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Vencer a barbárie em Anapu é uma obrigação do Estado brasileiro
                                                                            Fagner Garcia Vicente1

A guerra está declarada em Anapu. Não que a violência seja uma novidade na região; a
diferença, agora, é que não dá pra fingir neutralidade. A situação do Projeto de
Desenvolvimento Sustentável Anapu I, causada pela atuação ilegal de madeireiros
clandestinos, impõe a todos nós, de qualquer forma envolvidos no processo, uma
escolha: engajamento ou covardia.

Em 2005, covardemente, esperamos a morte de Dorothy Stang para agirmos. Diante da
repercussão internacional do fato, mobilizamos forças armadas e civis, alteramos leis e a
estrutura da Administração Pública para remediar o irremediável. Hoje, de novo, os
braços do Estado brasileiro estão cruzados, à espera, quem sabe, de novos mártires, de
novas cruzes plantadas no solo vermelho do PDS Esperança.

Virou rotina para servidores do INCRA e lideranças locais de Anapu sofrer ameaças e
tentativas de intimidação, quando não a violência concreta. Os relatórios, os
memorandos, as denúncias já não surtem efeito. Madeireiros não esperam mais a
calada da noite para, com a desfaçatez dos que se sabem intocáveis, tomarem de
assalto o PDS. Caminhões carregados de toras, com escolta armada, arrancam dos
assentamentos – ilhas de preservação da floresta nas margens devastadas da
Transamazônica – a riqueza que deveria garantir a dita sustentabilidade. A lei da selva
impera sob o nariz da civilização.

É inaceitável que sigamos expondo servidores públicos civis, desarmados e sem poder
de polícia, a riscos, como os enfrentados pela equipe do INCRA em Anapu. Porém,
irresponsabilidade maior seria, agora, abandonar à própria sorte as famílias assentadas,
que, com a coragem dos que não têm alternativa, defendem bravamente o território e o
ideal do PDS. A Comissão Pastoral da Terra, como em 2005, está rouca de tanto clamar
por providências, mas parece que nada consegue ultrapassar a “blindagem” do setor
madeireiro.

É notório que a atividade madeireira encontra-se, hoje, calcada na ilegalidade. Do
mesmo modo, contudo – para além de qualquer ingenuidade ou hipocrisia –, não se
pode ignorar a influência do setor sobre as elites políticas e econômicas do Pará, ou
desconhecer que os empresários desse ramo sustentam as campanhas eleitorais de
todos os candidatos importantes do estado. Por isso, ninguém sinceramente espera das
autoridades constituídas, em plena conjuntura eleitoral, o enfrentamento desse aparato
econômico e social tão poderoso. O clamor é por um mínimo gesto que demonstre um
vago compromisso com as famílias assentadas e com as promessas que lhes foram
feitas. Em Anapu, em Novo Progresso, em todas as áreas públicas destinadas do país,
reprimir práticas criminosas e oportunizar condições, recursos, para que a
sustentabilidade, embrionária em cada assentamento, possa florescer como alternativa
econômica a milhares de famílias camponesas.

Não se espera do Estado brasileiro nada além da sua função mais elementar: fazer
cumprir a lei. Ou nos engajamos nesse objetivo agora ou optamos pela covardia e, de
vez, capitulamos frente à barbárie.



1
  Chefe da Divisão de Desenvolvimento do INCRA no Oeste do Pará. Este texto não reflete a posição do
INCRA, mas tão somente a opinião do autor.

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