SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 22
Baixar para ler offline
DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE        29




                                     Friedrich Nietzsche
                                   como um paradigma?


                                                   YOLANDA GLORIA GAMBOA MUÑOZ




Resumo                                        dade de se relacionarem os “conceitos” de
                                              uso e de ética na atualidade.
    Dentre as diversas utilizações do pen-         Palavras-chave: modelo; usos; operado-
samento de Nietzsche, o texto trabalha com    res; diferenciais; ciências humanas.
pensadores atuais que consideram-no um
paradigma ou modelo de ação. Mostra as-       Abstract
sim – por intermédio dos percursos de
Michel Foucault, Paul Veyne, Gianni               Of the diverse uses of the ideas of
Vattimo e Paul Virilio – a maneira como       Nietzsche, this work focuses on the recent
Nietzsche vai sendo introduzido nas           thinkers that consider them a paradigm or
“ciências humanas”. São apresentados os       a model of action. This paper shows,
referidos percursos diferenciais destacan-    through the courses of the thoughts of
do exemplos que mostrariam de forma pri-      Michel Foucault, Paul Veyne, Gianni
vilegiada a reflexão e operacionalização de   Vattimo, and Paul Virilio, the manner in
determinados pensamentos nietzscheanos. No    which Nietzsche has been introduced into
decorrer do artigo problematiza-se, espe-     the humanities. The above mentioned
cialmente, a categoria de modelo ou           courses are presented, emphasising cases
paradigma aplicada a Nietzsche, conside-      that show well, how certain Neitzschean
rando as relações que ela guarda com o        ideas are reflected upon and brought into
esquema modelo/cópia platônico, e esbo-       operation. This work questions in
ça-se uma possibilidade diferencial de        particular the category of model or
pensar esse “modelo” a partir de              paradigm as applied to Nietzsche, taking
Nietzsche. Também se abre uma possibili-      into consideration the relationship




                                              MARGEM, SÃO PAULO, NO 16, P. 29-50, DEZ. 2002
30   MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002




between this category and the Platonic                  mento pelo nazismo. Sobre essas utili-
scheme, model/copy. The possibilities of                zações existem reflexões que abrangem
thinking of the Platonic model after                    desde pensadores europeus até a pró-
Nietzsche and of relating the concept of                pria recepção de Nietzsche na “cena
use and ethics nowadays are also
                                                        brasileira”.2 Bataille, por exemplo, te-
suggested.
    Key-words: model; uses; operators;                  ria insistido em “lavar” Nietzsche “da
differential; humane sciences.                          mancha nazista”, denunciando certas
                                                        comédias, “uma delas ligada à própria
                                                        irmã do filósofo”.3 Nunca é demais re-
    Ao escolher Nietzsche como pen-                     petir que, no Brasil, a materialidade
sador que instaura uma nova referên-                    discursiva que alertou para a comple-
cia paradigmática — algumas de cujas                    xidade desse pensador, que não pode-
centelhas materializam-se em diversos                   ria ser simplesmente descartado, foi
pensadores do século XX —, vemo-nos                     um artigo do professor Antonio
transportados a uma encruzilhada de                     Candido que, em 1946, na mesma épo-
odisséias. Elas abrangeriam desde a                     ca em que se considerava Nietzsche um
polêmica recepção do pensamento de                      “precursor do nazismo”, enfatizou a
Nietzsche em sua época, acrescida pelo                  necessidade de “recuperar Nietzsche”,
seu autoproclamado caráter póstumo,                     considerando-o “um dos maiores
até sua inegável influência no pensa-                   inspiradores do mundo moderno”, um
mento atual. Nas redes deste último                     daqueles “portadores”,
teríamos que considerar, especialmen-
te, sua previsão de nossa atualidade                         (...) que podemos ou não encontrar, na
                                                             existência cotidiana e nas leituras que
como niilista.1 Mas temos também um
                                                             subjugam o espírito. Quando isto se dá,
aspecto menos grandioso: aquele das
                                                             sentimos que eles iluminam brusca-
diversas interpretações e, entre elas, o                     mente os cantos escuros do entendi-
problema dos usos dos quais o referi-                        mento e, unificando os sentimentos
do pensamento tem sido objeto, come-                         desaparelhados, revelam possibilida-
çando pela apropriação de seu pensa-                         des de uma existência mais real.4



1. Sobre os diversos aspectos e interpretações do       2. Uma reflexão atual dessa problemática encon-
niilismo, temos uma extensa bibliografia. Citemos,      tra-se em MARTON, Scarlett. (2000), “Nietzsche
neste começo, uma das definições mais simples,          e a cena brasileira”. Apêndice em: Extravagâncias.
mas que nem por isso deixa de dar conta dessa           Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche, São Paulo, Dis-
situação na atualidade; na interpretação de Paul        curso Editorial.
Veyne, Nietzsche prevê o niilismo como “os mo-          3. BATAILLE, G. “Nietzsche y el nacional-socia-
mentos da história em que os pensadores têm o           lismo”. ECO, Revista de la Cultura de Occidente,
sentimento que as verdades são sem verdade e            Bogotá, tomo XIX, sep, oct, nov l969, p. 582.
sem fundamento” — VEYNE, Paul. (1989)                   4. “O portador”, que, como Posfácio, foi repro-
“Foucault et le dépassement (ou achèvement) du          duzido no volume Nietzsche, Obras incompletas,
nihilisme”. In: Michel Foucault philosophe. Rencontre   das primeiras edições da coleção Os Pensadores,
Internationale. Paris, Éd. du Seuil, p. 399.            Abril S.A., 1974, pp. 419-424.




MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 29-50, DEZ. 2002
DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE                    31




    O que infelizmente permanece atual                  Quem escreve um livro de “decisões”
é que ainda testemunhamos diversas                      como Crepúsculo dos ídolos não se coloca
referências impertinentes — algumas                     como um novo ídolo. Em outras pala-
vezes misturadas a perigosos precon-                    vras, Nietzsche, que de diversas formas
ceitos — que circulam a partir e ao re-                 põe em prática o distanciamento da con-
dor do pensamento de Nietzsche. Po-                     cepção platônica da relação modelo/
rém, a problemática dos diversos usos                   cópia, não poderia ser assinalado —
se desenha como muito abrangente, e,                    sem traí-lo — como um modelo ou para-
por isso, escolheremos só um aspecto                    digma. Nesse sentido, citemos simples-
dela. Pois se há apropriações e inter-                  mente, a seguir, dois momentos da
pretações indevidas e/ou preconcei-                     História de um erro (ou Como o ”verdadei-
tuosas, existem também aquelas que                      ro mundo” acabou por se tornar em fábula);
emergem como tentativas de recupe-                      história que percorre a própria auto-
rar e até de usar de outra maneira seu                  avaliação do pensamento ocidental e
pensamento. Nesta ocasião, gostaría-                    que começa com “eu, Platão, sou a ver-
mos de destacar — dentro das últimas                    dade”. Localizando-nos apenas nos
utilizações5 — algumas daquelas que                     seus dois últimos momentos, recolha-
querem resgatá-lo como modelo ou                        mos as palavras do próprio Nietzsche:
paradigma de ação. Mas, para fazê-lo,
assinalemos já de início a problemática                      5. O “verdadeiro” mundo — uma Idéia
que consideramos enovelada nessa pre-                        que não é útil para mais nada, que não
tensão: como um pensador que se dis-                         é mais nem sequer obrigatória — uma
tanciou do “modelo” (παραδειγµα),                            idéia que se tornou inútil, supérflua,
                                                             conseqüentemente uma Idéia refutada:
pode ele próprio ser usado como tal?
                                                             expulsemo-la!
Como nós mesmos poderíamos con-                              (Dia claro; café da manhã; retorno do bon
siderá-lo um paradigma que influen-                          sens e da serenidade; rubor da vergonha
ciou o século XX? Sim, pois quem não                         em Platão, alarido dos demônios em todos
queria discípulos e seguidores, não                          os espíritos livres.)
queria “cópias” no sentido platônico.6

5. Termo em sentido abrangente e não reduzido           Victor. (1947), Les dialogues de Platon. Paris, Presses
ao “utilitarismo” que, aliás, teria sido considera-     Universitaires de France, p.15. Deleuze destaca-
do por Nietzsche como “crença” relativa ao “re-         rá, na relação de semelhança entre cópia e Mode-
banho humano”; crença, imaginação, estupidez            lo, seu caráter não exterior, pois “ela vai menos de
“de que um dia sucumbiremos”. Gaia Ciência, §           uma coisa a outra do que de uma coisa a uma
354. (Obras incompletas. Trad. de Rubens Rodrigues      Idéia, uma vez que é a Idéia que compreende as
Torres Filho. 3a ed. São Paulo, Abril Cultural, 1983,   relações e proporções constitutivas da essência
col. Os Pensadores, p. 218.) Edição à qual, a se-       interna”, de modo que “é a identidade superior
guir, faremos referência sempre que não exista          da Idéia que funda a boa pretensão das cópias e
indicação ao contrário.                                 funda-a sobre uma semelhança interna ou deriva-
6. Consideremos que, para Platão, a boa imitação        da”. — DELEUZE, G. (1974), “Platão e o Simu-
ou cópia será aquela “que se regula sobre a Forma,      lacro”. In: Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto
idêntica a si mesma e imutável” — GOLDSCHMIDT,          Salinas Forte. São Paulo, Perspectiva, p. 262.




                                                        MARGEM, SÃO PAULO, NO 16, P. 29-50, DEZ. 2002
32   MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002




                                                           pois entre eles teríamos o cruzamento
     6. O verdadeiro mundo, nós o expul-                   da vergonha de Platão (no momento
     samos: que mundo resta? o aparente,                   em que há predomínio do niilismo fra-
     talvez ? ... Mas não! Com o verdadeiro                co) com a irrupção de Zaratustra (no
     mundo expulsamos também o aparente!                   momento do niilismo forte, em que há
     (Meio-dia; instante da mais curta sombra;
                                                           um novo começo após ter afundado e
     fim do mais longo erro; ponto alto da hu-
     manidade; INCIPIT ZARATHUSTRA).7
                                                           ter tido forças para a “saída pelo alto”).
                                                           Já nos fios jogados ao porvir emerge
    Nesses dois momentos da “histó-                        Zaratustra, aquele que nos traz a “boa
ria de um erro”, possível de ser vis-                      nova”, ou seja, que anuncia o raio ou a
lumbrada como tal, pois constituiria                       figura do além-do-homem,10 transfor-
uma visão de distância, temos: um aler-                    mando assim a própria figura do “ho-
ta para utilidade e inutilidade de cer-                    mem” — tão cara às denominadas ciên-
tas Idéias, um afastamento daquela                         cias humanas11 — numa espécie de pon-
grande criação ocidental que começa                        te entre o animal e o além-do-homem.
com Platão e se auto-elimina como “ver-                         Não por acaso, será nessa inserção
dade”,8 uma predição do niilismo de                        que o próprio momento da cultura oci-
nossa época quando se expulsam con-                        dental inaugurado pelo pensamento de
juntamente o “mundo verdadeiro” (da                        Nietzsche será denominado — hoje em
Luz, do Bem) e o mundo aparente (das                       dia — de nietzscheísmo, e considerado
sombras, da caverna), pois o segundo                       o equivalente da Revolução Francesa
participava e dependia do primeiro.                        ou da queda do Império Romano, uma
Ambos os momentos corresponderiam                          vez que ele marcaria uma “data milenar
ao que em nossa época vivemos como                         na história do pensamento, como Pla-
experiência do niilismo (fraco e forte),9
                                                           10. Adotamos a tradução de Rubens Rodrigues
                                                           Torres Filho para Übermensch, deixando de lado a
                                                           de super-homem que tem implicado incom-
7. NIETZSCHE, F. (1983) Crepúsculo dos ídolos. In:         preensões e mal-entendidos.
Obras incompletas, op. cit., pp. 332-333.                  11. Usaremos, neste artigo, a denominação Ciên-
8. Termo que, nesse momento da fábula, aparece             cias Humanas em sentido amplo e indeterminado
entre aspas, colocadas, talvez, a partir da pers-          e, assim, de forma mais próxima ao pensamento
pectiva utilitária das Idéias.                             de Gianni Vattimo (a qual referiremos na nota
9. Para ater-nos apenas às palavras de Nietzsche,          52). Isso se deve a que cada autor aqui citado
o niilismo se produziria quando retiramos “as              emprega matizes e ordenações diferenciais dessa
categorias ‘fim’, ‘unidade’, ‘ser’, com as quais tí-       denominação, o que não seria o caso de esclarecer
nhamos imposto ao mundo um valor”, sendo a                 neste artigo. No entanto, assinalaremos em nota
“crença nessas categorias da razão” a causa do             algumas dessas diferenças e limitações quando
niilismo em NIETZSCHE, F. (1983), Obras incom-             necessárias para a compreensão do texto. Em
pletas, op. cit., p. 381. Sobre o niilismo fraco e forte   outro lugar trabalhamos essa temática em rela-
operamos, nesse ponto, fazendo uma extensão                ção aos seus “fundamentos ordenadores”: “Pro-
interpretativa da Gaia Ciência §370, em que                blemas de uma teoria das ciências humanas”.
Nietzsche distingue pessimismo romântico e pes-            Revista Integração, Ensino-Pesquisa-Extensão. São
simismo dionisíaco (Ibid. pp. 220-222).                    Paulo, USJT, ano II, nº 6, agosto, l996, pp. 165-172.




MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 29-50, DEZ. 2002
DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE               33




tão faz vinte e cinco séculos”; para usar              escolhemos um assunto talvez “extem-
uma expressão de quem podemos di-                      porâneo”: como16 Nietzsche vai se in-
zer que se movimenta, precisamente,                    troduzir nas denominadas “ciências
na linha de uma “moral nietzscheana                    humanas”? A resposta que salta aos
ou pós-cristã”.12                                      olhos seria: “sem ruído, alaridos, nem
    No entanto, torna-se preciso mar-                  fumaça”, tanto que hoje em dia muitos
car também um aspecto constantemente                   estudiosos na área ainda duvidam da
desconsiderado: Nietzsche, ao contrá-                  importância de trabalhar seu pensamen-
rio do que habitualmente se pensa, não                 to. Isso porque, com exceção da psico-
valoriza os acontecimentos grandiosos.                 logia,17 não tem sido direta nem expli-
Zaratustra, por exemplo, introduz o si-                citamente que essa referida introdução
lêncio em momentos decisivos13 e nu-                   tem acontecido. Mas, não era necessá-
ma ocasião dirá:                                       rio que, tratando-se de Nietzsche, as-
                                                       sim acontecesse? Lembremos nova-
    eu tenho deixado de acreditar em                   mente uma pontualidade textual:
    “grandes acontecimentos” quando se
    apresentam rodeados de muitos alari-                   O que são alguns milênios, nos quais
    dos e muita fumaça.14                                  o cristianismo se conservou! Para o
                                                           mais poderoso dos pensamentos é pre-
Nietzsche dirá que é preciso saber ou-                     ciso muitos milênios — por muito, mui-
vir corretamente Zaratustra e seu tom                      to tempo ele tem de ser pequeno e impo-
da sabedoria, que não é o de um pro-                       tente.18
feta, quando diz:
                                                          Sabe-se que a introdução de Nietzsche
    As palavras mais quietas são as que                nas ciências humanas foi acontecendo
    trazem a tempestade, pensamentos que               à medida que novas interpretações co-
    vêm com pés de pomba dirigem o mun-
    do.15
                                                       16. A nosso ver, a distinção entre “que” e “como”
                                                       supõe um abandono das essências platônicas (que)
   E é precisamente essa situação que,                 e, uma assunção do funcionamento das forças
numa atualidade de fumaça e ruído,                     em termos nietzscheanos (como).
queremos ressaltar. Isso se deve a que                 17. Dela não trataremos nesta ocasião, pois a in-
                                                       trodução de Nietzsche na psicologia parece-nos
                                                       ter sido diferente das demais ciências humanas.
                                                       As relações que Freud manteve com o pensamen-
12. Referimo-nos a Paul Veyne. A expressão cita-       to nietzscheano ainda fazem parte de constantes
da encontra-se em: VEYNE, P. (1995), Le quotidien      debates e polêmicas. Acrescentemos que, hoje em
et l’intéressant (Entretiens avec Catherine Darbo-     dia, levar a sério o Nietzsche-psicólogo tornou-se
Peschanski). Paris, Les Belles Lettres, pp. 162-163.   uma prática; como um cuidadoso trabalho que
13. Por exemplo, Assim falou Zaratustra, II, “A hora   considera esse último aspecto: GIACÓIA JUNIOR,
mais silenciosa”.                                      Oswaldo, (2001), Nietzsche como psicólogo. São
14. Idem, “Dos grandes acontecimentos”.                Leopoldo, Editora Unisinos.
15. Ecce Homo, Prólogo, § 4. Em NIETZSCHE, F.          18. NIETZSCHE, F. (1983), Obras incompletas, op.
(1983), Obras incompletas, op. cit., p. 366.           cit., p. 442.




                                                       MARGEM, SÃO PAULO, NO 16, P. 29-50, DEZ. 2002
34   MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002




meçaram a circular como alternativa à                   pelas quais determinados pensamen-
utilização de Nietzsche pelo nazismo.                   tos de Nietzsche vão ser introduzidos
Segundo o artigo “A terceira margem                     nas ciências humanas. Um exemplo ha-
da interpretação. Müller-Lauter re-                     bitualmente não citado é Max Weber.
visita Nietzsche”,19 Deleuze ressalta “o                Isso se levarmos a sério que este últi-
caráter ativo das idéias de Nietzsche”                  mo pensador constituiria uma espécie
e, assim, volta-se para o futuro, enten-                de divisor de águas — enquanto
dendo que, sobre o passado e a utili-                   “aplicação” de certos pensamentos
zação indevida dos escritos de Nietzs-                  nietzscheanos23 —, cuja interpretação
che, “Jean-Wahl, Klossowski e Bataille,                 de Nietzsche não coincidiria com aque-
já haviam acertado as contas”.20 Em nos-                las do pensamento francês.24 Mas a ta-
sa “cena” foi “através dos pensadores                   refa de desenovelar as relações entre
franceses, em particular de Foucault e                  os pensamentos de Nietzsche e Weber
Deleuze, que, recentemente, no início                   demandaria uma pesquisa rigorosa por
da década de 1980, o autor de                           quem tenha caminhado não apenas pe-
Zaratustra ganhou outra vez destaque                    las vias nietzscheanas, mas experimen-
no Brasil”.21 Inclusive afirma-se, no re-               tado, independentemente, os trajetos
ferido artigo, que seria através da lei-                de ambos os pensadores.
tura desses dois últimos pensadores                         Nosso percurso, nesta ocasião, se-
franceses “que Nietzsche adentrou as                    rá mais limitado e consistirá em ma-
ciências humanas”.22                                    pear, através de alguns exemplos, como
    Interessa-nos acrescentar, nesta                    determinados pensadores — que gos-
ocasião, a complexidade que possui a                    taríamos de denominar “operadores
rede de pensadores que introduzirão                     diferenciais de Nietzsche”25 — acaba-
Nietzsche nas ciências humanas e, es-                   ram por introduzi-lo no âmbito das
pecialmente, a maneira pela qual isso                   ciências humanas. Introdução que te-
tem acontecido até agora: silenciosa-                   ria acontecido não como um projeto a
mente e devagar, ou seja, ao modo de
Zaratustra, com passos de pomba, sem
alaridos nem fumaça. Por outra parte,                   23. Da mesma maneira que nos estudos reali-
                                                        zados sobre Nietzsche no Brasil, não existe una-
precisam ser marcadas as diversas vias                  nimidade para traduzir “Wille zur Macht” (“von-
                                                        tade de potência” ou “vontade de poder”) acon-
                                                        tece com a expressão “nietzschiano” ou
                                                        “nietzscheano”. Nesta ocasião utilizaremos essa
19. MARTON, Scarlett (2000), Extravagâncias.
                                                        última denominação.
Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche, op. cit., pp.
171-201.                                                24. VEYNE, Paul. (1986), “Le dernier Foucault et
                                                        sa morale”. Critique, no 471-472, p. 938.
20. Ibid., p. 187.
                                                        25. Para nos distanciar, assim, da não inocente
21. Ibid., p. 191.
                                                        análise “do discurso filosófico da modernidade”,
22. Idem (2000), “Nietzsche e a cena brasileira”.       feita por Jürgen Habermas ao trabalhar a linha
In: Extravagâncias. Ensaios sobre a filosofia de
                                                        crítica da racionalidade ocidental que viria de
Nietzsche, op. cit., p. 206. Afirmação que conside-     Nietzsche e abrangeria pensadores franceses como
ramos pertinente, quando restrita à psicologia.
                                                        Bataille, Lacan, Foucault e Derrida.




MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 29-50, DEZ. 2002
DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE                   35




ser executado, mas à medida que os                       aqueles que trabalham com conceitos
referidos pensadores encontraram e                       de Nietzsche ao modo de simples
lidaram, em seus próprios percursos,                     “operadores”. Por isso, e sem fazer se-
com diversas pontualidades temáticas                     gredo de nossa própria posição de in-
já apontadas por Nietzsche. Cabe des-                    térpretes, digamos que nos afastamos
tacar que, nessa operacionalização,                      de uma certa tradição filosófica que vê
muitos deles foram modificando es-                       como negativa qualquer instrumentali-
sas problemáticas em função de deter-                    zação dos pensamentos, que acredita
minadas resistências práticas, o que                     somente na “fidelidade” ao texto e/
para nós não constitui um empecilho                      ou em suas análises estruturais e que
para estudá-los. Exemplificaremos a                      rejeita assim aplicações e usos. Dife-
seguir com Michel Foucault, Paul                         rentemente dessa tradição, localizamo-
Veyne, Gianni Vattimo e Paul Virilio.26                  nos mais próximos da série que traba-
Pensamentos nos quais temos tenta-                       lha a partir do diagnóstico do presente, e,
do vislumbrar algumas “árvores”                          em função disso, “Nietzsche-instru-
(Vattimo, Virilio) ou tanto as “árvo-                    mento-de-trabalho” não constitui para
res” como a “floresta” (Foucault,                        nós um sacrilégio. Posição tática
Veyne), mas sempre os acompanhan-                        que — no que diz respeito ao diag-
do separadamente e em seus próprios                      nóstico — não faz senão recolher uma
percursos e, neste sentido, ao utilizar-                 linha desenhada por Foucault a partir
mos aqui algumas fotografias dessas                      de Nietzsche. Mas posição que — em
viagens, tentaremos evitar o perigo de                   nosso caso — quer acrescentar a im-
ficar nas simples citações-cascas.27                     portância de uma reflexão sobre os
     Trabalharemos pontualmente, por-                    meios em nossa atualidade, marcando,
tanto, com pensadores que, pejorativa-                   ao mesmo tempo, as dificuldades de
mente,28 têm sido considerados como                      qualquer operacionalização. Isso porque,
                                                         a nosso ver, operar com determinados
26. A nosso ver, a complexidade da rede não              pensamentos não significa renegar a
poderia ser explicitada num artigo, pois, mesmo          pertinência dos clássicos nem a análi-
restritos, esses nomes encontram-se enovelados
a muitos outros. Apenas para recolher um exem-
                                                         se e revisão constante e cuidadosa dos
plo, digamos que os dois primeiros — Michel              textos. Aliás, ao destacar meios e ope-
Foucault e Paul Veyne — dialogam constante-              radores, procuramos simplesmente se-
mente em seus escritos com Gilles Deleuze, cujo          guir o “velho Aristóteles”, que teria
pensamento chega a ser utilizado por eles quase
como um novo direcionamento que permite se
afastar livremente e sem culpa da tradição filosófica.   margem da interpretação” e “Nietzsche e a cena
27. Usamos essa denominação como uma manei-              brasileira” em: Extravagâncias. Ensaios sobre a filo-
ra de distanciar-nos de denominações como inter-         sofia de Nietzsche, op. cit., pp. 161-208, que se mos-
no/externo e de suas vinculações a profundidade;         tram esclarecedores e ricos em muitos aspectos,
conceitos sobre os quais já operou o martelo             parecem-nos usar a metáfora de “caixa de ferra-
nietzscheano.                                            mentas” e referir-se à utilização dos conceitos de
28. Assim, por exemplo, os artigos de Scarlett           Nietzsche como “operadores” num sentido restri-
Marton: “Foucault leitor de Nietzsche”, “A terceira      to e, por isso, pejorativo.




                                                         MARGEM, SÃO PAULO, NO 16, P. 29-50, DEZ. 2002
36   MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002




percebido a dificuldade dos “meios”                     que costuma ser repetido: Foucault usa-
dando igual importância à “vontade do                   ria Nietzsche como operador. Matizan-
fim” como à “escolha dos meios”. De                     do a referida afirmação, poderíamos
maneira que, para ele, não bastaria,                    dizer que os direcionamentos foucaul-
por exemplo, “querer para deixar de ser                 tianos estão muitas vezes em cruzamen-
injusto”, ou seja, ele teria insistido em               to — com seu operar ou não operar —
que “a dificuldade da realização é                      com pensamentos de Nietzsche. Assim,
maior do que a da concepção”, sendo                     por exemplo, o “diagnóstico da atuali-
que o desprezo pelo meio teria sido                     dade” será relacionado a Nietzsche
próprio de Platão.29                                    pelo próprio Foucault, pois seria
    Comecemos nossa exemplificação                      Nietzsche quem teria descoberto o “di-
com Michel Foucault, uma vez que as                     agnosticar” como a atividade peculiar
problemáticas de seus diversos escri-                   da filosofia, uma vez que filosofar exi-
tos perpassam cada vez mais o âmbito                    giria um escavar genealógico sob nos-
das ciências humanas e, nesse aspecto,                  sos pés e consistiria numa série de atos
existe uma espécie de consenso. A nosso                 e operações em diversos âmbitos.31 Já
ver, já o seu declarado criar “novas                    as prestigiadas incursões de Foucault
relações” constitui precisamente uma                    no âmbito institucional estariam opera-
espécie de encruzilhada entre filosofia,                cionalizando, em surdina, a separação
ciências humanas e história;30 sua pro-                 nietzscheana entre origem e finalida-
clamada “morte do homem” procura                        des.32 Tampouco o trabalhar foucaul-
questionar o objeto-sujeito das pró-                    tiano na história, até como paródia,
prias ciências humanas; vias que, ao                    poderia ser desvinculado do pensa-
mesmo tempo, não poderiam ser afas-                     mento de Nietzsche, do mesmo modo
tadas das diretrizes constituídas pela                  que a “morte do homem” entendida
“problematização constante” e pelo                      como conseqüência do acontecimento
“diagnóstico dos perigos”. E será pre-                  “Deus está morto”. Mas não há segre-
cisamente em relação às problemáticas                   do; as apropriações explícitas e até seu
anteriores que teríamos que retomar o                   operar implícito com Nietzsche são as-
                                                        sumidas por Foucault ao afirmar que
29. Com respeito ao anterior, AUBENQUE, Pierre.         usa Nietzsche como modelo e que tra-
(1986), La prudence chez Aristote. Paris, PUF, pp.
133-137; são suas as expressões que conserva-
mos entre aspas nas duas últimas afirmações.            31. “Conversación con Michel Foucault”, em:
                                                        CARUSO, Paolo. (1969), Conversaciones con Lévi-
30. A conhecida ordenação dessas ciências em
Foucault encontra-se principalmente no capítulo         Strauss, Foucault y Lacan. Trad. F. Serra Cantarell.
                                                        Barcelona, Ed. Anagrama, pp. 81, 82.
X de As palavras e as coisas; cabe ressaltar que nele
a história será considerada como “a mãe das ciên-       32. Operacionalização implícita que será marcada
cias humanas”, guardando complexas relações             brilhantemente por VEYNE, Paul. (1982), Como se
com elas. FOUCAULT, M. (1985), As palavras e as         escreve a história; Foucault revoluciona a história. Trad.
coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. Trad.     de Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. Bra-
Salma Tannus Muchail. 3 a ed. São Paulo, Martins        sília, Ed. Universidade de Brasília, pp. 180 e 198,
Fontes, pp. 384-390.                                    e que remete à Genealogia da Moral, II, § 12.




MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 29-50, DEZ. 2002
DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE           37




balha com “teses nietzscheanas ou                      Foucault estaria criando um novo dife-
antinietzscheanas (que são também                      rencial — desta vez nietzscheano ou
nietzscheanas!)”.33 É este aspecto que,                antinietzscheano. Sim, porque a afir-
nesta oportunidade, gostaríamos de                     mação de operacionalizar teses tanto
destacar, pois nos conduz à interroga-                 “nietzscheanas como antinietzscheanas”
ção do começo deste artigo, instigan-                  não nos parece desligada de uma ou-
do-nos a perguntar: como Foucault                      tra afirmação — desta vez do
permite-se usar a palavra modelo refe-                 “Theatrum Philosophicum” —, com a
rida a Nietzsche? Ele não teria medido                 qual divertia-se ao dizer que toda fi-
o distanciamento do pensamento de                      losofia, após Platão, constituía simples-
Nietzsche com o paradigma platônico                    mente um diferencial platônico.36 De
ao qual já nos referimos?                              maneira que a filosofia, sob essa de-
    Longe de acreditar numa “ingenui-                  terminada ótica, começaria propria-
dade foucaultiana”, teríamos que res-                  mente com Aristóteles:
ponder que é precisamente a expres-
são modelo aplicada a Nietzsche que                        E se no limite, se definisse como filoso-
nos parece constituir uma das cons-                        fia todo empreendimento, qualquer que
tantes “armadilhas do humor foucaul-                       seja, destinado a reverter o platonismo?
tianas” destinada a afastar “leitores                      [...] Digamos mais bem que a filosofia de
                                                           um discurso é seu diferencial platônico.
perigosos”.34 Não por acaso desde seus
primeiros textos, Nietzsche, juntamen-
                                                        A nosso ver, Foucault sabia muito bem
te com Marx e Freud, irrompiam como
                                                       que ao se declarar “nietzscheano ou
brechas da cultura ocidental, não como
                                                       antinietzscheano” afirmava igualmen-
autores, mas como “fundadores de dis-
                                                       te o referente, portanto, através desse
cursividade”.35 Por isso nossa aposta
                                                       gesto, estaria abandonando um “mo-
de leitura é pensar que, nesse gesto,
                                                       delo Platão” e colaborando na consti-
                                                       tuição de um “modelo” Nietzsche,
33. FOUCAULT, M. (1984), “O retorno da mo-             como novo diferencial ao qual de agora
ral”. In: O Dossier. Últimas entrevistas. Trad. Ma-    em diante tornar-se-ia necessário fazer
ria da Gloria R. da Silva. Rio de Janeiro, Liv.        referência.
Taurus Ed.
                                                           Mas, o que acontece se inserimos
34. Em praticamente todos os nossos trabalhos
sobre Foucault temos insistido nesse aspecto que       essas utilizações foucaultianas junto a
— a nosso ver — é constantemente desconsiderado        outros usos de pensamentos nietzschea-
por seus diversos leitores e intérpretes.              nos nas ciências humanas? Ou seja, o
35. Possibilidade que entregam alguns fios             que acontece quando notamos usos di-
relacionais de duas conferências: “Qu’est-ce que
                                                       ferentes desse Nietzsche-modelo, ope-
un auteur?” (em: Dits et écrits. Paris, Gallimard,
1994, vol. I, pp. 789-821) e “Nietzsche, Freud et      rados por outros pensadores? Exempli-
Marx” (em: Nietzsche, Cahiers de Royaumont,            ficaremos a continuação com Paul
Philosophie, tome VI. Paris, Les Éditions de Minuit,
1969, pp. 183-200). Existem traduções para o por-      36. “Theatrum philosophicum”. Em: Critique, nº
tuguês de ambas as conferências.                       282, novembre 1970, pp. 885-908.




                                                       MARGEM, SÃO PAULO, NO 16, P. 29-50, DEZ. 2002
38    MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002




Veyne, cuja aposta nas ciências huma-                     clarar “eu não me iludo de compreen-
nas direciona boa parte de seu trajeto37                  der este difícil pensador”, existe um
e que se tornou conhecido entre nós                       cruzamento entre os caminhos de
por sua aparentemente simples e ino-                      Nietzsche e Veyne. Mas, da mesma
cente análise do Império Romano, com                      maneira que no caso de Foucault, tam-
a qual começa o primeiro volume da                        pouco há segredos; o operacionalizar
“rapidamente” imitada (até entre nós)                     a problemática “nietzscheano-fou-
História da Vida Privada. Esse historia-                  caultiana” da verdade no âmbito da
dor-filósofo, que como um eficiente                       história e até das ciências humanas é o
“profeta às avessas” costuma se per-                      que o próprio Veyne declara e salta à
guntar: “quem já sabia o que hoje acon-                   vista. Um exemplo será afirmar que se
teceria?”, marcará a resposta — no que                    deve à “confusão historicista moder-
diz respeito à nossa época — com três                     na” a própria idéia de atualidade; sem
nomes: Nietzsche, Renan e Flaubert. 38                    por isso deixar de utilizá-la constante-
Sim, porque consciente das diversas                       mente, uma vez que o termo atualidade
possibilidades de caminhos, ele terá                      guardaria relação com aquela “concep-
um especial cuidado de não usar o no-                     ção muito nova da filosofia” que sabe
me de Nietzsche como referência úni-                      que “a verdade clássica está morta”.39
ca. Mas recortemos desta vez — cons-                      Por outro lado, o abandono da proble-
ciente e arbitrariamente — seu trajeto                    mática do fundamento, que também re-
e salientemos somente algumas pontua-                     mete a Nietzsche, será operaciona-
lidades de sua relação com o pensamen-                    lizado por Veyne dentro do próprio
to nietzscheano. Veremos, assim, que                      percurso foucaultiano,40 pois seria pre-
apesar dos matizes diferenciais, ou do                    ciso “tirar as conseqüências da impos-
gesto veyniano que faz questão de de-                     sibilidade de fundar para se aperceber
                                                          que é tão inútil quanto impossível”.41
                                                          Acrescente-se aos aspectos anterior-
37. Ver, sobretudo, VEYNE, Paul. (1983), Inven-           mente mencionados um operar, dessa
tário das diferenças, aula inaugural no Collège de        vez mais silencioso, com a concepção
France. Trad. de Sônia Salzstein. São Paulo,
Brasiliense. Cabe esclarecer que — ao modo de             nietzscheana do escolher e com uma cer-
Raymond Aron —, nesse texto, Veyne considerará            ta plasticidade que, muitas vezes, será
Sociologia no sentido abrangente de Max Weber.            considerada como a própria vontade de
Já em outros escritos, Max Weber será considera-
do um “historiador” e a “sociologia” aparecerá
em sentido restrito, como, por exemplo, em:
“Contestation de la Sociologie” (Diogène, no 75,
 juillet-septembre, 1971). Muitas das críticas que        39. Idem. (1986), “Le dernier Foucault et sa
Veyne fará à sociologia serão incorporadas por            morale”, op.cit., p. 940.
PASSERON, Jean-Claude. (1995), O raciocínio so-           40. Ibid., pp. 938-939.
ciológico. O espaço não-popperiano do raciocínio natu-    41. Idem. (1989), “Foucault et le dépassement
ral. Trad. de Beatriz Sidou. Petrópolis, Vozes.           (ou achèvement) du nihilisme”. In: Michel Foucault
38. VEYNE, Paul. (1995), Le quotidien et l’intéressant,   philosophe. Rencontre Internationale. Paris, Éd. du
op. cit., p. 319.                                         Seuil, p. 152.




MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 29-50, DEZ. 2002
DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE                39




potência;42 ambas as perspectivas, no                  e problemática expressão — que se tem
entanto, são necessárias para entender                 tornado habitual em historiografia e
o trabalho “revolucionário” desse his-                 nas ciências humanas — remete a
toriador. Num outro nível, estaria tam-                Nietzsche e não a Max Weber, como se
bém o gosto pela montanha, território                  costuma acreditar. Mostrando toda sua
comum a ambos os pensadores.43 In-                     complexidade, Veyne percorrerá uma
clusive saltando até as vivíssimas, am-                interpretação em que “os fatos não exis-
bíguas e engraçadas descrições da con-                 tem” constituiria uma afirmação que
dição humana que percorrem os diver-                   não só diz respeito ao plano do conhe-
sos textos de Veyne, teríamos que di-                  cimento que os interpreta, mas ao pla-
zer que elas também mostram seus                       no da realidade onde são explorados,46
enovelamentos com fios nietzscheanos.                  pois a referida expressão descreveria:
Isso começando pela própria revalori-
zação da alegria e do riso44 e até como                    a estrutura da realidade física e huma-
estudo limitado e caricatural que sim-                     na; cada fato (a relação de produção, o
plesmente repete duas ou três caracte-                     “Poder”, a “necessidade religiosa” ou
rísticas da condição humana, uma vez                       as exigências do social) não joga o mes-
                                                           mo papel, ou mais bem não é a mesma
que se tem consciência de que a estru-
                                                           coisa, de uma conjuntura a outra; não
tura desse comportamento permanece                         há papel nem identidade senão de cir-
desconhecida.45                                            cunstância,47
     Mas, entre aqueles diversos cruza-
mentos, escolhamos veynianamente                       o que, já na linguagem veyniana, seria
um detalhe: a expressão “os fatos não                  constatar que há somente práticas e con-
existem”. Veyne lembrará que esta cara                 junturas. Finalmente, e tratando-se de
                                                       quem aposta na trilha de Nietzsche e
                                                       sabe que “a verdade está morta”, não
42. Mesmo que Veyne declare que “as palavras           poderíamos nos limitar apenas a análi-
‘vontade de potência’” são imprecisas e impro-
nunciáveis e que, sobre elas, teríamos que “pensar     ses conceituais gerais. Por isso, para não
em silêncio” — VEYNE, Paul. (1995), Le quotidien       trair esse operador por excelência que é
et l’intéressant , op. cit., p. 267.                   Veyne, citemos pelo menos um exemplo
43. Tentamos explicitar as últimas problemáticas       que remete a uma prática de “espírito
através do percurso realizado em: GAMBOA
                                                       nietzscheano”.48 Trata-se daquele co-
MUÑOZ, Yolanda Glória. (2000), Escolher a mon-
tanha. Os curiosos percursos de Paul Veyne, tese de
doutorado, USP, 2000.                                  46. Ibid., p. 241.
44. Assim, por exemplo, não seria um simples           47. VEYNE, Paul. (1983), Les grecs ont-ils cru à
detalhe a ser descartado o fato de que em Zaratustra   leurs mythes? Essai sur l’imagination constituante.
mude-se a “coroa de espinhos” pela “coroa de           Paris, Éd. du Seuil, p. 49. Existe tradução para o
rosas” e que, por outra parte, a “grande saúde”        português: idem. (1984), Acreditavam os gregos em
seja alegre, cf. A Gaia Ciência, § 382. NIETZSCHE,     seus mitos? Trad. de Horácio González e Milton
F. (1983), Obras incompletas, op. cit., p. 222.        Meira do Nascimento. São Paulo, Brasiliense.
45. A respeito, Nietzsche, Morgenröte, § 116 e         48. Para adotar pontualmente a expressão com a
Menschliches Allzumenschliches, § 160.                 qual G. Lebrun caracteriza P. Veyne. (Em: “Para




                                                       MARGEM, SÃO PAULO, NO 16, P. 29-50, DEZ. 2002
40   MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002




meço da História da Vida Privada pelos               Veyne faz a comunicação “Foucault et le
romanos, e não pelos gregos. Sem                     dépassement (ou achèvement) du nihilisme”,
desconsiderar as “razões históricas”                 na qual faz questão de declarar, logo
que ali nos são dadas,49 digamos que                 de início, que “muitas coisas que dirá
começar pelos romanos implica tam-                   se devem a Gianni Vattimo”, o que afir-
bém um abandono do problema do fun-                  mará “de uma vez por todas e bem for-
damento e, ao mesmo tempo, afastar um                te”.51 E será esse gesto que nós amplia-
modelo ou paradigma a ser imitado na                 remos, nesta ocasião, para nos referir-
origem; sobretudo um modelo “ideal”                  mos em seguida a Gianni Vattimo. Esse
em função do qual fundamenta-se a                    filósofo italiano, que auto-avalia iro-
caracterização valorativa da “cópia”                 nicamente seu pensamento como “fra-
como inferior. Nesse caso, toma-se dis-              co”, hoje se tornou conhecido pelas con-
tância de um possível trabalho em ter-               siderações que ainda tentam dar um
mos de “modelo” grego e “cópia” ro-                  sentido à pós-modernidade. Sentido
mana. Sim, porque é o platonismo que,                que ele acredita descobrir em nossa
na ousadia do gesto veyniano, está sen-              sociedade de comunicação generaliza-
do ignorado desde o início. Em outras                da ou dos mass media. Ele trabalhará —
palavras, questiona-se um operar com                 em conjunto e de maneira relacional —
os esquemas de modelo/cópia ou rea-                  ciências humanas e meios de comuni-
lidades/imagens, já na sua suposta ori-              cação de massa, vinculando-os constan-
gem grega. Segundo Veyne: “O mundo                   temente à problemática do niilismo.
não é feito de dois tipos de coisas, as              Digamos, no entanto, que Vattimo,
realidades e suas imagens”.50                        mesmo mostrando as ilusões de “trans-
    Sobre os desdobramentos da refle-                parência” e de “acesso direto aos acon-
xão nietzscheana do niilismo na atuali-              tecimentos” criadas pelos meios de co-
dade, existe um outro gesto veyniano                 municação, não deixará de enfatizar,
que merece consideração. No Encon-                   por outro lado, a explosão das multi-
tro Internacional de 1988 — Michel                   plicidades locais (minorias) que acabam
Foucault philosophe — após ouvir di-                 hoje constituindo o próprio objeto das
versas reflexões sobre o niilismo e sua              ciências humanas. Em suas palavras:
relação com o pensamento foucaultiano,
                                                          (...) as chamadas “ciências humanas”
                                                          (um termo que no nosso discurso,
acabar com a cidade grega”, O Estado de S. Paulo,
                                                          como na cultura atual, continua in-
26.5.1984, Caderno de Programas e Leituras).
                                                          completamente determinado em rela-
49. “Introdução”, em História da Vida Privada.
Trad. de Hildegard Feist, São Paulo, Cia. das Le-
tras, 1989, vol. I. e nossa análise em “A vingança   51. Rencontre Internacionale, op. cit., p. 399. É claro
contra Roma...”, Cadernos Nietzsche, São Paulo,      que esse gesto teria que ser relacionado com a
FFLCH-USP, nº 6, 1999, pp. 67-68.                    atitude de Veyne, que se situa além das preten-
50. “A helenização de Roma e a problemática das      sões de originalidade e que tem uma concepção
aculturações”, Diógenes, Brasília, Ed. Universida-   muito especial de “influência”, considerando-a
de de Brasília, nª 3, jul./dez., 1982, p. 120.       uma ocasião de “tornar-se si mesmo”.




MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 29-50, DEZ. 2002
DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE                     41




     ção aos seus limites e ao seu âmbito de            história e a destruição da própria for-
     compreensão), desde a sociologia à an-             ma unitária, em que se tinha pensado,
     tropologia ou à própria psicologia —               por exemplo, “um projeto de história
     as quais surgem, de fato, apenas na                autenticamente mundial”.55
     modernidade —, são condicionadas,
                                                            Materialização do pluralismo
     para além de uma relação de determi-
     nação recíproca, pela constituição da              nietzscheano e abandono do sistema
     sociedade moderna como sociedade de                hegeliano como unificador,56 podería-
     comunicação. As ciências humanas                   mos acrescentar; só que operacionali-
     são, ao mesmo tempo, efeito e meio de              zados para refletir sobre as relações en-
     ulterior desenvolvimento da socieda-               tre ciências humanas e meios de comu-
     de de comunicação generalizada.52                  nicação na atualidade. E será sempre
                                                        tendo presente um certo viés nietzschea-
    Dessa maneira, as ciências huma-                    no que as análises de Vattimo sobre a
nas estariam condicionadas pela socie-                  atualidade serão conduzidas. Sua in-
dade moderna como sociedade da co-                      terpretação de Nietzsche está materia-
municação, mesmo que elas tenham                        lizada e constantemente modificada em
reconhecido “o carácter histórico, li-                  livros e artigos diversos a respeito.57
mitado e afinal ideológico, do próprio                  Já nas análises da atualidade ele opera
ideal de autotransparência, como do                     relacionando Nietzsche e outros pen-
de uma história universal”.53 Pois, su-                 sadores ou, como ele mesmo declara,
pondo que as ciências humanas são                       não faz suas reflexões a partir de
aquelas que “descrevem ‘positivamen-                    “enunciados teóricos”, mas de “conclu-
te’ aquilo que o homem faz de si na                     sões legitimamente tiradas” dos textos
cultura e na sociedade”, essa descrição                 deles.58 Assim, Vattimo referir-se-á à
estaria condicionada pelas análises                     simultaneidade (teórica) dos meios de
comparativas, as que se dariam como
o próprio “desenvolvimento da socie-                     55. Ibid., p. 29. Vattimo retoma, nesse ponto,
dade moderna nos seus aspectos co-                      uma afirmação de Nicola Tranfaglia.
                                                        56. A agregação de todas as diferenças, numa
municativos”.54 E será por essa intensi-
                                                        totalidade teórica, mas já se encarnando no Es-
ficação dos fenômenos comunicativos                     tado, seria a responsável pela “imagem de Hegel
que se possibilita, paradoxalmente, o                   como zelador-filósofo do Estado prussiano, o
nascimento de mil outros centros da                     que talvez não fosse” — VATTIMO, Gianni.
                                                        (1999), “Estamos perdendo a razão?”. In: Café
52. VATTIMO, Gianni. (1992), A sociedade transpa-       Philo. Trad. Procópio Abreu. Rio de Janeiro, Jorge
rente. Trad. Hossein Shooja e Isabel Santos, Lis-       Zahar Editor.
boa, Relógio D’Água Editores, pp. 20, 21. É esta        57. Por exemplo: VATTIMO, Gianni. (1980), As
denominação de ciências humanas que usamos              aventuras da diferença. Trad. de José Eduardo Rodil.
como horizonte deste artigo, mas deixando de            Lisboa, Edições 70; idem. (1989), El sujeto y la
lado a psicologia, em que a “influência” de             máscara. Trad. de Jorge Binaghi. Barcelona, Penín-
Nietzsche teria sido direta. (Cf., a respeito, notas:   sula; idem. (1987), Introducción a Nietzsche. Trad.
11 e 17.)                                               de Jorge Binaghi. Barcelona, Península.
53. Ibid., p. 31.                                       58. Idem. (1988), “L’impossible oubli”. In: Usages
54. Ibid., p. 21.                                       de l’oubli. Paris, Éd. du Seuil, p. 77. Vattimo retirará




                                                        MARGEM, SÃO PAULO, NO 16, P. 29-50, DEZ. 2002
42   MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002




comunicação — por exemplo, a repor-              do de nossa civilização ou inclusive de
tagem televisiva ao vivo —, dizendo              toda civilização”.60 No entanto, uma
que é ela que definiria a “contempora-           vez que nós não vivemos mais numa
neidade” do mundo. No entanto, essa              cultura do instante (como vivia a obra
espécie de grande fenomenologia do espí-         utópica, por exemplo), será precisa-
rito ou presentificação estaria desprovi-        mente nesse relativo “caos” que resi-
da de todo caráter dramático e nos le-           dem para Vattimo “as nossas esperan-
varia a nos reencontrar com os mes-              ças de emancipação”.61 Por isso, consi-
mos problemas apontados por                      derará o Nietzsche de Zaratustra como
Nietzsche na Segunda Consideração                o filósofo da modernidade tardia, à
Extemporânea. Ou seja, reencontraría-            medida que ele “teria visto e vivido a
mos a impossibilidade do esquecimen-             dissolução do instante decisivo e do
to, pois, segundo Vattimo, a conclusão           pathos que a acompanhava”.62
desse ensaio de 1874 seria                           Mas era na reflexão sobre o niilismo
                                                 de nossa época que Veyne inscrevia —
     (...) que o homem do século XIX sofre       na porta talvez — o nome de Gianni
     de uma doença histórica — que por           Vattimo. Sim, porque aquela temática
     causa do excesso de conhecimento e          percorre efetivamente os diversos tex-
     de consciência histórica, ele não é mais    tos desse último pensador, e, sobre ela,
     capaz de criar, portanto, de fazer a ver-
                                                 torna-se esclarecedor voltar àquelas
     dadeira história (enquanto res gestae).59
                                                 duas últimas etapas da História de um
Sendo que, hoje, esses problemas esta-           erro, que citamos no começo deste arti-
riam “mais acentuados e generaliza-              go. Isso porque, segundo a interpreta-
dos”; o que era um fenômeno de elite             ção de Vattimo, essa fábula resumiria
na época de Nietzsche, hoje já não se-           as etapas da filosofia européia, tal co-
ria mais. Em outras palavras, os mass            mo elas seriam reconstruídas no pen-
media ter-se-iam desenvolvido como               samento de Nietzsche.63 No ponto cin-
“verdadeiros órgãos da historiciza-              co da História de um erro seria evocada
ção”, e só aparentemente eles seriam             uma “filosofia do amanhecer”, em que
cultura a-histórica, pois hoje televisão,        nos teríamos liberado do “mundo ver-
imprensa, rádio, etc. se sustentariam            dadeiro”, ou seja, “das estruturas me-
cada vez mais pela reprise, “caótica, mas        tafísicas, de Deus”.64 No passo seguin-
tendencialmente omnicompreen-siva”.
Tratar-se-ia, assim, de uma tendência            60. Ibid., p. 80.
à “presentificação total [...] do passa-         61. Idem. (1992), A sociedade transparente, op. cit. p. 10.
                                                 62. Idem. (1988), “L’impossible oubli”, op. cit., p.
                                                 86, em que Vattimo refere-se ao Portal do Instan-
                                                 te (nele está escrito Augenblick) do discurso “Da
conclusões de Nietzsche e Heidegger nessa oca-   Visão e o Enigma”, em Assim falou Zaratustra III.
sião, mas às vezes será de Marx ou, ainda, de    63. Idem. (1987), Introducción a Nietzsche, op. cit.,
outros pensadores.                               pp. 98, 99.
59. Ibid.                                        64. Ibid, p. 100.




MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 29-50, DEZ. 2002
DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE                     43




te, ou seja, no ponto seis, quando se            Acontece assim que, “uma vez des-
suprime também o mundo aparente,             coberto que tudo é vontade de poder,
segundo Vattimo, se fez “meio-dia, a         todos se vêem obrigados a tomar par-
hora sem sombras, a hora em que co-          tido”.67 Polêmica interpretação, portan-
meça o ensino de Zaratustra”. O refe-        to, que relacionará niilismo, eterno re-
rido ensino, que corresponderia ao           torno, decisão e vontade de potência.
pensamento do último Nietzsche, te-              Mas, explicitando-a como “interpre-
ria como conseqüência o pensamento           tação”, atenhamo-nos sobretudo àque-
“mais perturbador e abismal de Zara-         le constante remeter a Nietzsche em
tustra, a idéia do eterno retorno”. Com      função da fábula. Isso porque, segundo
isso viria a exigência de levar a cabo       Vattimo, a sociedade de autotrans-
“uma sistematização unitária e uma           parência avançou para a “fabulação do
radicalização do niilismo ao que tinha       mundo”, de tal maneira que a “realida-
chegado a filosofia do amanhecer”;65         de” do mundo constitui-se pelas múlti-
isso porque o eterno retorno seria pre-      plas fabulações: “Realiza-se, talvez, no
cisamente “a forma extrema do niilis-        mundo dos mass media, uma profecia de
mo, o nada (a falta de sentido) eter-        Nietzsche: no fim, o mundo verdadei-
no”.66 Na interpretação de Vattimo apa-      ro transforma-se em fábula”.68 E, a par-
recerá, a partir desse ponto, uma série      tir disso, poderá também considerar
de desenvolvimentos — no mínimo              que as próprias ciências humanas, com
polêmicos —, pois, segundo ele, rela-        o debate metodológico que lhes é pró-
cionadas ao último momento da fábu-          prio, constituem-se como fábulas, cons-
la teríamos a transformação da estru-        cientes de tal. Daí, por exemplo, as pre-
tura “edípica” do tempo, a fundamen-         ocupações atuais que elas teriam com
tação da doutrina do eterno retorno me-      narrações, mitos, sistemas simbólicos
diante um conteúdo “cosmológico” e a         e com a própria hermenêutica, que con-
ligação da idéia do retorno a uma deci-      sideraria o caráter plural das narrações.
são que o homem deve tomar e a partir        Por isso, as ciências humanas seriam
da qual se transforma. De maneira que        essas fábulas conscientes que constitui-
tratar-se-ia, especialmente, de vislum-      riam mais seu objeto do que explora-
brar o niilismo como “o manifestar-se        riam um “real” já constituído e orde-
da mentira na moral. A moral tem in-         nado. A nosso ver, há nessa perspecti-
ventado e proposto valores para a uti-       va uma relação com a frase de
lidade da vida”, mas com isso                Nietzsche que Vattimo está sempre ci-
                                             tando: “Não existem fatos, somente
    tem ocultado desde sempre o sentido
                                             interpretações”,69 mas recordando que
    mesmo das posições de valor, ou seja,
    seu enraizamento na vontade de po-       Nietzsche acrescentava, “isto já é in-
    der de indivíduos e grupos.
                                             67. Ibid.
65. Ibid., p.103.                            68. Idem. (1992), A sociedade transparente, op. cit., p.13.
66. Ibid., p.115.                            69. Idem. (1987), Introducción a Nietzsche, op.cit., p.117.




                                            MARGEM, SÃO PAULO, NO 16, P. 29-50, DEZ. 2002
44   MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002




terpretação (Auslegun)”.70 No entanto,                  aconteceria. Devemos isso não somen-
atento sempre aos novos começos e                       te ao artigo “Delírio em Nova Iorque”,
emancipações, Vattimo pensará como                      no qual analisou em 1993 o atentado
“uma recuperação hermenêutica da ‘re-                   do qual foi alvo o World Trade Center
alidade’”, uma conclusão extraída, pre-                 naquele ano, considerando-o símbolo
cisamente, do texto de Nietzsche so-                    de “uma nova relação de forças” ou
bre a fábula:                                           “premonição de uma Hiroshima de um
                                                        novo tipo”.74 Sim, porque esse pensa-
     Que a realidade seja a (nossa) história            dor, que tem sido considerado como
     não a faz, por isso, uma fábula; já que            apocalíptico, tampouco é uma espécie
     se o mundo verdadeiro tornou-se fá-                de visionário. Em outras palavras, é um
     bula, como escreve Nietzsche, dessa                paciente trabalho anterior, materializa-
     forma é também a fábula (o esquema
                                                        do em diversos escritos, que possibili-
     mental que deveria reduzir tudo a si)
     que foi negada.71                                  tou esse seu acertado diagnóstico. Tra-
                                                        balho no qual Virilio abordou, sob di-
    Não queremos deixar de mencio-                      versos ângulos, os perigos do uso da
nar, finalmente, Paul Virilio, arquite-                 tecnologia como arma (deixando de
to-filósofo, que também constantemen-                   considerá-la só como instrumento) e
te introduz ligações com o pensamen-                    inseparável da velocidade como valor.
to de Nietzsche. Isso porque Virilio                    Tecnologia e velocidade seriam, para
tem-se tornado um acertado pensador                     ele, um lado desconhecido da política,
da técnica e da “guerra pura” que re-                   às quais, no entanto, estaríamos todos
siste, portanto, à aplicação da pergun-                 submetidos e, o que é pior, não con-
ta veyniana aos acontecimentos atuais                   trolamos. Numa entrevista, em 1983,
imediatos.72 Em relação a Virilio pode-                 descreverá como até o próprio terro-
mos dizer que ele previu a fumaça e o                   rista tem que usar o veículo em movi-
ruído atuais, descartando assim a pos-                  mento ficando “numa situação tecno-
sibilidade que eles viessem constituir                  crática; por exemplo, um avião, um car-
acontecimentos marcados pela “surpre-                   ro, um trem, um barco”, isso porque,
sa ou algo de inimaginável”.73 Em ou-                   “num veículo em movimento, do qual
tras palavras, ele já sabia o que hoje                  as pessoas não podem descer, você tem
                                                        uma situação de força”.75 O avião (ou
                                                        um motor que explode) usado como
70. Idem. (2001), A tentação do realismo. Trad. de      arma é um exemplo do que ele consi-
Reginaldo Di Piero. Rio de Janeiro, Lacerda ed.         dera a militarização da sociedade. Uma
Istituto Italiano di Cultura, p. 17.
71. Ibid., p. 43.
72. Aludimos à pergunta “quem já sabia o que            74. Ibid.
hoje aconteceria?”, referida na nota 38 deste artigo.   75. VIRILIO, Paul. (1984), Guerra pura. A milita-
73. Ver entrevista a El País, reproduzida e tra-        rização da sociedade. Trad. Elza Mine e Laymert
duzida na Folha de S. Paulo, Cad. Especial 8,           Garcia dos Santos. São Paulo, Editora Brasiliense,
25.9.2001.                                              p. 106.




MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 29-50, DEZ. 2002
DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE                45




vez que hoje em dia “aquele que tem a                relação com as novas ordenações80 que
velocidade, tem o poder. E tem o po-                 Paul Virilio introduzirá nas, por ele
der porque é capaz de adquirir os                    denominadas, ciências sociais,81 permi-
meios, o dinheiro”.76 Hoje, fabrica-se               tindo-lhe visualizar novos problemas.
velocidade. O poder estaria investido                Nas referidas ciências destacará cons-
na aceleração. Nesse sentido,                        tantemente a importância do acidente,
                                                     pois ele constituiria uma interrupção,
    (...) o verdadeiro inimigo é menos ex-           ou seja, uma mudança de velocidade,
    terno que interno: nosso “próprio” ar-           uma queda, mas que “tem algo a nos
    mamento, nosso “próprio” poderio ci-             ensinar sobre a natureza de nossos cor-
    entífico que, de fato, promove o fim de          pos e o funcionamento de nossa cons-
    nossa própria sociedade.77
                                                     ciência”.82 O acidente seria, assim, o que
                                                     antes era o pecado para a natureza hu-
Por outro lado, o Estado, a máquina
                                                     mana; uma relação com a morte. Por
de Estado, desde 1969,78 usaria técni-
                                                     isso, em 1983 Paul Virilio propõe que
cas de terrorismo e tornar-se-ia assim
                                                     cada tecnologia escolha seu acidente
terrorista. Começariam assim os atos
                                                     específico e o revele, não de maneira
de guerra sem uma guerra. Nas pala-
                                                     moralista, mas como um produto a ser
vras de Virilio:
                                                     questionado epistemo-tecnicamente.83
                                                     Da mesma maneira que no fim do sé-
    (...) (há) dificuldades que os regimes po-
    líticos têm em resistir ao terrorismo por
                                                     culo XIX os museus exibiram máquinas,
    causa das próprias tecnologias (tele-            agora se poderiam exibir descarrila-
    fones, mísseis, etc.),                           mentos de trens, poluição, desmoro-
                                                     namentos de edifícios...
por outro lado                                           Em outro nível, hoje seria necessá-
                                                     rio repensar conceitos como liberdade
    (...) há problemas que a comunidade              e progresso, uma vez que existe a arma
    internacional tem ao tentar acabar com
    o terrorismo de Estado. É a mesma ló-
    gica da surpresa absoluta e do não-di-
    reito, uma lógica, digamos, do “ato gra-         80. Virilio reconhece trabalhar com o modelo mi-
    tuito”.79                                        tológico das três funções (sagrada, militar e eco-
                                                     nômica) estabelecido por Georges Dumézil, uma
   Muitas dessas análises, que se tor-               vez que os mitos teriam uma capacidade analíti-
                                                     ca inegável e poderiam ser utilizados como
naram altamente pertinentes, estão em                analisadores e como tendências. Ibid., pp. 21, 22.
                                                     81. Virilio preferirá a denominação ciências sociais
                                                     e fará referência a elas constantemente; o que não
76. Ibid., p. 50.                                    poupará à sociologia de suas severas críticas. Ibid.
77. Ibid., p. 53.                                    82. Ibid., p. 41.
78. Virilio refere-se ao ataque dos pára-quedistas   83. Acrescentemos que a importância do acidente
israelenses ao Aeroporto de Beirute. Ibid., p. 34.   como interrupção do conhecimento não está des-
79. Ibid., pp. 34, 35.                               ligada da crítica nietzscheana do conhecimento.




                                                     MARGEM, SÃO PAULO, NO 16, P. 29-50, DEZ. 2002
46   MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002




nuclear84. Em suas palavras,                         de e suas conseqüências para o pensa-
                                                     mento não escapavam a Nietzsche, 88
     (...) desde o século XVIII — desde a Era        mas que Virilio levará isso ao extre-
     das Luzes, para usar a terminologia             mo, indicando, por exemplo, que “o
     conhecida — acreditamos que a                   mito nietzscheano da grande saúde”89
     tecnologia e a razão andavam de mãos            prolonga-se hoje, na direção de uma
     dadas em direção ao progresso; ao “fu-
                                                     espécie de “estimulação perpétua”;
     turo glorioso”, como eles dizem. Era
     ponto pacífico que acharíamos a solu-
     ção — para a doença, a pobreza, a de-                (...) a “grande saúde” não é mais por-
     sigualdade. Tudo bem, achamos; mas                   tanto um DOM, o dom do silêncio dos
     ela era a solução final, não a melhor.               órgãos, ela é um HORIZONTE, uma
     Era a solução do mundo acabando na                   perspectiva a ser atingida graças às
     guerra nuclear, na Guerra Total, no                  proezas da aceleração das tecnologias
     extermínio e no genocídio. Assim, mi-                AO VIVO.90
     nha intenção é dizer: chega de ilusões
     a respeito da tecnologia. Não contro-           Dessa maneira, Virilio retoma o tipo
     lamos o que produzimos.85                       Zaratustra com seu pressuposto fisio-
                                                     lógico da grande saúde, cuja recompen-
Por isso, entre seus esboços de solu-                sa deveria ser uma terra desconheci-
ções, estaria a necessidade de “politizar            da, um além de todos os cantos, mas
a velocidade”,86 controlando tanto a                 para dizer que
velocidade metabólica quanto a
tecnológica, uma vez que “nós somos                       (...) esse além radiante se tornou, em
ambas”.87                                                 pouco tempo, um simples aquém de
    Notemos, porém, que Virilio tri-                      todas as terras, de todas as fronteiras
                                                          das regiões do próprio mundo...,91
lha caminhos que dificilmente coinci-
dem com as sendas percorridas pelos
                                                     pois hoje não há mais um pautar-se por
pensadores anteriormente citados, os
                                                     dimensões, mas somente por anos-luz.
quais também se diferenciam, entre
                                                        Já com respeito às diferenciações
eles, muito mais do que à primeira vis-
ta poderia parecer. De maneira que,
                                                     88. Por exemplo, nas obras de Nietzsche, Prefácio
para exemplificar, comecemos por di-                 às conferências Sobre el porvenir de nuestras escuelas
zer que o próprio perigo da velocida-                (trad. Carlos Manzano, Barcelona, Tusquets Edi-
                                                     tores, 1980, pp. 31, 34) e a Segunda Consideração
                                                     Extemporânea. Da utilidade e inutilidade dos estudos
84. “O perigo mais grave desta arma final — a        históricos para a vida. (Op. cit., pp. 58-70).
arma nuclear — é que ela existe e que por sua        89. Sobre a “grande saúde” em Nietzsche, Gaia
simples presença desintegra qualquer debate so-      Ciência, § 382. In: NIETZSCHE, F. (1983), Obras
bre a evolução da sociedade.” VIRILIO, P. p. 52.     incompletas, op. cit., pp. 222, 223.
85. Ibid., p. 65.                                    90. VIRILIO, Paul. (1996), A arte do motor. Trad.
86. Política usada em sentido originário, em rela-   Paulo Roberto Pires. São Paulo, Estação Liberda-
ção à polis.                                         de, pp. 110,111.
87. VIRILIO, Paul, op. cit., p. 37.                  91. Ibid., pp. 97, 98.




MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 29-50, DEZ. 2002
DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE                    47




com os outros pensadores aqui referi-                      sadores citados que mais enfatizarão
dos, citemos a não ingênua afirmação                       uma reflexão sobre os meios em nossa
de Virilio, que diz respeitar mas não                      atualidade, marcando, por exemplo, a
gostar de Michel Foucault (“Eu não gos-                    mudança na concepção de guerra,
to da escritura tipo dois-e-dois-são-                      quando são os meios (da artilharia até
quatro.”92) e, precisamente nesse aspec-                   os mísseis) que se tornam importantes.96
to, dirá praticar a fragmentação                               Após este mapeamento pontual,
nietzscheana da escrita, uma vez que                       podemos dizer que, se existe um pon-
seu cuidado seria com as rupturas e                        to comum na linha dos pensadores re-
ausências. Para ele, “o fato de parar e                    feridos — Foucault, Veyne, Vattimo,
dizer: ‘vamos para outra parte’ é mui-                     Virilio —, é a de constituir precisamen-
to importante”93                                           te uma série diferencial; diversos ca-
                                                           minhos a partir de uma complexa ma-
     É absurda a pretensão de cercar total-                triz “comum”: Nietzsche. Nesse senti-
     mente uma questão. Você não pode
                                                           do, é exemplar o título do livro de
     moldá-la. Não se deveria tentar apre-
                                                           Veyne, Foucault revoluciona a história,
     ender tudo em torno de uma questão.
     Apenas existem perspectivas sucessivas.94             uma vez que, em nota, dirá que “o
                                                           método”97 de Foucault teria saído de
Por outro lado, Virilio afirmará — re-                     uma meditação sobre o aforismo 12 da
ferindo-se a Foucault — que ante o pri-                    Genealogia da moral, o que, levado ao li-
vilégio do poder/saber, desenvolvido                       mite, seria destacar que o operador —
pelos “histoteóricos”, existe um prévio                    Foucault — estaria contribuindo para
poder/mover, ou promoção, já que                           um “Nietzsche revoluciona a história”.
para haver saber, seria preciso haver                      Por isso, e voltando aos nossos questio-
promoção (exércitos, Cruzadas, popu-                       namentos do início, teríamos que vol-
lações em movimento),95 possibilitan-                      tar a nos perguntar: que significa, en-
do assim conceituar uma problemática                       tão, a expressão modelo referida a
que desemboca nos problemas da téc-                        Nietzsche? A partir dos próprios es-
nica e da velocidade sem limites, pró-                     critos de Nietzsche, teríamos que re-
prios de nossa época. E uma vez que                        petir que esse singular modelo se consti-
nossa reflexão pautou-se pelo destaque                     tui à margem das categorias modelo/
às dificuldades das operacionalizações,                    cópia platônicas, acrescentando que —
digamos que Virilio será um dos pen-                       como modelo não platônico — abrirá,
                                                           precisamente, para a batalha desmas-
                                                           carada das diversas interpretações.
92. Idem. (1984), Guerra pura..., op. cit., p. 45.
93. Idem. p. 46. Neste sentido, seu trabalho também
constituiria um diferencial em relação a Gilles Deleuze,   96. Neste sentido, a “logística” teria assumido o
que em Mille Plateaux progrediria por captações.           controle hoje em dia. Ibid., pp. 24, 25.
94. Ibid.                                                  97. Foucault révolutionne l’histoire, op. cit., p. 240,
95. Idem, p. 59.                                           nota 11.




                                                           MARGEM, SÃO PAULO, NO 16, P. 29-50, DEZ. 2002
48   MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002




Neste último aspecto, o paradigma                       “novo diferencial” que faz com que
Nietzsche já não assinalará um caminho                  toda conceituação — no âmbito da fi-
verdadeiro e único,98 mas direcionará                   losofia, das ciências humanas e/ou da
na procura de possíveis trajetos plurais,               história — tenha que começar a fazer
perspectivísticos99 e experimentais. Tal-               referência a Nietzsche, seja na forma
vez estejamos lidando, então, com a                     da adesão ou do afastamento, o que
constituição de um modelo/paródia ou                    resulta em abandonar a trilha da indi-
um simulacro,100 uma vez que é um mo-                   ferença.
delo que não mantém “relações inter-                        Vislumbrar um “modelo” que di-
nas” com as cópias e que rejeita todo                   reciona à pluralidade de interpretações
tipo de “seguidores/crentes”. Nas pa-                   e operacionalizações não significaria, no
lavras de Zaratustra:                                   entanto, aceitar qualquer interpretação.
                                                        Ao contrário, é pertinente um labor se-
     Retribui-se mal um mestre quando se                letivo que permita distinguir constante-
     permanece sempre e somente discípu-                mente entre éticas diferenciais de opera-
     lo. E por que não quereis arrancar folhas          cionalização. Em outras palavras, é pre-
     de minha coroa?.101
                                                        ciso diagnosticar e avaliar os diversos
                                                        operadores e refletir, em cada caso,
Portanto, nietzscheanamente, teríamos
                                                        sobre o como desses usos.102 Mesmo sa-
que dizer que, ao usar Nietzsche como
                                                        lientando a importância de certos usos
modelo, opera-se uma transvaloração do
                                                        instrumentais de Nietzsche, estamos
que se entende por paradigma desde
                                                        longe de reivindicar as aplicações apres-
Platão. Nessa perspectiva, a afirmação
                                                        sadas,103 queremos simplesmente mar-
foucaultiana de Nietzsche enquanto
                                                        car a pertinência das experimentações.
modelo libera-se de sua casca de inge-
                                                        Para usar a metáfora da “caixa de fer-
nuidade e mostra como esse gesto co-
                                                        ramentas”, que foi introduzida por
loca-nos ante a constituição de um novo
                                                        Gilles Deleuze e a partir daí aplicada
“paradigma experimental” ou de um
                                                        mecanicamente, teríamos que assina-
                                                        lar que junto a um uso de ferramentas
                                                        é sempre preciso refletir sobre a ética
98. Assim, por exemplo, Assim falou Zaratustra III,     que está ligada a esse uso. Ética que,
Do espírito de gravidade.                               entendida como “forma de vida”, não
99. O que, na interpretação de Vattimo, não signi-
fica que “a mesma teoria que afirma a pluralidade
de perspectivas não deva e possa escolher entre
elas” — VATTIMO, Gianni. (1987), Introducción a         102. O que pensamos que não se afasta do que
Nietzsche, op. cit., p. 118.                            Nietzsche considerava o trabalho de psicólogo.
100. Se analisado a partir do importante apêndi-        103. A nosso ver, é esse aspecto de algumas apli-
ce da Lógica do sentido, de Gilles Deleuze: “Platão     cações que muitas vezes abandonam efetivamen-
e o simulacro” (op. cit., pp. 259-271).                 te o cuidadoso e demorado “ruminar” que de-
101. Assim falou Zaratustra, I, Da virtude dadivosa     mandam os textos de Nietzsche, o que tem sido
3. Reproduzimos pontualmente a tradução de              vinculado a um também apressado desprezo pela
Mario da Silva, RJ, Ed. Bertrand Brasil, 1994, p. 92.   operacionalização.




MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 29-50, DEZ. 2002
DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE              49




se desvincule da categoria de khresis                  constantemente se perguntar: Em que
grega. Em outras palavras, não é qual-                 mãos estão determinadas apropriações?
quer ferramenta e em qualquer ocasião                  Quais são as forças predominantes ne-
a que pode ser usada... Trata-se, por-                 las? Reforçam ou enfraquecem a vida?
tanto, de re-introduzir em outro jogo                      Nesta oportunidade, quisemos sim-
a própria problemática do kairós, tão                  plesmente destacar alguns trajetos plu-
cara ao pensamento greco-romano.                       rais, perspectivísticos e experimentais
Sim, porque em nossa atualidade tor-                   de pensadores que operacionalizam
na-se urgente avaliar em que medida                    diversos pensamentos nietzscheanos
cada uso é pertinente em relação às                    (ou antinietzscheanos) nas denomina-
problemáticas históricas em que se in-                 das ciências humanas. Trilhamos, as-
sere e também se, em determinados                      sim, uma via semeada de problemáti-
casos, há ou não mestria de uso. Ten-                  cas ainda por serem estudadas e reto-
tando traduzir essa problemática em                    madas, mas de alguma maneira lida-
termos nietzscheanos, poderíamos nos                   mos com o que produz efetivamente a
perguntar: Quem ou que forças coman-                   aplicação de um “modelo-Nietzsche”:
dam a utilização de um determinado                     ausência de um modelo a ser copiado,
pensamento? Afirmativas? Negativas?                    ausência de relação interna entre mo-
Ativas? Reativas? Ressentidas? Pistas                  delo e cópia, e, sobretudo, inversão da
ou rastros que, para Nietzsche, são                    própria hierarquia que ordena consi-
marcados precisamente no como (wie)                    derando que o fundamento das “boas
de cada utilização. Por isso, e a partir               cópias” é a identidade superior da
da resistência que constitui o próprio                 Idéia (Forma imutável ou Modelo). Em
texto, talvez aos poucos se possa                      outras palavras, lidamos com uma
mapear como algumas dessas aplica-                     transvaloração do que se entende por
ções foram apressadas demais, como                     modelo ou paradigma de Platão até
certos aspectos operacionais deman-                    nossos dias. Nessa trilha, também se
dam um novo e paciente ruminar com                     efetua uma inversão da categoria de
os textos de Nietzsche e refletir sobre                influência, que não poderia ser consi-
a mestria ou ausência dela em deter-                   derada como determinação heterô-
minados usos, mostrando em que pon-                    noma — como algo que lhe adveio de
tos cada apropriação teria que ser                     um outro — mas como uma possibili-
revisitada ou retomada.104 Talvez usan-                dade de “tornar-se si mesmo”.105 No
do uma máscara nietzscheana, caberia                   detalhe — encontramo-nos diante da
                                                       impertinência de operar com a “cate-
                                                       goria moral de fidelidade”, tanto para
104. Só para citar um exemplo, muitas das “solu-       o paradigma Nietzsche, como para as
ções” para nossa época, esboçadas por Paul Virilio,
ou das possibilidades de “novos começos e emanci-
pações”, assinaladas por Gianni Vattimo, não poderi-
am ser alinhadas facilmente como retomadas de pen-     105. O que teria sido operacionalizado por Veyne,
samentos nietzscheanos e sequer antinietzscheanos.     como destacamos na nota 51.




                                                       MARGEM, SÃO PAULO, NO 16, P. 29-50, DEZ. 2002
50   MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002




diversas utilizações plurais de um
pretenso modelo que explode e frag-
menta-se ao pensá-lo como centro úni-
co, caminho verdadeiro e paradigmático.




               Recebido em 23/6/2002
              Aprovado em 30/10/2002




Yolanda Gloria Gamboa Muñoz, professora do
Departamento de Filosofia da PUC-SP e da USJT.
E-mail: redial@uol.com.br




MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 29-50, DEZ. 2002

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Baudrillando: o lado mais obscuro da globalização
Baudrillando: o lado mais obscuro da globalizaçãoBaudrillando: o lado mais obscuro da globalização
Baudrillando: o lado mais obscuro da globalizaçãoguilhermewr
 
Hartog tempo e patrimônio
Hartog tempo e patrimônioHartog tempo e patrimônio
Hartog tempo e patrimônioRosa Correia
 
Roberto machado deleuze ii - entrevista revista filosofia
Roberto machado   deleuze ii - entrevista revista filosofiaRoberto machado   deleuze ii - entrevista revista filosofia
Roberto machado deleuze ii - entrevista revista filosofiaPedro Menin
 
Simmel subjetividade artigo
Simmel subjetividade artigoSimmel subjetividade artigo
Simmel subjetividade artigoilanasm
 
Cosmopolitismo em walter_benjamin1
Cosmopolitismo em walter_benjamin1Cosmopolitismo em walter_benjamin1
Cosmopolitismo em walter_benjamin1Teresa Levy
 
Revel, judith. foucault conceitos essenciais
Revel, judith. foucault conceitos essenciaisRevel, judith. foucault conceitos essenciais
Revel, judith. foucault conceitos essenciaisCarcara Mg
 
O segredo da flor de ouro carl g. jung
O segredo da flor de ouro   carl g. jungO segredo da flor de ouro   carl g. jung
O segredo da flor de ouro carl g. jungMW
 
Lima lições sobre sartre
Lima lições sobre sartreLima lições sobre sartre
Lima lições sobre sartreMyllena Azevedo
 
Michel foucault por uma vida nao facista
Michel foucault   por uma vida nao facistaMichel foucault   por uma vida nao facista
Michel foucault por uma vida nao facistafatimalaranjeira
 
Guérin d.-marxismo-e-anarquismo
Guérin d.-marxismo-e-anarquismoGuérin d.-marxismo-e-anarquismo
Guérin d.-marxismo-e-anarquismomoratonoise
 
Rosario herrera guido, p.166 181
Rosario herrera guido, p.166 181Rosario herrera guido, p.166 181
Rosario herrera guido, p.166 181amanda kothwitz
 
Memoria, Esquecimento e Silêncio Michael Pollack
Memoria, Esquecimento e Silêncio Michael PollackMemoria, Esquecimento e Silêncio Michael Pollack
Memoria, Esquecimento e Silêncio Michael PollackTequila Underline
 

Mais procurados (18)

Baudrillando: o lado mais obscuro da globalização
Baudrillando: o lado mais obscuro da globalizaçãoBaudrillando: o lado mais obscuro da globalização
Baudrillando: o lado mais obscuro da globalização
 
Hartog tempo e patrimônio
Hartog tempo e patrimônioHartog tempo e patrimônio
Hartog tempo e patrimônio
 
Barthes
BarthesBarthes
Barthes
 
Roberto machado deleuze ii - entrevista revista filosofia
Roberto machado   deleuze ii - entrevista revista filosofiaRoberto machado   deleuze ii - entrevista revista filosofia
Roberto machado deleuze ii - entrevista revista filosofia
 
Artigo camara clara
Artigo camara claraArtigo camara clara
Artigo camara clara
 
Revista Contra a Corrente. N. 6
Revista Contra a Corrente. N. 6Revista Contra a Corrente. N. 6
Revista Contra a Corrente. N. 6
 
Simmel subjetividade artigo
Simmel subjetividade artigoSimmel subjetividade artigo
Simmel subjetividade artigo
 
Cosmopolitismo em walter_benjamin1
Cosmopolitismo em walter_benjamin1Cosmopolitismo em walter_benjamin1
Cosmopolitismo em walter_benjamin1
 
Revel, judith. foucault conceitos essenciais
Revel, judith. foucault conceitos essenciaisRevel, judith. foucault conceitos essenciais
Revel, judith. foucault conceitos essenciais
 
267
267267
267
 
O segredo da flor de ouro carl g. jung
O segredo da flor de ouro   carl g. jungO segredo da flor de ouro   carl g. jung
O segredo da flor de ouro carl g. jung
 
Lima lições sobre sartre
Lima lições sobre sartreLima lições sobre sartre
Lima lições sobre sartre
 
Michel foucault por uma vida nao facista
Michel foucault   por uma vida nao facistaMichel foucault   por uma vida nao facista
Michel foucault por uma vida nao facista
 
Guérin d.-marxismo-e-anarquismo
Guérin d.-marxismo-e-anarquismoGuérin d.-marxismo-e-anarquismo
Guérin d.-marxismo-e-anarquismo
 
Rosario herrera guido, p.166 181
Rosario herrera guido, p.166 181Rosario herrera guido, p.166 181
Rosario herrera guido, p.166 181
 
Memoria, Esquecimento e Silêncio Michael Pollack
Memoria, Esquecimento e Silêncio Michael PollackMemoria, Esquecimento e Silêncio Michael Pollack
Memoria, Esquecimento e Silêncio Michael Pollack
 
A poética do devaneio
A poética do devaneioA poética do devaneio
A poética do devaneio
 
Nietzsche e o_tragico_texto_de_apoio
Nietzsche e o_tragico_texto_de_apoioNietzsche e o_tragico_texto_de_apoio
Nietzsche e o_tragico_texto_de_apoio
 

Destaque

Giovanetti. o sagrado na psicoterapia
Giovanetti. o sagrado na psicoterapiaGiovanetti. o sagrado na psicoterapia
Giovanetti. o sagrado na psicoterapiaÉrika Renata
 
Giovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencial
Giovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencialGiovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencial
Giovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencialÉrika Renata
 
Psicoterapia fenomenologica existencial
Psicoterapia fenomenologica existencialPsicoterapia fenomenologica existencial
Psicoterapia fenomenologica existencialÉrika Renata
 
Rehfeld, a. à angústia
Rehfeld, a. à angústiaRehfeld, a. à angústia
Rehfeld, a. à angústiaÉrika Renata
 
Rehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencial
Rehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencialRehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencial
Rehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencialÉrika Renata
 
Rehfeld, a. acerca das generosas curvas da espera
Rehfeld, a. acerca das generosas curvas da esperaRehfeld, a. acerca das generosas curvas da espera
Rehfeld, a. acerca das generosas curvas da esperaÉrika Renata
 
Abuso de cannabis em pacientes com transtornos
Abuso de cannabis em pacientes com transtornosAbuso de cannabis em pacientes com transtornos
Abuso de cannabis em pacientes com transtornosÉrika Renata
 
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeutica
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeuticaJardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeutica
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeuticaÉrika Renata
 
Rehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demais
Rehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demaisRehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demais
Rehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demaisÉrika Renata
 
Oficina de Narrativa Transmídia - FEIA 2014
Oficina de Narrativa Transmídia - FEIA 2014Oficina de Narrativa Transmídia - FEIA 2014
Oficina de Narrativa Transmídia - FEIA 2014Gabriel Ishida
 
Rehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencial
Rehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencialRehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencial
Rehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencialÉrika Renata
 
Mattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heidegger
Mattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heideggerMattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heidegger
Mattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heideggerÉrika Renata
 
Marçal, j.c. existência e _verdade_ em martin heidegger
Marçal, j.c.  existência  e _verdade_ em martin heideggerMarçal, j.c.  existência  e _verdade_ em martin heidegger
Marçal, j.c. existência e _verdade_ em martin heideggerÉrika Renata
 
Grupo Transmídia inovadoresESPM - #eratransmidia v.1
Grupo Transmídia inovadoresESPM - #eratransmidia v.1Grupo Transmídia inovadoresESPM - #eratransmidia v.1
Grupo Transmídia inovadoresESPM - #eratransmidia v.1Rodrigo Arnaut
 
Deus e crencas no discurso_JJ Queiroz Exposicao
Deus e crencas no discurso_JJ Queiroz ExposicaoDeus e crencas no discurso_JJ Queiroz Exposicao
Deus e crencas no discurso_JJ Queiroz ExposicaoRev. Jouberto Heringer
 
Giovanetti. psicologia existencial e espiritualidade
Giovanetti. psicologia existencial e espiritualidadeGiovanetti. psicologia existencial e espiritualidade
Giovanetti. psicologia existencial e espiritualidadeÉrika Renata
 

Destaque (20)

Giovanetti. o sagrado na psicoterapia
Giovanetti. o sagrado na psicoterapiaGiovanetti. o sagrado na psicoterapia
Giovanetti. o sagrado na psicoterapia
 
Giovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencial
Giovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencialGiovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencial
Giovanetti. supervisão clínica na perspectiva fenomenológico existencial
 
Psicoterapia fenomenologica existencial
Psicoterapia fenomenologica existencialPsicoterapia fenomenologica existencial
Psicoterapia fenomenologica existencial
 
Rehfeld, a. à angústia
Rehfeld, a. à angústiaRehfeld, a. à angústia
Rehfeld, a. à angústia
 
Rehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencial
Rehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencialRehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencial
Rehfeld, a. especificidade de uma psicoterapia fenomenológico existencial
 
Estéticas transmídia
Estéticas transmídiaEstéticas transmídia
Estéticas transmídia
 
Rehfeld, a. acerca das generosas curvas da espera
Rehfeld, a. acerca das generosas curvas da esperaRehfeld, a. acerca das generosas curvas da espera
Rehfeld, a. acerca das generosas curvas da espera
 
Abuso de cannabis em pacientes com transtornos
Abuso de cannabis em pacientes com transtornosAbuso de cannabis em pacientes com transtornos
Abuso de cannabis em pacientes com transtornos
 
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeutica
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeuticaJardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeutica
Jardim, le. a preocupação liberadora no contexto da prática terapeutica
 
Rehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demais
Rehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demaisRehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demais
Rehfeld, a. o que diferencia uma abordagem fenomenológico existencial das demais
 
Oficina de Narrativa Transmídia - FEIA 2014
Oficina de Narrativa Transmídia - FEIA 2014Oficina de Narrativa Transmídia - FEIA 2014
Oficina de Narrativa Transmídia - FEIA 2014
 
Rehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencial
Rehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencialRehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencial
Rehfeld, a. a prática clínica fenomenológico existencial
 
Mattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heidegger
Mattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heideggerMattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heidegger
Mattar, c.m. os sentidos de analise e analitica no pensamento de heidegger
 
Marçal, j.c. existência e _verdade_ em martin heidegger
Marçal, j.c.  existência  e _verdade_ em martin heideggerMarçal, j.c.  existência  e _verdade_ em martin heidegger
Marçal, j.c. existência e _verdade_ em martin heidegger
 
Grupo Transmídia inovadoresESPM - #eratransmidia v.1
Grupo Transmídia inovadoresESPM - #eratransmidia v.1Grupo Transmídia inovadoresESPM - #eratransmidia v.1
Grupo Transmídia inovadoresESPM - #eratransmidia v.1
 
Deus e crencas no discurso_JJ Queiroz Exposicao
Deus e crencas no discurso_JJ Queiroz ExposicaoDeus e crencas no discurso_JJ Queiroz Exposicao
Deus e crencas no discurso_JJ Queiroz Exposicao
 
Cibercultura
CiberculturaCibercultura
Cibercultura
 
Armação heideggeriana
Armação heideggerianaArmação heideggeriana
Armação heideggeriana
 
Soren kierkegaard: conceito de angústia
Soren kierkegaard: conceito de angústiaSoren kierkegaard: conceito de angústia
Soren kierkegaard: conceito de angústia
 
Giovanetti. psicologia existencial e espiritualidade
Giovanetti. psicologia existencial e espiritualidadeGiovanetti. psicologia existencial e espiritualidade
Giovanetti. psicologia existencial e espiritualidade
 

Semelhante a Friedrich Nietzsche como paradigma nas ciências humanas

Filosofia em Tempos Difíceis
Filosofia em Tempos DifíceisFilosofia em Tempos Difíceis
Filosofia em Tempos DifíceisJorge Barbosa
 
A moral antiga e a moral moderna, de Victor Brochard
A moral antiga e a moral moderna, de Victor BrochardA moral antiga e a moral moderna, de Victor Brochard
A moral antiga e a moral moderna, de Victor BrochardJaimir Conte
 
A pluralidade singular da antropologia
A pluralidade singular da antropologiaA pluralidade singular da antropologia
A pluralidade singular da antropologiaClaudiane Sousa
 
Anais - Congresso NEN. Fronteiras do perdão e da justiça
Anais - Congresso NEN. Fronteiras do perdão e da justiçaAnais - Congresso NEN. Fronteiras do perdão e da justiça
Anais - Congresso NEN. Fronteiras do perdão e da justiçaSid Pestano
 
François hartog 02 08 tempo e patrimônio
François hartog 02 08 tempo e patrimônioFrançois hartog 02 08 tempo e patrimônio
François hartog 02 08 tempo e patrimônioDany Pereira
 
Teoria crítica e educação
Teoria crítica e educaçãoTeoria crítica e educação
Teoria crítica e educaçãorichard_romancini
 
Introdução à Obra de Michel Maffesoli 1
Introdução à Obra de Michel Maffesoli 1Introdução à Obra de Michel Maffesoli 1
Introdução à Obra de Michel Maffesoli 1Fábio Fonseca de Castro
 
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão august...
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão august...Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão august...
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão august...Érika Renata
 
O homem dos_lobos_fragmentos_para_um_dia
O homem dos_lobos_fragmentos_para_um_diaO homem dos_lobos_fragmentos_para_um_dia
O homem dos_lobos_fragmentos_para_um_diaRonaldo Pacheco .'.
 
Vladimir safatle espelhos sem imagens - mimesis e reconhecimento
Vladimir safatle   espelhos sem imagens - mimesis e reconhecimentoVladimir safatle   espelhos sem imagens - mimesis e reconhecimento
Vladimir safatle espelhos sem imagens - mimesis e reconhecimentomarcel klozovski
 
Subjetividade, individualidade e autenticidade
Subjetividade, individualidade e autenticidadeSubjetividade, individualidade e autenticidade
Subjetividade, individualidade e autenticidadeDouglas Evangelista
 
Para ler michel foucault crisoston terto livro
Para ler michel foucault      crisoston  terto  livroPara ler michel foucault      crisoston  terto  livro
Para ler michel foucault crisoston terto livroMarcos Silvabh
 
Por uma vida nao facista
 Por uma vida nao facista Por uma vida nao facista
Por uma vida nao facistaClaiton Prinzo
 
Lukács, györgy conversando com lukács
Lukács, györgy   conversando com lukácsLukács, györgy   conversando com lukács
Lukács, györgy conversando com lukácsFabíola Salvador
 
ATUALIDADE DE O MESTRE IGNORANTE.pdf
ATUALIDADE DE O MESTRE IGNORANTE.pdfATUALIDADE DE O MESTRE IGNORANTE.pdf
ATUALIDADE DE O MESTRE IGNORANTE.pdfssuser8f7af7
 

Semelhante a Friedrich Nietzsche como paradigma nas ciências humanas (20)

Filosofia em Tempos Difíceis
Filosofia em Tempos DifíceisFilosofia em Tempos Difíceis
Filosofia em Tempos Difíceis
 
A moral antiga e a moral moderna, de Victor Brochard
A moral antiga e a moral moderna, de Victor BrochardA moral antiga e a moral moderna, de Victor Brochard
A moral antiga e a moral moderna, de Victor Brochard
 
A pluralidade singular da antropologia
A pluralidade singular da antropologiaA pluralidade singular da antropologia
A pluralidade singular da antropologia
 
Anais - Congresso NEN. Fronteiras do perdão e da justiça
Anais - Congresso NEN. Fronteiras do perdão e da justiçaAnais - Congresso NEN. Fronteiras do perdão e da justiça
Anais - Congresso NEN. Fronteiras do perdão e da justiça
 
François hartog 02 08 tempo e patrimônio
François hartog 02 08 tempo e patrimônioFrançois hartog 02 08 tempo e patrimônio
François hartog 02 08 tempo e patrimônio
 
Teoria crítica e educação
Teoria crítica e educaçãoTeoria crítica e educação
Teoria crítica e educação
 
Jacob holzmann netto_-_espiritismo_e_marxismo_-_pense
Jacob holzmann netto_-_espiritismo_e_marxismo_-_penseJacob holzmann netto_-_espiritismo_e_marxismo_-_pense
Jacob holzmann netto_-_espiritismo_e_marxismo_-_pense
 
25720 29773-1-pb
25720 29773-1-pb25720 29773-1-pb
25720 29773-1-pb
 
Introdução à Obra de Michel Maffesoli 1
Introdução à Obra de Michel Maffesoli 1Introdução à Obra de Michel Maffesoli 1
Introdução à Obra de Michel Maffesoli 1
 
Aula 1
Aula 1Aula 1
Aula 1
 
Aula 1
Aula 1Aula 1
Aula 1
 
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão august...
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão august...Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão august...
Heidegger por ernildo stein gianni vattimo-emmanuel carneiro leão-joão august...
 
O homem dos_lobos_fragmentos_para_um_dia
O homem dos_lobos_fragmentos_para_um_diaO homem dos_lobos_fragmentos_para_um_dia
O homem dos_lobos_fragmentos_para_um_dia
 
2339
23392339
2339
 
Vladimir safatle espelhos sem imagens - mimesis e reconhecimento
Vladimir safatle   espelhos sem imagens - mimesis e reconhecimentoVladimir safatle   espelhos sem imagens - mimesis e reconhecimento
Vladimir safatle espelhos sem imagens - mimesis e reconhecimento
 
Subjetividade, individualidade e autenticidade
Subjetividade, individualidade e autenticidadeSubjetividade, individualidade e autenticidade
Subjetividade, individualidade e autenticidade
 
Para ler michel foucault crisoston terto livro
Para ler michel foucault      crisoston  terto  livroPara ler michel foucault      crisoston  terto  livro
Para ler michel foucault crisoston terto livro
 
Por uma vida nao facista
 Por uma vida nao facista Por uma vida nao facista
Por uma vida nao facista
 
Lukács, györgy conversando com lukács
Lukács, györgy   conversando com lukácsLukács, györgy   conversando com lukács
Lukács, györgy conversando com lukács
 
ATUALIDADE DE O MESTRE IGNORANTE.pdf
ATUALIDADE DE O MESTRE IGNORANTE.pdfATUALIDADE DE O MESTRE IGNORANTE.pdf
ATUALIDADE DE O MESTRE IGNORANTE.pdf
 

Mais de Franco Bressan (20)

Systems se
Systems seSystems se
Systems se
 
Especial novarejo
Especial novarejoEspecial novarejo
Especial novarejo
 
1317856
13178561317856
1317856
 
1316975
13169751316975
1316975
 
1315741
13157411315741
1315741
 
1316244
13162441316244
1316244
 
Logic of expression_intro
Logic of expression_introLogic of expression_intro
Logic of expression_intro
 
29404
2940429404
29404
 
Paty,m 1997d unverslde-cienc
Paty,m 1997d unverslde-ciencPaty,m 1997d unverslde-cienc
Paty,m 1997d unverslde-cienc
 
Fragoso5
Fragoso5Fragoso5
Fragoso5
 
Deleuze luiz
Deleuze luizDeleuze luiz
Deleuze luiz
 
01 02 03_marcelo
01 02 03_marcelo01 02 03_marcelo
01 02 03_marcelo
 
Tnhp daniel garber
Tnhp daniel garberTnhp daniel garber
Tnhp daniel garber
 
18394
1839418394
18394
 
2004 033 33001014010_p9_disc_ofe
2004 033 33001014010_p9_disc_ofe2004 033 33001014010_p9_disc_ofe
2004 033 33001014010_p9_disc_ofe
 
Hz242 a
Hz242 aHz242 a
Hz242 a
 
Sens public f_caprio_substancia_liberdade_e_existencia
Sens public f_caprio_substancia_liberdade_e_existenciaSens public f_caprio_substancia_liberdade_e_existencia
Sens public f_caprio_substancia_liberdade_e_existencia
 
Ed. 1 tjdft_ed._abt
Ed. 1 tjdft_ed._abtEd. 1 tjdft_ed._abt
Ed. 1 tjdft_ed._abt
 
22946884 a-coarse-taxonomy-of-artificial-immune-systems
22946884 a-coarse-taxonomy-of-artificial-immune-systems22946884 a-coarse-taxonomy-of-artificial-immune-systems
22946884 a-coarse-taxonomy-of-artificial-immune-systems
 
Ais machine learning
Ais machine learningAis machine learning
Ais machine learning
 

Friedrich Nietzsche como paradigma nas ciências humanas

  • 1. DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE 29 Friedrich Nietzsche como um paradigma? YOLANDA GLORIA GAMBOA MUÑOZ Resumo dade de se relacionarem os “conceitos” de uso e de ética na atualidade. Dentre as diversas utilizações do pen- Palavras-chave: modelo; usos; operado- samento de Nietzsche, o texto trabalha com res; diferenciais; ciências humanas. pensadores atuais que consideram-no um paradigma ou modelo de ação. Mostra as- Abstract sim – por intermédio dos percursos de Michel Foucault, Paul Veyne, Gianni Of the diverse uses of the ideas of Vattimo e Paul Virilio – a maneira como Nietzsche, this work focuses on the recent Nietzsche vai sendo introduzido nas thinkers that consider them a paradigm or “ciências humanas”. São apresentados os a model of action. This paper shows, referidos percursos diferenciais destacan- through the courses of the thoughts of do exemplos que mostrariam de forma pri- Michel Foucault, Paul Veyne, Gianni vilegiada a reflexão e operacionalização de Vattimo, and Paul Virilio, the manner in determinados pensamentos nietzscheanos. No which Nietzsche has been introduced into decorrer do artigo problematiza-se, espe- the humanities. The above mentioned cialmente, a categoria de modelo ou courses are presented, emphasising cases paradigma aplicada a Nietzsche, conside- that show well, how certain Neitzschean rando as relações que ela guarda com o ideas are reflected upon and brought into esquema modelo/cópia platônico, e esbo- operation. This work questions in ça-se uma possibilidade diferencial de particular the category of model or pensar esse “modelo” a partir de paradigm as applied to Nietzsche, taking Nietzsche. Também se abre uma possibili- into consideration the relationship MARGEM, SÃO PAULO, NO 16, P. 29-50, DEZ. 2002
  • 2. 30 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 between this category and the Platonic mento pelo nazismo. Sobre essas utili- scheme, model/copy. The possibilities of zações existem reflexões que abrangem thinking of the Platonic model after desde pensadores europeus até a pró- Nietzsche and of relating the concept of pria recepção de Nietzsche na “cena use and ethics nowadays are also brasileira”.2 Bataille, por exemplo, te- suggested. Key-words: model; uses; operators; ria insistido em “lavar” Nietzsche “da differential; humane sciences. mancha nazista”, denunciando certas comédias, “uma delas ligada à própria irmã do filósofo”.3 Nunca é demais re- Ao escolher Nietzsche como pen- petir que, no Brasil, a materialidade sador que instaura uma nova referên- discursiva que alertou para a comple- cia paradigmática — algumas de cujas xidade desse pensador, que não pode- centelhas materializam-se em diversos ria ser simplesmente descartado, foi pensadores do século XX —, vemo-nos um artigo do professor Antonio transportados a uma encruzilhada de Candido que, em 1946, na mesma épo- odisséias. Elas abrangeriam desde a ca em que se considerava Nietzsche um polêmica recepção do pensamento de “precursor do nazismo”, enfatizou a Nietzsche em sua época, acrescida pelo necessidade de “recuperar Nietzsche”, seu autoproclamado caráter póstumo, considerando-o “um dos maiores até sua inegável influência no pensa- inspiradores do mundo moderno”, um mento atual. Nas redes deste último daqueles “portadores”, teríamos que considerar, especialmen- te, sua previsão de nossa atualidade (...) que podemos ou não encontrar, na existência cotidiana e nas leituras que como niilista.1 Mas temos também um subjugam o espírito. Quando isto se dá, aspecto menos grandioso: aquele das sentimos que eles iluminam brusca- diversas interpretações e, entre elas, o mente os cantos escuros do entendi- problema dos usos dos quais o referi- mento e, unificando os sentimentos do pensamento tem sido objeto, come- desaparelhados, revelam possibilida- çando pela apropriação de seu pensa- des de uma existência mais real.4 1. Sobre os diversos aspectos e interpretações do 2. Uma reflexão atual dessa problemática encon- niilismo, temos uma extensa bibliografia. Citemos, tra-se em MARTON, Scarlett. (2000), “Nietzsche neste começo, uma das definições mais simples, e a cena brasileira”. Apêndice em: Extravagâncias. mas que nem por isso deixa de dar conta dessa Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche, São Paulo, Dis- situação na atualidade; na interpretação de Paul curso Editorial. Veyne, Nietzsche prevê o niilismo como “os mo- 3. BATAILLE, G. “Nietzsche y el nacional-socia- mentos da história em que os pensadores têm o lismo”. ECO, Revista de la Cultura de Occidente, sentimento que as verdades são sem verdade e Bogotá, tomo XIX, sep, oct, nov l969, p. 582. sem fundamento” — VEYNE, Paul. (1989) 4. “O portador”, que, como Posfácio, foi repro- “Foucault et le dépassement (ou achèvement) du duzido no volume Nietzsche, Obras incompletas, nihilisme”. In: Michel Foucault philosophe. Rencontre das primeiras edições da coleção Os Pensadores, Internationale. Paris, Éd. du Seuil, p. 399. Abril S.A., 1974, pp. 419-424. MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 29-50, DEZ. 2002
  • 3. DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE 31 O que infelizmente permanece atual Quem escreve um livro de “decisões” é que ainda testemunhamos diversas como Crepúsculo dos ídolos não se coloca referências impertinentes — algumas como um novo ídolo. Em outras pala- vezes misturadas a perigosos precon- vras, Nietzsche, que de diversas formas ceitos — que circulam a partir e ao re- põe em prática o distanciamento da con- dor do pensamento de Nietzsche. Po- cepção platônica da relação modelo/ rém, a problemática dos diversos usos cópia, não poderia ser assinalado — se desenha como muito abrangente, e, sem traí-lo — como um modelo ou para- por isso, escolheremos só um aspecto digma. Nesse sentido, citemos simples- dela. Pois se há apropriações e inter- mente, a seguir, dois momentos da pretações indevidas e/ou preconcei- História de um erro (ou Como o ”verdadei- tuosas, existem também aquelas que ro mundo” acabou por se tornar em fábula); emergem como tentativas de recupe- história que percorre a própria auto- rar e até de usar de outra maneira seu avaliação do pensamento ocidental e pensamento. Nesta ocasião, gostaría- que começa com “eu, Platão, sou a ver- mos de destacar — dentro das últimas dade”. Localizando-nos apenas nos utilizações5 — algumas daquelas que seus dois últimos momentos, recolha- querem resgatá-lo como modelo ou mos as palavras do próprio Nietzsche: paradigma de ação. Mas, para fazê-lo, assinalemos já de início a problemática 5. O “verdadeiro” mundo — uma Idéia que consideramos enovelada nessa pre- que não é útil para mais nada, que não tensão: como um pensador que se dis- é mais nem sequer obrigatória — uma tanciou do “modelo” (παραδειγµα), idéia que se tornou inútil, supérflua, conseqüentemente uma Idéia refutada: pode ele próprio ser usado como tal? expulsemo-la! Como nós mesmos poderíamos con- (Dia claro; café da manhã; retorno do bon siderá-lo um paradigma que influen- sens e da serenidade; rubor da vergonha ciou o século XX? Sim, pois quem não em Platão, alarido dos demônios em todos queria discípulos e seguidores, não os espíritos livres.) queria “cópias” no sentido platônico.6 5. Termo em sentido abrangente e não reduzido Victor. (1947), Les dialogues de Platon. Paris, Presses ao “utilitarismo” que, aliás, teria sido considera- Universitaires de France, p.15. Deleuze destaca- do por Nietzsche como “crença” relativa ao “re- rá, na relação de semelhança entre cópia e Mode- banho humano”; crença, imaginação, estupidez lo, seu caráter não exterior, pois “ela vai menos de “de que um dia sucumbiremos”. Gaia Ciência, § uma coisa a outra do que de uma coisa a uma 354. (Obras incompletas. Trad. de Rubens Rodrigues Idéia, uma vez que é a Idéia que compreende as Torres Filho. 3a ed. São Paulo, Abril Cultural, 1983, relações e proporções constitutivas da essência col. Os Pensadores, p. 218.) Edição à qual, a se- interna”, de modo que “é a identidade superior guir, faremos referência sempre que não exista da Idéia que funda a boa pretensão das cópias e indicação ao contrário. funda-a sobre uma semelhança interna ou deriva- 6. Consideremos que, para Platão, a boa imitação da”. — DELEUZE, G. (1974), “Platão e o Simu- ou cópia será aquela “que se regula sobre a Forma, lacro”. In: Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto idêntica a si mesma e imutável” — GOLDSCHMIDT, Salinas Forte. São Paulo, Perspectiva, p. 262. MARGEM, SÃO PAULO, NO 16, P. 29-50, DEZ. 2002
  • 4. 32 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 pois entre eles teríamos o cruzamento 6. O verdadeiro mundo, nós o expul- da vergonha de Platão (no momento samos: que mundo resta? o aparente, em que há predomínio do niilismo fra- talvez ? ... Mas não! Com o verdadeiro co) com a irrupção de Zaratustra (no mundo expulsamos também o aparente! momento do niilismo forte, em que há (Meio-dia; instante da mais curta sombra; um novo começo após ter afundado e fim do mais longo erro; ponto alto da hu- manidade; INCIPIT ZARATHUSTRA).7 ter tido forças para a “saída pelo alto”). Já nos fios jogados ao porvir emerge Nesses dois momentos da “histó- Zaratustra, aquele que nos traz a “boa ria de um erro”, possível de ser vis- nova”, ou seja, que anuncia o raio ou a lumbrada como tal, pois constituiria figura do além-do-homem,10 transfor- uma visão de distância, temos: um aler- mando assim a própria figura do “ho- ta para utilidade e inutilidade de cer- mem” — tão cara às denominadas ciên- tas Idéias, um afastamento daquela cias humanas11 — numa espécie de pon- grande criação ocidental que começa te entre o animal e o além-do-homem. com Platão e se auto-elimina como “ver- Não por acaso, será nessa inserção dade”,8 uma predição do niilismo de que o próprio momento da cultura oci- nossa época quando se expulsam con- dental inaugurado pelo pensamento de juntamente o “mundo verdadeiro” (da Nietzsche será denominado — hoje em Luz, do Bem) e o mundo aparente (das dia — de nietzscheísmo, e considerado sombras, da caverna), pois o segundo o equivalente da Revolução Francesa participava e dependia do primeiro. ou da queda do Império Romano, uma Ambos os momentos corresponderiam vez que ele marcaria uma “data milenar ao que em nossa época vivemos como na história do pensamento, como Pla- experiência do niilismo (fraco e forte),9 10. Adotamos a tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho para Übermensch, deixando de lado a de super-homem que tem implicado incom- 7. NIETZSCHE, F. (1983) Crepúsculo dos ídolos. In: preensões e mal-entendidos. Obras incompletas, op. cit., pp. 332-333. 11. Usaremos, neste artigo, a denominação Ciên- 8. Termo que, nesse momento da fábula, aparece cias Humanas em sentido amplo e indeterminado entre aspas, colocadas, talvez, a partir da pers- e, assim, de forma mais próxima ao pensamento pectiva utilitária das Idéias. de Gianni Vattimo (a qual referiremos na nota 9. Para ater-nos apenas às palavras de Nietzsche, 52). Isso se deve a que cada autor aqui citado o niilismo se produziria quando retiramos “as emprega matizes e ordenações diferenciais dessa categorias ‘fim’, ‘unidade’, ‘ser’, com as quais tí- denominação, o que não seria o caso de esclarecer nhamos imposto ao mundo um valor”, sendo a neste artigo. No entanto, assinalaremos em nota “crença nessas categorias da razão” a causa do algumas dessas diferenças e limitações quando niilismo em NIETZSCHE, F. (1983), Obras incom- necessárias para a compreensão do texto. Em pletas, op. cit., p. 381. Sobre o niilismo fraco e forte outro lugar trabalhamos essa temática em rela- operamos, nesse ponto, fazendo uma extensão ção aos seus “fundamentos ordenadores”: “Pro- interpretativa da Gaia Ciência §370, em que blemas de uma teoria das ciências humanas”. Nietzsche distingue pessimismo romântico e pes- Revista Integração, Ensino-Pesquisa-Extensão. São simismo dionisíaco (Ibid. pp. 220-222). Paulo, USJT, ano II, nº 6, agosto, l996, pp. 165-172. MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 29-50, DEZ. 2002
  • 5. DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE 33 tão faz vinte e cinco séculos”; para usar escolhemos um assunto talvez “extem- uma expressão de quem podemos di- porâneo”: como16 Nietzsche vai se in- zer que se movimenta, precisamente, troduzir nas denominadas “ciências na linha de uma “moral nietzscheana humanas”? A resposta que salta aos ou pós-cristã”.12 olhos seria: “sem ruído, alaridos, nem No entanto, torna-se preciso mar- fumaça”, tanto que hoje em dia muitos car também um aspecto constantemente estudiosos na área ainda duvidam da desconsiderado: Nietzsche, ao contrá- importância de trabalhar seu pensamen- rio do que habitualmente se pensa, não to. Isso porque, com exceção da psico- valoriza os acontecimentos grandiosos. logia,17 não tem sido direta nem expli- Zaratustra, por exemplo, introduz o si- citamente que essa referida introdução lêncio em momentos decisivos13 e nu- tem acontecido. Mas, não era necessá- ma ocasião dirá: rio que, tratando-se de Nietzsche, as- sim acontecesse? Lembremos nova- eu tenho deixado de acreditar em mente uma pontualidade textual: “grandes acontecimentos” quando se apresentam rodeados de muitos alari- O que são alguns milênios, nos quais dos e muita fumaça.14 o cristianismo se conservou! Para o mais poderoso dos pensamentos é pre- Nietzsche dirá que é preciso saber ou- ciso muitos milênios — por muito, mui- vir corretamente Zaratustra e seu tom to tempo ele tem de ser pequeno e impo- da sabedoria, que não é o de um pro- tente.18 feta, quando diz: Sabe-se que a introdução de Nietzsche As palavras mais quietas são as que nas ciências humanas foi acontecendo trazem a tempestade, pensamentos que à medida que novas interpretações co- vêm com pés de pomba dirigem o mun- do.15 16. A nosso ver, a distinção entre “que” e “como” supõe um abandono das essências platônicas (que) E é precisamente essa situação que, e, uma assunção do funcionamento das forças numa atualidade de fumaça e ruído, em termos nietzscheanos (como). queremos ressaltar. Isso se deve a que 17. Dela não trataremos nesta ocasião, pois a in- trodução de Nietzsche na psicologia parece-nos ter sido diferente das demais ciências humanas. As relações que Freud manteve com o pensamen- 12. Referimo-nos a Paul Veyne. A expressão cita- to nietzscheano ainda fazem parte de constantes da encontra-se em: VEYNE, P. (1995), Le quotidien debates e polêmicas. Acrescentemos que, hoje em et l’intéressant (Entretiens avec Catherine Darbo- dia, levar a sério o Nietzsche-psicólogo tornou-se Peschanski). Paris, Les Belles Lettres, pp. 162-163. uma prática; como um cuidadoso trabalho que 13. Por exemplo, Assim falou Zaratustra, II, “A hora considera esse último aspecto: GIACÓIA JUNIOR, mais silenciosa”. Oswaldo, (2001), Nietzsche como psicólogo. São 14. Idem, “Dos grandes acontecimentos”. Leopoldo, Editora Unisinos. 15. Ecce Homo, Prólogo, § 4. Em NIETZSCHE, F. 18. NIETZSCHE, F. (1983), Obras incompletas, op. (1983), Obras incompletas, op. cit., p. 366. cit., p. 442. MARGEM, SÃO PAULO, NO 16, P. 29-50, DEZ. 2002
  • 6. 34 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 meçaram a circular como alternativa à pelas quais determinados pensamen- utilização de Nietzsche pelo nazismo. tos de Nietzsche vão ser introduzidos Segundo o artigo “A terceira margem nas ciências humanas. Um exemplo ha- da interpretação. Müller-Lauter re- bitualmente não citado é Max Weber. visita Nietzsche”,19 Deleuze ressalta “o Isso se levarmos a sério que este últi- caráter ativo das idéias de Nietzsche” mo pensador constituiria uma espécie e, assim, volta-se para o futuro, enten- de divisor de águas — enquanto dendo que, sobre o passado e a utili- “aplicação” de certos pensamentos zação indevida dos escritos de Nietzs- nietzscheanos23 —, cuja interpretação che, “Jean-Wahl, Klossowski e Bataille, de Nietzsche não coincidiria com aque- já haviam acertado as contas”.20 Em nos- las do pensamento francês.24 Mas a ta- sa “cena” foi “através dos pensadores refa de desenovelar as relações entre franceses, em particular de Foucault e os pensamentos de Nietzsche e Weber Deleuze, que, recentemente, no início demandaria uma pesquisa rigorosa por da década de 1980, o autor de quem tenha caminhado não apenas pe- Zaratustra ganhou outra vez destaque las vias nietzscheanas, mas experimen- no Brasil”.21 Inclusive afirma-se, no re- tado, independentemente, os trajetos ferido artigo, que seria através da lei- de ambos os pensadores. tura desses dois últimos pensadores Nosso percurso, nesta ocasião, se- franceses “que Nietzsche adentrou as rá mais limitado e consistirá em ma- ciências humanas”.22 pear, através de alguns exemplos, como Interessa-nos acrescentar, nesta determinados pensadores — que gos- ocasião, a complexidade que possui a taríamos de denominar “operadores rede de pensadores que introduzirão diferenciais de Nietzsche”25 — acaba- Nietzsche nas ciências humanas e, es- ram por introduzi-lo no âmbito das pecialmente, a maneira pela qual isso ciências humanas. Introdução que te- tem acontecido até agora: silenciosa- ria acontecido não como um projeto a mente e devagar, ou seja, ao modo de Zaratustra, com passos de pomba, sem alaridos nem fumaça. Por outra parte, 23. Da mesma maneira que nos estudos reali- zados sobre Nietzsche no Brasil, não existe una- precisam ser marcadas as diversas vias nimidade para traduzir “Wille zur Macht” (“von- tade de potência” ou “vontade de poder”) acon- tece com a expressão “nietzschiano” ou “nietzscheano”. Nesta ocasião utilizaremos essa 19. MARTON, Scarlett (2000), Extravagâncias. última denominação. Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche, op. cit., pp. 171-201. 24. VEYNE, Paul. (1986), “Le dernier Foucault et sa morale”. Critique, no 471-472, p. 938. 20. Ibid., p. 187. 25. Para nos distanciar, assim, da não inocente 21. Ibid., p. 191. análise “do discurso filosófico da modernidade”, 22. Idem (2000), “Nietzsche e a cena brasileira”. feita por Jürgen Habermas ao trabalhar a linha In: Extravagâncias. Ensaios sobre a filosofia de crítica da racionalidade ocidental que viria de Nietzsche, op. cit., p. 206. Afirmação que conside- Nietzsche e abrangeria pensadores franceses como ramos pertinente, quando restrita à psicologia. Bataille, Lacan, Foucault e Derrida. MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 29-50, DEZ. 2002
  • 7. DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE 35 ser executado, mas à medida que os aqueles que trabalham com conceitos referidos pensadores encontraram e de Nietzsche ao modo de simples lidaram, em seus próprios percursos, “operadores”. Por isso, e sem fazer se- com diversas pontualidades temáticas gredo de nossa própria posição de in- já apontadas por Nietzsche. Cabe des- térpretes, digamos que nos afastamos tacar que, nessa operacionalização, de uma certa tradição filosófica que vê muitos deles foram modificando es- como negativa qualquer instrumentali- sas problemáticas em função de deter- zação dos pensamentos, que acredita minadas resistências práticas, o que somente na “fidelidade” ao texto e/ para nós não constitui um empecilho ou em suas análises estruturais e que para estudá-los. Exemplificaremos a rejeita assim aplicações e usos. Dife- seguir com Michel Foucault, Paul rentemente dessa tradição, localizamo- Veyne, Gianni Vattimo e Paul Virilio.26 nos mais próximos da série que traba- Pensamentos nos quais temos tenta- lha a partir do diagnóstico do presente, e, do vislumbrar algumas “árvores” em função disso, “Nietzsche-instru- (Vattimo, Virilio) ou tanto as “árvo- mento-de-trabalho” não constitui para res” como a “floresta” (Foucault, nós um sacrilégio. Posição tática Veyne), mas sempre os acompanhan- que — no que diz respeito ao diag- do separadamente e em seus próprios nóstico — não faz senão recolher uma percursos e, neste sentido, ao utilizar- linha desenhada por Foucault a partir mos aqui algumas fotografias dessas de Nietzsche. Mas posição que — em viagens, tentaremos evitar o perigo de nosso caso — quer acrescentar a im- ficar nas simples citações-cascas.27 portância de uma reflexão sobre os Trabalharemos pontualmente, por- meios em nossa atualidade, marcando, tanto, com pensadores que, pejorativa- ao mesmo tempo, as dificuldades de mente,28 têm sido considerados como qualquer operacionalização. Isso porque, a nosso ver, operar com determinados 26. A nosso ver, a complexidade da rede não pensamentos não significa renegar a poderia ser explicitada num artigo, pois, mesmo pertinência dos clássicos nem a análi- restritos, esses nomes encontram-se enovelados a muitos outros. Apenas para recolher um exem- se e revisão constante e cuidadosa dos plo, digamos que os dois primeiros — Michel textos. Aliás, ao destacar meios e ope- Foucault e Paul Veyne — dialogam constante- radores, procuramos simplesmente se- mente em seus escritos com Gilles Deleuze, cujo guir o “velho Aristóteles”, que teria pensamento chega a ser utilizado por eles quase como um novo direcionamento que permite se afastar livremente e sem culpa da tradição filosófica. margem da interpretação” e “Nietzsche e a cena 27. Usamos essa denominação como uma manei- brasileira” em: Extravagâncias. Ensaios sobre a filo- ra de distanciar-nos de denominações como inter- sofia de Nietzsche, op. cit., pp. 161-208, que se mos- no/externo e de suas vinculações a profundidade; tram esclarecedores e ricos em muitos aspectos, conceitos sobre os quais já operou o martelo parecem-nos usar a metáfora de “caixa de ferra- nietzscheano. mentas” e referir-se à utilização dos conceitos de 28. Assim, por exemplo, os artigos de Scarlett Nietzsche como “operadores” num sentido restri- Marton: “Foucault leitor de Nietzsche”, “A terceira to e, por isso, pejorativo. MARGEM, SÃO PAULO, NO 16, P. 29-50, DEZ. 2002
  • 8. 36 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 percebido a dificuldade dos “meios” que costuma ser repetido: Foucault usa- dando igual importância à “vontade do ria Nietzsche como operador. Matizan- fim” como à “escolha dos meios”. De do a referida afirmação, poderíamos maneira que, para ele, não bastaria, dizer que os direcionamentos foucaul- por exemplo, “querer para deixar de ser tianos estão muitas vezes em cruzamen- injusto”, ou seja, ele teria insistido em to — com seu operar ou não operar — que “a dificuldade da realização é com pensamentos de Nietzsche. Assim, maior do que a da concepção”, sendo por exemplo, o “diagnóstico da atuali- que o desprezo pelo meio teria sido dade” será relacionado a Nietzsche próprio de Platão.29 pelo próprio Foucault, pois seria Comecemos nossa exemplificação Nietzsche quem teria descoberto o “di- com Michel Foucault, uma vez que as agnosticar” como a atividade peculiar problemáticas de seus diversos escri- da filosofia, uma vez que filosofar exi- tos perpassam cada vez mais o âmbito giria um escavar genealógico sob nos- das ciências humanas e, nesse aspecto, sos pés e consistiria numa série de atos existe uma espécie de consenso. A nosso e operações em diversos âmbitos.31 Já ver, já o seu declarado criar “novas as prestigiadas incursões de Foucault relações” constitui precisamente uma no âmbito institucional estariam opera- espécie de encruzilhada entre filosofia, cionalizando, em surdina, a separação ciências humanas e história;30 sua pro- nietzscheana entre origem e finalida- clamada “morte do homem” procura des.32 Tampouco o trabalhar foucaul- questionar o objeto-sujeito das pró- tiano na história, até como paródia, prias ciências humanas; vias que, ao poderia ser desvinculado do pensa- mesmo tempo, não poderiam ser afas- mento de Nietzsche, do mesmo modo tadas das diretrizes constituídas pela que a “morte do homem” entendida “problematização constante” e pelo como conseqüência do acontecimento “diagnóstico dos perigos”. E será pre- “Deus está morto”. Mas não há segre- cisamente em relação às problemáticas do; as apropriações explícitas e até seu anteriores que teríamos que retomar o operar implícito com Nietzsche são as- sumidas por Foucault ao afirmar que 29. Com respeito ao anterior, AUBENQUE, Pierre. usa Nietzsche como modelo e que tra- (1986), La prudence chez Aristote. Paris, PUF, pp. 133-137; são suas as expressões que conserva- mos entre aspas nas duas últimas afirmações. 31. “Conversación con Michel Foucault”, em: CARUSO, Paolo. (1969), Conversaciones con Lévi- 30. A conhecida ordenação dessas ciências em Foucault encontra-se principalmente no capítulo Strauss, Foucault y Lacan. Trad. F. Serra Cantarell. Barcelona, Ed. Anagrama, pp. 81, 82. X de As palavras e as coisas; cabe ressaltar que nele a história será considerada como “a mãe das ciên- 32. Operacionalização implícita que será marcada cias humanas”, guardando complexas relações brilhantemente por VEYNE, Paul. (1982), Como se com elas. FOUCAULT, M. (1985), As palavras e as escreve a história; Foucault revoluciona a história. Trad. coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. Trad. de Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. Bra- Salma Tannus Muchail. 3 a ed. São Paulo, Martins sília, Ed. Universidade de Brasília, pp. 180 e 198, Fontes, pp. 384-390. e que remete à Genealogia da Moral, II, § 12. MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 29-50, DEZ. 2002
  • 9. DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE 37 balha com “teses nietzscheanas ou Foucault estaria criando um novo dife- antinietzscheanas (que são também rencial — desta vez nietzscheano ou nietzscheanas!)”.33 É este aspecto que, antinietzscheano. Sim, porque a afir- nesta oportunidade, gostaríamos de mação de operacionalizar teses tanto destacar, pois nos conduz à interroga- “nietzscheanas como antinietzscheanas” ção do começo deste artigo, instigan- não nos parece desligada de uma ou- do-nos a perguntar: como Foucault tra afirmação — desta vez do permite-se usar a palavra modelo refe- “Theatrum Philosophicum” —, com a rida a Nietzsche? Ele não teria medido qual divertia-se ao dizer que toda fi- o distanciamento do pensamento de losofia, após Platão, constituía simples- Nietzsche com o paradigma platônico mente um diferencial platônico.36 De ao qual já nos referimos? maneira que a filosofia, sob essa de- Longe de acreditar numa “ingenui- terminada ótica, começaria propria- dade foucaultiana”, teríamos que res- mente com Aristóteles: ponder que é precisamente a expres- são modelo aplicada a Nietzsche que E se no limite, se definisse como filoso- nos parece constituir uma das cons- fia todo empreendimento, qualquer que tantes “armadilhas do humor foucaul- seja, destinado a reverter o platonismo? tianas” destinada a afastar “leitores [...] Digamos mais bem que a filosofia de um discurso é seu diferencial platônico. perigosos”.34 Não por acaso desde seus primeiros textos, Nietzsche, juntamen- A nosso ver, Foucault sabia muito bem te com Marx e Freud, irrompiam como que ao se declarar “nietzscheano ou brechas da cultura ocidental, não como antinietzscheano” afirmava igualmen- autores, mas como “fundadores de dis- te o referente, portanto, através desse cursividade”.35 Por isso nossa aposta gesto, estaria abandonando um “mo- de leitura é pensar que, nesse gesto, delo Platão” e colaborando na consti- tuição de um “modelo” Nietzsche, 33. FOUCAULT, M. (1984), “O retorno da mo- como novo diferencial ao qual de agora ral”. In: O Dossier. Últimas entrevistas. Trad. Ma- em diante tornar-se-ia necessário fazer ria da Gloria R. da Silva. Rio de Janeiro, Liv. referência. Taurus Ed. Mas, o que acontece se inserimos 34. Em praticamente todos os nossos trabalhos sobre Foucault temos insistido nesse aspecto que essas utilizações foucaultianas junto a — a nosso ver — é constantemente desconsiderado outros usos de pensamentos nietzschea- por seus diversos leitores e intérpretes. nos nas ciências humanas? Ou seja, o 35. Possibilidade que entregam alguns fios que acontece quando notamos usos di- relacionais de duas conferências: “Qu’est-ce que ferentes desse Nietzsche-modelo, ope- un auteur?” (em: Dits et écrits. Paris, Gallimard, 1994, vol. I, pp. 789-821) e “Nietzsche, Freud et rados por outros pensadores? Exempli- Marx” (em: Nietzsche, Cahiers de Royaumont, ficaremos a continuação com Paul Philosophie, tome VI. Paris, Les Éditions de Minuit, 1969, pp. 183-200). Existem traduções para o por- 36. “Theatrum philosophicum”. Em: Critique, nº tuguês de ambas as conferências. 282, novembre 1970, pp. 885-908. MARGEM, SÃO PAULO, NO 16, P. 29-50, DEZ. 2002
  • 10. 38 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 Veyne, cuja aposta nas ciências huma- clarar “eu não me iludo de compreen- nas direciona boa parte de seu trajeto37 der este difícil pensador”, existe um e que se tornou conhecido entre nós cruzamento entre os caminhos de por sua aparentemente simples e ino- Nietzsche e Veyne. Mas, da mesma cente análise do Império Romano, com maneira que no caso de Foucault, tam- a qual começa o primeiro volume da pouco há segredos; o operacionalizar “rapidamente” imitada (até entre nós) a problemática “nietzscheano-fou- História da Vida Privada. Esse historia- caultiana” da verdade no âmbito da dor-filósofo, que como um eficiente história e até das ciências humanas é o “profeta às avessas” costuma se per- que o próprio Veyne declara e salta à guntar: “quem já sabia o que hoje acon- vista. Um exemplo será afirmar que se teceria?”, marcará a resposta — no que deve à “confusão historicista moder- diz respeito à nossa época — com três na” a própria idéia de atualidade; sem nomes: Nietzsche, Renan e Flaubert. 38 por isso deixar de utilizá-la constante- Sim, porque consciente das diversas mente, uma vez que o termo atualidade possibilidades de caminhos, ele terá guardaria relação com aquela “concep- um especial cuidado de não usar o no- ção muito nova da filosofia” que sabe me de Nietzsche como referência úni- que “a verdade clássica está morta”.39 ca. Mas recortemos desta vez — cons- Por outro lado, o abandono da proble- ciente e arbitrariamente — seu trajeto mática do fundamento, que também re- e salientemos somente algumas pontua- mete a Nietzsche, será operaciona- lidades de sua relação com o pensamen- lizado por Veyne dentro do próprio to nietzscheano. Veremos, assim, que percurso foucaultiano,40 pois seria pre- apesar dos matizes diferenciais, ou do ciso “tirar as conseqüências da impos- gesto veyniano que faz questão de de- sibilidade de fundar para se aperceber que é tão inútil quanto impossível”.41 Acrescente-se aos aspectos anterior- 37. Ver, sobretudo, VEYNE, Paul. (1983), Inven- mente mencionados um operar, dessa tário das diferenças, aula inaugural no Collège de vez mais silencioso, com a concepção France. Trad. de Sônia Salzstein. São Paulo, Brasiliense. Cabe esclarecer que — ao modo de nietzscheana do escolher e com uma cer- Raymond Aron —, nesse texto, Veyne considerará ta plasticidade que, muitas vezes, será Sociologia no sentido abrangente de Max Weber. considerada como a própria vontade de Já em outros escritos, Max Weber será considera- do um “historiador” e a “sociologia” aparecerá em sentido restrito, como, por exemplo, em: “Contestation de la Sociologie” (Diogène, no 75, juillet-septembre, 1971). Muitas das críticas que 39. Idem. (1986), “Le dernier Foucault et sa Veyne fará à sociologia serão incorporadas por morale”, op.cit., p. 940. PASSERON, Jean-Claude. (1995), O raciocínio so- 40. Ibid., pp. 938-939. ciológico. O espaço não-popperiano do raciocínio natu- 41. Idem. (1989), “Foucault et le dépassement ral. Trad. de Beatriz Sidou. Petrópolis, Vozes. (ou achèvement) du nihilisme”. In: Michel Foucault 38. VEYNE, Paul. (1995), Le quotidien et l’intéressant, philosophe. Rencontre Internationale. Paris, Éd. du op. cit., p. 319. Seuil, p. 152. MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 29-50, DEZ. 2002
  • 11. DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE 39 potência;42 ambas as perspectivas, no e problemática expressão — que se tem entanto, são necessárias para entender tornado habitual em historiografia e o trabalho “revolucionário” desse his- nas ciências humanas — remete a toriador. Num outro nível, estaria tam- Nietzsche e não a Max Weber, como se bém o gosto pela montanha, território costuma acreditar. Mostrando toda sua comum a ambos os pensadores.43 In- complexidade, Veyne percorrerá uma clusive saltando até as vivíssimas, am- interpretação em que “os fatos não exis- bíguas e engraçadas descrições da con- tem” constituiria uma afirmação que dição humana que percorrem os diver- não só diz respeito ao plano do conhe- sos textos de Veyne, teríamos que di- cimento que os interpreta, mas ao pla- zer que elas também mostram seus no da realidade onde são explorados,46 enovelamentos com fios nietzscheanos. pois a referida expressão descreveria: Isso começando pela própria revalori- zação da alegria e do riso44 e até como a estrutura da realidade física e huma- estudo limitado e caricatural que sim- na; cada fato (a relação de produção, o plesmente repete duas ou três caracte- “Poder”, a “necessidade religiosa” ou rísticas da condição humana, uma vez as exigências do social) não joga o mes- mo papel, ou mais bem não é a mesma que se tem consciência de que a estru- coisa, de uma conjuntura a outra; não tura desse comportamento permanece há papel nem identidade senão de cir- desconhecida.45 cunstância,47 Mas, entre aqueles diversos cruza- mentos, escolhamos veynianamente o que, já na linguagem veyniana, seria um detalhe: a expressão “os fatos não constatar que há somente práticas e con- existem”. Veyne lembrará que esta cara junturas. Finalmente, e tratando-se de quem aposta na trilha de Nietzsche e sabe que “a verdade está morta”, não 42. Mesmo que Veyne declare que “as palavras poderíamos nos limitar apenas a análi- ‘vontade de potência’” são imprecisas e impro- nunciáveis e que, sobre elas, teríamos que “pensar ses conceituais gerais. Por isso, para não em silêncio” — VEYNE, Paul. (1995), Le quotidien trair esse operador por excelência que é et l’intéressant , op. cit., p. 267. Veyne, citemos pelo menos um exemplo 43. Tentamos explicitar as últimas problemáticas que remete a uma prática de “espírito através do percurso realizado em: GAMBOA nietzscheano”.48 Trata-se daquele co- MUÑOZ, Yolanda Glória. (2000), Escolher a mon- tanha. Os curiosos percursos de Paul Veyne, tese de doutorado, USP, 2000. 46. Ibid., p. 241. 44. Assim, por exemplo, não seria um simples 47. VEYNE, Paul. (1983), Les grecs ont-ils cru à detalhe a ser descartado o fato de que em Zaratustra leurs mythes? Essai sur l’imagination constituante. mude-se a “coroa de espinhos” pela “coroa de Paris, Éd. du Seuil, p. 49. Existe tradução para o rosas” e que, por outra parte, a “grande saúde” português: idem. (1984), Acreditavam os gregos em seja alegre, cf. A Gaia Ciência, § 382. NIETZSCHE, seus mitos? Trad. de Horácio González e Milton F. (1983), Obras incompletas, op. cit., p. 222. Meira do Nascimento. São Paulo, Brasiliense. 45. A respeito, Nietzsche, Morgenröte, § 116 e 48. Para adotar pontualmente a expressão com a Menschliches Allzumenschliches, § 160. qual G. Lebrun caracteriza P. Veyne. (Em: “Para MARGEM, SÃO PAULO, NO 16, P. 29-50, DEZ. 2002
  • 12. 40 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 meço da História da Vida Privada pelos Veyne faz a comunicação “Foucault et le romanos, e não pelos gregos. Sem dépassement (ou achèvement) du nihilisme”, desconsiderar as “razões históricas” na qual faz questão de declarar, logo que ali nos são dadas,49 digamos que de início, que “muitas coisas que dirá começar pelos romanos implica tam- se devem a Gianni Vattimo”, o que afir- bém um abandono do problema do fun- mará “de uma vez por todas e bem for- damento e, ao mesmo tempo, afastar um te”.51 E será esse gesto que nós amplia- modelo ou paradigma a ser imitado na remos, nesta ocasião, para nos referir- origem; sobretudo um modelo “ideal” mos em seguida a Gianni Vattimo. Esse em função do qual fundamenta-se a filósofo italiano, que auto-avalia iro- caracterização valorativa da “cópia” nicamente seu pensamento como “fra- como inferior. Nesse caso, toma-se dis- co”, hoje se tornou conhecido pelas con- tância de um possível trabalho em ter- siderações que ainda tentam dar um mos de “modelo” grego e “cópia” ro- sentido à pós-modernidade. Sentido mana. Sim, porque é o platonismo que, que ele acredita descobrir em nossa na ousadia do gesto veyniano, está sen- sociedade de comunicação generaliza- do ignorado desde o início. Em outras da ou dos mass media. Ele trabalhará — palavras, questiona-se um operar com em conjunto e de maneira relacional — os esquemas de modelo/cópia ou rea- ciências humanas e meios de comuni- lidades/imagens, já na sua suposta ori- cação de massa, vinculando-os constan- gem grega. Segundo Veyne: “O mundo temente à problemática do niilismo. não é feito de dois tipos de coisas, as Digamos, no entanto, que Vattimo, realidades e suas imagens”.50 mesmo mostrando as ilusões de “trans- Sobre os desdobramentos da refle- parência” e de “acesso direto aos acon- xão nietzscheana do niilismo na atuali- tecimentos” criadas pelos meios de co- dade, existe um outro gesto veyniano municação, não deixará de enfatizar, que merece consideração. No Encon- por outro lado, a explosão das multi- tro Internacional de 1988 — Michel plicidades locais (minorias) que acabam Foucault philosophe — após ouvir di- hoje constituindo o próprio objeto das versas reflexões sobre o niilismo e sua ciências humanas. Em suas palavras: relação com o pensamento foucaultiano, (...) as chamadas “ciências humanas” (um termo que no nosso discurso, acabar com a cidade grega”, O Estado de S. Paulo, como na cultura atual, continua in- 26.5.1984, Caderno de Programas e Leituras). completamente determinado em rela- 49. “Introdução”, em História da Vida Privada. Trad. de Hildegard Feist, São Paulo, Cia. das Le- tras, 1989, vol. I. e nossa análise em “A vingança 51. Rencontre Internacionale, op. cit., p. 399. É claro contra Roma...”, Cadernos Nietzsche, São Paulo, que esse gesto teria que ser relacionado com a FFLCH-USP, nº 6, 1999, pp. 67-68. atitude de Veyne, que se situa além das preten- 50. “A helenização de Roma e a problemática das sões de originalidade e que tem uma concepção aculturações”, Diógenes, Brasília, Ed. Universida- muito especial de “influência”, considerando-a de de Brasília, nª 3, jul./dez., 1982, p. 120. uma ocasião de “tornar-se si mesmo”. MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 29-50, DEZ. 2002
  • 13. DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE 41 ção aos seus limites e ao seu âmbito de história e a destruição da própria for- compreensão), desde a sociologia à an- ma unitária, em que se tinha pensado, tropologia ou à própria psicologia — por exemplo, “um projeto de história as quais surgem, de fato, apenas na autenticamente mundial”.55 modernidade —, são condicionadas, Materialização do pluralismo para além de uma relação de determi- nação recíproca, pela constituição da nietzscheano e abandono do sistema sociedade moderna como sociedade de hegeliano como unificador,56 podería- comunicação. As ciências humanas mos acrescentar; só que operacionali- são, ao mesmo tempo, efeito e meio de zados para refletir sobre as relações en- ulterior desenvolvimento da socieda- tre ciências humanas e meios de comu- de de comunicação generalizada.52 nicação na atualidade. E será sempre tendo presente um certo viés nietzschea- Dessa maneira, as ciências huma- no que as análises de Vattimo sobre a nas estariam condicionadas pela socie- atualidade serão conduzidas. Sua in- dade moderna como sociedade da co- terpretação de Nietzsche está materia- municação, mesmo que elas tenham lizada e constantemente modificada em reconhecido “o carácter histórico, li- livros e artigos diversos a respeito.57 mitado e afinal ideológico, do próprio Já nas análises da atualidade ele opera ideal de autotransparência, como do relacionando Nietzsche e outros pen- de uma história universal”.53 Pois, su- sadores ou, como ele mesmo declara, pondo que as ciências humanas são não faz suas reflexões a partir de aquelas que “descrevem ‘positivamen- “enunciados teóricos”, mas de “conclu- te’ aquilo que o homem faz de si na sões legitimamente tiradas” dos textos cultura e na sociedade”, essa descrição deles.58 Assim, Vattimo referir-se-á à estaria condicionada pelas análises simultaneidade (teórica) dos meios de comparativas, as que se dariam como o próprio “desenvolvimento da socie- 55. Ibid., p. 29. Vattimo retoma, nesse ponto, dade moderna nos seus aspectos co- uma afirmação de Nicola Tranfaglia. 56. A agregação de todas as diferenças, numa municativos”.54 E será por essa intensi- totalidade teórica, mas já se encarnando no Es- ficação dos fenômenos comunicativos tado, seria a responsável pela “imagem de Hegel que se possibilita, paradoxalmente, o como zelador-filósofo do Estado prussiano, o nascimento de mil outros centros da que talvez não fosse” — VATTIMO, Gianni. (1999), “Estamos perdendo a razão?”. In: Café 52. VATTIMO, Gianni. (1992), A sociedade transpa- Philo. Trad. Procópio Abreu. Rio de Janeiro, Jorge rente. Trad. Hossein Shooja e Isabel Santos, Lis- Zahar Editor. boa, Relógio D’Água Editores, pp. 20, 21. É esta 57. Por exemplo: VATTIMO, Gianni. (1980), As denominação de ciências humanas que usamos aventuras da diferença. Trad. de José Eduardo Rodil. como horizonte deste artigo, mas deixando de Lisboa, Edições 70; idem. (1989), El sujeto y la lado a psicologia, em que a “influência” de máscara. Trad. de Jorge Binaghi. Barcelona, Penín- Nietzsche teria sido direta. (Cf., a respeito, notas: sula; idem. (1987), Introducción a Nietzsche. Trad. 11 e 17.) de Jorge Binaghi. Barcelona, Península. 53. Ibid., p. 31. 58. Idem. (1988), “L’impossible oubli”. In: Usages 54. Ibid., p. 21. de l’oubli. Paris, Éd. du Seuil, p. 77. Vattimo retirará MARGEM, SÃO PAULO, NO 16, P. 29-50, DEZ. 2002
  • 14. 42 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 comunicação — por exemplo, a repor- do de nossa civilização ou inclusive de tagem televisiva ao vivo —, dizendo toda civilização”.60 No entanto, uma que é ela que definiria a “contempora- vez que nós não vivemos mais numa neidade” do mundo. No entanto, essa cultura do instante (como vivia a obra espécie de grande fenomenologia do espí- utópica, por exemplo), será precisa- rito ou presentificação estaria desprovi- mente nesse relativo “caos” que resi- da de todo caráter dramático e nos le- dem para Vattimo “as nossas esperan- varia a nos reencontrar com os mes- ças de emancipação”.61 Por isso, consi- mos problemas apontados por derará o Nietzsche de Zaratustra como Nietzsche na Segunda Consideração o filósofo da modernidade tardia, à Extemporânea. Ou seja, reencontraría- medida que ele “teria visto e vivido a mos a impossibilidade do esquecimen- dissolução do instante decisivo e do to, pois, segundo Vattimo, a conclusão pathos que a acompanhava”.62 desse ensaio de 1874 seria Mas era na reflexão sobre o niilismo de nossa época que Veyne inscrevia — (...) que o homem do século XIX sofre na porta talvez — o nome de Gianni de uma doença histórica — que por Vattimo. Sim, porque aquela temática causa do excesso de conhecimento e percorre efetivamente os diversos tex- de consciência histórica, ele não é mais tos desse último pensador, e, sobre ela, capaz de criar, portanto, de fazer a ver- torna-se esclarecedor voltar àquelas dadeira história (enquanto res gestae).59 duas últimas etapas da História de um Sendo que, hoje, esses problemas esta- erro, que citamos no começo deste arti- riam “mais acentuados e generaliza- go. Isso porque, segundo a interpreta- dos”; o que era um fenômeno de elite ção de Vattimo, essa fábula resumiria na época de Nietzsche, hoje já não se- as etapas da filosofia européia, tal co- ria mais. Em outras palavras, os mass mo elas seriam reconstruídas no pen- media ter-se-iam desenvolvido como samento de Nietzsche.63 No ponto cin- “verdadeiros órgãos da historiciza- co da História de um erro seria evocada ção”, e só aparentemente eles seriam uma “filosofia do amanhecer”, em que cultura a-histórica, pois hoje televisão, nos teríamos liberado do “mundo ver- imprensa, rádio, etc. se sustentariam dadeiro”, ou seja, “das estruturas me- cada vez mais pela reprise, “caótica, mas tafísicas, de Deus”.64 No passo seguin- tendencialmente omnicompreen-siva”. Tratar-se-ia, assim, de uma tendência 60. Ibid., p. 80. à “presentificação total [...] do passa- 61. Idem. (1992), A sociedade transparente, op. cit. p. 10. 62. Idem. (1988), “L’impossible oubli”, op. cit., p. 86, em que Vattimo refere-se ao Portal do Instan- te (nele está escrito Augenblick) do discurso “Da conclusões de Nietzsche e Heidegger nessa oca- Visão e o Enigma”, em Assim falou Zaratustra III. sião, mas às vezes será de Marx ou, ainda, de 63. Idem. (1987), Introducción a Nietzsche, op. cit., outros pensadores. pp. 98, 99. 59. Ibid. 64. Ibid, p. 100. MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 29-50, DEZ. 2002
  • 15. DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE 43 te, ou seja, no ponto seis, quando se Acontece assim que, “uma vez des- suprime também o mundo aparente, coberto que tudo é vontade de poder, segundo Vattimo, se fez “meio-dia, a todos se vêem obrigados a tomar par- hora sem sombras, a hora em que co- tido”.67 Polêmica interpretação, portan- meça o ensino de Zaratustra”. O refe- to, que relacionará niilismo, eterno re- rido ensino, que corresponderia ao torno, decisão e vontade de potência. pensamento do último Nietzsche, te- Mas, explicitando-a como “interpre- ria como conseqüência o pensamento tação”, atenhamo-nos sobretudo àque- “mais perturbador e abismal de Zara- le constante remeter a Nietzsche em tustra, a idéia do eterno retorno”. Com função da fábula. Isso porque, segundo isso viria a exigência de levar a cabo Vattimo, a sociedade de autotrans- “uma sistematização unitária e uma parência avançou para a “fabulação do radicalização do niilismo ao que tinha mundo”, de tal maneira que a “realida- chegado a filosofia do amanhecer”;65 de” do mundo constitui-se pelas múlti- isso porque o eterno retorno seria pre- plas fabulações: “Realiza-se, talvez, no cisamente “a forma extrema do niilis- mundo dos mass media, uma profecia de mo, o nada (a falta de sentido) eter- Nietzsche: no fim, o mundo verdadei- no”.66 Na interpretação de Vattimo apa- ro transforma-se em fábula”.68 E, a par- recerá, a partir desse ponto, uma série tir disso, poderá também considerar de desenvolvimentos — no mínimo que as próprias ciências humanas, com polêmicos —, pois, segundo ele, rela- o debate metodológico que lhes é pró- cionadas ao último momento da fábu- prio, constituem-se como fábulas, cons- la teríamos a transformação da estru- cientes de tal. Daí, por exemplo, as pre- tura “edípica” do tempo, a fundamen- ocupações atuais que elas teriam com tação da doutrina do eterno retorno me- narrações, mitos, sistemas simbólicos diante um conteúdo “cosmológico” e a e com a própria hermenêutica, que con- ligação da idéia do retorno a uma deci- sideraria o caráter plural das narrações. são que o homem deve tomar e a partir Por isso, as ciências humanas seriam da qual se transforma. De maneira que essas fábulas conscientes que constitui- tratar-se-ia, especialmente, de vislum- riam mais seu objeto do que explora- brar o niilismo como “o manifestar-se riam um “real” já constituído e orde- da mentira na moral. A moral tem in- nado. A nosso ver, há nessa perspecti- ventado e proposto valores para a uti- va uma relação com a frase de lidade da vida”, mas com isso Nietzsche que Vattimo está sempre ci- tando: “Não existem fatos, somente tem ocultado desde sempre o sentido interpretações”,69 mas recordando que mesmo das posições de valor, ou seja, seu enraizamento na vontade de po- Nietzsche acrescentava, “isto já é in- der de indivíduos e grupos. 67. Ibid. 65. Ibid., p.103. 68. Idem. (1992), A sociedade transparente, op. cit., p.13. 66. Ibid., p.115. 69. Idem. (1987), Introducción a Nietzsche, op.cit., p.117. MARGEM, SÃO PAULO, NO 16, P. 29-50, DEZ. 2002
  • 16. 44 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 terpretação (Auslegun)”.70 No entanto, aconteceria. Devemos isso não somen- atento sempre aos novos começos e te ao artigo “Delírio em Nova Iorque”, emancipações, Vattimo pensará como no qual analisou em 1993 o atentado “uma recuperação hermenêutica da ‘re- do qual foi alvo o World Trade Center alidade’”, uma conclusão extraída, pre- naquele ano, considerando-o símbolo cisamente, do texto de Nietzsche so- de “uma nova relação de forças” ou bre a fábula: “premonição de uma Hiroshima de um novo tipo”.74 Sim, porque esse pensa- Que a realidade seja a (nossa) história dor, que tem sido considerado como não a faz, por isso, uma fábula; já que apocalíptico, tampouco é uma espécie se o mundo verdadeiro tornou-se fá- de visionário. Em outras palavras, é um bula, como escreve Nietzsche, dessa paciente trabalho anterior, materializa- forma é também a fábula (o esquema do em diversos escritos, que possibili- mental que deveria reduzir tudo a si) que foi negada.71 tou esse seu acertado diagnóstico. Tra- balho no qual Virilio abordou, sob di- Não queremos deixar de mencio- versos ângulos, os perigos do uso da nar, finalmente, Paul Virilio, arquite- tecnologia como arma (deixando de to-filósofo, que também constantemen- considerá-la só como instrumento) e te introduz ligações com o pensamen- inseparável da velocidade como valor. to de Nietzsche. Isso porque Virilio Tecnologia e velocidade seriam, para tem-se tornado um acertado pensador ele, um lado desconhecido da política, da técnica e da “guerra pura” que re- às quais, no entanto, estaríamos todos siste, portanto, à aplicação da pergun- submetidos e, o que é pior, não con- ta veyniana aos acontecimentos atuais trolamos. Numa entrevista, em 1983, imediatos.72 Em relação a Virilio pode- descreverá como até o próprio terro- mos dizer que ele previu a fumaça e o rista tem que usar o veículo em movi- ruído atuais, descartando assim a pos- mento ficando “numa situação tecno- sibilidade que eles viessem constituir crática; por exemplo, um avião, um car- acontecimentos marcados pela “surpre- ro, um trem, um barco”, isso porque, sa ou algo de inimaginável”.73 Em ou- “num veículo em movimento, do qual tras palavras, ele já sabia o que hoje as pessoas não podem descer, você tem uma situação de força”.75 O avião (ou um motor que explode) usado como 70. Idem. (2001), A tentação do realismo. Trad. de arma é um exemplo do que ele consi- Reginaldo Di Piero. Rio de Janeiro, Lacerda ed. dera a militarização da sociedade. Uma Istituto Italiano di Cultura, p. 17. 71. Ibid., p. 43. 72. Aludimos à pergunta “quem já sabia o que 74. Ibid. hoje aconteceria?”, referida na nota 38 deste artigo. 75. VIRILIO, Paul. (1984), Guerra pura. A milita- 73. Ver entrevista a El País, reproduzida e tra- rização da sociedade. Trad. Elza Mine e Laymert duzida na Folha de S. Paulo, Cad. Especial 8, Garcia dos Santos. São Paulo, Editora Brasiliense, 25.9.2001. p. 106. MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 29-50, DEZ. 2002
  • 17. DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE 45 vez que hoje em dia “aquele que tem a relação com as novas ordenações80 que velocidade, tem o poder. E tem o po- Paul Virilio introduzirá nas, por ele der porque é capaz de adquirir os denominadas, ciências sociais,81 permi- meios, o dinheiro”.76 Hoje, fabrica-se tindo-lhe visualizar novos problemas. velocidade. O poder estaria investido Nas referidas ciências destacará cons- na aceleração. Nesse sentido, tantemente a importância do acidente, pois ele constituiria uma interrupção, (...) o verdadeiro inimigo é menos ex- ou seja, uma mudança de velocidade, terno que interno: nosso “próprio” ar- uma queda, mas que “tem algo a nos mamento, nosso “próprio” poderio ci- ensinar sobre a natureza de nossos cor- entífico que, de fato, promove o fim de pos e o funcionamento de nossa cons- nossa própria sociedade.77 ciência”.82 O acidente seria, assim, o que antes era o pecado para a natureza hu- Por outro lado, o Estado, a máquina mana; uma relação com a morte. Por de Estado, desde 1969,78 usaria técni- isso, em 1983 Paul Virilio propõe que cas de terrorismo e tornar-se-ia assim cada tecnologia escolha seu acidente terrorista. Começariam assim os atos específico e o revele, não de maneira de guerra sem uma guerra. Nas pala- moralista, mas como um produto a ser vras de Virilio: questionado epistemo-tecnicamente.83 Da mesma maneira que no fim do sé- (...) (há) dificuldades que os regimes po- líticos têm em resistir ao terrorismo por culo XIX os museus exibiram máquinas, causa das próprias tecnologias (tele- agora se poderiam exibir descarrila- fones, mísseis, etc.), mentos de trens, poluição, desmoro- namentos de edifícios... por outro lado Em outro nível, hoje seria necessá- rio repensar conceitos como liberdade (...) há problemas que a comunidade e progresso, uma vez que existe a arma internacional tem ao tentar acabar com o terrorismo de Estado. É a mesma ló- gica da surpresa absoluta e do não-di- reito, uma lógica, digamos, do “ato gra- 80. Virilio reconhece trabalhar com o modelo mi- tuito”.79 tológico das três funções (sagrada, militar e eco- nômica) estabelecido por Georges Dumézil, uma Muitas dessas análises, que se tor- vez que os mitos teriam uma capacidade analíti- ca inegável e poderiam ser utilizados como naram altamente pertinentes, estão em analisadores e como tendências. Ibid., pp. 21, 22. 81. Virilio preferirá a denominação ciências sociais e fará referência a elas constantemente; o que não 76. Ibid., p. 50. poupará à sociologia de suas severas críticas. Ibid. 77. Ibid., p. 53. 82. Ibid., p. 41. 78. Virilio refere-se ao ataque dos pára-quedistas 83. Acrescentemos que a importância do acidente israelenses ao Aeroporto de Beirute. Ibid., p. 34. como interrupção do conhecimento não está des- 79. Ibid., pp. 34, 35. ligada da crítica nietzscheana do conhecimento. MARGEM, SÃO PAULO, NO 16, P. 29-50, DEZ. 2002
  • 18. 46 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 nuclear84. Em suas palavras, de e suas conseqüências para o pensa- mento não escapavam a Nietzsche, 88 (...) desde o século XVIII — desde a Era mas que Virilio levará isso ao extre- das Luzes, para usar a terminologia mo, indicando, por exemplo, que “o conhecida — acreditamos que a mito nietzscheano da grande saúde”89 tecnologia e a razão andavam de mãos prolonga-se hoje, na direção de uma dadas em direção ao progresso; ao “fu- espécie de “estimulação perpétua”; turo glorioso”, como eles dizem. Era ponto pacífico que acharíamos a solu- ção — para a doença, a pobreza, a de- (...) a “grande saúde” não é mais por- sigualdade. Tudo bem, achamos; mas tanto um DOM, o dom do silêncio dos ela era a solução final, não a melhor. órgãos, ela é um HORIZONTE, uma Era a solução do mundo acabando na perspectiva a ser atingida graças às guerra nuclear, na Guerra Total, no proezas da aceleração das tecnologias extermínio e no genocídio. Assim, mi- AO VIVO.90 nha intenção é dizer: chega de ilusões a respeito da tecnologia. Não contro- Dessa maneira, Virilio retoma o tipo lamos o que produzimos.85 Zaratustra com seu pressuposto fisio- lógico da grande saúde, cuja recompen- Por isso, entre seus esboços de solu- sa deveria ser uma terra desconheci- ções, estaria a necessidade de “politizar da, um além de todos os cantos, mas a velocidade”,86 controlando tanto a para dizer que velocidade metabólica quanto a tecnológica, uma vez que “nós somos (...) esse além radiante se tornou, em ambas”.87 pouco tempo, um simples aquém de Notemos, porém, que Virilio tri- todas as terras, de todas as fronteiras das regiões do próprio mundo...,91 lha caminhos que dificilmente coinci- dem com as sendas percorridas pelos pois hoje não há mais um pautar-se por pensadores anteriormente citados, os dimensões, mas somente por anos-luz. quais também se diferenciam, entre Já com respeito às diferenciações eles, muito mais do que à primeira vis- ta poderia parecer. De maneira que, 88. Por exemplo, nas obras de Nietzsche, Prefácio para exemplificar, comecemos por di- às conferências Sobre el porvenir de nuestras escuelas zer que o próprio perigo da velocida- (trad. Carlos Manzano, Barcelona, Tusquets Edi- tores, 1980, pp. 31, 34) e a Segunda Consideração Extemporânea. Da utilidade e inutilidade dos estudos 84. “O perigo mais grave desta arma final — a históricos para a vida. (Op. cit., pp. 58-70). arma nuclear — é que ela existe e que por sua 89. Sobre a “grande saúde” em Nietzsche, Gaia simples presença desintegra qualquer debate so- Ciência, § 382. In: NIETZSCHE, F. (1983), Obras bre a evolução da sociedade.” VIRILIO, P. p. 52. incompletas, op. cit., pp. 222, 223. 85. Ibid., p. 65. 90. VIRILIO, Paul. (1996), A arte do motor. Trad. 86. Política usada em sentido originário, em rela- Paulo Roberto Pires. São Paulo, Estação Liberda- ção à polis. de, pp. 110,111. 87. VIRILIO, Paul, op. cit., p. 37. 91. Ibid., pp. 97, 98. MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 29-50, DEZ. 2002
  • 19. DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE 47 com os outros pensadores aqui referi- sadores citados que mais enfatizarão dos, citemos a não ingênua afirmação uma reflexão sobre os meios em nossa de Virilio, que diz respeitar mas não atualidade, marcando, por exemplo, a gostar de Michel Foucault (“Eu não gos- mudança na concepção de guerra, to da escritura tipo dois-e-dois-são- quando são os meios (da artilharia até quatro.”92) e, precisamente nesse aspec- os mísseis) que se tornam importantes.96 to, dirá praticar a fragmentação Após este mapeamento pontual, nietzscheana da escrita, uma vez que podemos dizer que, se existe um pon- seu cuidado seria com as rupturas e to comum na linha dos pensadores re- ausências. Para ele, “o fato de parar e feridos — Foucault, Veyne, Vattimo, dizer: ‘vamos para outra parte’ é mui- Virilio —, é a de constituir precisamen- to importante”93 te uma série diferencial; diversos ca- minhos a partir de uma complexa ma- É absurda a pretensão de cercar total- triz “comum”: Nietzsche. Nesse senti- mente uma questão. Você não pode do, é exemplar o título do livro de moldá-la. Não se deveria tentar apre- Veyne, Foucault revoluciona a história, ender tudo em torno de uma questão. Apenas existem perspectivas sucessivas.94 uma vez que, em nota, dirá que “o método”97 de Foucault teria saído de Por outro lado, Virilio afirmará — re- uma meditação sobre o aforismo 12 da ferindo-se a Foucault — que ante o pri- Genealogia da moral, o que, levado ao li- vilégio do poder/saber, desenvolvido mite, seria destacar que o operador — pelos “histoteóricos”, existe um prévio Foucault — estaria contribuindo para poder/mover, ou promoção, já que um “Nietzsche revoluciona a história”. para haver saber, seria preciso haver Por isso, e voltando aos nossos questio- promoção (exércitos, Cruzadas, popu- namentos do início, teríamos que vol- lações em movimento),95 possibilitan- tar a nos perguntar: que significa, en- do assim conceituar uma problemática tão, a expressão modelo referida a que desemboca nos problemas da téc- Nietzsche? A partir dos próprios es- nica e da velocidade sem limites, pró- critos de Nietzsche, teríamos que re- prios de nossa época. E uma vez que petir que esse singular modelo se consti- nossa reflexão pautou-se pelo destaque tui à margem das categorias modelo/ às dificuldades das operacionalizações, cópia platônicas, acrescentando que — digamos que Virilio será um dos pen- como modelo não platônico — abrirá, precisamente, para a batalha desmas- carada das diversas interpretações. 92. Idem. (1984), Guerra pura..., op. cit., p. 45. 93. Idem. p. 46. Neste sentido, seu trabalho também constituiria um diferencial em relação a Gilles Deleuze, 96. Neste sentido, a “logística” teria assumido o que em Mille Plateaux progrediria por captações. controle hoje em dia. Ibid., pp. 24, 25. 94. Ibid. 97. Foucault révolutionne l’histoire, op. cit., p. 240, 95. Idem, p. 59. nota 11. MARGEM, SÃO PAULO, NO 16, P. 29-50, DEZ. 2002
  • 20. 48 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 Neste último aspecto, o paradigma “novo diferencial” que faz com que Nietzsche já não assinalará um caminho toda conceituação — no âmbito da fi- verdadeiro e único,98 mas direcionará losofia, das ciências humanas e/ou da na procura de possíveis trajetos plurais, história — tenha que começar a fazer perspectivísticos99 e experimentais. Tal- referência a Nietzsche, seja na forma vez estejamos lidando, então, com a da adesão ou do afastamento, o que constituição de um modelo/paródia ou resulta em abandonar a trilha da indi- um simulacro,100 uma vez que é um mo- ferença. delo que não mantém “relações inter- Vislumbrar um “modelo” que di- nas” com as cópias e que rejeita todo reciona à pluralidade de interpretações tipo de “seguidores/crentes”. Nas pa- e operacionalizações não significaria, no lavras de Zaratustra: entanto, aceitar qualquer interpretação. Ao contrário, é pertinente um labor se- Retribui-se mal um mestre quando se letivo que permita distinguir constante- permanece sempre e somente discípu- mente entre éticas diferenciais de opera- lo. E por que não quereis arrancar folhas cionalização. Em outras palavras, é pre- de minha coroa?.101 ciso diagnosticar e avaliar os diversos operadores e refletir, em cada caso, Portanto, nietzscheanamente, teríamos sobre o como desses usos.102 Mesmo sa- que dizer que, ao usar Nietzsche como lientando a importância de certos usos modelo, opera-se uma transvaloração do instrumentais de Nietzsche, estamos que se entende por paradigma desde longe de reivindicar as aplicações apres- Platão. Nessa perspectiva, a afirmação sadas,103 queremos simplesmente mar- foucaultiana de Nietzsche enquanto car a pertinência das experimentações. modelo libera-se de sua casca de inge- Para usar a metáfora da “caixa de fer- nuidade e mostra como esse gesto co- ramentas”, que foi introduzida por loca-nos ante a constituição de um novo Gilles Deleuze e a partir daí aplicada “paradigma experimental” ou de um mecanicamente, teríamos que assina- lar que junto a um uso de ferramentas é sempre preciso refletir sobre a ética 98. Assim, por exemplo, Assim falou Zaratustra III, que está ligada a esse uso. Ética que, Do espírito de gravidade. entendida como “forma de vida”, não 99. O que, na interpretação de Vattimo, não signi- fica que “a mesma teoria que afirma a pluralidade de perspectivas não deva e possa escolher entre elas” — VATTIMO, Gianni. (1987), Introducción a 102. O que pensamos que não se afasta do que Nietzsche, op. cit., p. 118. Nietzsche considerava o trabalho de psicólogo. 100. Se analisado a partir do importante apêndi- 103. A nosso ver, é esse aspecto de algumas apli- ce da Lógica do sentido, de Gilles Deleuze: “Platão cações que muitas vezes abandonam efetivamen- e o simulacro” (op. cit., pp. 259-271). te o cuidadoso e demorado “ruminar” que de- 101. Assim falou Zaratustra, I, Da virtude dadivosa mandam os textos de Nietzsche, o que tem sido 3. Reproduzimos pontualmente a tradução de vinculado a um também apressado desprezo pela Mario da Silva, RJ, Ed. Bertrand Brasil, 1994, p. 92. operacionalização. MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 29-50, DEZ. 2002
  • 21. DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE 49 se desvincule da categoria de khresis constantemente se perguntar: Em que grega. Em outras palavras, não é qual- mãos estão determinadas apropriações? quer ferramenta e em qualquer ocasião Quais são as forças predominantes ne- a que pode ser usada... Trata-se, por- las? Reforçam ou enfraquecem a vida? tanto, de re-introduzir em outro jogo Nesta oportunidade, quisemos sim- a própria problemática do kairós, tão plesmente destacar alguns trajetos plu- cara ao pensamento greco-romano. rais, perspectivísticos e experimentais Sim, porque em nossa atualidade tor- de pensadores que operacionalizam na-se urgente avaliar em que medida diversos pensamentos nietzscheanos cada uso é pertinente em relação às (ou antinietzscheanos) nas denomina- problemáticas históricas em que se in- das ciências humanas. Trilhamos, as- sere e também se, em determinados sim, uma via semeada de problemáti- casos, há ou não mestria de uso. Ten- cas ainda por serem estudadas e reto- tando traduzir essa problemática em madas, mas de alguma maneira lida- termos nietzscheanos, poderíamos nos mos com o que produz efetivamente a perguntar: Quem ou que forças coman- aplicação de um “modelo-Nietzsche”: dam a utilização de um determinado ausência de um modelo a ser copiado, pensamento? Afirmativas? Negativas? ausência de relação interna entre mo- Ativas? Reativas? Ressentidas? Pistas delo e cópia, e, sobretudo, inversão da ou rastros que, para Nietzsche, são própria hierarquia que ordena consi- marcados precisamente no como (wie) derando que o fundamento das “boas de cada utilização. Por isso, e a partir cópias” é a identidade superior da da resistência que constitui o próprio Idéia (Forma imutável ou Modelo). Em texto, talvez aos poucos se possa outras palavras, lidamos com uma mapear como algumas dessas aplica- transvaloração do que se entende por ções foram apressadas demais, como modelo ou paradigma de Platão até certos aspectos operacionais deman- nossos dias. Nessa trilha, também se dam um novo e paciente ruminar com efetua uma inversão da categoria de os textos de Nietzsche e refletir sobre influência, que não poderia ser consi- a mestria ou ausência dela em deter- derada como determinação heterô- minados usos, mostrando em que pon- noma — como algo que lhe adveio de tos cada apropriação teria que ser um outro — mas como uma possibili- revisitada ou retomada.104 Talvez usan- dade de “tornar-se si mesmo”.105 No do uma máscara nietzscheana, caberia detalhe — encontramo-nos diante da impertinência de operar com a “cate- goria moral de fidelidade”, tanto para 104. Só para citar um exemplo, muitas das “solu- o paradigma Nietzsche, como para as ções” para nossa época, esboçadas por Paul Virilio, ou das possibilidades de “novos começos e emanci- pações”, assinaladas por Gianni Vattimo, não poderi- am ser alinhadas facilmente como retomadas de pen- 105. O que teria sido operacionalizado por Veyne, samentos nietzscheanos e sequer antinietzscheanos. como destacamos na nota 51. MARGEM, SÃO PAULO, NO 16, P. 29-50, DEZ. 2002
  • 22. 50 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 diversas utilizações plurais de um pretenso modelo que explode e frag- menta-se ao pensá-lo como centro úni- co, caminho verdadeiro e paradigmático. Recebido em 23/6/2002 Aprovado em 30/10/2002 Yolanda Gloria Gamboa Muñoz, professora do Departamento de Filosofia da PUC-SP e da USJT. E-mail: redial@uol.com.br MARGEM, SÃO PAULO, No 16, P. 29-50, DEZ. 2002