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Pseudoprofundidade

                                     Stephen Law




                                                      Tradução de Aluízio Couto e revisão de
                                                      Eduardo Cruz




Alguns gurus do marketing, religião e estilo de vida têm insights genuinamente profundos
para oferecer. Outros oferecem pouco mais do que pseudoprofundidade. Pseudoprofundidade
é a arte de soar profundo falando nonsense. Diferente da arte de ser de fato profundo, a arte
de soar profundo não é difícil de dominar. Como veremos, há certas receitas básicas que
podem produzir resultados bastante convincentes – bons o bastante para convencer os
outros e talvez até a si mesmo de que você acaba de chegar a um tipo de insight profundo
sobre a condição humana. Se você quer atingir o status de um guru, será bom possuir algum
carisma natural e boa presença. Sinceridade e empatia, ou pelo menos a habilidade de
simulá-las, podem ser úteis. Acessórios também ajudam. Tente usar uma tanga, um barrete
ou, caso em um ambiente corporativo, um colete totalmente fora de propósito. Mas mesmo
sem o auxílio dos talentos naturais ou da parafernália, qualquer um pode proferir sentenças
que soam profundas e significativas caso esteja preparado para seguir umas receitas
simples.




Diga o óbvio

Para começar, tente assinalar o óbvio ululante. Apenas faça isso i-n-c-r-i-v-e-l-m-e-n-t-e d-
e-v-a-g-a-r e com ar de sabedoria superior. A técnica funciona melhor se seus
pronunciamentos focarem nos grandes temas da vida, tais como amor, dinheiro e morte. Por
exemplo:

        Todos nós já fomos crianças uma vez.

        O dinheiro não pode comprar o amor.

        A morte é inevitável.

Diga o óbvio de uma maneira suficientemente cuidadosa. Após isso, uma longa pausa talvez
caia bem. No fim das contas, possivelmente você verá as outras pessoas acenando com a
cabeça em sinal de concordância e talvez até mesmo murmurando: “sim, quão verdadeiro é
isso”.
Se contradiga

Uma segunda técnica é selecionar palavras com sentidos opostos ou incompatíveis e, de
forma enigmática, combiná-las no que parecer uma óbvia contradição. A seguir alguns
exemplos:

       A sanidade é apenas mais uma forma de loucura.

       A vida é frequentemente uma forma de morte.

       O ordinário é extraordinário.

Essas sentenças são absolutamente impenetráveis e podem facilmente parecer profundas.
Na obra “1984”, de George Orwell, dois dos três slogans do Partido têm esse caráter:

       Guerra é paz.

       Liberdade é escravidão.

       Ignorância é força.

Se você é um aspirante a guru, por que não produzir seus próprios comentários
contraditórios? A grande beleza de tais comentários é que eles fazem com que a audiência
faça o trabalho por você. O significado não é algo que você, o guru, dirá. Seus seguidores é
que terão a tarefa de decifrar.

Apenas sente-se, adote uma postura sábia e deixe-os fazer o trabalho intelectual. A ideia de
que a contradição é uma marca de profundidade por vezes aparece em contextos religiosos.
Não crentes irão supor que contradições no interior de uma doutrina religiosa revelam que
ela contém falsidades. Os crentes provavelmente vão encarar as mesmas contradições como
sinal de profundidade. Contradições têm também outras vantagens: uma série de afirmações
simples e não ambíguas é fácil de refutar, ao passo que não é tão fácil fazer o mesmo com
tais afirmações enigmáticas. Assim, se você pensa em iniciar sua própria religião e quer dizer
coisas que parecerão profundas e também invulneráveis à crítica, tente fazer afirmações
contraditórias. Afirme, mas então negue. Por exemplo, diga que seu deus particular é – e, no
entanto, não é. Que seu deus é tudo e nada. Que ele é um, mas ao mesmo tempo vários.
Que ele é bom, mas, uma vez mais, não o é.

Nada do que eu disse é equivale a dizer que tais afirmações aparentemente contraditórias
não podem ter algo de genuinamente profundo. Certamente, elas podem ser provocativas
(aposto que você é capaz de achar algum tipo de verdade em todos os exemplos mordazes
de Orwell). Mas, dado que a forma de contradições pode ser usada para gerar
pseudoprofundidade, é uma boa ideia não se impressionar facilmente.




Dois sentidos: verdadeiro, mas trivial; aparentemente profundo, mas falso
Outra receita para gerar pseudoprofundidade, identificada pelo filósofo Daniel Dennett¹,
envolve dizer alguma coisa com dois sentidos, em que um desses sentidos é trivialmente
verdadeiro e o outro, embora pareça profundo, é falso ou puro nonsense. Dennett ilustra isso
com a expressão “O amor é somente uma palavra”. Em uma leitura, trata-se de uma frase
sobre a palavra “amor” (mas note que, se a frase é sobre essa palavra, então ela deveria ser
usada entre aspas). A palavra “amor” é de fato apenas uma palavra, tal como as palavras
“aço” e “concreto”. Vendo as coisas dessa forma, a frase é trivialmente verdadeira. No
entanto, lendo-a de outra forma, a frase não é sobre a palavra “amor”, mas sobre o próprio
amor – ou seja, sobre o que a palavra “amor” se refere. O amor é frequentemente definido
como um sentimento ou uma emoção. É ainda defensável que o amor seja uma ilusão. Mas,
definitivamente, o amor não é uma palavra. Portanto, nessa leitura, a frase “o amor é só
uma palavra” é obviamente falsa. Esse recurso se beneficia espertamente da ambiguidade
entre ambas as leituras. É a ambiguidade que gera a resposta do tipo “oh, uau” e que faz as
pessoas suspirarem, dizendo algo como “Meu Deus, o amor é de fato apenas uma palavra,
não é mesmo?”, como se tivessem dado de cara como algo terrivelmente profundo.




Banalogias

Aqui temos um modo particularmente eficaz de geração de pseudoprofundidade. Em primeiro
lugar, pegue algumas observações completamente banais sobre a condição humana, tais
como:

       A vida é muitas vezes surpreendente.

       As pessoas muitas vezes pensam que há algo faltando em suas vidas.

       Deveríamos apreciar as coisas enquanto ainda podemos.

       Deveríamos aproveitar ao máximo as oportunidades que temos.

Agora, recheie sua observação banal com uma analogia. Chamo banalogia o resultado. “A
vida é como um(a)” fornece um modelo popular. A seguir uns rápidos exemplos achados na
Internet:

       Minha mãe sempre disse que a vida era como uma caixa de chocolates. Você nunca
        sabe o que vai conseguir pegar. (Forrest Gump)

       A vida é como um taxi. O taxímetro continua funcionando esteja você indo para
        algum lugar ou apenas parado. (Lou Erickson)

       A vida é uma pedra de amolar. Se ela nos tritura ou pole, depende de nós. (Thomas
        L. Holdcroft)

       A vida é como uma moeda. Você pode gastá-la do modo que quiser, mas só fará isso
        uma vez. (Lillian Dickson)
O resultado pode soar muitas vezes terrivelmente profundo. Sermões e homilias por vezes
envolvem banalogias. Alan Bennett fez uma engraçada paródia disso em seu sketch “O
sermão” (Bennett se apresentou usando uma coleira):

       A vida, vocês sabem, é como abrir uma lata de sardinhas. Todos nós estamos
       procurando pelo abridor. E imagino quantos de vocês que estão aqui esta noite já
       não perderam anos de suas vidas nos armários de cozinha procurando por esse
       abridor. Eu sei, eu também perdi anos. Já outros pensam que acharam o abridor,
       não pensam? Eles abrem a tampa da lata de sardinha da vida. Mostram-nos as
       sardinhas, as riquezas da vida, tiram as sardinhas da lata e as apreciam. Mas vocês
       sabem: sempre há um restinho que fica agarrado no canto da lata. Então penso: há
       um restinho agarrado no canto da sua vida? Sei que na minha há!

O autor Douglas Adams, irritado com as pseudoprofundidades do tipo “a vida é como
um(a)”, produziu uma surreal versão própria:

       A vida... é como uma laranja-romã. É alaranjada, espirra em jatos e há nela alguns
       caroços. Algumas pessoas têm metade de uma para o café da manhã.

Parábolas às vezes são banalogias. Veja esse exemplo:

       O jovem já estava no fim da linha. Não vendo saída, deixou-se cair sobre os joelhos
       em oração. “Senhor, não consigo prosseguir”, disse ele. “Minha cruz é muito
       pesada.” O Senhor respondeu: “Meu filho, se você não pode suportar o peso dela,
       ponha sua cruz dentro deste lugar, abra depois outra porta e escolha qualquer cruz
       que quiser.” O homem ficou aliviado. “Obrigado, Senhor”, e fez como lhe foi dito. Ao
       fazer isso, viu muitas cruzes diferentes; era impossível ver o topo de algumas, tão
       grandes que eram. Então ele avistou uma pequena cruz encostada na parede. “Quero
       essa, Senhor”, sussurrou. E o Senhor respondeu: “meu filho, essa é a cruz que você
       trouxe.”²

Pegue a verdade importante - mas óbvia - de que nós por vezes superestimamos nossos
infortúnios e não conseguimos ver quão sérios são os problemas dos outros, trace uma
analogia com carregar cruzes pesadas e voilà, você é profundo! Nesse exemplo, a
pseudoprofundidade também serve para distrair a atenção do ouvinte de questões mais
problemáticas do tipo: em primeiro lugar, por que Deus insiste em fazer com que as pessoas
carreguem fardos horrendos?




Use jargões

Se você é um guru do business, consultor de estilos de vida ou místico, introduzir algum
jargão pode incrementar ainda mais a ilusão de profundidade. Aqui vai um truque comum:
invente algumas palavras que parecem ter significado similar ao de certos termos bem
conhecidos, mas que deles difiram de uma maneira nunca completamente explicada. Por
exemplo, não fale sobre as pessoas serem felizes ou tristes; fale sobre elas terem
orientações atitudinais positivas ou negativas. O próximo passo é traduzir alguns truísmos
para seu novo vocabulário. Pegue a observação banal de que pessoas felizes tendem a fazer
as outras pessoas mais felizes. Ela pode ser remodelada como “orientações atitudinais
positivas têm alto poder de transferência”. É Também útil adotar o vocabulário de “forças”,
“energias” e “equilíbrios”. O uso dessas palavras irá sugerir que você descobriu algum poder
profundo que pode ser aproveitado e usado pelas outras pessoas. Isso fará com que seja
bem mais fácil persuadi-las de que elas podem perder algo de realmente importante caso
não compareçam a um de seus seminários.

Assim, se você é um guru do marketing, tente fazer seminários sobre o “Aproveitamento das
Energias Atitudinais Positivas dentro do Varejo”. E se algum espertinho for corajoso o
suficiente para levantar a mão e perguntar o que exatamente é uma “energia atitudinal
positiva”, defina utilizando mais jargão. Fazendo isso, você jamais terá de realmente explicar
o significado da sua conversa fiada. Além disso, os vários truísmos embutidos no seu jargão
irão gerar a ilusão de que você realmente tem algo a dizer, mesmo que audiência não faça
muita ideia do que seja - o que é uma boa forma de deixá-la com mais vontade de ouvi-lo.

Adicionar algum jargão ou referência científica pode ser particularmente útil ao seu papo
furado   porque   essas   coisas   emulam   autoridade   e   substância.   Muitos   adeptos   da
pseudoprofundidade aprenderam com o insight presente em um comentário de James Clerk
Maxwell, um dos grandes cientistas do século XIX: “o respeito pela ciência é tal que as
opiniões mais absurdas se tornam correntes desde que expressas em uma linguagem que
lembre alguma frase científica bem conhecida.”³

Referências à mecânica quântica são particularmente populares entre os vendedores de
conversa fiada pseudocientífica. Uma vez que se espera que ela faça afirmações um tanto
estranhas e difíceis de entender, é uma boa ideia abusar das referências em favor das
bizarrices que você tem a dizer. As pessoas pensarão que você deve ser muito inteligente e
sequer perceberão que você é um tapeador. Portanto, caso você seja ambicioso, pode ser
uma boa ideia inventar uma palestra com o título “Energias Atitudinais Positivas e Mecânica
Quântica”.




Pseudoprofundidade pós-modernista

Infelizmente, alguns setores da academia são dominados por intelectuais cuja escrita não é
muito mais do que pseudoprofundidade. Retire o jargão acadêmico e as referências
pseudocientíficas de seus pronunciamentos grandiosos e pouco sobrará. Tais pensadores,
frequentemente referidos como “pós-modernos”, possuem mais apetrechos do que sua justa
cota de jargão pastoso. Mas, de qualquer forma, é muito fácil fazer algo soar como legítimo
academiquês pós-modernista, tanto que um brincalhão chamado Andrew Bulhak criou um
programa de computador que escreve ensaios “pós-modernos” para você – e com as devidas
referências.    Para      visitar    o      Gerador      de      Pós-Modernismo,       acesse
http://www.elsewhere.org/pomo/. Acabei de testar e recebi um ensaio que começa assim:

       O tema primordial do modelo de marxismo neo-estrutural de Cameron é o que há de
       comum entre a sociedade e a cultura. A análise de Sontag da situação Debordiana
       afirma que a sociedade tem valor objetivo. Entretanto, Marx promove o uso do
       marxismo para a análise de classe. A situação Debordiana sustenta que o objetivo do
       observador é a desconstrução. Portanto, o sujeito é interpolado em um marxismo
       neo-estrutural que inclui a arte como um paradoxo. Vários materialismos que dizem
       respeito à teoria subdialética semanticista podem ser encontrados.

Isso até pode ser nonsense, mas dificilmente faz menos sentido do que a coisa real. Talvez
até faça mais sentido. Considere o seguinte exemplo, do intelectual francês Félix Guattari:

       Podemos ver claramente que não há qualquer correspondência biunívoca entre
       ligações linearmente significantes ou arqui-escritos, dependendo do autor, e essa
       catálise maquínica multidimensional e multi-referencial. A simetria da escala, a
       transversalidade, o caráter pático e não discursivo de suas expansões: todas essas
       dimensões nos distanciam da lógica do terceiro excluído e reforçam o descarte do
       binarismo ontológico que criticamos anteriormente. Uma assembléia maquínica,
       através de seus componentes diversos, extrai sua consistência cruzando limiares
       ontológicos, limiares não lineares de irreversibilidade, limiares ontológicos e
       filogenéticos e limiares criativos de heterogênese e autopoiese.⁴

Em 1997, Alan Sokal, professor da Universidade de Nova York (e claramente qualificado para
falar sobre usos da terminologia científica), estava irritado porque alguns pós-modernos
estavam surrupiando teorias e termos da física e os aplicando de forma nonsense.
Juntamente com seu colega Jean Bricmont, publicou o livro “Imposturas Intelectuais”, que
expunha de forma cuidadosa e muitas vezes bem humorada o nonsense científico aliado ao
blábláblá academicista de vários intelectuais que escrevem dessa forma. Sobre a longa
passagem da qual a citação de Guatarri é retirada, Sokal e Bricmont dizem que ela é a “mais
brilhante mistura jargões científicos, pseudocientíficos e filosóficos que jamais encontramos;
apenas um gênio poderia tê-la escrito.”⁵

“Imposturas Intelectuais” foi lançado após o “Trote de Sokal”, feito em 1996. Sokal
submeteu um artigo à revista americana “Social Text”, publicação pós-moderna da moda. O
artigo soava pretensioso e estava recheado de conversa fiada pseudocientífica. Os editores
da “Social Text”, incapazes de distinguir entre conversa fiada e profundidade, publicaram-no.
Afinal de contas, o artigo de Sokal – “Transgredindo as Fronteiras: Por Uma Hermenêutica
Transformativa da Gravidade Quântica” – fazia tanto sentido quanto outros artigos lá
publicados. Para os editores da revista, a publicação de “Transgredindo as Fronteiras”
tornou-se o momento ideal para apreciar “as novas roupas do rei”. A revista se transformou
em motivo de piada.
Sobre o trabalho de Jean Baudrillard, cheio de referências à teoria do caos, mecânica
quântica, geometria não euclidiana e outras coisas mais, escrevem Sokal e Bricmont:

       Em suma, vemos no trabalho de Baudrillard uma profusão de termos científicos
       usados sem a menor consideração pelo que eles realmente querem dizer e, acima de
       tudo, tal uso ocorre em um contexto onde os termos são obviamente irrelevantes.
       Mesmo admitindo que devemos entendê-los metaforicamente, é difícil de ver que
       papel eles desempenhariam que não seja dar aparência de profundidade a
       observações banais sobre sociologia ou história. Além disso, a terminologia científica
       é misturada com um vocabulário não científico que, por sua vez, é empregado com o
       mesmo desleixo. No final das contas, é normal pensar sobre o que sobraria do
       pensamento de Baudrillard se todo o verniz que o cobre fosse removido.6

Incluo essa citação de Sokal e Bricmont porque ela resume bem o que poderia ser dito sobre
a pseudoprofundidade de forma mais geral: a pseudoprofundidade consiste em uma refinada
mistura de banalidades, nonsense e/ou o obviamente falso servidos como um imponente
soufflé linguístico. Espete-o com um garfo, deixe o ar quente sair e você perceberá que
pouco sobra. Certamente nada que valha a pena comer.

Em defesa de Gattari, Baudrillard e outros, alguns podem dizer que Sokal e Bricmont não
entenderam o que esses escritores estavam tentando fazer. Tais pensadores pós-modernos
estão eles próprios envolvidos em algum tipo de jogo ou embuste proposital. Assim, os
objetos da piada seriam Sokal e Bricmont. Isso não cola. Como afirmou Richard Dawkins em
sua resenha de “Imposturas Intelectuais”, se os alvos de Sokal e Bricmont

       estão apenas fazendo piada, por que eles reagem com gritos de indignação quando
       alguém faz uma piada com eles? O que originou “Imposturas Intelectuais” foi um
       trote brilhante perpetrado por Alan Sokal, e o grande sucesso da sua jogada não foi
       recebido com os risos de prazer que deveríamos esperar após uma grande façanha
       no jogo da desconstrução. Aparentemente, quando você se tornou o establishment,
       deixa de ser divertido quando alguém faz um furo no seu saco de vento.⁷




Lidar com a pseudoprofundidade

Espero que esse breve esboço de alguns dos modos de geração de pseudoprofundidade
possa ajudá-lo a detectá-la com mais eficácia. Mas e se você estiver no papel de receptor de
tais tolices, como responder? Qual é a melhor forma de revelar a pseudoprofundidade pelo
que ela é? O maior inimigo da pseudoprofundidade é a clareza. Um dos modos mais eficazes
de desarmá-la é traduzi-la em português corrente. Diga “certo, você está dizendo que...” e
anote no verso de um envelope em prosa clara e sem ambiguidades o que realmente se quer
dizer. Esse exercício de tradução tipicamente revelará que o que foi dito pode ser uma das
seguintes três coisas: (1) uma falsidade óbvia, (2) nonsense, ou (3) um truísmo.
Mas combater a pseudoprofundidade raramente é assim tão fácil. Aqueles que a despejam
sobre os outros muitas vezes estão até certo ponto cientes que é provável que a clareza os
desmascare e, assim, provavelmente resistirão suas tentativas de reformular o que eles
pretendem dizer em termos claros e não ambíguos. É quase certo que eles irão acusá-lo de
estar entendendo as coisas de forma crassa. Obviamente, eles não irão explicar claramente o
que querem dizer: somente enrolarão você mudando de assunto, levantando cortinas de
fumaça, acusando-o de não entender outras coisas mais, e assim por diante. Por essa razão,
desmascarar a pseudoprofundidade muitas vezes requer tempo e paciência.

Escárnio e sátira podem ter um papel a desempenhar, como o “sermão” de Alan Bennett e o
Gerador de Pós-modernismo ilustram. A estória “As Roupas Novas do Imperador”, de Hans
Christian Andersen, termina de forma hilária quando o garotinho afirma que o imperador não
está usando quaisquer roupas. O riso do público que vê o imperador desfilando pelado
quebra o feitiço que os alfaiates charlatães tinham jogado sobre todos. Da mesma forma, o
riso pode quebrar o feitiço que a pseudoprofundidade lança sobre nós. Uma pequena sátira
pode ajudar-nos a reconhecer que fomos enganados por alguém que diz pouco mais do que
truísmos, falsidades ou nonsense travestidos de pensamento profundo. Eis aí a razão pela
qual os adeptos da pseudoprofundidade com frequência se opõem à sátira e ao escárnio,
ficando exageradamente ofendidos com tais coisas.

No entanto, há um cuidado importante que devemos ter quanto ao uso do humor.
Obviamente, qualquer crença – mesmo uma crença genuinamente profunda – pode ser
ridicularizada. Não estou sugerindo que a piada deve substituir a crítica clara e rigorosa do
tipo que eu procurei oferecer aqui. Ninguém deve ser incentivado a abandonar uma crença
só porque as pessoas riem dela. No entanto, por causa da habilidade de ajudar a quebrar o
feitiço que a pseudoprofundidade lança sobre suas vítimas, permitindo que vejamos por um
momento ou outro que fomos crédulos ou tolos, um pouco de escárnio pode muito bem ser
parte de uma resposta. Uma boa piada pode ser útil e legítima se pudermos mostrar que é
merecida.




__________________________________


1.   Em   um    discurso   na   conferência   do   American   Atheists   Institution,   no   ano   de   2009:
http://www.youtube.com/watch?v=D_9w8JougLQ (acessado em 02/10/10).


2. Retirado do site http://www.parables.com (acessado em 02/10/10).


3. Palestra inaugural de Maxwell na Universidade de Cambridge, em 1871.


4. Citado de “Imposturas Intelectuais”, de Sokal e Bricmont (Londres: Profile Books, 1998) pp. 156-57.


5. Ibid., p. 156.


6. Ibid., p. 143.
7.   Richard   Dawkins,    “Pós-modernismo     Desnudado,”    http://richarddawkins.net/articles/824-
postmodernism-disrobed.




Traduzido de “Believing Bullshit: How Not to Get Sucked Into an Intellectual Black Hole”, Prometheus
Books, 2011

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Stephenlaw

  • 1. Pseudoprofundidade Stephen Law Tradução de Aluízio Couto e revisão de Eduardo Cruz Alguns gurus do marketing, religião e estilo de vida têm insights genuinamente profundos para oferecer. Outros oferecem pouco mais do que pseudoprofundidade. Pseudoprofundidade é a arte de soar profundo falando nonsense. Diferente da arte de ser de fato profundo, a arte de soar profundo não é difícil de dominar. Como veremos, há certas receitas básicas que podem produzir resultados bastante convincentes – bons o bastante para convencer os outros e talvez até a si mesmo de que você acaba de chegar a um tipo de insight profundo sobre a condição humana. Se você quer atingir o status de um guru, será bom possuir algum carisma natural e boa presença. Sinceridade e empatia, ou pelo menos a habilidade de simulá-las, podem ser úteis. Acessórios também ajudam. Tente usar uma tanga, um barrete ou, caso em um ambiente corporativo, um colete totalmente fora de propósito. Mas mesmo sem o auxílio dos talentos naturais ou da parafernália, qualquer um pode proferir sentenças que soam profundas e significativas caso esteja preparado para seguir umas receitas simples. Diga o óbvio Para começar, tente assinalar o óbvio ululante. Apenas faça isso i-n-c-r-i-v-e-l-m-e-n-t-e d- e-v-a-g-a-r e com ar de sabedoria superior. A técnica funciona melhor se seus pronunciamentos focarem nos grandes temas da vida, tais como amor, dinheiro e morte. Por exemplo:  Todos nós já fomos crianças uma vez.  O dinheiro não pode comprar o amor.  A morte é inevitável. Diga o óbvio de uma maneira suficientemente cuidadosa. Após isso, uma longa pausa talvez caia bem. No fim das contas, possivelmente você verá as outras pessoas acenando com a cabeça em sinal de concordância e talvez até mesmo murmurando: “sim, quão verdadeiro é isso”.
  • 2. Se contradiga Uma segunda técnica é selecionar palavras com sentidos opostos ou incompatíveis e, de forma enigmática, combiná-las no que parecer uma óbvia contradição. A seguir alguns exemplos:  A sanidade é apenas mais uma forma de loucura.  A vida é frequentemente uma forma de morte.  O ordinário é extraordinário. Essas sentenças são absolutamente impenetráveis e podem facilmente parecer profundas. Na obra “1984”, de George Orwell, dois dos três slogans do Partido têm esse caráter:  Guerra é paz.  Liberdade é escravidão.  Ignorância é força. Se você é um aspirante a guru, por que não produzir seus próprios comentários contraditórios? A grande beleza de tais comentários é que eles fazem com que a audiência faça o trabalho por você. O significado não é algo que você, o guru, dirá. Seus seguidores é que terão a tarefa de decifrar. Apenas sente-se, adote uma postura sábia e deixe-os fazer o trabalho intelectual. A ideia de que a contradição é uma marca de profundidade por vezes aparece em contextos religiosos. Não crentes irão supor que contradições no interior de uma doutrina religiosa revelam que ela contém falsidades. Os crentes provavelmente vão encarar as mesmas contradições como sinal de profundidade. Contradições têm também outras vantagens: uma série de afirmações simples e não ambíguas é fácil de refutar, ao passo que não é tão fácil fazer o mesmo com tais afirmações enigmáticas. Assim, se você pensa em iniciar sua própria religião e quer dizer coisas que parecerão profundas e também invulneráveis à crítica, tente fazer afirmações contraditórias. Afirme, mas então negue. Por exemplo, diga que seu deus particular é – e, no entanto, não é. Que seu deus é tudo e nada. Que ele é um, mas ao mesmo tempo vários. Que ele é bom, mas, uma vez mais, não o é. Nada do que eu disse é equivale a dizer que tais afirmações aparentemente contraditórias não podem ter algo de genuinamente profundo. Certamente, elas podem ser provocativas (aposto que você é capaz de achar algum tipo de verdade em todos os exemplos mordazes de Orwell). Mas, dado que a forma de contradições pode ser usada para gerar pseudoprofundidade, é uma boa ideia não se impressionar facilmente. Dois sentidos: verdadeiro, mas trivial; aparentemente profundo, mas falso
  • 3. Outra receita para gerar pseudoprofundidade, identificada pelo filósofo Daniel Dennett¹, envolve dizer alguma coisa com dois sentidos, em que um desses sentidos é trivialmente verdadeiro e o outro, embora pareça profundo, é falso ou puro nonsense. Dennett ilustra isso com a expressão “O amor é somente uma palavra”. Em uma leitura, trata-se de uma frase sobre a palavra “amor” (mas note que, se a frase é sobre essa palavra, então ela deveria ser usada entre aspas). A palavra “amor” é de fato apenas uma palavra, tal como as palavras “aço” e “concreto”. Vendo as coisas dessa forma, a frase é trivialmente verdadeira. No entanto, lendo-a de outra forma, a frase não é sobre a palavra “amor”, mas sobre o próprio amor – ou seja, sobre o que a palavra “amor” se refere. O amor é frequentemente definido como um sentimento ou uma emoção. É ainda defensável que o amor seja uma ilusão. Mas, definitivamente, o amor não é uma palavra. Portanto, nessa leitura, a frase “o amor é só uma palavra” é obviamente falsa. Esse recurso se beneficia espertamente da ambiguidade entre ambas as leituras. É a ambiguidade que gera a resposta do tipo “oh, uau” e que faz as pessoas suspirarem, dizendo algo como “Meu Deus, o amor é de fato apenas uma palavra, não é mesmo?”, como se tivessem dado de cara como algo terrivelmente profundo. Banalogias Aqui temos um modo particularmente eficaz de geração de pseudoprofundidade. Em primeiro lugar, pegue algumas observações completamente banais sobre a condição humana, tais como:  A vida é muitas vezes surpreendente.  As pessoas muitas vezes pensam que há algo faltando em suas vidas.  Deveríamos apreciar as coisas enquanto ainda podemos.  Deveríamos aproveitar ao máximo as oportunidades que temos. Agora, recheie sua observação banal com uma analogia. Chamo banalogia o resultado. “A vida é como um(a)” fornece um modelo popular. A seguir uns rápidos exemplos achados na Internet:  Minha mãe sempre disse que a vida era como uma caixa de chocolates. Você nunca sabe o que vai conseguir pegar. (Forrest Gump)  A vida é como um taxi. O taxímetro continua funcionando esteja você indo para algum lugar ou apenas parado. (Lou Erickson)  A vida é uma pedra de amolar. Se ela nos tritura ou pole, depende de nós. (Thomas L. Holdcroft)  A vida é como uma moeda. Você pode gastá-la do modo que quiser, mas só fará isso uma vez. (Lillian Dickson)
  • 4. O resultado pode soar muitas vezes terrivelmente profundo. Sermões e homilias por vezes envolvem banalogias. Alan Bennett fez uma engraçada paródia disso em seu sketch “O sermão” (Bennett se apresentou usando uma coleira): A vida, vocês sabem, é como abrir uma lata de sardinhas. Todos nós estamos procurando pelo abridor. E imagino quantos de vocês que estão aqui esta noite já não perderam anos de suas vidas nos armários de cozinha procurando por esse abridor. Eu sei, eu também perdi anos. Já outros pensam que acharam o abridor, não pensam? Eles abrem a tampa da lata de sardinha da vida. Mostram-nos as sardinhas, as riquezas da vida, tiram as sardinhas da lata e as apreciam. Mas vocês sabem: sempre há um restinho que fica agarrado no canto da lata. Então penso: há um restinho agarrado no canto da sua vida? Sei que na minha há! O autor Douglas Adams, irritado com as pseudoprofundidades do tipo “a vida é como um(a)”, produziu uma surreal versão própria: A vida... é como uma laranja-romã. É alaranjada, espirra em jatos e há nela alguns caroços. Algumas pessoas têm metade de uma para o café da manhã. Parábolas às vezes são banalogias. Veja esse exemplo: O jovem já estava no fim da linha. Não vendo saída, deixou-se cair sobre os joelhos em oração. “Senhor, não consigo prosseguir”, disse ele. “Minha cruz é muito pesada.” O Senhor respondeu: “Meu filho, se você não pode suportar o peso dela, ponha sua cruz dentro deste lugar, abra depois outra porta e escolha qualquer cruz que quiser.” O homem ficou aliviado. “Obrigado, Senhor”, e fez como lhe foi dito. Ao fazer isso, viu muitas cruzes diferentes; era impossível ver o topo de algumas, tão grandes que eram. Então ele avistou uma pequena cruz encostada na parede. “Quero essa, Senhor”, sussurrou. E o Senhor respondeu: “meu filho, essa é a cruz que você trouxe.”² Pegue a verdade importante - mas óbvia - de que nós por vezes superestimamos nossos infortúnios e não conseguimos ver quão sérios são os problemas dos outros, trace uma analogia com carregar cruzes pesadas e voilà, você é profundo! Nesse exemplo, a pseudoprofundidade também serve para distrair a atenção do ouvinte de questões mais problemáticas do tipo: em primeiro lugar, por que Deus insiste em fazer com que as pessoas carreguem fardos horrendos? Use jargões Se você é um guru do business, consultor de estilos de vida ou místico, introduzir algum jargão pode incrementar ainda mais a ilusão de profundidade. Aqui vai um truque comum: invente algumas palavras que parecem ter significado similar ao de certos termos bem conhecidos, mas que deles difiram de uma maneira nunca completamente explicada. Por
  • 5. exemplo, não fale sobre as pessoas serem felizes ou tristes; fale sobre elas terem orientações atitudinais positivas ou negativas. O próximo passo é traduzir alguns truísmos para seu novo vocabulário. Pegue a observação banal de que pessoas felizes tendem a fazer as outras pessoas mais felizes. Ela pode ser remodelada como “orientações atitudinais positivas têm alto poder de transferência”. É Também útil adotar o vocabulário de “forças”, “energias” e “equilíbrios”. O uso dessas palavras irá sugerir que você descobriu algum poder profundo que pode ser aproveitado e usado pelas outras pessoas. Isso fará com que seja bem mais fácil persuadi-las de que elas podem perder algo de realmente importante caso não compareçam a um de seus seminários. Assim, se você é um guru do marketing, tente fazer seminários sobre o “Aproveitamento das Energias Atitudinais Positivas dentro do Varejo”. E se algum espertinho for corajoso o suficiente para levantar a mão e perguntar o que exatamente é uma “energia atitudinal positiva”, defina utilizando mais jargão. Fazendo isso, você jamais terá de realmente explicar o significado da sua conversa fiada. Além disso, os vários truísmos embutidos no seu jargão irão gerar a ilusão de que você realmente tem algo a dizer, mesmo que audiência não faça muita ideia do que seja - o que é uma boa forma de deixá-la com mais vontade de ouvi-lo. Adicionar algum jargão ou referência científica pode ser particularmente útil ao seu papo furado porque essas coisas emulam autoridade e substância. Muitos adeptos da pseudoprofundidade aprenderam com o insight presente em um comentário de James Clerk Maxwell, um dos grandes cientistas do século XIX: “o respeito pela ciência é tal que as opiniões mais absurdas se tornam correntes desde que expressas em uma linguagem que lembre alguma frase científica bem conhecida.”³ Referências à mecânica quântica são particularmente populares entre os vendedores de conversa fiada pseudocientífica. Uma vez que se espera que ela faça afirmações um tanto estranhas e difíceis de entender, é uma boa ideia abusar das referências em favor das bizarrices que você tem a dizer. As pessoas pensarão que você deve ser muito inteligente e sequer perceberão que você é um tapeador. Portanto, caso você seja ambicioso, pode ser uma boa ideia inventar uma palestra com o título “Energias Atitudinais Positivas e Mecânica Quântica”. Pseudoprofundidade pós-modernista Infelizmente, alguns setores da academia são dominados por intelectuais cuja escrita não é muito mais do que pseudoprofundidade. Retire o jargão acadêmico e as referências pseudocientíficas de seus pronunciamentos grandiosos e pouco sobrará. Tais pensadores, frequentemente referidos como “pós-modernos”, possuem mais apetrechos do que sua justa cota de jargão pastoso. Mas, de qualquer forma, é muito fácil fazer algo soar como legítimo academiquês pós-modernista, tanto que um brincalhão chamado Andrew Bulhak criou um programa de computador que escreve ensaios “pós-modernos” para você – e com as devidas
  • 6. referências. Para visitar o Gerador de Pós-Modernismo, acesse http://www.elsewhere.org/pomo/. Acabei de testar e recebi um ensaio que começa assim: O tema primordial do modelo de marxismo neo-estrutural de Cameron é o que há de comum entre a sociedade e a cultura. A análise de Sontag da situação Debordiana afirma que a sociedade tem valor objetivo. Entretanto, Marx promove o uso do marxismo para a análise de classe. A situação Debordiana sustenta que o objetivo do observador é a desconstrução. Portanto, o sujeito é interpolado em um marxismo neo-estrutural que inclui a arte como um paradoxo. Vários materialismos que dizem respeito à teoria subdialética semanticista podem ser encontrados. Isso até pode ser nonsense, mas dificilmente faz menos sentido do que a coisa real. Talvez até faça mais sentido. Considere o seguinte exemplo, do intelectual francês Félix Guattari: Podemos ver claramente que não há qualquer correspondência biunívoca entre ligações linearmente significantes ou arqui-escritos, dependendo do autor, e essa catálise maquínica multidimensional e multi-referencial. A simetria da escala, a transversalidade, o caráter pático e não discursivo de suas expansões: todas essas dimensões nos distanciam da lógica do terceiro excluído e reforçam o descarte do binarismo ontológico que criticamos anteriormente. Uma assembléia maquínica, através de seus componentes diversos, extrai sua consistência cruzando limiares ontológicos, limiares não lineares de irreversibilidade, limiares ontológicos e filogenéticos e limiares criativos de heterogênese e autopoiese.⁴ Em 1997, Alan Sokal, professor da Universidade de Nova York (e claramente qualificado para falar sobre usos da terminologia científica), estava irritado porque alguns pós-modernos estavam surrupiando teorias e termos da física e os aplicando de forma nonsense. Juntamente com seu colega Jean Bricmont, publicou o livro “Imposturas Intelectuais”, que expunha de forma cuidadosa e muitas vezes bem humorada o nonsense científico aliado ao blábláblá academicista de vários intelectuais que escrevem dessa forma. Sobre a longa passagem da qual a citação de Guatarri é retirada, Sokal e Bricmont dizem que ela é a “mais brilhante mistura jargões científicos, pseudocientíficos e filosóficos que jamais encontramos; apenas um gênio poderia tê-la escrito.”⁵ “Imposturas Intelectuais” foi lançado após o “Trote de Sokal”, feito em 1996. Sokal submeteu um artigo à revista americana “Social Text”, publicação pós-moderna da moda. O artigo soava pretensioso e estava recheado de conversa fiada pseudocientífica. Os editores da “Social Text”, incapazes de distinguir entre conversa fiada e profundidade, publicaram-no. Afinal de contas, o artigo de Sokal – “Transgredindo as Fronteiras: Por Uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica” – fazia tanto sentido quanto outros artigos lá publicados. Para os editores da revista, a publicação de “Transgredindo as Fronteiras” tornou-se o momento ideal para apreciar “as novas roupas do rei”. A revista se transformou em motivo de piada.
  • 7. Sobre o trabalho de Jean Baudrillard, cheio de referências à teoria do caos, mecânica quântica, geometria não euclidiana e outras coisas mais, escrevem Sokal e Bricmont: Em suma, vemos no trabalho de Baudrillard uma profusão de termos científicos usados sem a menor consideração pelo que eles realmente querem dizer e, acima de tudo, tal uso ocorre em um contexto onde os termos são obviamente irrelevantes. Mesmo admitindo que devemos entendê-los metaforicamente, é difícil de ver que papel eles desempenhariam que não seja dar aparência de profundidade a observações banais sobre sociologia ou história. Além disso, a terminologia científica é misturada com um vocabulário não científico que, por sua vez, é empregado com o mesmo desleixo. No final das contas, é normal pensar sobre o que sobraria do pensamento de Baudrillard se todo o verniz que o cobre fosse removido.6 Incluo essa citação de Sokal e Bricmont porque ela resume bem o que poderia ser dito sobre a pseudoprofundidade de forma mais geral: a pseudoprofundidade consiste em uma refinada mistura de banalidades, nonsense e/ou o obviamente falso servidos como um imponente soufflé linguístico. Espete-o com um garfo, deixe o ar quente sair e você perceberá que pouco sobra. Certamente nada que valha a pena comer. Em defesa de Gattari, Baudrillard e outros, alguns podem dizer que Sokal e Bricmont não entenderam o que esses escritores estavam tentando fazer. Tais pensadores pós-modernos estão eles próprios envolvidos em algum tipo de jogo ou embuste proposital. Assim, os objetos da piada seriam Sokal e Bricmont. Isso não cola. Como afirmou Richard Dawkins em sua resenha de “Imposturas Intelectuais”, se os alvos de Sokal e Bricmont estão apenas fazendo piada, por que eles reagem com gritos de indignação quando alguém faz uma piada com eles? O que originou “Imposturas Intelectuais” foi um trote brilhante perpetrado por Alan Sokal, e o grande sucesso da sua jogada não foi recebido com os risos de prazer que deveríamos esperar após uma grande façanha no jogo da desconstrução. Aparentemente, quando você se tornou o establishment, deixa de ser divertido quando alguém faz um furo no seu saco de vento.⁷ Lidar com a pseudoprofundidade Espero que esse breve esboço de alguns dos modos de geração de pseudoprofundidade possa ajudá-lo a detectá-la com mais eficácia. Mas e se você estiver no papel de receptor de tais tolices, como responder? Qual é a melhor forma de revelar a pseudoprofundidade pelo que ela é? O maior inimigo da pseudoprofundidade é a clareza. Um dos modos mais eficazes de desarmá-la é traduzi-la em português corrente. Diga “certo, você está dizendo que...” e anote no verso de um envelope em prosa clara e sem ambiguidades o que realmente se quer dizer. Esse exercício de tradução tipicamente revelará que o que foi dito pode ser uma das seguintes três coisas: (1) uma falsidade óbvia, (2) nonsense, ou (3) um truísmo.
  • 8. Mas combater a pseudoprofundidade raramente é assim tão fácil. Aqueles que a despejam sobre os outros muitas vezes estão até certo ponto cientes que é provável que a clareza os desmascare e, assim, provavelmente resistirão suas tentativas de reformular o que eles pretendem dizer em termos claros e não ambíguos. É quase certo que eles irão acusá-lo de estar entendendo as coisas de forma crassa. Obviamente, eles não irão explicar claramente o que querem dizer: somente enrolarão você mudando de assunto, levantando cortinas de fumaça, acusando-o de não entender outras coisas mais, e assim por diante. Por essa razão, desmascarar a pseudoprofundidade muitas vezes requer tempo e paciência. Escárnio e sátira podem ter um papel a desempenhar, como o “sermão” de Alan Bennett e o Gerador de Pós-modernismo ilustram. A estória “As Roupas Novas do Imperador”, de Hans Christian Andersen, termina de forma hilária quando o garotinho afirma que o imperador não está usando quaisquer roupas. O riso do público que vê o imperador desfilando pelado quebra o feitiço que os alfaiates charlatães tinham jogado sobre todos. Da mesma forma, o riso pode quebrar o feitiço que a pseudoprofundidade lança sobre nós. Uma pequena sátira pode ajudar-nos a reconhecer que fomos enganados por alguém que diz pouco mais do que truísmos, falsidades ou nonsense travestidos de pensamento profundo. Eis aí a razão pela qual os adeptos da pseudoprofundidade com frequência se opõem à sátira e ao escárnio, ficando exageradamente ofendidos com tais coisas. No entanto, há um cuidado importante que devemos ter quanto ao uso do humor. Obviamente, qualquer crença – mesmo uma crença genuinamente profunda – pode ser ridicularizada. Não estou sugerindo que a piada deve substituir a crítica clara e rigorosa do tipo que eu procurei oferecer aqui. Ninguém deve ser incentivado a abandonar uma crença só porque as pessoas riem dela. No entanto, por causa da habilidade de ajudar a quebrar o feitiço que a pseudoprofundidade lança sobre suas vítimas, permitindo que vejamos por um momento ou outro que fomos crédulos ou tolos, um pouco de escárnio pode muito bem ser parte de uma resposta. Uma boa piada pode ser útil e legítima se pudermos mostrar que é merecida. __________________________________ 1. Em um discurso na conferência do American Atheists Institution, no ano de 2009: http://www.youtube.com/watch?v=D_9w8JougLQ (acessado em 02/10/10). 2. Retirado do site http://www.parables.com (acessado em 02/10/10). 3. Palestra inaugural de Maxwell na Universidade de Cambridge, em 1871. 4. Citado de “Imposturas Intelectuais”, de Sokal e Bricmont (Londres: Profile Books, 1998) pp. 156-57. 5. Ibid., p. 156. 6. Ibid., p. 143.
  • 9. 7. Richard Dawkins, “Pós-modernismo Desnudado,” http://richarddawkins.net/articles/824- postmodernism-disrobed. Traduzido de “Believing Bullshit: How Not to Get Sucked Into an Intellectual Black Hole”, Prometheus Books, 2011