento e deterioração dos PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia –, em parceria com a Funda-
corpos d’água, os sistemas de irrigação intensiva continuam ção Ileia – Centre of Information on Low External Input and Sustainable
Agriculture.
sendo largamente defendidos como alternativa para o aumen-
to da produção agrícola e a superação dos dilemas alimenta-
res da humanidade.
No Brasil, a implantação de grandes projetos de irriga- Rua das Palmeiras, n.º 90
ção, em geral viabilizados por pesados investimentos públicos, Botafogo, Rio de Janeiro/RJ, Brasil 22270-070
Telefone: 55(21) 2253-8317 Fax: 55(21)2233-8363
favorece a dinâmica expansiva dos latifúndios monocultores E-mail: revista@aspta.org.br
em territórios ancestralmente ocupados por populações tra- www.aspta.org.br
dicionais. A transposição do rio São Francisco representa a Fundação Ileia
expressão mais manifesta dessa tendência. Por trás da narra- P.O. Box 2067, 3800 CB Amersfoort, Holanda.
Telefone: +31 33 467 38 70 Fax: +31 33 463 24 10
tiva do progresso social ou, ainda mais cinicamente, da neces-
www.ileia.info
sidade de se “levar água a quem tem sede”, escondem-se gru-
pos do agronegócio interessados em extrair riquezas pela via CONSELHO EDITORIAL
da produção e exportação de commodities agrícolas. Nesse Claudia Schmitt
Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento,
cenário em que os recursos hídricos assumem um papel cada Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
ACESSE:
vez mais crucial na manutenção dos impérios agroalimenta- - CPDA/UFRRJ
Eugênio Ferrari
res, surge o conceito de água virtual para que os fluxos da
www.aspta.org.br/agriculturas
Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata, MG - CTA/ZM
água incorporados nos produtos que circulam nos mercados
Ghislaine Duque
internacionais sejam dimensionados, revelando essa face da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG e Patac
insustentabilidade da agricultura industrializada e globalizada. Jean Marc von der Weid
AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia
Mas o desenvolvimento de agroecossistemas mais segu- José Antônio Costabeber
ros sob o ponto de vista hídrico não implica necessariamente Universidade Federal de Santa Maria - UFSM
o aporte de água pela via da irrigação. É o que a agricultura Maria Emília Pacheco
Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional – Fase - RJ
camponesa vem ensinando desde sempre, ao valorizar a agro-
Romier Sousa
biodiversidade, ao cuidar dos solos como organismos vivos Grupo de Trabalho em Agroecologia na Amazônia - GTNA
que interagem com a atmosfera na regulação dos ciclos hi- Sílvio Gomes de Almeida
AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia
drológicos e ao adotar práticas de manejo que promovem
Tatiana Deane de Sá
serviços ambientais relacionados à economia hídrica. Quando Empresa Brasileira de Pesquisa e Agropecuária - Embrapa
realizada, a irrigação é ajustada às especificidades locais e em-
prega volumes de água limitados. EQUIPE EXECUTIVA
Editor – Paulo Petersen
Além disso, a água é encarada nas agriculturas campo- Editor convidado para este número – Maria Virgínia de Almeida
Aguiar
nesas como bem público que é gerenciado por meio de pro- Produção executiva – Adriana Galvão Freire
cessos e normas coletivas localmente negociadas. Uma lógica Pesquisa – Maria Virgínia de Almeida Aguiar, Paulo Petersen
que em nada tem a ver com a privatização e a mercantilização Base de dados de subscritores – Carin dos Santos Sousa
Copidesque – Rosa L. Peralta
da água impostas por acordos internacionais desenhados para Revisão – Gláucia Cruz
favorecer o agro e o hidronegócio. No contexto de mudanças Tradução – Rosa L. Peralta
Foto da capa – 1º módulo do Programa de Formação Juventude e
climáticas globais que provocam o aumento dos riscos na agri- Agroecologia – Rancho dos Machados/MG (Arquivo CAA/NM)
cultura, esses ensinamentos camponeses são fontes preciosas Projeto gráfico e diagramação – I Graficci Comunicação & Design
Impressão: Reproset
de inspiração que precisam ser revalorizadas e desenvolvidas Tiragem: 7.200
por meio da revitalização de processos locais de inovação,
A AS-PTA estimula que os leitores circulem livremente os artigos aqui
como demonstram as experiências apresentadas nesta edição. publicados. Sempre que for necessária a reprodução total ou parcial de
algum desses artigos, solicitamos que a Revista Agriculturas: experiências
O editor em agroecologia seja citada como fonte.
3. Sumário
04 Editora convidada • Maria Virgínia de Almeida Aguiar
ARTIGOS 07
Educação do Campo, Agroecologia e protagonismo
07 social: a experiência do Programa Nacional de Edu-
cação na Reforma Agrária (Pronera)
Clarice Santos, Fernando Michelotti e Romier Sousa 12
12
Reflexões sobre a formação de técnicos-educadores
em Agroecologia no campo paulista
Marcelo de Albuquerque Vaz Pupo e Mario Mariano Ruiz Cardoso
17
17
A pesquisa na construção do conhecimento agro-
ecológico: a experiência da FUNDEP (RS)
Rodrigo Ferronato Beatrici e Ulisses Pereira de Mello
Introduzindo a Agroecologia nas escolas agropecuárias
21 de ensino médio de Buenos Aires, Argentina
Santiago J. Sarandón e Claudia C. Flores
21
26
Formação superior em Agroecologia: a experiência
da Universidade Federal de São Carlos
Manoel Baltasar Baptista da Costa 26
29 A Agroecologia e a diversidade na educação
Luiz Antonio C. Norder
29
34 Publicações
35 Agroecologia em Rede
4. Editora convidada
Educação em Agroecologia
– que formação para a
sustentabilidade?
Maria Virgínia de Almeida Aguiar
O
s cursos de ciências agrárias de nível superior sos de desenvolvimento; o meio ambiente é encarado unica-
e técnico formam profissionais que podem mente como meio inesgotável para a extração de riquezas;
exercer diversas funções, tais como extensio- os conhecimentos produzidos e disseminados sobre manejo
nistas rurais, assessores técnicos, educadores e pesquisadores. agrícola são limitados no que se refere ao complexo funcio-
Muitos deles atuam diretamente junto a comunidades de agri- namento dos agroecossistemas; há uma deficiente formação
cultores de base familiar, o que desafia a Educação em Ciências em temas relacionados à Ecologia e aos conhecimentos das
Agrárias a preparar um novo profissional, comprometido com ciências humanas e sociais; e a concepção de ensino e educa-
um projeto sustentável e democrático de desenvolvimento ru- ção se assenta na ótica do treinamento e adestramento para
ral, voltado para a agricultura familiar e orientado pelos pres- o mercado de trabalho. Além disso, as instituições brasileiras
supostos da Agroecologia. Isso requer mudanças profundas nas de ensino agrícola sempre estiveram altamente comprometi-
práticas e teorias que orientam o ensino agrícola. das com o setor patronal e do agronegócio, permanecendo
alheias à enorme diversidade socioambiental que caracteriza
Todavia, temos um passivo histórico nesse campo que
o mundo rural brasileiro.
apenas começa a ser superado. Há quase cem anos o ensino
técnico e superior vem perpetuando o ideário produtivista,
cujo objetivo principal é incrementar a produtividade dos Na contra-corrente, e animados
grandes latifúndios por meio do manejo das culturas extensi- pela possibilidade de recriar o ensi-
vas de exportação (modelo das plantations de cana-de-açúcar,
café, algodão, cacau e a pecuária extensiva), valendo-se da tec- no profissional, tecnológico e supe-
nologia química e da tecnologia mecânica (GUERRA; ANGE- rior, educadores, estudantes e pro-
LO-MENEZES, 2007; CAVALET, 1997; MEC, 2009).
fissionais das ciências agrárias e de
Com os avanços tecnológicos e a reorganização produ-
tiva do campo brasileiro baseados nos preceitos técnicos da outras áreas do conhecimento vêm
Revolução Verde e no paradigma da modernização, um papel propondo mudanças voltadas para
preponderante foi dado às instituições estatais de ciência e
tecnologia (C&T), que desde então passaram a atuar como pe- uma educação mais comprometi-
ças-chave para a legitimação desse modelo perante a socieda- da com novos conteúdos e novas
de. Às instituições de ensino, coube formar profissionais para
desenvolver, aplicar e difundir as tecnologias ditas modernas. abordagens. Ao analisar os desafios
A despeito das várias reformas educacionais vivenciadas para a educação no novo milênio,
pelos níveis técnico e superior a partir dos anos 1960, os Gadotti (2000, p. 3) alega que “a
cursos de ciências agrárias continuam formando profissionais
para atender ao padrão tecnológico da agricultura conven- perplexidade e a crise de paradig-
cional, seguindo a racionalidade econômica e os modelos mas não podem se constituir em
técnicos produtivistas. Apregoa-se a divisão entre o trabalho
manual e o intelectual; o trabalho é posto como alienação álibi ao imobilismo”.
da vida; há uma confiança excessiva na tecnologia e pouca
reflexão sobre as contradições da tecnologia adotada; predo- Arriscamos a hipótese de que foram os estudantes e al-
mina uma visão produtivista e imediatista da produção agrí- guns educadores que faziam uma leitura crítica da moderni-
cola; prevalece uma percepção atomista e/ou reducionista da zação da agricultura os pioneiros do debate sobre a inserção
realidade em detrimento de uma visão holística e sistêmica; é da Agroecologia na educação formal desde os anos de 1980.
dada ênfase ao técnico-produtivo e pouca atenção a proces- Os centros acadêmicos e os grupos de agricultura alternativa
Agriculturas • v. 7 - n. 4 • dezembro de 2010 4
5. constituídos por estudantes em várias universidades em ar- partir das práticas concretas de educadores, estudantes e do
ticulação com a Federação dos Estudantes de Agronomia do seu entorno escolar.
Brasil (Feab) conduziram diversas iniciativas que têm procura-
do manter a discussão sobre a Agroecologia na educação su- Sabemos que existem atualmente no Brasil mais de uma
perior, entre elas: os núcleos de trabalho permanente (NTPs), centena de cursos formais que se aproximam da temática da
sendo um deles dedicado exclusivamente à Agroecologia; os Agroecologia, sendo cerca de 80 de nível técnico e superior
grupos de Agroecologia ou de agricultura ecológica espalha- e o restante de pós-graduação. Apesar da proliferação dessas
dos por várias universidades; os estágios interdisciplinares de iniciativas, elas são ainda pouco conhecidas e debatidas. Esse
vivência (EIVs); e a realização do Encontro Nacional de Gru- fato vem dificultando uma melhor compreensão da diversida-
pos de Agroecologia, que teve sua primeira edição sediada em de existente entre elas e dos avanços e limitações encontra-
Curitiba (PR), em 2009. Alguns professores, profissionais or- dos para superar o paradigma dominante de educação e ins-
ganizados em associações de agrônomos e organizações não taurar processos pedagógicos fundados em sólida formação
governamentais envolvidas no Projeto Tecnologias Alternati- crítico-reflexiva, cultural, humanístíca, política, generalista e
vas (PTA) também foram determinantes na mobilização de comprometida com o desenvolvimento rural, o protagonismo
pessoas, instituições e conhecimentos para o debate crítico dos agricultores familiares e a sustentabilidade da produção
em torno do modelo de desenvolvimento rural dominante agropecuária, florestal e extrativa.
no Brasil, ao proporem tecnologias alternativas e adaptadas Como enfoque científico, que se situa num complexo
às especificidades socioeconômicas dos agricultores e ao am- campo de disputa sociocultural e política, a Agroecologia re-
biente em que estavam inseridos. Cumpre destacar ainda, que quer educadores portadores de formação compatível com
nos últimos anos, grandes avanços também vêm sendo obser- novas bases epistemológicas e que possam contribuir me-
vados no que se refere à internalização da perspectiva agro- diante novas abordagens pedagógicas, metodológicas, técni-
ecológica nas instituições públicas dedicadas à produção e cas, etc., distintas das ciências agrárias convencionais. Espera-
socialização do conhecimento para o desenvolvimento rural1. se que os projetos educativos dedicados à Agroecologia se
Sobretudo desde os anos 2000, vêm surgindo nas insti- consolidem por meio do diálogo entre os saberes científico
tuições de ensino formal cursos constituídos a partir da críti- e popular para a construção de novos conhecimentos com
ca ao enfoque tecnicista. Figuram também nesse novo cenário grande inserção nas realidades socioeconômicas e ambientais
iniciativas de ensino protagonizadas por movimentos sociais locais, superando a perspectiva difusionista da transferência
que lutam pela reestruturação das práticas educacionais de tecnologias. Também se espera que esses projetos partam
a partir dos conceitos de Educação do Campo e Educação de uma crítica profunda à visão produtivista e tecnicista da
Contextualizada. agricultura convencional e que coloquem em prática meto-
dologias orientadas para o enfoque sistêmico e para a inter-
Este número da Revista Agriculturas apresenta algumas ex- disciplinaridade. Tudo isso sem esquecer uma formação que
periências de Educação nos níveis técnico e superior que se viabilize a democratização do saber científico e tecnológico
identificam com a temática da Agroecologia. Iniciamos a edi- tratado na perspectiva histórico/crítica por meio do resgate
ção com muitas perguntas que vimos sistematizando nos es- do vínculo entre conhecimento, trabalho e relações sociais.
paços de debate sobre essa temática promovidos pela Asso-
ciação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia) e pela Esta edição traz dois artigos com foco em uma política
Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Aproveitando pública que tem contribuído para a aproximação da Educação
o acúmulo dessas duas instituições nos processos de cons- do Campo com os pressupostos da Agroecologia: o Programa
trução do conhecimento agroecológico, esperamos formular Nacional de Educação para a Reforma Agrária (Pronera). O pri-
novas perguntas e, quem sabe, encontrar algumas respostas a meiro apresenta as linhas gerais dessa política que vem formando
um número significativo de assentados e apoiando inúmeras ex-
1
Um dado importante a considerar é que na Plataforma Lattes do Conse- periências educativas nas diferentes regiões brasileiras. De acor-
lho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em 2008 do com os autores, vários cursos formais reaizados no âmbito
l
apareceram 2.383 currículos de doutores, mestres, graduados e técnicos re-
pertoriados a partir da chamada pela expressão “Agroecologia” e em 2011, do Pronera se enquadram na estratégia de desenvolvimento do
apareceram 4.989 currículos (MEC/CNPq, 2008; 2011). Já no Diretório de Incra de promover a consolidação produtiva dos assentamentos
Pesquisas do Brasil da mesma plataforma foram repertoriados em 2008, 101 com base na Agroecologia e na soberania alimentar, ao mesmo
grupos a partir da chamada pela expressão “Agroecologia” e, em 2011, 189 tempo em que apoia o desenvolvimento do território onde os
grupos (MEC/CNPq, 2008, 2011). Cabe ressaltar que esta área do conheci-
mento não aparece como opção de entrada na Plataforma como “Área ou assentamentos se inserem. Essa mesma abordagem territorial é
Setores de Atuação” ou “Área ou Setores da Produção em C&T”. motivadora do segundo artigo, onde são apresentados aspectos
5 Agriculturas • v. 7 - n. 4 • dezembro de 2010
6. do processo educativo de um curso técnico de Agroecologia. ensino convencional das ciências agrárias? O que pretendemos
Aqui encontramos elementos importantes para iniciar um pro- com a criação dos cursos de Agroecologia? Para além da leitura
cesso fundado na interdisciplinaridade e no diálogo de saberes crítica da modernização da atividade produtiva e da dissemina-
necessários ao rompimento com a educação compartimenta- ção de tecnologias de base ecológica, o que é preciso mudar
lizada das ciências agrárias convencionais. Em outro artigo, é para enfrentar os desafios do reconhecimento da Agroecologia
analisada uma experiência de educação promovida por movi- como ciência? Acreditamos na necessidade de sistematizarmos
mentos sociais da região Sul. A articulação de saberes e a cons- experiências de ensino formal para recolher aprendizados e
trução de conhecimentos também é enfatizada a partir de uma produzir conhecimentos sobre interdisciplinaridade, o diálogo
reflexão sobre a valorização da pesquisa no processo educati- de saberes, a formação de formadores, as novas pedagogias e
vo, ou seja, explicitando-se a necessidade do rompimento das os métodos de aproximação e leitura crítica da realidade, a
barreiras entre as práticas de ensino, de pesquisa e de extensão. pesquisa como método de ensino, a inovação participativa, a
formalização dos cursos, entre outros. Entretanto, ainda não há
Os pressupostos sobre os quais vem se consolidando o
receitas, nem manuais para isso.
curso de bacharelado em Agroecologia da UFSCar são o tema
de outro artigo. O autor apresenta uma proposição que nos Maria Virgínia de Almeida Aguiar
instiga a refletir sobre a incapacidade de os cursos de ciên- Depto. de Educação e Extensão Rural
cias agrárias convencionais realizarem uma revisão teórico- Universidade Federal Rural de Pernambuco
metodológica a partir dos princípios da Agroecologia para as mvirginia.aguiar@gmail.com
necessárias transformações na matriz produtiva dominante.
O autor postula que somente os cursos organizados com
base no enfoque agroecológico podem abrir a possibilidade
Referências bibliográficas:
de concretização desse objetivo.
CAVALET, V. A formação do engenheiro agrônomo em ques-
Fazendo um contraponto, o artigo vindo da Argentina
tão: a expectativa de um profissional que atenda as deman-
analisa os avanços e desafios de uma experiência de formação
das sociais do século XXI. São Paulo: 1997 (Doutorando
de professores de escolas agropecuárias de ensino médio e
em Educação) - Universidade de São Paulo.
profissional na província de Buenos Aires.
GADOTTI, Moacir. Perspectivas atuais da educação. SÃO
Outro texto nos chama a atenção PAULO EM PERSPECTIVA, 14(2) 2000. Pp.3-11.
para uma dimensão não menos im- GUERRA, G. A. D.; ANGELO-MENEZES, M. de N. Agricultu-
ra familiar na pós-graduação no Brasil e na Univer-
portante: os desafios políticos e/ou sidade Federal do Pará (UFPA). R B P G, Brasília, v. 4,
administrativos antepostos ao reco- n. 7, p. 66-86, julho de 2007.
nhecimento dos cursos formais de MEC/CNPq. Plataforma Lattes. Disponível pelo site http://
buscatextual.cnpq.br/buscatextual/index.jsp em 12 de abril
Agroecologia, a regulamentação da de 2008.
profissão e o credenciamento pelas MEC/CNPq.Plataforma Lattes. Disponível pelo site http://bus-
corporações profissionais. Nele são catextual.cnpq.br/buscatextual/busca.do?metodo=apresentar
em 22 de fevereiro de 2011.
suscitadas questões que possibilitam MEC/INEP. Sinopses Estatísticas da Educação Superior
ampliar o debate sobre os aspectos - Graduação – 2006. Disponível em internet pelo site
culturais associados à instituciona- http://www.inep.gov.br/superior/censosuperior/sinopse/
em 31 de março de 2008.
lização dos cursos de graduação MEC/SETEC. Instituições Federais de Educação Tecno-
em Agroecologia no Brasil, sendo lógica – IFET. Disponível no site http://portal.mec.gov.
br/setec/index.php?option=content&task=view&id=116&
também proposta a incorporação Itemid=233 em 31 de março de 2008.
nos programas curriculares das dis- MEC/SETEC. (Re)significação do Ensino Agrícola da Rede Fe-
cussões sobre a questão ambiental deral de Educação Profissional e Tecnológica. Documento
Final. Brasília, 2009. 150p.
no século XXI e o papel das novas
SOARES, A. M. S.; OLIVEIRA, L. M.T. de. Ensino técnico agrope-
profissões. cuário: “novas” perspectivas ou uma velha receita? In Mo-
reira, R. J. (Org.). Identidades sociais. Ruralidades no
Os artigos publicados nessa edição nos indicam o enor- Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: DP&A/Nead,
me campo a ser explorado para a consolidação do paradigma 2005. pp.175-190
agroecológico na educação.As discussões em torno ao tema da
Agroecologia no país, associadas à criação de inúmeros cursos SOBRAL, F. José M. Novos desafios para a educação do campo.
em diferentes níveis de ensino, têm propiciado muitos avanços, Palestra apresentada no Seminário Nacional de Educação Pro-
mas várias questões permanecem. O que queremos mudar no fissional, do PRONERA-Incra, em 04/06/2008, em Luziânia/GO.
Agriculturas • v. 7 - n. 4 • dezembro de 2010 6
7. Fotos: Romier Souza
Mutirão para construção de horta circular
Educação do Campo,
Agroecologia e
protagonismo social: a
experiência do Programa
Nacional de Educação na
Reforma Agrária (Pronera)
Clarice Santos, Fernando Michelotti e Romier Sousa
7 Agriculturas • v. 7 - n. 4 • dezembro de 2010
8. Construindo a resistência camponesa a tanto, desenvolve ações de Educação de Jovens e Adultos (EJA)
partir da educação (alfabetização, ensino fundamental e médio) e cursos profissio-
nalizantes (nível médio, superior e especialização).
Medeiros (2002, p. 1) nos lembra que “o tema da reforma
agrária está presente no debate político nacional, de maneira O programa é executado por meio de parcerias que o
mais ou menos intensa, pelo menos desde a década de 1920, Incra, gestor do programa, estabelece com as instituições de
assumindo formas e significados diferenciados”. Mas o aumen- ensino, sendo firmadas por convênio ou termo de coopera-
to do número de agricultores assentados é que parece ter ção. As instituições recebem apoio financeiro do Incra para
realimentado a discussão sobre o papel da agricultura familiar o desenvolvimento dos cursos nos diferentes níveis e são as
camponesa no desenvolvimento brasileiro. Esse crescimento responsáveis pela certificação dos educandos e educandas.
foi fruto de grandes lutas e mobilizações nacionais ocorridas Em 12 anos, essa estratégia propiciou o acesso à esco-
principalmente na segunda metade dos anos 1990. larização e à formação em todos os níveis a cerca de 400 mil
Como expressão sociopolítica de uma nova territoria- jovens e adultos assentados. Tais resultados se traduzem em
lidade no campo brasileiro, surgem diversas demandas, como sólidas parcerias com os movimentos sociais e organizações
crédito, habitação, infraestrutura, assistência técnica e educação. do campo efetivadas por meio das universidades federais, es-
Fernandes (2008) se refere aos assentamentos da reforma agrá- taduais, municipais e comunitárias de todo o País.
ria como territórios camponeses com um espaço muito amplo Uma característica fundamental do Pronera é o impres-
de realização de projetos educativos inovadores e reflete sobre cindível protagonismo de jovens e adultos dos projetos de
a educação como uma das dimensões fundamentais para o de- assentamento de reforma agrária. A organização e o envol-
senvolvimento do território. Nesse contexto, nasce o Programa vimento das instituições representativas dos assentados, jun-
Nacional de Educação para a Reforma Agrária (Pronera).
to com o Incra, nas diferentes fases dos projetos têm criado
O Pronera tem como objetivo geral fortalecer a educação novos espaços dentro dos institutos federais e universidades,
nas áreas de reforma agrária, promovendo o acesso à educação inaugurando experiências educacionais inovadoras e necessá-
formal dos trabalhadores dessas áreas, em todos os níveis. Para rias ao desenvolvimento sustentável do campo.
Jovens participam de visitas de intercâmbio durante o curso de agroecologia
Agriculturas • v. 7 - n. 4 • dezembro de 2010 8
9. O Pronera desenvolve cursos técnicos em Agroecolo- Alguns desses cursos, embora aprovados, não foram ain-
gia, agropecuária, saúde comunitária, comunicação comuni- da implantados, devido ao contingenciamento de recursos e
tária, além da formação no ensino médio, entre outros. Dos às dificuldades jurídicas e normativas que o programa vem
cursos superiores já desenvolvidos e em andamento, há os enfrentando nos últimos anos para a assinatura de convênios.
de formação de professores: pedagogia, licenciaturas (histó- Essas dificuldades são ilustrativas do que se poderia chamar
ria, geografia, letras, agrícola, artes) e graduações técnicas de resistência conservadora à expansão da Educação do Campo
vinculadas à área da produção agrícola, como Agroecologia, e da reforma agrária.
agronomia e medicina veterinária. Também é oferecido um
Mas o importante é que, mesmo nesse cenário adverso,
curso de Direito, que visa à formação de camponeses para
houve um crescimento da intenção de envolvimento de várias
atuarem nas causas muito frequentes de defesa dos direitos
instituições de ensino em ciências agrárias na Educação do
humanos, políticos e sociais dos que vivem e trabalham no
Campo e no Pronera. Outra questão a ser observada é que
campo.
esse aumento na oferta de cursos de ciências agrárias para
Há também as especializações em diversas áreas e, es- os assentados de reforma agrária se deu em todas as regiões
pecificamente, a residência agrária, envolvendo profissionais do país (Gráfico 1), o que corrobora uma das expectativas do
dos cursos de qualquer campo do conhecimento relativo à Pronera que, vinculado à estratégia de desenvolvimento do
reforma agrária e que participam de estágios de vivência e Incra, visa atuar mais diretamente no apoio à consolidação
de especialização lato sensu em regime de alternância, rece- produtiva nos assentamentos em todo o Brasil, com base na
bendo bolsa para atuar nos assentamentos. Agroecologia e na soberania alimentar.
A ação também visa atender aos jovens e adultos as- A importância dessa questão justifica-se na própria con-
sentados matriculados nos cursos profissionalizantes de cepção de Educação do Campo que, segundo Caldart (2008),
nível médio e superior ofertados pelo Pronera. No último só encontra materialidade se for indissociável da luta por um
período, recebem bolsa de estudo/estágio para atuarem nos projeto alternativo de desenvolvimento do campo. Projeto
assentamentos, cumprindo os estágios curriculares obriga- esse que tem sua centralidade na produção camponesa, sen-
tórios, assim como desenvolvendo ações de assistência téc- do o camponês o seu principal sujeito. Por isso, não basta
nica produtiva, social, ambiental e pedagógica. Dessa forma, o crescimento quantitativo da oferta de cursos de ciências
com seu trabalho e seus estudos, colaboram para a melhoria agrárias na Educação do Campo. Faz-se necessário que eles
da qualidade do trabalho e das condições de vida nos proje- sejam orientados para o fortalecimento do projeto camponês
tos de assentamento.
Gráfico1 - Distribuição regional dos cursos de
Educação do Campo e Agroecologia no ciências agrárias do Pronera aprovados pela
âmbito do Pronera Comissão Pedagógica Nacional.
No início do Pronera, em 1998, predominavam os
cursos voltados para a alfabetização e a escolarização pri-
mária de assentados. Entretanto, de forma a promover uma
educação orientada para a realidade dos assentamentos,
percebemos serem imprescindíveis ações que integrassem Sul - 11%
outras áreas de conhecimento e outros níveis de ensino.
Nesse sentido, o programa buscou estimular projetos de Sudeste - 21%
C. Oeste - 11%
educação profissional no campo das ciências agrárias, dada a
importância desse tema para a consolidação produtiva dos
assentamentos. As primeiras experiências nessa direção ti-
veram início em 2001 e, até 2008, tinham sido aprovados Nordeste - 38%
70 cursos pela Comissão Pedagógica Nacional, instância res-
ponsável pela análise e aprovação dos projetos. Desses, 57 Norte - 19%
(81%) foram de ensino médio e pós-médio e 13 (19%) de
ensino superior. No nível médio, predominam os cursos de
técnico em agropecuária (67%), com diversas habilitações
específicas, sendo crescente em Agroecologia. No nível su- Fonte: Coordenação Nacional do Pronera,
perior, predominam os cursos de agronomia (69%), também 2009 (Org. dos autores).
com enfoque agroecológico.
9 Agriculturas • v. 7 - n. 4 • dezembro de 2010
10. Trabalho como princípio educativo
de saberes entre academia e camponeses, provocando uma
revisão crítica da matriz técnico-científica hegemônica e da
predominância concedida ao agronegócio nos currículos tra-
dicionais. Essas experiências têm sido importantes para forta-
lecer a perspectiva agroecológica não apenas nas turmas do
Pronera, mas na elaboração dos projetos político-pedagógi-
cos dessas instituições como um todo.
Outra contribuição importante é a aproximação das ins-
tituições de ensino que ofertam os cursos do Pronera com
o universo da reforma agrária. Em várias instituições, essa ex-
periência tem levado à criação de grupos de pesquisa-ensino-
extensão com atuação permanente, que persistem mesmo
após a conclusão do curso pelos assentados. O fato de o pro-
grama ser executado pelo Incra também facilita esse proces-
so, pois permite a complementaridade com outras políticas
de desenvolvimento rural e, nesse sentido, a perspectiva agro- públicas de apoio à reforma agrária e ao desenvolvimento dos
ecológica também é fundamental. assentamentos, como a assistência técnica, o crédito rural, a
comercialização, a inovação agroecológica, a infraestrutura, o
desenvolvimento territorial, etc., que passam a contar com o
Relevância do Pronera para a Educação do apoio e o envolvimento dos grupos constituídos dentro das
Campo e a Agroecologia instituições de ensino.
Ao financiar cursos formais de ensino superior e
técnico, o Pronera contribui para uma reflexão crítica do
ensino tradicional no interior das instituições públicas e/ou
Dessa forma, a experiência
comunitárias que ministram os cursos. No caso específico do Pronera, além de garantir o
do ensino de ciências agrárias, os cursos formais executados
em parceria com os assentados – os sujeitos do campo e da
acesso ao ensino médio e superior
reforma agrária – abrem espaço para um verdadeiro diálogo em ciências agrárias a centenas de
Agriculturas • v. 7 - n. 4 • dezembro de 2010 10
11. Relação movimentos e governo
assentados, tem reforçado um movimento mais
amplo de revisão dos conteúdos e práticas das Clarice Santos
instituições públicas e comunitárias de ensino, coordenadora nacional do Pronera/
Incra
aproximando-as da Agroecologia e da realidade clarice.santos@incra.gov.br
dos assentamentos de reforma agrária. Fernando Michelotti
professor da UFPA – Campus Marabá
fmichelotti@ufpa.br
Desafios na construção da Agroecologia
nos assentamentos rurais Romier Sousa
professor do IFPA – Campus Castanhal
O Pronera tem apoiado diversas iniciativas de educação que, em geral, buscam romier@terra.com.br
inovar no processo de formação profissional dos assentados da reforma agrária.
Percebe-se, no entanto, que há diversas dificuldades para a execução do programa,
principalmente na relação entre o Incra e as instituições de ensino, em função da
burocracia inerente ao Estado brasileiro e da própria orientação das políticas públi-
Referências bibliográficas:
cas para o agronegócio. Apesar disso, o Pronera vem cumprindo o papel estratégico
para o qual foi criado, embora alguns desafios ainda persistam quando relacionamos
a Educação do Campo e a Agroecologia: Fernandes, B. M. Educação do Cam-
po e território camponês no Brasil.
• A necessária construção de uma nova matriz técnico-científica de produção In: FERNANDES, B. M. et al. (org.).
para o campo, buscando articular o conhecimento científico ao conhecimento Educação do Campo: campo-
dos agricultores camponeses acumulado historicamente a partir da relação políticas públicas-educação. Brasília:
com o meio socioambiental em que vivem. Incra/MDA, 2008.
• O reconhecimento da importância da dimensão pedagógica no trabalho da MEDEIROS, L. Servolo de. Refor-
pesquisa agropecuária e da extensão rural, assim como a assimilação da dimen- ma Agrária: concepções, con-
são produtiva nos cursos de formação de educadores do campo. trovérsias e questões. Disponível
em: http://www.daterra.org.com.br.
• Uma mudança na concepção pedagógica institucional, com a incorporação dos
Acesso em: 12 de janeiro de 2002.
princípios e referências construídos nos cursos apoiados pelo Pronera, tais
como: a) movimentos sociais; b) trabalho; e c) pesquisa como princípio educa-
MICHELOTTI, Fernando. Educação do
cional para a formação.
Campo: reflexões a partir da tríade
• Por fim, um dos grandes desafios está relacionado à imprescindível participa- produção – cidadania – pesquisa.
ção dos movimentos sociais e agricultores familiares camponeses na concep- In: FERNANDES, B. M. et al. (Org.).
ção, construção e execução dos cursos de educação e Agroecologia, buscando Educação do Campo: campo-
uma institucionalização das ações sem perder o controle social necessário políticas públicas-educação. Brasília:
para a garantia dos princípios da Educação do Campo. Incra/MDA, 2008.
11 Agriculturas • v. 7 - n. 4 • dezembro de 2010
12. Reflexões sobre a formação
de técnicos-educadores em
Agroecologia no campo
paulista*
Foto: Marcelo Vaz Pupo
Marcelo de Albuquerque Vaz Pupo e Mario Mariano Ruiz Cardoso
Agriculturas • v. 7 - n. 4 • dezembro de 2010 12
13. E
ste artigo traz alguns elementos de nossa ex- Nesse contexto, a educação se insere como ação políti-
periência como educadores do curso médio ca que pode orientar algumas dimensões da transição agro-
integrado ao técnico em Agroecologia em três ecológica. No campo formal, há o desafio de sanar os baixos
turmas no estado de São Paulo. Financiado pelo Programa índices de escolaridade encontrados entre a população rural,
Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), o curso reivindicando a educação como direito desses sujeitos. Na
é desenvolvido por meio de parceria entre o Instituto Nacio- educação não formal, ou educação não escolarizada, estão
nal de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o Movimento os diferentes projetos e ações educacionais que contribuem
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Faculdade de para a formação de uma cultura camponesa, expressa na pro-
Engenharia Agrícola da Universidade Estadual de Campinas dução e reprodução de suas formas de organização cultural,
(FEAGRI - Unicamp), o Colégio Técnico da Unicamp (Cotuca) política, social e econômica.
e o Centro Paula Sousa.
Nossa trajetória como educadores responsáveis por Há ainda necessidades específi-
duas disciplinas técnicas da grade curricular nos permitiu inte-
ragir com educandos de diferentes regiões do estado, vindos
cas de formação técnica para que
de assentamentos, acampamentos, comunidades quilombolas agricultoras e agricultores possam
ou vinculados ao MST. Foi por meio dessas disciplinas que
concebemos, junto com os educandos, ações que, de um lado,
estabelecer novas relações e se
apoiavam a elaboração do trabalho de conclusão do curso apropriar de novos conhecimentos
(TCC) e, de outro, transformaram-se num processo formati-
vo para educadores e educandos na construção de territórios
na busca por uma maior qualida-
agroecológicos. de de vida no campo, pautada pela
Apresentamos neste artigo alguns caminhos pedagógicos incorporação dos condicionantes
percorridos pelos educadores e educandos e refletimos sobre
o papel da educação no processo de transição agroecológica.
ambientais e pelo diálogo com
Que temáticas abordamos? De que maneira trabalhamos? O outras formas de saber. É inserida
que queríamos com cada exercício pedagógico? Como essa
experiência pode fortalecer os camponeses e educandos e nesse debate que compreendemos
contribuir para que transformem seus territórios? a vivência educacional que trata-
mos neste texto.
Para introduzir a reflexão...
Acreditamos que um dos grandes desafios do ensino- O curso médio e técnico em Agroecologia conduzido no
aprendizagem em Agroecologia é apontar a necessidade de no- estado de São Paulo traz como meta de seu projeto político-
vos paradigmas científicos para a construção do conhecimento. pedagógico não somente a escolarização, mas também a for-
Por isso, seus processos pedagógicos devem levar em conta mação técnica e política de 180 educandos que deverão as-
metodologias educacionais que, em seus princípios, relacio- sumir um papel de agentes do desenvolvimento local e, assim,
nem-se criticamente com o caráter político-ideológico tanto contribuir para o avanço da organização das comunidades e
do pensamento reducionista quanto da visão de neutralidade assentamentos. Esses 180 estudantes foram divididos em três
da ciência. Parte dessa tarefa consiste em encarar os saberes turmas, sediadas nas cidades de Ribeirão Preto, Itapeva e Pre-
produzidos pelos camponeses, o chamado saber popular, como sidente Prudente.
dimensão essencial para a construção do conhecimento agroe-
cológico. Entendemos que a linha de frente da construção prá- O curso está inserido no debate sobre Educação do
tica e teórica da Agroecologia se alimenta de relações solidárias Campo que propõe, para os cursos formais, a estrutura da pe-
estabelecidas entre as diferentes formas de se produzir conhe- dagogia da alternância. Ao alternar períodos de atividades na
cimento, tendo sua principal fonte nos próprios territórios em escola e na comunidade rural, essa modalidade legitima am-
processos de transição agroecológica. bos os espaços como locais de construção de conhecimento.
Acima de tudo, a alternância é uma proposta pedagógica que
busca preservar a identidade das pessoas do campo, ao inte-
* Este artigo foi baseado na experiência dos autores em conjunto com a
educadora Ofélia Ortega Fraile.
grar a escola com a família e a comunidade dos educandos.
Ao lado: Atividade extra-classe durante Tempo Escola - Escola Estadual Durante o tempo-comunidade, os educandos ficavam em
de Agroecologia Laudenor de Souza, Itaberá suas comunidades espalhadas por vários assentamentos do
13 Agriculturas • v. 7 - n. 4 • dezembro de 2010
14. estado de São Paulo e tratavam de aplicar os conhecimentos e técnicos que foram analisados por ele no livro Extensão ou
adquiridos. Já no tempo-escola, as disciplinas do curso eram de Comunicação? (1977). Ele nos ensinou que não era possível
diferentes áreas e variavam entre conteúdos técnicos até a promover transformações em direção a uma vida digna para
formação política. Nossa experiência como educadores ocor- os camponeses realizando um trabalho unicamente técnico.
reu por meio das disciplinas de Ação Social Coletiva e Metodo- É imprescindível considerar a dimensão cultural, por ser ine-
logia de Pesquisa e Elaboração de Projeto, que tinham o objetivo rente a todas as pessoas. Paulo Freire também aborda a ques-
de subsidiar os educandos na elaboração dos seus trabalhos tão de que toda técnica tem uma intenção, contribui para um
de conclusão de curso (TCCs). Como orientação pedagógica, determinado projeto de sociedade, ou seja, tem um viés po-
o TCC deveria se pautar pela ação-reflexão sobre os proces- lítico. No caso da Agroecologia, as técnicas necessariamente
sos de transição agroecológica conduzidos nas comunidades dialogam com homens e mulheres e não são instrumentos de
de onde vinham os educandos. Ao mesmo tempo, o TCC opressão do seu saber.
servia como instrumento aglutinador da vivência educacio-
nal dos alunos, uma vez que, por seu caráter interdisciplinar, Nesse sentido, construímos com os
congregava o aprendizado obtido em todas as disciplinas das
mais diversas áreas. O que é pesquisar, como elaborar proje- educandos a postura de que cada
tos, propor ações comunitárias, sistematizar informações, etc., TCC deveria ser produzido com
foram temas sobre os quais nos debruçamos, inspirados por
nossa missão educativa. a participação de suas comunida-
des, constituindo-se em uma ferra-
Aprender e ensinar a Agroecologia: menta para que os assentamentos,
formando um técnico-educador
acampamentos e comunidades
A ideia de que o técnico em Agroecologia deve ser
também um educador em Agroecologia parece sintetizar os possam fortalecer seus processos
princípios que levamos para o curso. Paulo Freire aprofun- de transição agroecológica. Foi a
dou essa perspectiva em seus trabalhos junto a camponeses
partir dessa orientação que pude-
mos estimular discussões sobre
o papel do técnico-educador em
Agroecologia em seu futuro tra-
balho com os camponeses. Revi-
sitamos as narrativas de muitos
educandos que nos traziam suas
experiências de contato com os
serviços de assistência técnica em
muitas regiões. Muitos desses re-
latos apontavam para a falta que
uma postura do diálogo fazia para
Foto: Maurílio Atila Carvalho de Santana
que o camponês pudesse de fato
construir seu próprio futuro.
Durante as aulas, foi possível aprender também com as
dificuldades de promover essa nova relação de diálogo, já que
essa investida requer, por exemplo, a vivência dos educandos
em espaços de participação comunitária. Alguns alunos conta-
vam com certo desânimo que no seu assentamento as pesso-
as não se reuniam ou, pelo menos, não com muita frequência.
Para contornar essa situação, houve educandos que assumiram
o papel de protagonistas na reanimação desses momentos de
encontro em suas comunidades. Em outros casos, foi necessário
aproveitar reuniões que tinham outros propósitos para abordar
Ao lado: Atividade em sala de aula no Centro de Formação Dom
Helder Câmara, Ribeirão Preto
Agriculturas • v. 7 - n. 4 • dezembro de 2010 14
15. Foto: Marcelo Vaz Pupo
Foto: Marcelo Vaz Pupo
Área de convivência no Centro Paula Souza,
em Presidente Prudente
Formatura da turma Chico Mendes, em Itaberá
a construção do TCC. Diante do intenso desafio de fomentar a participação de suas Ainda no que se refere ao en-
comunidades, os técnicos-educadores em formação tiveram a oportunidade de re- frentamento da questão de situar os
fletir sobre como promover dinâmicas sociais participativas, componente essencial camponeses como protagonistas da
de territórios agroecológicos. produção do conhecimento e da prá-
tica agroecológica, cumpre apontar que
O conhecimento camponês: o que está até mesmo a decisão pelo tema a ser
estudado deve ter como base a leitura
ausente deve emergir da realidade feita de forma participativa
Para o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (2002), entre as dife- com as comunidades. Como exercício
rentes estratégias dos movimentos sociais para o enfrentamento do modelo socio- pedagógico, essa etapa pôde incorporar
econômico capitalista, há um importante e inadiável trabalho a ser feito: tornar vi- situações diferenciadas que serviram
síveis as práticas sociais que hoje são consideradas por muitos como ausentes. Para como pano de fundo para que educa-
tanto, é preciso ampliar o real, ou melhor, aquilo que entendemos que é expressivo dores e educandos pudessem ter a di-
de tudo o que existe. Na verdade, Boaventura discute que essa ausência é provocada mensão dos obstáculos e arranjos so-
por uma racionalidade indolente que, de alguma forma, legitima o status quo e ajuda ciais que deveriam ser examinados para
a criar uma espécie de desperdício da experiência, limitando assim a percepção das se definir o papel político do técnico
lutas emancipatórias de nosso tempo. Ao mesmo tempo, ele propõe que façamos em Agroecologia em formação e firmar
uma análise aprofundada dessas experiências, identificando suas capacidades para, seu comprometimento com uma verda-
sozinhas ou articuladas, produzir mudanças futuras frente à luta presente. deira transformação junto aos campo-
neses e seus territórios.
Essas ideias reforçam a opção de imprimir em nossa ação educativa de cons-
trução do conhecimento e da prática em Agroecologia a valorização, a sistematiza-
ção e a comunicação dos modos de organização e produção que os camponeses
Ler a realidade, projetar e
vêm cultivando em seus territórios. Compartilhamos com os técnicos-educandos a construir futuros
percepção de que a Agroecologia não pode se portar como um pacote de técnicas Como princípio político-pedagógi-
estabelecidas por especialistas e que devem ser assimiladas pelos camponeses. Ao co do curso, a pedagogia da alternância
contrário, a prática e o conhecimento agroecológicos devem surgir de um exame possibilitou explorar o tempo comunida-
participativo e constante das dinâmicas sociais, econômicas, culturais e ecológicas de de modo que os educandos aprimo-
que se expressam no desafio de construir territórios camponeses. Também seria rassem sua formação de técnicos em
importante destacar que o uso de materiais de apoio, como a Revista Agriculturas: Agroecologia no sentido de assumirem
experiências em agroecologia tem sido essencial em algumas atividades para que os como postura profissional a mediação
educandos entrem em contato com uma gama de práticas conduzidas por campo- entre os conhecimentos adquiridos
neses em diferentes estágios dos processos de transição agroecológica. A revista com o estudo escolarizado e a vida
proporcionou, especialmente para nós, educadores, um grande estímulo para apro- dos camponeses imersa em suas cul-
fundar com os educandos a necessidade de sistematização do trabalho como ação turas, crenças e desejos. Por meio des-
pedagógica a ser desenvolvida, tanto na elaboração dos TCC junto a suas comuni- se exercício foi possível perceber que,
dades quanto na atuação profissional futura. independente de encontrarem mais
15 Agriculturas • v. 7 - n. 4 • dezembro de 2010
16. dar concretude às modificações que os educandos desejavam
imprimir em suas comunidades. Ao visualizar o futuro agroe-
cológico de seus assentamentos, os educandos perceberam na
Foto: Ofélia Ortega Fraile
elaboração de projeto um instrumento para começar a mate-
rializar os passos que os ajudariam a caminhar nesse sentido.
Entretanto, foi preciso enfrentar as dificuldades de
muitos educandos em se apropriar das terminologias e dos
significados do processo de construção dos projetos que
pretendiam conduzir em situações reais. Contextualizar sua
pesquisa, traçar objetivos, definir modos de trabalho, prever
a avaliação de resultados, entre outras tarefas, tornaram-se
momentos intensos que os aproximaram da ideia de “ocupar
o latifúndio do saber” em analogia às lutas pela terra que vi-
venciam por meio da ação junto ao MST.
A educação é ação social que não tem fim
A relação educador-educando, bem como a do técnico
em Agroecologia com os camponeses, deve estar inserida na
realidade dos movimentos sociais do campo que constroem
Apresentação de trabalho em sala de aula no Centro de Formação e preservam, dia a dia, sua identidade política, social e cultural,
Dom Helder Câmara, em Ribeirão Preto por meio de suas lutas, conquistas e superação de obstáculos.
A capacidade de se situar historicamente em seu território é
ou menos dificuldades, os alunos conseguiram desenvolver decisiva para a efetivação dos objetivos traçados por um pro-
sua capacidade de analisar a realidade dos espaços em que jeto político-pedagógico da Educação do Campo e constitui
atuavam. De maneiras diferentes, puderam verificar a impor- elemento fundamental para a construção do conhecimento
tância de conhecer mais diretamente os locais onde se dá a agroecológico. A visão sistêmica, premissa da Agroecologia,
transição agroecológica, objeto dos seus trabalhos. Tiveram ganha abrangência, do local ao global, quando parte de um
a oportunidade de entender que nem a técnica agroflorestal olhar politicamente emancipado. A luta pela reforma agrária,
nem as sementes crioulas por si só são capazes de transfor- secular na história brasileira, provê, aos sujeitos que nela se
mar o mundo rural. Quem promove a transição agroecológica engajam, consciência capaz de identificar os fatores socioeco-
são os homens e mulheres do campo, num trabalho coletivo nômicos que dominam e subjugam a cultura e a tradição agrí-
com outros atores. E essa articulação, pautada pela ideia de cola de camponeses, quilombolas, ribeirinhos, indígenas, pes-
solidariedade política, permite estabelecer relações entre di- cadores, etc. Ao reconhecer a Revolução Verde como projeto
ferentes sujeitos que juntos transformam o agroecossistema, desestabilizador da cultura e do conhecimento camponês e,
os assentamentos, os territórios e, por que não, a sociedade. ao mesmo tempo aniquilador dos biomas brasileiros, abre-
se a porteira para ocuparmos o latifúndio do saber, lavrando
A etapa de elaboração de projetos nesse terreno o saber agroecológico.
foi essencial para que os educandos Marcelo de Albuquerque Vaz Pupo
pudessem definir um roteiro de in- educador e extensionista, Unicamp
guripreto@gmail.com
vestiga-ação de seus TCC.Além disso,
apresentou-se como oportunidade Mario Mariano Ruiz Cardoso
educador e especialista ambiental da Coordenadoria de
de aprendizagem sobre o planeja- Educação Ambiental da Secretaria de
mento como instrumento de promo- Estado de Meio Ambiente - SP
mariobiologo@gmail.com
ção da transição agroecológica.
De alguma forma, grande parte dos educandos expressa- Referências bibliográficas:
va seus sonhos e desejos de ajudar a transformar a realidade
dos seus lotes, assentamentos ou cidades. Traziam a leitura
das dificuldades encontradas na luta pela conquista da terra, FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro:
assim como discutiram os conflitos relacionados ao avanço Paz e Terra, 1997.
da monocultura da cana de açúcar em suas regiões e as con-
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das au-
sequências para o trabalho de promover a Agroecologia em
sências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica
suas comunidades.
de Ciências Sociais, v. 63, p. 237-280, out. 2002. Disponí-
Diante disso, pudemos trabalhar com a ideia de que o vel em: <http://www.ces.uc.pt/rccs/index.php?id=788&id_
projeto de pesquisa poderia se tornar uma ferramenta para lingua=1>. Acesso em: 20 de julho de 2010.
Agriculturas • v. 7 - n. 4 • dezembro de 2010 16
17. A pesquisa na construção
do conhecimento
agroecológico: a experiência
da FUNDEP (RS)
Rodrigo Ferronato Beatrici e Ulisses Pereira de Mello
E
m 1989, no município de
Três Passos (RS), foi cria-
da a FUNDEP - Fundação
de Desenvolvimento, Educação e Pes-
quisa da Região Celeiro, uma institui-
ção de caráter educativo, gerida pelos
movimentos sociais populares e com-
prometida com processos de Educação
Popular e Agroecologia na perspectiva
da emancipação social. Atualmente a
sua direção é composta pelo Movimen-
to dos Atingidos por Barragens (MAB),
Movimento dos Pequenos Agricultores
(MPA) e o Movimento das Mulheres
Camponesas (MMC), todos ligados à
Via Campesina.
Foto: Ulisses Pereira de Mello
Desde a sua fundação, foram as-
sumidos alguns princípios que carac-
terizaram o seu processo educativo,
dentre os quais: o valor social e pe-
dagógico do trabalho, a radicalidade
democrática, o ensino e a pesquisa na
perspectiva da práxis, a inter-relação
entre os saberes populares e científi- Implantação de experimento agroflorestal
cos, a consciência ecológica e a educa-
ção integral (CAMINI, 1995).
Curso Técnico em Agropecuária Ecológica (TAPE):
A Escola “Terra de Educar”, como a experiência da Turma XI
ficou popularmente conhecida, foi o
A origem do TAPE remonta aos primeiros anos da década de 1990. A demanda
espaço onde foram realizados os cur-
estava vinculada à criação de um curso que trabalhasse com tecnologias agrícolas
sos de educação formal promovidos
alternativas, objetivando, dentre outros aspectos, viabilizar a reprodução econômica
pela FUNDEP. A partir de 2000, a es-
e sociocultural dos pequenos agricultores.
cola passa a ter projeção nacional, aco-
lhendo educandos de 13 estados das O curso teve início em 1996 e, até 2009, foram constituídas 12 turmas, com
cinco grandes regiões do Brasil. aproximadamente 300 educandos formados. Do projeto do curso, dentre outros
17 Agriculturas • v. 7 - n. 4 • dezembro de 2010
18. Foto: Ulisses Pereira de Mello
Foto: Ulisses Pereira de Mello
Mandalas e espiral de bambu
Sede da Fundep, em Ronda Alta (RS) A elaboração dos trabalhos de conclusão de curso:
teoria e prática interligadas
elementos já citados como princípios educativos, destaca-se Os TCCs fizeram parte do programa de educação for-
a organização em seis etapas, sendo cada uma subdividida mal. Para a elaboração dos TCCs foram ministradas aulas
em dois momentos: o tempo-escola (TE) e o tempo-comu- sobre filosofia das ciências e metodologia de pesquisa, com
nidade (TC), com intervalo de aproximadamente 60 dias ênfase em processos participativos.
entre eles. A carga horária do curso totalizava 1.920 horas,
sendo 720 horas dedicadas a estágio curricular. Para além A seguir, são apresentadas as principais atividades teóri-
dessa carga horária, foram desenvolvidas atividades com- co-práticas.
plementares, entre elas: aulas de apoio, seminários, cursos, Do quadro 1 (abaixo), destacamos algumas questões fo-
oficinas, viagens de estudo. cadas no processo de construção do conhecimento agroeco-
lógico. São elas:
Um aspecto importante que decorreu da criação do
TAPE foi a intensificação dos processos de “agroecologiza- a) A presença constante dos movimentos sociais populares
ção” da escola, implicando mudanças substanciais na forma- na construção dos TCCs foi fundamental. Os eixos de
ção teórica e prática. pesquisa (comunidades de resistência e superação cam-
Quadro 1 – Período, atividades de pesquisa e atividades de estágio necessários para a construção do TCC da
Turma XI do TAPE.
Período Pesquisa
- História de vida dos educandos.
1a Etapa
- Diagnóstico Local Participativo.
2a Etapa - Diagnóstico da Unidade de Produção Camponesa.
- Construção dos eixos de pesquisa e organização dos educandos por eixos.
3a Etapa
- Práticas de estágio a partir do eixo de pesquisa.
- Elaboração do projeto de pesquisa.
4a Etapa
- Práticas de estágio a partir do eixo de pesquisa.
- Apresentação dos projetos de pesquisa.
5a Etapa - Elaboração dos TCCs.
- Práticas de estágio a partir do eixo de pesquisa.
- Qualificação dos TCCs (apresentação).
6a Etapa - Práticas de estágio a partir do eixo de pesquisa.
- Defesa dos TCCs.
Fonte: Ferronato e Mello (2007).
Agriculturas • v. 7 - n. 4 • dezembro de 2010 18
19. Foto: Ulisses Pereira de Mello
Foto: Rodrigo F. Beatrici
Acompanhamento na comunidade
Construção de espiral de pedras
ponesa; produção de alimentos; e energias renováveis) tintos usos, que tanto podem servir à humanização quan-
foram construídos a partir do debate com os movimen- to para a alienação. Um exemplo é o conceito de Agroe-
tos (MPA, MAB e PJR), educandos e a coordenação pe- cologia. No início do curso, foi identificado o uso comum
dagógica e técnica da turma. Eles foram gerados a par- do conceito de Agroecologia vinculado ao não uso de
tir de uma análise de estrutura e conjuntura brasileira agrotóxicos, revelando uma consciência fragmentada e
e internacional, do Plano Camponês e das demandas dispersa da definição. Outros elementos que a caracteri-
prioritárias desses movimentos e da Pastoral da Juven- zam ficaram ocultos, dificultando a desnaturalização das
tude. Do mesmo modo, cada tema de pesquisa estava desigualdades sociais que estão intrinsecamente ligadas
inter-relacionado com uma prática social (campos de à exploração dos recursos naturais durante o processo
estágio). Esta estrutura de construção dos TCCs ligou, agrícola. Um dos papéis da escola foi exatamente tra-
num mesmo processo, ações que poderiam ser concebi- balhar a partir desse enfoque, oferecendo as condições
das em separado e construiu um mecanismo de acom- para que os educandos reconstruíssem o conceito, re-
panhamento que envolveu mais pessoas em diferentes elaborando-o de forma mais coerente e complexa. Os
momentos da elaboração dos TCCs. TCCs certamente contribuíram para esta reelaboração,
conforme se pode observar na análise de um educando
b) A prática de estágio não se constituiu somente como
do MAB da Turma XI do TAPE sobre a Agroecologia: “Os
uma das oportunidades para os educandos vivenciarem
movimentos sociais são contrários aos agrotóxicos por
experiências de trabalho como futuros técnicos em agro-
serem substâncias que resultam na eliminação da vida,
pecuária. O estágio associado às atividades de pesquisa
na poluição do meio ambiente e no desequilíbrio social
era fonte geradora de problematizações sobre formas
entre os seres vivos. Por outro lado, [...] são apoiadores
de estudar a realidade, sobre a construção do conheci-
e enfatizadores da Agroecologia por ser um sistema que
mento, sobre a postura do pesquisador, etc. Nesse as-
estimula a vida. Desta forma, [...] acreditam que neste
pecto, o vínculo entre a Agroecologia e a educação po-
sistema podem ser produzidos alimentos para todos os
pular se fortalece. O objeto de pesquisa dos educandos
povos em quantidade e qualidade, do mesmo modo que
se refere a uma comunidade camponesa, isto é, trata de
se preserva a natureza”. (BIZOTTO, 2008, p. 14-15).
relações sociais que têm uma história. Cabe ao técni-
co em agropecuária, compreendido como um educador
popular, interpretar essa história. Afinal, um processo de Algumas lições da experiência da FUNDEP/
capacitação tem relevância quando os jovens e adultos Escola “Terra de Educar”
camponeses podem atuar de forma consciente e crítica
em projetos de desenvolvimento sustentável do campo,
Avanços obtidos no processo educativo
não sendo meramente executores e reprodutores de
propostas pré-concebidas. a) A pesquisa sempre ocupou um espaço de destaque no
projeto político-pedagógico da FUNDEP/Escola “Terra de
c) Um dos objetivos da escola é o de que os educandos
Educar”. Se assim foi, é porque se reconhece nela a pos-
apreendam os conhecimentos científicos de forma me-
sibilidade de realizar uma ruptura com uma concepção
diada com os saberes populares, numa postura de cons-
bancária de educação, que implica não só numa concepção
tante reflexão crítica, permitindo a desmistificação da re-
sobre o conhecimento, mas também sobre o ser humano.
alidade. Por isso, entende-se que a elaboração dos TCCs,
em tudo o que implica, contribui para que os educandos Nesta perspectiva, não se está falando de qualquer pes-
reconstruam conceitos e saibam identificar os seus dis- quisa, mas de uma pesquisa à qual subjaz o método dialético
19 Agriculturas • v. 7 - n. 4 • dezembro de 2010
20. Foto: Ulisses Pereira de Mello
o início, baseado em métodos partici-
pativos, dialógicos, buscando construir
conhecimentos e modos de vida a par-
tir da relação permanente dos saberes
científico e popular. A pesquisa, assim,
não deve ser compreendida enquanto
um monopólio do ensino superior, mas
elaborada em todos os níveis de ensino,
respeitando-se suas particularidades.
Rodrigo Ferronato Beatrici
pedagogo, coordenador da
Coordenadoria de Assistência ao
Educando do Instituto Federal
do Rio Grande do Sul (IFRS) –
Campus Canoas (RS).
Aula de solos dos alunos do curso técnico em agropecuária ecológica roferronato@gmail.com
Ulisses Pereira de Mello
engenheiro agrônomo, mestre em
para a construção do conhecimento e para a intervenção na realidade. A pesqui- Agroecossistemas, professor
sa, assim entendida, potencializa o ato educativo comprometido com a emancipa- assistente da Universidade Federal
ção social. Ela não é meramente um dos meios para os educandos aprenderem os da Fronteira Sul (UFFS) –
conhecimentos historicamente sistematizados pela humanidade. Ela exige que os Campus Erechin (RS).
educandos compreendam o conhecimento como construção social, não só na sua ulissespereirademello@uffs.edu.br
modalidade científica.
b) Para além da elaboração do TCC, as atividades formativas relacionadas à pes-
quisa podem ter influenciado o próprio fazer cotidiano dos educandos. O novo Referências bibliográficas
olhar construído na vivência de métodos dialógicos e participativos pode lhes
ter servido para enfrentar novas situações-problema em suas vidas a partir de
outro patamar, de modo mais qualificado. Ou seja, a pesquisa influenciando seu BEATRICI, Rodrigo Ferronato; MELLO,
modo de vida. Ulisses Pereira de (Orgs.). Curso
Técnico em Agropecuária Eco-
c) O ato de pesquisa teve como um dos frutos a elaboração dos trabalhos de lógica Ênfase em Biocombustí-
conclusão de curso (TCCs). Este tipo de trabalho, na educação profissionali- veis: fortalecer a resistência campo-
zante, certamente qualificou o processo educativo. nesa. Ronda Alta: FUNDEP, 2007.
BIZOTTO, Oberti Martins. Agrotóxi-
Desafios para as experiências populares cos em sistemas de produção
Um desafio mais geral das experiências educativas formais dos movimentos agrícolas: conseqüências para a so-
sociais é a dificuldade de obter financiamento suficiente e regular para manter as ciedade e meio ambiente. Trabalho
atividades. Cursos técnicos na área agropecuária que utilizam o método da alter- de Conclusão de Curso do Técnico
nância demandam um volume substancial de recursos. Além das atividades teóricas em Agropecuária Ecológica (TAPE).
com profissionais de várias áreas, da necessidade de estrutura básica (biblioteca, Orientador: Ulisses Pereira de Mello.
laboratórios, áreas experimentais, etc.), há também ações técnicas e pedagógicas FUNDEP : Ronda Alta, 2008.
nos tempos-comunidade, junto aos educandos. Por isso, sem financiamento público CAMINI, Isabela. Reconstrução his-
contínuo e regular para realizar uma educação de qualidade, muitas experiências tórica do departamento de
agroecológicas populares importantes podem fracassar. educação rural (DER). Coragem
Do ponto de vista pedagógico, mais especificamente, o grande desafio para de Educar. Três Passos, RS. v. 1, n. 1,
os cursos técnicos em agropecuária seria estimular o processo de pesquisa desde 1995. (p. 5 – 26).
Agriculturas • v. 7 - n. 4 • dezembro de 2010 20
21. Introduzindo a
Agroecologia nas escolas
agropecuárias de ensino
médio de Buenos Aires,
Argentina
Santiago J. Sarandón e Claudia C. Flores
Foto: autores
Exercício em grupo durante o curso
21 Agriculturas • v. 7 - n. 4 • dezembro de 2010